O Século Chinês

(publicado em O Estado de São Paulo, 10/04/2020)

“Indústria Americana”, o documentário produzido pela produtora de Michelle e Barack Obama que ganhou o Oscar de melhor documentário este ano e pode ser visto no Netflix, conta a história tragicômica de um milionário chinês que decide transformar uma planta abandonada da General Motors nos Estados Unidos em uma moderna fábrica de vidros de automóveis, com operários americanos trabalhando sob as ordens de gerentes chineses. Os chineses se esforçam para entender a cultura individualista e a falta de disciplina dos americanos, levam americanos para a China para ver como uma fábrica deve funcionar, e acabam trocando a maioria dos americanos por robôs, para que a fábrica finalmente possa dar lucro.

Vendo o filme, fica mais fácil entender o sucesso dos chineses em controlar a epidemia do coronavirus em Wuhan com um mínimo de mortes e impedindo que ela se alastrasse por sua imensa população, e a dificuldade dos americanos e europeus em fazer o mesmo. A explicação que geralmente se ouve é que a China é um estado autoritário, com poderes para controlar sua população que seriam inimagináveis em uma democracia. Há rumores de que não estão contando toda a história, pode ser, mas o a fato é que conseguiram estancar a hemorragia. Além da força bruta, outros dois fatores, a forte coesão social e o uso intensivo e competente de tecnologias avançadas, parecem ter sido muito mais importantes.

“Coesão social” se refere ao grau em que as pessoas se sentem parte de uma comunidade e obedecem às normas de comportamento de seus grupos. Todos concordam que é uma coisa boa, mas discordam sobre quanto. No documentário, os americanos olham espantados como os operários chineses marcham sincronizados e gritam palavras de ordem, e como, em uma festa da fábrica, as crianças dançam com precisão geométrica em louvor à eficiência e à produtividade, lembrando as gigantescas manifestações coreografadas na Coreia do Norte em homenagem ao Grande Líder. Os chineses trabalham muito mais horas por dia do que os americanos, ganham muito menos, e são muito mais produtivos.

Vendo isso, é difícil separar o que é coesão social do que é totalitarismo, mas outros países que também estão conseguindo controlar a epidemia, como a Coreia do Sul, Singapura, Taiwan e Japão, são regimes democráticos com culturas semelhantes à chinesa. É a coesão social, mais do que o regime político, que os diferencia dos países ocidentais.

O terceiro fator que explica o sucesso destes países é o uso intensivo de tecnologias de testagem, acompanhamento dos movimentos da população pelos celulares, equipamentos de proteção de médicos e paramédicos e amplo uso de equipamentos caros e complexos como tomógrafos para melhor diagnosticar os doentes. Aqui também vem a dúvida de quanto é admissível, em uma democracia, permitir que governos controlem cada movimento das pessoas, mas isto já é feito em nossos países para fins comerciais.  Estas tecnologias também estão disponíveis e muitas delas tiveram origem no ocidente, mas os orientais têm sido mais eficientes em produzir, inovar e utilizá-las em grande escala do que os americanos e europeus.

Das muitas especulações que se fazem sobre como será o mundo pós-coronavirus, para quem sobreviver à imensa catástrofe que estamos presenciando, me parece claro que o século 21 será, definitivamente, o século chinês. Isto não significa que ficaremos todos sob a ditadura de Xi Jinping, já que a própria China pode evoluir para formas menos autocráticas de governo e os países ocidentais certamente recuperarão suas economias. Mas a China, que já vinha ocupando um espaço cada vez maior na economia mundial, deve sair desta crise muito mais fortalecida, transferindo definitivamente o polo da economia e do avanço tecnológico mundial para o oriente.

Das lições que temos que aprender da China, a que menos interessa, e que infelizmente muitos vão apregoar, é que as democracias não são capazes de enfrentar os grandes desafios epidemiológicos e ambientais que nos esperam, e precisam ser substituídas pelos candidatos a ditadores que surgem nestas horas difíceis. A democracia precisa ser preservada, mas deve ser menos disfuncional, com instituições públicas mais fortes nas áreas de ciência e tecnologia, políticas sociais mais firmes, e mecanismos legais capazes de lidar rapidamente com os eventuais comportamentos predatórios e demagógicos de seus líderes. Mais do que armas para eventuais guerras, é indispensável ter estoques estratégicos de suprimentos e equipamentos médicos que não dependam dos interesses comerciais e incertezas do mercado internacional, como vem ocorrendo. O SUS precisa ser repensado, concentrando recursos na saúde preventiva, vigilância epidemiológica e atendimento médico à população carente. Não se pode, e não sei se queremos, copiar o modelo de coesão social dos países orientais, mas precisamos tornar nossas sociedades mais educadas, coesas e solidárias. Sairemos desta tragédia mais pobres e sofridos, mas, quem sabe, um pouco mais sábios, para conseguir sobreviver no século chinês.

Morrer em Łódź

(Publicado em O Estado de São Paulo, 13 de setembro de 2019)

Neste agosto de 2019 fui à Polônia participar de um encontro da família de minha mãe, descendentes de antigos habitantes e sobreviventes do gueto da cidade de Lodz (Łódź), liquidado pelos nazistas 75 anos atrás. Dos 200 mil judeus confinados em quatro quilômetros quadrados e forçados a trabalhar como escravos desde 1942, menos de 10 mil conseguiram escapar. Todos os demais morreram de fome, doenças, execuções, nas câmaras de gás e nos fornos crematórios de Chelmno e Auschwitz. 

Uma pequena tragédia, dentro dos horrores do extermínio programado de 6 milhões de judeus, dos quais 500 mil no gueto de Varsóvia, sem falar nas dezenas de milhões de mortos na União Soviética, na China e em outros países na 2.ª Guerra. Mas cada tragédia, com suas histórias de resistência, morte e sobrevivência, que atingem a cada pessoa e cada família, é única e incomensurável, e precisa ser sempre relembrada para entender o que aconteceu e evitar sua repetição. 

Em 1961, escrevendo sobre o julgamento de Adolph Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt criou uma grande controvérsia ao falar sobre a “banalidade do mal”, a maneira rotineira e burocrática como Eichmann e, por extensão, o governo nazista administravam a máquina de extermínio, desprovidos aparentemente de qualquer sensibilidade ou motivação de ódio, simplesmente “obedecendo ordens”. Para seus críticos, essa interpretação era inaceitável, porque de alguma forma eximia os nazistas de culpa e responsabilidade por suas atrocidades, pelas quais deveriam ser condenados e punidos. 

Penso que, ao contrário, Hannah Arendt falava de uma culpa muito mais profunda e perturbadora, que é a da normalização da violência, que traz o problema da responsabilidade muito mais perto de cada um de nós do que gostaríamos de reconhecer. Em graus diferentes, todos, de alguma maneira, nos insensibilizamos com os absurdos e tragédias que presenciamos no dia a dia, ou que nos chegam a cada momento pelos noticiários, por conformismo ou simplesmente para continuar sobrevivendo. Em vez de uma humanidade dividida entre monstros morais, por um lado, e justos e inocentes, por outro, o que temos são seres humanos imperfeitos que se adaptam às circunstâncias em que vivem e podem ser capazes, em situações extremas, tanto de ações terríveis quanto de comportamentos éticos, heroicos e moralmente íntegros. Será que, por isso, somos todos culpados, ou todos inocentes? 

Existem duas perguntas que surgem aqui, a de por que esses comportamentos violentos e destrutivos crescem e ganham raízes em determinados momentos, e a da conformidade de pessoas que não pensam ou agem da mesma maneira, mas se tornam coniventes. 

Uma das grandes questões sobre a 2.ª Guerra é como a Alemanha, até então um país tão proeminente na ciência, na cultura e na filosofia, chegou a esses extremos, com o apoio ou ao menos a passividade de grande parte de sua população. Uma das explicações é a crise econômica e institucional dos anos 20, que levou à polarização crescente da política e abriu espaço para um demagogo que, prometendo um futuro de grandeza, dava voz aos sentimentos de raiva e frustração da população, liberando os preconceitos e estimulando o ataque a um suposto inimigo bem próximo e indefeso, os judeus. O culto à violência, a grosseria, a falta de limites e o anti-intelectualismo dos nazistas eram legitimados, ainda, por toda uma corrente de filósofos e ensaístas que elaboravam ideologias autoritárias, militaristas, nacionalistas, populistas e racistas, que foram tornando o nazismo e o antissemitismo cada vez mais “respeitáveis” e aceitáveis. 

Era uma aceitação limitada, e muito foi escrito sobre o desprezo dos generais alemães, de origem aristocrática, pelo oficial subalterno que chegara ao poder, e que tinham a ilusão de poder controlar. Acabou preponderando, no entanto, o pragmatismo, não só dos militares, mas de empresários e muitos intelectuais, com triste destaque para o filósofo Martin Heidegger. Hitler estava no poder, encarnava a vontade do povo alemão, era uma oportunidade para a economia crescer e conquistar novos territórios, e era melhor fechar os olhos para detalhes desagradáveis, como o extermínio dos judeus, homossexuais, ciganos e opositores, e ficar de seu lado. 

Em Lodz, a versão trágica do pragmatismo foi o curto reinado de Chaim Rumkowski, judeu designado pelos alemães como presidente do Conselho Administrativo – o Judenrat – e comandante do gueto. Rum-kowski fez do gueto uma fábrica de suprimentos de guerra, escravizando a população, e governou com mão de ferro, ajudado por uma polícia judaica que reprimia com violência as tentativas de resistência e selecionava pessoas para os campos de extermínio, ao mesmo tempo que garantia para seu grupo a comida, os espaços e as condições mínimas de sobrevivência que eram negados aos demais. A justificativa era que, colaborando, poderiam livrar mais gente do extermínio, e sobreviver. De fato, o gueto de Lodz durou um ano mais que o de Varsóvia, e Rumkowski e sua família foram dos últimos a ser enviados para os fornos crematórios, em 1944. 

No gueto de Varsóvia, no início Adam Czerniakow também tentou colaborar, mas acabou se suicidando quando os alemães ordenaram o aumento do número de deportados. Um ano depois, os habitantes do gueto se insurgiram, e foram massacrados pelas tropas da SS em 1943. 

Em Łódź, como em Varsóvia, a situação era extrema, a máquina de extermínio não se detinha e a morte era inevitável. Mesmo assim, restava ainda a opção de cada um entre o conformismo e a rebelião, mesmo que à custa da própria vida, de qualquer forma, efêmera. 

Eichmann e Rumkowski não eram somente peças de uma engrenagem, tinham escolhas que poderiam fazer e não fizeram, e são essas escolhas, quando exercidas, que ainda nos permitem manter esperança na humanidade.

As Universidades Brasileiras, a OCDE e o Processo de Bologna

(Publicado no jornal O Estado de São Paulo, 12 de julho de 2019)

O objetivo do ingresso do Brasil na Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento, OCDE, é fazer com que o país se comprometa com a adoção das melhores práticas internacionais de políticas públicas, que possam melhorar as condições vida da população, não só na economia, mas também no meio ambiente e nas questões sociais. Na educação, o Brasil já participa do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, o PISA, e, em 2018, uma equipe da OECD analisou o sistema brasileiro de avaliação da Educação Superior, o SINAES, recomendando alterações profundas que ainda precisam ser implementadas.

Este é o momento também de avançar na modernização da educação superior, cuja última reforma data de 1968, quando havia não mais do que 100 mil estudantes neste nível em todo o país. Naquele ano, o Brasil resolveu adotar o modelo universitário norte-americano, com seus cursos de pós-graduação, departamentos, institutos de pesquisa e professores de tempo integral, que foi sobreposto às antigas faculdades profissionais organizadas no velho modelo francês ou italiano. A origem da reforma de 1968 é geralmente atribuída ao famoso acordo MEC-USAID, mas é curioso que os americanos só tenham recomendado que copiássemos a ponta da pirâmide da educação superior de seu país, as famosas universidades de pesquisa, e tivessem se esquecido da enorme base dos community colleges e universidades estaduais, originárias em sua maioria dos land-grant colleges que, desde o século 19, fizeram da educação superior americana uma das mais diversificadas, amplas e acessíveis do mundo (veja a respeito a classificação das instituições de ensino superior americanas feita originalmente pela Carnegie Foundation). Outra hipótese, mais plausível, é que foram os brasileiros que só se interessaram pela parte mais elitista do sistema.

Hoje já temos uma educação superior de massas, com 8 milhões de estudantes extremamente diversificados em instituições também muito distintas, mas continuamos aferrados a um modelo tradicional de universidade de elite. Ainda achamos que o ensino é sempre “indissociável” da pesquisa, que todos os professores devem ter doutorado, que a educação superior deve ser gratuita e que não é possível obter um título universitário em menos de 4 ou 5 anos. A realidade, no entanto, é bem diversa: a maioria dos professores não pesquisa, três quartos dos alunos pagam suas matrículas no setor privado, quase metade dos alunos abandonam os estudos antes de terminar, e as faculdades não podem contratar como professores profissionais experientes que não tenham títulos acadêmicos.

Em contraste, em 1999 os países da União Europeia iniciaram um ambicioso processo de reforma da educação superior que ficou conhecido como Processo de Bologna, do qual já participam hoje cerca de 50 nações. Um dos objetivos é fazer com que a formação e os títulos universitários dos países participantes sejam equivalentes, facilitando a mobilidade internacional dos profissionais. Para nós, o que mais interessa é a adoção de um sistema de cursos escalonados, semelhante ao americano e inglês. Neste formato, o ingresso na educação superior se dá em um primeiro nível de três anos, quando o estudante se aprofunda em algumas áreas como ciências sociais ou ciências biológicas, e adquire um título de bacharel, e existe também um amplo sistema de formação mais prática, vocacional. O segundo nível, de um ou dois anos, é o de mestrado, onde o estudante se profissionaliza em áreas como administração, engenharia, enfermagem ou comunicações (não existem “mestrados acadêmicos”). E há um terceiro nível, de doutorado, para formação avançada em pesquisa e carreiras mais complexas como medicina e alta tecnologia. As instituições podem se especializar ou combinar os três níveis de maneira distinta, ampliando o ensino e concentrando os cursos avançados e a pesquisa de qualidade em um número relativamente menor de entidades.

A mudança na estrutura dos cursos é só um dos elementos necessários para uma reforma mais ampla. A segunda é mudar o sistema de financiamento, que deve se diversificar e, na parte pública, ser feito através de contratos de gestão em que as instituições estabelecem suas prioridades e são financiadas conforme seus planos de trabalho e capacidade demonstrada de cumpri-los. Para isto, elas precisam ter efetiva autonomia de gestão financeira e patrimonial, o que é incompatível com o atual regime de repartição pública. As instituições públicas precisam adotar práticas gerenciais típicas de empresas modernas, e as privadas, para serem reconhecidas e receber apoio, precisam demonstrar qualidade e relevância. Como no setor privado, as instituições públicas devem ter carreiras próprias para seus professores e funcionários, liberdade para negociar salários, e flexibilidade nos contratos de trabalho. Parte do financiamento pode ser feito a partir de subsídios, cobrança ou financiamento direto aos estudantes, tanto no setor público quanto privado, adotando um sistema de crédito educativo como o australiano, em que o ressarcimento é feito em função da renda futura. O atual sistema de avaliação precisar ser alterado, tornando as universidades mais responsáveis pela qualidade de seus cursos, fazendo uso de dados sobre taxas de aprovação e mercado de trabalho, e reformando profundamente o ENEM.

A transição do velho sistema para o novo, em países como Portugal ou Alemanha, não foi simples, e a criação de um sistema integrado de padrões e equivalência de títulos ainda está longe de ter se completado. Mas, no novo formato, os países têm conseguido ampliar o acesso à educação superior, distribuí-la conforme as demandas e necessidades dos diferentes setores e investir mais e melhor em pesquisa e inovação. Mudanças como estas são controversas, precisam ser amadurecidas, mas precisam ser encaradas. Está mais do que na hora de começarmos a buscar novos caminhos.

Universidade para todos?

Em entrevista para o jornal Valor o Ministro da Educação, Ricardo Velez, disse que Universidade para Todos não existe, que a universidade deveria ser para uma elite intelectual. O reitor da Unicamp, Marcelo Knobel, contestou dizendo que a política de sua universidade é de inclusão, e vai na direção oposta. Quem tem razão?

Taxas brutas de matrícula na educação superior (dados do Banco Mundial)

O gráfico acima dá as taxas de matrícula na educação superior em diversas partes do mundo. O único país que se aproxima do acesso para todos é a Coreia do Sul, seguida dos Estados Unidos, com cerca de 80%. Os países da Europa e Ásia central estão perto de 50%, e o Brasil e América Latina perto dos 40%. Estas são taxas “brutas”, que comparam o total de matriculados com uma população de referência, dos 5 anos posteriores à educação média, ou seja, de 18 a 22 anos no caso brasileiro. No Brasil, quase 60% dos estudantes de nível superior têm 23 anos ou mais, e por isto a participação efetiva dos jovens é muito menor.

Mais importante do que os dados, no entanto, é o fato de que estas são taxas de participação na “educação terciária”, e não em “universidades”, e isto é fundamental para entender a questão. Na Coréia, 32% dos estudantes de nível superior estão em cursos curtos de 2 a 3 anos. Nos Estados Unidos, 38%. Nos países europeus, com o chamado “modelo de Bologna”, a grande maioria dos estudantes se matricula em cursos de bacharelado de 3 anos, semelhantes aos “colleges” ingleses, e depois continuam ou não estudando em cursos mais especializados.

Em síntese, o que se observa em todo o mundo é uma tendência crescente à maior participação da população na educação terciária, ou superior, que provavelmente continuará aumentando, mas não necessariamente em universidades de tipo tradicional. Continuarão existindo universidades de pesquisa como a Unicamp, que continuarão sendo altamente seletivas mesmo com políticas de ação afirmativa como as que estão sendo adotadas; e existirão cada vez mais outras modalidades de educação terciária, cada vez mais inclusivas. A discussão não deve ser entre “universidade para todos” e “universidades para as elites”, e sim em como superar um modelo antiquado de educação superior como o brasileiro que cresceu de forma caótica por não considerar a sério a necessidade e as implicações da diferenciação em uma era de educação superior de massas.

Cobrança de mensalidades e privatização das Universidades Públicas

Entrevista para o jornal Gazeta do Povo,  publicada em 29/08/2018

O tema da cobrança de mensalidades nas Instituições de Ensino Superior (IES) públicas tem se tornado recorrente nos últimos anos, em razão do cenário de crise vivido pelas entidades. De modo geral, como o senhor avalia essa pauta? É uma saída viável para o país?

Acho a pauta viável e necessária, desde que bem entendida e bem encaminhada. A cobrança de mensalidades não vai resolver o problema financeiro das instituições, que custam muito mais do que poderia ser arrecadado, mas seria um componente de uma política mais ampla para tornar a educação superior brasileira mais compatível com as possibilidades e necessidades do país. O mais importante, como menciono abaixo, seria avançar efetivamente na diversificação da educação superior pública, criando instituições com finalidades, custos e modelos de gestão e financiamento também diferenciado.

O Banco Mundial defendeu a cobrança num relatório divulgado em 2017. Uma das justificativas é o fato de boa parte dos alunos pertencerem a famílias com alto poder aquisitivo. Porém, existem pesquisas de entidades como Andifes e Fonaprace que não confirmam esses dados e apontam um crescimento da fatia de estudantes mais pobres. Na sua opinião, a universidade pública ainda é um ambiente elitista? Os mecanismos sociais de inclusão podem apontar um caminho correto para a mudança do perfil?

Os dados são muito claros, da PNAD de 2017. O perfil dos alunos do ensino superior é bem variado, tanto no setor público quanto privado. Existem poucos de famílias de renda muito baixa e baixa, de até um salário mínimo de renda familiar per capita, e um predomínio de estudantes de famílias de renda média, entre 1 e 2 salários mínimos. A rede pública tem proporcionalmente mais alunos de renda familiar mais baixa, mas tem menos em termos absolutos, porque a rede pública é pequena – só 25% da matrícula; e existe um segmento significativo de alunos de famílias mais ricas nos dois setores. Estes dados não mostram um fato importante, que é que a maioria dos estudantes mais pobres estão em cursos noturnos, de mais fácil acesso, menos competitivos e que levam a menores rendimentos no mercado de trabalho, como os das profissões sociais. Pelos dados do ENADE 2004-2006, 20% ou mais dos estudantes de medicina, ciências econômicas, design, direito e jornalismo vinham de famílias com renda acima de 10 salários mínimos mensais. No outro extremo, em áreas como serviço social, enfermagem e nos diversos cursos de tecnologia, esta percentagem não chegava a 3%. O principal fator de exclusão não é a capacidade de pagar, mas o fato de que muitos jovens de famílias mais pobres não completam o ensino médio ou não se qualificam para as carreiras mais competitivas no ENEM.

Uma das sugestões do Banco Mundial para evitar a exclusão seria ampliar os sistemas de financiamento estudantil, como o FIES. Como o senhor avalia esse expediente? A necessidade de ressarcir a União poderia gerar o temor da inadimplência nos candidatos mais pobres, afastando-os do ensino superior?

Acho importante ter um sistema de financiamento que garanta que as pessoas que tenham capacidade interesse não sejam impedidas de estudar por falta de dinheiro. Isso pode ser feito por uma combinação de créditos educativos e isenções para quem tenha bom desempenho e não possa pagar. A cobrança de anuidades, sobretudo mediante financiamento, não deve depender somente da renda atual dos estudantes e suas famílias, mas, sobretudo, das expectativas de renda futura. Os sistemas de crédito educativo, quando bem desenhados, associam o pagamento da dívida aos resultados futuros no mercado de trabalho, e por isto os estudantes não precisam temer a inadimplência. Uma implicação disto é que o crédito só deve ser dado, em geral, para áreas de estudo e instituições cujos alunos tenham boas perspectivas de trabalho rentável. Carreiras sem perspectivas profissionais ou instituições que sistematicamente reprovam muitos alunos ou não capacitam para o mercado de trabalho não podem ser financiadas, a não ser em casos considerados de especial interesse público, aonde se justificam os subsídios.

Outro dado do Banco Mundial diz respeito ao custo dos alunos das universidades públicas – bastante superior ao registrado nas faculdades privadas. Por que isso acontece? Seria um problema de gestão das universidades?

Existem certamente problemas de gestão, mas o principal fator de custo das universidades públicas são os salários de tempo integral dos professores. A suposição é que todos os professores precisam ter doutorado e trabalhar em tempo integral porque combinam ensino com pesquisa. Mas na prática sabemos que a grande maioria dos cursos superiores no setor público são sobretudo de ensino, e que só uma parcela pequena dos professores efetivamente faz pesquisa de qualidade. Instituições dedicadas ao ensino deveriam ter muito mais professores em tempo parcial, que não precisam ser doutores, custariam menos e poderiam trazer para os alunos a experiência prática do mercado de trabalho que os doutores frequentemente não têm. É assim em praticamente todo o mundo, a educação superior pública inclui instituições mais caras com alta intensidade de pesquisa, outras mais baratas voltadas ao ensino, e diferentes níveis de salário e investimentos em equipamento, instalações, etc. No Brasil esta distinção não se dá, todas as instituições federais tem as mesmas carreiras, com custos semelhantes. Pretende-se nivelar por cima, e, por falta de recursos e condições, acaba-se nivelando por baixo.

Nesse sentido, qual é a solução para aprimorar a gestão das entidades? Seria possível pensarmos numa ampla consultoria de governança, tomando o modelo das IES privadas como exemplo?

É possível melhorar a governança, mas é preciso haver um sistema adequado de incentivos para que a instituições se interessem em usar melhor seus recursos. Como a maior parte dos recursos é para pagar salários dos professores, e as folhas de pagamento são administradas pelo governo central, as universidades não tem interesse nem condições de melhorar o uso de seus recursos. A solução correta é transferir a responsabilidade da gestão de pessoal para as universidades, e financiá-las conforme seu desempenho. As universidades paulistas têm autonomia para gerir seu pessoal, uma situação melhor do que as federais, mas as carreiras são fixas e uniformes para o Estado, e o financiamento é fixo, vinculado aos impostos estaduais, e não associado ao desempenho das instituições, como deveria ser.

Algumas vozes vão além do tema da cobrança da mensalidade e pregam a privatização das IES públicas. Como o senhor avalia essa proposta?

Não conheço nenhuma proposta séria neste sentido. Em todo o mundo os governos financiam a educação superior, ainda que em níveis e formatos distintos. É importante entender que a alternativa não é entre instituições estatais, por um lado, ou privadas com fins lucrativos por outro. Muitas das principais universidades americanas e inglesas, por exemplo, são instituições de direito privado, geridas como fundações ou corporações independentes, e fazendo uso de recursos públicos e privados obtidos pelo desempenho de suas diversas atividades. O modelo estatal, em que as universidades funcionam como repartições públicas, sem flexibilidade no uso dos recursos, é incompatível com a necessidade de dar prioridade à excelência e relevância social de suas diversas atividades, e o modelo privado de fins lucrativos, que dá prioridade ao lucro, pode funcionar em alguns setores e para determinados públicos, mas não tem como suprir as necessidades de educação superior e pesquisa universitária de um país.

As opiniões contrárias à privatização afirmam que as universidades públicas correriam o risco de entrar num processo de competição de mercado. Isso levaria a um alinhamento das IES públicas à lógica corporativa. Na sua opinião, as universidades perderiam o seu caráter social com a privatização?

De novo, não creio que faça sentido nem conheço nenhuma proposta de transformar as universidades públicas em empresas privadas de fins lucrativos. O que sim existem são propostas de transformar as universidades em entidades públicas de direito privado, com responsabilidades e objetivos claros, estimuladas a competir por recursos públicos e privados conforme seu desempenho, e autonomia para gerir seus recursos conforme suas finalidades. A competição, como estímulo ao bom desempenho, é salutar e necessária.

Existem outras saídas especuladas para a mudança do cenário das IES públicas, como a cobrança de mensalidade em mestrados, a criação de fundos patrimoniais de investimento e a transformação das entidades em Organizações Sociais (OS). Qual a sua opinião sobre essas propostas?

Todas estas propostas fazem sentido. É importante cobrar de quem pode pagar, na graduação e pós-graduação, não somente para diminuir os custos, mas também para fazer com que os alunos não ocupem as instituições quando não estejam efetivamente motivados. As universidades devem poder administrar seus patrimônios, e ter um regime legal de direito privado; o seu carácter público deve ser garantido pela orientação de seus órgãos superiores com a presença do principal financiador, que é o setor público.

A política de cobranças do ensino público superior varia bastante nos países desenvolvidos. Na sua opinião, existe um modelo que poderia ser tomado como referência pelo Brasil?

Creio que existem bons exemplos, como o da Austrália, que precisariam ser melhor estudados, evitando a situação extrema dos Estados Unidos, em que os estudantes acumulam muitas vezes dívidas impagáveis, ou a do FIES no Brasil até recentemente, em que de fato não havia pagamento, e sim um subsídio indiscriminado do setor público ao setor privado, sem maiores critérios.

Conceitualmente, a educação superior não está sendo encarada como um custo do Estado em vez de ser tomada como um investimento? Ou, na prática, o país não tem mesmo como arcar com todas as responsabilidades estipuladas na Constituição?

Me parece que esta não é uma boa maneira de entender isto. Todos os investimentos tem custos. Para os estudantes, o ensino superior é um belo investimento, porque a renda de quem tem um título universitário é varias vezes maior do que a de quem não tem, e é razoável que compartam estes custos. Para a sociedade como um todo, é sempre bom ter pessoas mais educadas, mas os benefícios sociais da educação superior, difíceis de medir, são muito diferentes conforme a carreira e a qualidade da formação de cada um. Quando o principal resultado da educação são as credenciais, o diploma, e não o conhecimento e a competência, ela pode trazer benefício pra as pessoas individualmente, mas prejuízo para a sociedade como um todo. O Brasil, nos últimos 20 anos, multiplicou seus gastos em educação em todos os níveis, ampliou o acesso à educação superior, mas a produtividade da economia tem se mantido estagnada, o que mostra que a relação entre gastos em educação e benefícios para a sociedade nem sempre se dá.

Quanto à Constituição, pelo que entendo, ela não garante a todos o direito de acesso ao ensino superior, e em nenhum país no mundo o acesso ao ensino superior é universal, embora tenha se ampliado muito, em modalidades diferentes, das quais as universidades tradicionais são somente uma das alternativas. A gratuidade nos estabelecimentos oficiais que estabelece a Constituição foi feita em uma época em que haviam muito menos estudantes, os custos eram bem menores, a o profundo desequilíbrio fiscal que temos hoje ainda não se vislumbrava. Não se trata de um princípio de direito universal, e isto precisa ser alterado.

As propostas dos presenciáveis para a educação

O Instituto IEDE (Interdisciplinaridade e Evidência no Debate Educacional) publicou uma análise detalhada das propostas dos presenciáveis para a educação. Os textos estão disponíveis aqui. Coube a mim comentar as propostas de Fernando Haddad para o ensino médio. Em outro texto, publicado na revista Veja e também neste blog, comentei a questão do ensino à distância, que parece central na proposta de Jair Bolsonaro. 

A proposta de Haddad para o ensino médio 

Pelo que tem sido difundido, os dois pontos principais da proposta de Fernando Haddad para o ensino médio são revogar a lei de reforma aprovada em 2017 e a criação de um programa federal de ensino médio, baseado no modelo dos cursos integrados dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. É uma proposta inviável, pelos custos que representaria, e elitista, significando uma volta atrás no esforço que tem sido feito nos últimos anos para criar um ensino médio diferenciado e apropriado para a grande maioria dos jovens brasileiros.

A proposta é inviável porque a federalização do ensino médio teria um custo totalmente incompatível com a realidade orçamentária do país. Hoje, existem 370 mil alunos de nível médio em instituições federais, e 8.2 milhões nas redes estaduais. No sistema federal, são 13 alunos por professor; nas redes estaduais, 32. O custo por aluno nas redes estaduais é de cerca de 6 mil reais ao ano. Não há dados disponíveis sobre o custo por aluno de ensino médio no sistema federal, mas deve ser próximo dos alunos de nível superior, cerca de 22 mil reais ao ano. O custo de atender aos alunos das redes estaduais com o mesmo nível de gastos do sistema federal seria de 173 bilhões de reais, mais do que todo o orçamento atual do Ministério da Educação. Isto sem falar do pesadelo que seria trazer os atuais 250 mil professores de ensino médio para o sistema federal, que mal consegue administrar os quase 300 mil de suas universidades e institutos (estes números são aproximados, mas dão uma boa ideia das grandezas envolvidas).

Os Institutos federais, além de caros, são seletivos, e os poucos estudantes que passam em seus “vestibulinhos” aproveitam a oportunidade de estudar de graça em tempo integral para se preparar para o ENEM e entrar nas boas universidades federais ou estaduais. Bom para eles, mas não ajuda nada à grande maioria que não tem acesso e nunca vai conseguir seguir uma carreira universitária com um mínimo de qualidade. São os estados que vão continuar responsáveis pelo ensino médio, os recursos não cairão do céu, e o papel do governo federal deve ser apoiar e facilitar o trabalho dos estados, e não tomar o seu lugar.

A lei de reforma do ensino médio aprovada no inicio de 2017 é uma tentativa de criar um ensino médio diversificado, que não coloque todos os estudantes no mesmo funil dos cursos tradicionais e do ENEM, e que crie diferentes modalidades de formação, mais acadêmica ou mais profissional, para que todos possam aproveitar do ensino médio conforme seus interesses e condições. A reforma ainda não foi implementada, e existem muitas dúvidas sobre a base curricular comum proposta pelo Ministério da Educação, os conteúdos da chamada parte de formação comum, os diferentes itinerários formativos, como o ENEM será adaptado ao novo modelo, etc. Mas as três críticas principais que tem sido feitas a esta lei pelos que propõem sua revogação é que ela aumentaria a desigualdade entre os estudantes, que ela eliminaria os conteúdos de ciências sociais no ensino médio, e que seria uma lei “do Temer”, aprovada sem discussão por medida provisória, e que por isto deveria ser revogada. Nenhuma destas críticas é válida.

O ensino médio brasileiro já muito desigual por várias razões, que incluem as diferenças que os alunos já trazem da educação fundamental, dos diferentes recursos investidos nos diferentes sistemas estaduais e federais, e tudo isto é acentuado por um currículo único antiquado que poucos conseguem seguir e por um ENEM no qual entram 6 milhões de candidatos para disputar menos de 300 mil vagas das universidades federais. Neste sistema, o ensino técnico não é uma alternativa de formação, como no resto do mundo, a ser usada preferencialmente para quem não vai diretamente para o ensino superior, mas uma atividade complementar ao currículo tradicional. No novo formato, os alunos poderão se concentrar em suas áreas de interesse, sem precisar estudar só para passar nas provas, e se abre a possibilidade de uma formação mais prática e aplicada para quem quiser e precisar de se integrar mais rapidamente ao mercado de trabalho. Ao reconhecer as diferenças e abrir alternativas de formação, o modelo diferenciado permite reduzir, e não aumentar as desigualdades.

Quanto ao conteúdo, pouca gente acredita que o atual currículo de 14 ou mais matérias obrigatórias dadas em aulas tradicionais forma de fato os estudantes. Faz muito mais sentido concentrar o estudo em uma parte menor, básica, e permitir opções de formação e a aprofundamento diferentes para cada estudante. Uma crítica que se faz à reforma é que ela teria acabado com o ensino obrigatório de sociologia e filosofia. Na verdade, o que ela fez foi colocar os conteúdos de sociologia e filosofia na parte de formação geral, que precisa ter também matérias de grande importância na área social, como economia, ciência política e direito, que não fazem parte do currículo tradicional; e procurou passar do modelo tradicional das aulas expositivas por disciplinas para a educação por competências, o que não é nada fácil, mas é um caminho que deve ser buscado.

Quanto à maneira pela qual a reforma foi aprovada, se o uso de Medida Provisória desqualificasse uma legislação, então a bolsa família e tantas outras medidas aprovadas pelos governos passados também deveriam ser revogadas. Na verdade, a reforma do ensino médio vinha sendo discutida há anos pela Comissão de Educação da Câmara de Deputados e pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação, CONSED, e a medida provisória encaminhada pelo Ministro Mendonça Filho foi discutida durante meses a alterada pelo Congresso no processo de votação. O que precisa ser feito é avançar no que a proposta tem de bom e corrigir suas imperfeições, e não voltar atrás.

Hélio Jaguaribe e os Cardernos de Nosso Tempo

Hélio Jaguaribe, que nos deixa agora aos 95 anos de idade, foi uma referência central para minha geração, embora nem sempre concordando com ele. Um dos meus primeiros escritos foi um comentário crítico a um livro que publicara sobre Desenvolvimento Econômico e Desenvolvimento Político, que pode ser visto aqui.  No final da década de 70, organizei uma coletânea de artigos dos Cadernos de Nosso Tempo, revista  dos anos 50 do Grupo de Itatiaia liderado por Jaguaribe, que reunia vários importantes intelectuais da época, e que foi o embrião do Instituto de Superior de Estudos Brasileiros, o ISEB. O texto abaixo é a introdução à coletânea, que republico aqui em sua memória.

O Pensamento Nacionalista e os “Cadernos de Nosso Tempo”

EM AGOSTO de 1952, um grupo de estudiosos começou a se reunir, periodicamente, para discutir os grandes problemas da época. Da agenda constava “o esclarecimento de problemas relacionados com a interpretação econômica, sociológica, política e cultural de nossa época, com a análise, em particular, das idéias e dos fenômenos políticos contemporâneos e com o estudo histórico e sistemático do Brasil, encarado, igualmente, do ponto de vista econômico, sociológico, político e cultural”. O Parque Nacional de Itatiaia, entre Rio de Janeiro e São Paulo, serviu de ponto de encontro, com acomodações cedidas pelo Ministério da Agricultura. Daí a denominação de “Grupo de Itatiaia,” pela qual o grupo ficou conhecido. Alguns meses depois, já em 1953, ele levaria â criação do instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política – IBESP, responsável, entre 1953 e 1956, pela edição de cinco volumes dos Cadernos de Nosso Tempo. A importância do IBESP e dos Cadernos é que eles contêm, no nascedouro, toda a ideologia do nacionalismo, que ganharia força cada vez maior no pais nos anos subseqüentes, e serviriam de ponto de partida para a constituição do Instituto Superior de Estudos Brasileiros. 

Seria evidentemente equivocado supor que todos os participantes do grupo de Itatiaia, colaboradores dos Cadernos e futuros membros do ISEB, tivessem uma maneira unívoca e coerente de ver as coisas. A própria história mostraria que este movimento juntou, por alguns anos, pessoas com trajetórias intelectuais e políticas bastante diversas. A lista de colaboradores dos Cadernos é extensa: ela inclui a Alberto Guerreiro Ramos, Cândido Mendes de Almeida, Carlos Luís Andrade, Ewaldo Correia Lima, Fábio Breves, Heitor Lima Rocha, Hélio Jaguaribe, Hermes Lima, Ignácio Rangel, João Paulo de Almeida Magalhães, José Ribeiro de Lira, Jorge Abelardo Ramos, Juvenal Osório Gomes, Moacir Félix de Oliveira e Oscar Lorenzo Fernandes. A preocupação com o subdesenvolvimento brasileiro, a busca de uma posição internacional de não alinhamento e de “terceira força”, um nacionalismo em relação aos recursos naturais do país, uma racionalização maior da gestão pública, maior participação de setores populares na vida política, tais eram, em poucas palavras, os valores que pareciam unificar a todos. 

Além deste mínimo, havia certamente diferenças, algumas de ênfase, outras substantivas, como em relação à questão da socialização dos meios de produção, tese central do documento de Jaguaribe de 1953 (“A Crise Brasileira”). As análises econômicas dos Cadernos não diferem, em essência, das proposições da CEPAL; os diversos trabalhos de Alberto Guerreiro Ramos (“Padrão de Vida do Proletariado de São Paulo.” no. 1; “O Problema do Negro na Sociologia Brasileira,” no. 2; “A Ideologia da Jeunesse Dorée,” no. 4; “O Inconsciente Sociológico”; no. 5) tampouco se integraram de forma clara ao que ficou mais tarde conhecido como o pensamento isebiano; finalmente, a grande preocupação do IBESP com temas relativos à politica internacional (que levou, inclusive, à publicação de extensa documentação sobre a Conferência de Berlim de 1954, ocupando a maior parte do número 3) parece responder ao clima particularmente agudo da guerra fria no início da década de 50, não permanecendo no tempo a não ser no esforço de aproximação com os novos países africanos, e uma idéia de uma política externa independente que não deixaria de produzir seus frutos. 

O que dá ao IBESP sua característica inovadora na história do pensamento politico brasileiro é que, pela primeira vez, um grupo intelectual se propõe a assumir uma liderança política nacional por seus próprios meios. Neste sentido, o IBESP é radicalmente novo. Ele se diferencia dos pensadores políticos do passado que acreditavam que seriam suas idéias, se corretamente aplicadas – fossem elas liberais, católicas ou conservadoras -,que iriam transformar a sociedade. E se diferencia, também, dos pensadores de influência marxista, que se alinhavam, física e intelectualmente, com um setor da sociedade que, acreditavam, viria um dia a liderá-la, ou seja, a classe operária. Para os primeiros, as idéias políticas fariam tudo; para os segundos, elas podiam pouco. Para o IBESP, eram os intelectuais, mais do que suas idéias ou partidos, que poderiam, um dia, tomar o destino do país em suas mãos. 

A evolução do IBESP de um mero grupo de estudos para um grupo intelectual com projeto político próprio já é indicada na “Breve Introdução ao IBESP” do no. 1 dos CNT: “o agravamento da crise brasileira e a aguda consciência de que se impunha a necessidade de tentar a analise de seus efeitos e causas em busca de soluções possíveis levou o IBESP, no curso deste ano (1953),a suspender, por alguns meses, o programa de estudos traçados no ano precedente, para se dedicar, predominantemente, à interpretação da crise nacional”. Efeitos, antes que causas, e soluções possíveis, antes que estudos a prazo indeterminado: é a idéia de eficácia que emerge. Existe ainda, por toda parte, a idéia de que o conhecimento da realidade social tem que ser integrado, sistemático, abrangente. Esta é, na realidade, uma condição necessária para uma visão da realidade que pretende ser uma ideologia, e não um simples conhecimento aberto, diferenciado e tentativo. Daí o grande apelo das formulações apresentadas pelo IBESP, como também a explicação de muitas de suas falhas. Mas, afinal, que poderia fazer um grupo de intelectuais? 

Não existe, neste texto, uma visão clara a respeito do caminho que as elites intelectuais deveriam seguir para desenvolver seu projeto. Ele fala, simplesmente, da necessidade de promover a “circulação das elites”, e da “formação de um movimento social apoiado numa ideologia e orientado por uma programática, apto a suscitar confiança no futuro e anseio pela realização dos objetivos prefixados”. Em “Para uma Política Nacional de Desenvolvimento”, publicado coletivamente pelo IBESP no último número dos Cadernos, já surge uma formulação mais clara. A realização do programa político do IBESP teria, essencialmente, duas condições: “o esclarecimento ideológico das forças progressistas acima indicadas, a partir das mais dinâmicas – burguesia industrial, proletariado e setores técnicos da classe média – e arregimentação política destas forças. Tanto aquela como esta condição, conforme se viu, requerem, para se realizar, a atuação promocional e orientadora de uma vanguarda politica capaz e bem organizada”. Quem comporia esta vanguarda não está dito, mas pode ser facilmente intuído. 

Seria desnecessário lembrar que a noção de ideologia adotada pelo IBESP, e a visão de seu papel na transformação da sociedade, era multo particular. Karl Mannheim distinguia as “ideologias parciais” das ideologias “totais”; a primeira seriam as representações coletivas próprias de grupos sociais colocados diferencialmente na estrutura social – classes sociais, basicamente – e a segunda, a visão de mundo mais geral, ou weltanschauung de uma época. O antagonismo das ideologias parciais não se resolveria na ideologia total, como o texto sobre “A Crise Brasileira” parece sugerir, já que elas se colocariam em planos diferentes. A solução clássica de Lukács para a questão da verdade das ideologias, adotada mais tarde por Lucien Goldmann, é que existiria uma ideologia “verdadeira”, a da classe operária, que teria em suas mãos o futuro da história; e ideologias “falsas,” as ideologias conservadoras das classes dominantes. Mannheim, desprovido de uma visão apriorística do processo histórico, propõe como saída a constituição de um grupo social acima das classes, a intelligentsia , que teria condições de se colocar além das ideologias parciais e ter, assim, uma visão verdadeira do conjunto. 

O conhecimento obtido pela intelligentsia manheimiana não seria, entretanto, necessariamente “ideológico.” A sociologia moderna tende a reservar o termo “ideologia” para se referir não a um conjunto qualquer de valores, preferências e percepções de determinado grupo social, mas a situações especiais em que estes valores, preferências e percepções se apresentam fortemente estruturados como uma visão de mundo integrada e coesa. As ideologias seriam, assim, somente um tipo extremo de “sistema de crenças” políticas, que poderiam se apresentar com diversos graus de estruturação. A experiência histórica em todo o mundo mostra que, em geral, o nível de ideologização das sociedades é baixo, e só tende a se acentuar em momentos de grandes convulsões sociais que mobilizam populações inteiras ao redor de uns poucos líderes e algumas proposições muito gerais. Ao postular a necessidade da formulação de uma ideologia e sua difusão na sociedade como passo inicial para as transformações sociais que o país exigia, o IBESP atribuía aos intelectuais, formuladores desta ideologia, um papel muito mais importante do que o que Mannheim havia pretendido para sua “intelligentsia.” Havia, para isto, a condição implícita de que o processo político brasileiro passasse por uma fase altamente revolucionária, o que era condição para o surgimento de uma ideologia como o IBESP pretendia, mas contrariava seu próprio projeto político, essencialmente reformista, e por isto mesmo pouco ideologizado. Esta é uma contradição que não seria percebida na época, mas que teria importantes conseqüências. 

Independentemente dos resultados efetivos de seu projeto político, e da validade ou não das interpretações que apresentava sobre a “crise de nosso tempo”, o IBESP foi responsável por uma série de ingredientes que teriam uma presença duradoura no ambiente político brasileiro: o desenvolvimento de uma ideologia nacionalista que se pretendia de esquerda, em contraposição aos nacionalismos conservadores do pré-guerra ; a difusão das idéias de uma “terceira posição” tanto em relação aos dois blocos liderados pelos Estados Unidos e União Soviética quanto em relação aos pensamentos marxista e liberal clássico; unia visão interessada a respeito do que ocorria nos novos países da África e Ásia; a introdução do pensamento existencialista entre a intelectualidade brasileira; e, acima de tudo, uma visão muito particular e ambiciosa do papel da ideologia e dos intelectuais na condução do futuro político do país. 

Além do que antes se enumerou, os participantes do IBESP deixaram contribuições importantes para o conhecimento e crítica da realidade política e social brasileira. Somente a título de exemplo, é possível citar as análises sobre o estado cartorial, o populismo, o moralismo das classes médias, feitas especialmente por Hélio Jaguaribe, e as reavaliações da tradição do pensamento político e social brasileiro propostas, de forma inteligente e mordaz, por Guerreiro Ramos. 

Pouco tempo depois de constituído, o IBESP estabelece um convênio com a CAPES, liderada então por Anísio Teixeira, para a realização de uma série de seminários sobre os “problemas de nossa época”, e começou, assim, o percurso que o levaria a se transformar em órgão permanente do Ministério da Educação, como Instituto Superior de Estudos Brasileiros. O impacto e as vicissitudes do ISEB não poderiam ser vistos aqui. Basta lembrar que o ISEB foi, essencialmente, uma tentativa de levar à frente os ideais do IBESP. Daí sua marca e daí, em última análise, o seu fracasso. 

Alkimin sobre educação

Geraldo Alkimin começou sua entrevista na Globo News em 29 de agosto falando sobre educação, como sua grande prioridade se for eleito. Para seu crédito, é o candidato que tem dado mais importância ao tema, e tem metas bem definidas. Por isto mesmo, elas precisam ser melhor esclarecidas.

Ele pretende, ao longo de oito anos, aumentar em 50 pontos a posição dos estudantes brasileiros no PISA, que é o exame internacional de desempenho escolar realizado em todo o mundo pela OECD, no qual o Brasil tem se saído muito mal. Perguntado sobre como vai fazer isto, disse que pretende ser o presidente da educação infantil, para crianças de 3 a 5 anos, que é quando se desenvolvem as competências iniciais de linguagem, matemática, leitura e trabalho organizado que são a base para a aprendizagem que vem depois. Perguntado como pode planejar para 8 anos, quando seu mandato seria de quatro, disse que pretende implantar uma política de estado, de longo prazo.

São metas importantes, mas falta dizer como pretende fazer isto, e talvez ele e sua equipe pretendam explicar melhor nas poucas semanas que campanha que vêm pela frente. Uma dúvida inicial é que a conta não fecha. O PISA é uma avaliação do desempenho de estudantes de 15 anos que estão matriculados no final do ensino fundamental ou primeiro ano do ensino médio. Supondo que ele consiga melhorar muito a qualidade da educação infantil no Brasil, que hoje é bastane ruim, estas crianças só chegarão à idade de fazer o PISA e e ter algum impacto em seus resultados daqui a dez anos, e ainda faltariam oito para passar do atual nível, que é de aproximadamente 400 pontos, para 450.

Mas, o que significam estes números? O exame do PISA avalia os estudantes em competências de linguagem, matemática e ciências. 500 pontos corresponde à escolaridade esperada depois de 9 anos de estudo, e é a média dos países desenvolvidos. É possível dizer, de forma simplificada, que a cada 39 pontos no PISA na prova de linguagem corresponde  um ano de escolaridade, o que significa  que, no Brasil, nossos estudantes da nona série têm uma escolaridade equivalente à metade da sexta. Se a meta de Alkimin for alcançada, daqui a oito anos nossos estudantes de 15 anos teriam progredido pouco mais do que um ano em escolaridade, ou seja, estariam em um nível correspondente à metade da sétima série, ainda bem    abaixo do desejável.

É possível subir no PISA nesta velocidade? O único país que se aproximou disto, na história destas avaliações, foi o Peru, que passou de um patamar próximo dos 350 pontos, com um país em guerra civil e as redes escolares completamente desorganizadas, a um nível semelhante ao brasileiro, que está entre os piores nas comparações internacionais, e tem um sistema educativo estruturado, razoavelmente financiado, mas de má qualidade. Nenhum outro país conseguiu avançar em velocidade semelhante.

Falando sobre educação infantil, Alkimin deu dados mostrando que sua cobertura ainda é incompleta, mas não disse que ela é da responsabilidade das prefeituras, e que a qualidade, pelo que se sabe, tende a ser muito ruim – as crianças raramente são expostas a um ambiente educativo e estimulante sem o qual os benefícios da escolarização inicial são incertos. Os níveis seguintes, o fundamental I e II, até os 14 anos, também são administrados pelos municípios. Tem havido algum progresso no fundamental I em algumas localidades, mas não nos quatro anos do fundamental II, que é quando muitos jovens começam a abandonar a escola e não atingem os conhecimentos mínimos avaliados pelo PISA. Como o governo federal, na possível gestão de Alkimin, pretende trabalhar com os municipios e estados para melhorar isto? Dando mais dinheiro? Mas o dinheiro anda escasso, a sabemos que mais dinheiro não significa necessariamente melhor educação. Transferindo as escolas para o governo federal, criando uma imensa e intratável nova burocracia pública, como tem sido proposto por alguns? Atuando na formação dos professores? Mudando os procedimentos de escolha dos dirigentes escolares, e implantar estímulos de desempenho? Voltar a mexer na Base Nacional Curricular Comum recém aprovada que deixou intacto o formato altamente disfuncional do fundamental II?

Não existem respostas fáceis para estas questões, mas são elas, e não metas gerais, que vão determinar se a educação brasileira vai finalmente sair da estagnação em que se encontra, apesar do grande aumento de gastos investidos no setor nos últimos anos. Tomara que o próximo governo consiga encontrar novos caminhos.

NOTA: O número de pontos correspondente a cada série no PISA é 39, e não 12.5 como dito pot equívoco na primeira versão deste texto, o que já foi corrigido.

Ensino médio sem aberração, e a base fraturada

 

Ensino médio sem aberração

(Publicado no jornal  O Globo, 12/8/2018)

A poucos meses das eleições, antes que o governo termine, o Ministério da Educação se mobiliza para organizar o novo ensino médio, reformado pela lei 13.415 de fevereiro de 2017. Há pouca clareza, no entanto, sobre como isto será feito, e muitas críticas baseadas muitas vezes em pouca informação sobre o problema e possíveis encaminhamentos.

A necessidade da reforma é clara: dos jovens que têm hoje 25 anos, 13% completaram o ensino superior, 15% ainda estão estudando neste nível, 41% só completaram o ensino médio, e 31% não chegaram lá. Todas as escolas preparam para um exame único, o ENEM, que obriga a todos a estudar um monte de matérias que serão esquecidas no dia seguinte, e só beneficia um pequeno número que consegue entrar nas universidades públicas ou ganhar uma das bolsas do PROUNI. Dos que entram em uma universidade, pública ou privada, metade abandona antes de terminar. Entre 2004 e 2014, o Brasil triplicou os investimentos por aluno no ensino médio, mas a qualidade permanece estagnada: a grande maioria termina sem saber um mínimo de matemática e de linguagem, e fica com um título que lhe serve de muito pouco na vida.

A lei da reforma tentou juntar propostas que já vinham sendo elaboradas pela Comissão de Educação da Câmara de Deputados, liderada pelo Deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) e pelo Conselho de Secretários Estaduais de Educação, e acomodar diferentes pontos de vista que foram se manifestando nos debates da proposta inicial, apresentada como Medida Provisória. Ficou meio tosca, mas algumas coisas importantes foram aprovadas:

– Ao invés de obrigar todo mundo a estudar tudo, os estudantes passam a se aprofundar em determinadas áreas (os “itinerários formativos”), a partir de um conjunto mínimo de áreas comuns de formação.

– O ensino técnico de nível médio, que até hoje tem sido uma área adicional ao currículo tradicional, passa a ficar dentro, como um dos itinerários possíveis

– Ao invés de organizar o currículo por matérias e aulas tradicionais, os conteúdos passam a ser estabelecidos por grandes temas e competências.

– O tempo de aula, que hoje é de quatro ou até menos horas por dia, passa a cinco horas, e, na medida do possível, para tempo integral.

Com isto, o ensino médio no Brasil deixa de ser uma aberração e se torna mais parecido com o que ocorre no resto do mundo. Para que isto funcione, existem muitas coisas que precisam ser feitas. Primeiro, definir com clareza qual é a parte comum e quais as principais trajetórias, ou itinerários formativos, que os alunos podem seguir. O documento da Base Nacional Curricular Comum do Ensino Médio publicado meses atrás pelo MEC tentou fazer parte disso, mas não ficou bom. Segundo, substituir o atual ENEM unificado por um conjunto de provas distintas a ser feitas pelos alunos conforme suas trajetórias e expectativas de estudo. Terceiro, fortalecer o ensino técnico e profissional de nível médio, que pode ser a melhor opção para muitos, mas não pode ser um beco sem saída para quem queira continuar estudando. Quarto, acabar efetivamente com o ensino médio noturno, que não funciona na prática e ainda é a realidade de 25% dos alunos.

Mais complicado do que tudo isto será mudar a cultura das escolas e a prática tradicional de nossos professores, de que a educação se reduz a horas de aula com os professores falando e os alunos repetindo. No novo ensino médio, devem preponderar o aprofundamento dos temas, o desenvolvimento de projetos, os altos padrões de exigência e, ao mesmo tempo, o reconhecimento de que nem todos podem fazer de tudo, mas cada um deve poder fazer o melhor dentro de suas escolhas e suas possibilidades.

O MEC e o Conselho Nacional de Educação fazem bem em querer terminar este ano com pelo menos as linhas mestras do novo sistema já esboçados. Mas é importante entender que este é só o começo de um longo processo que precisa ser acompanhado de outras reformas, não menos importantes, na educação pré-escolar, fundamental e superior.


Fraturas na Base

Para quem quiser se aprofundar sobre os problemas da Base Nacional Curricular Comum elaborada pelo Ministério da Educação, o Instituto Alfaebeto acaba de publicar um  livro que pode ser baixado gratuitamente, Fraturas na Base: Fragilidades estruturais da BNCC,  editado por João Batista Araujo e Oliveira, que critica tanto o conteúdo do texto quanto o processo pelo qual ele foi preparado.

Segundo o editor, “o produto peca por diversas razões. O nome do documento já suscita problemas. Na maioria dos países o nome usado para o documento nacional de orientação da atividade escolar é programa de ensino ou currículo. Esse documento indica, com clareza, o que deve ser ensinado nas diferentes etapas de ensino. O que varia nos diversos países é o grau de detalhamento. Já a nossa base ficou no meio do caminho – ninguém sabe ao certo se falta algo ou o que ainda será preciso fazer nos estados e municípios. E o documento não prima pela clareza”.

“Um segundo problema decorre do primeiro: por não se definir como currículo a BNCC não leva em consideração os pilares básicos de um currículo – estrutura e sequência. Praticamente só a Matemática recebe um tratamento adequado. Também – como ficará claro da leitura dos vários capítulos deste livro – a BNCC não passa no teste dos três critérios fundamentais para avaliar a qualidade de um currículo, foco, rigor e consistência. Mas, dirão os seus proponentes – afinal a BNCC não é currículo, portanto…. não precisa ter essas características… Mas então, afinal o que é essa BNCC? E quais seriam critérios adequados para sua formulação e sua avaliação?”

Boa leitura!

Francisco Gaetani: a governabilidade da administração em jogo

 

Reproduzo o importante artigo de Francisco Gaetani, diretor da Escola Nacional de Administração Pública, publicado no Valor Econômico de 20/4/2018,, sobre a importância da  PL 7748/2017, coordenada pelo Senador Antônio Anastasia, e que vem sido mal interpretada pela imprensa:

A governabilidade da administração em jogo

Francisco Gaetani (*)

Se os candidatos à Presidência e aos governos estaduais soubessem o que os aguarda em janeiro de 2019 pensariam duas vezes antes de se apresentar nas eleições. Os eleitos precisarão construir maiorias políticas no Legislativo para governar. Disso todos sabem. O que não sabem é que não encontrarão na sociedade e no serviço público pessoas dispostas a assumir os riscos associados ao exercício das atividades executivas. O motivo é simples: a percepção dominante é a de que não vale a pena. Uma eleição não tem poder de reparar essa situação.

O medo comanda hoje a administração pública. Até 2014, discutia-se a judicialização das políticas públicas. Um exemplo era a importação de remédios caros por decisão judicial. Evoluiu-se rapidamente para a criminalização da administração, como o inacabado e controverso debate em torno da política fiscal demonstrou. Finalmente, chegamos à paralisia. Afinal… “é o meu CPF que está em jogo”. Ninguém quer ficar sujeito a interpretações de órgãos de controle que, em muitos casos, não dominam plenamente as complexidades do assunto e partem do princípio de que o funcionário é suspeito: in dubio pro societate.

Inúmeros funcionários hoje respondem a processos decorrentes de acórdãos do TCU. Dirigentes de estatais já negociam “seguros” para ocupar suas funções. Pulamos de um extremo de descontrole e leniência para outro de regramentos e controles sem necessária vinculação com a natureza da atividade da organização – seja ela um banco público, um hospital universitário ou uma empresa de energia.

O setor privado encontra-se acuado, assustado e intimidado por burocracias opacas com poder de influenciar decisivamente seus negócios. Estão todos sob suspeita de práticas ilícitas cuja dosimetria nesta altura já não importa mais, independentemente das previsões legais. Conflitos tributários, arranjos regulatórios imperfeitos, práticas de governança corporativa, gestão de riscos reputacionais e novas realidades associadas ao combate à corrupção foram incorporados ao cálculo empresarial.

Ironicamente, o mundo jurídico tornou-se a principal fonte de insegurança jurídica e responsável por custos de transação imprevisíveis e incalculáveis. Nas esferas pública e privada o debate sobre eficiência e qualidade do gasto desapareceu. A temática do combate à corrupção eclipsou todos as demais. É como se o país precisasse parar para resolver o problema da corrupção de uma vez por todas.

Focar na paralisia da administração, sem observar as distorções que o excesso do controle tem gerado, tornou-se um lugar comum. Dados de uma pesquisa realizada pela Enap mostram que os gestores usam suas capacidades não para prover informações e evidências sobre a política em que trabalham, mas para responder a órgãos de controle e demandas de auditoria.

Há um problema de assimetria de capacidades decorrente de um sequenciamento desbalanceado. A profissionalização do MPF e do TCU vem ocorrendo consistentemente desde a redemocratização. A organização da CGU acelerou-se após 2003. Os ministérios das áreas econômica e jurídica vêm se estruturando desde a estabilização macroeconômica. Os ministérios associados ao gasto, à legalidade e ao controle possuem quadros técnicos recrutados por concursos públicos, carreiras estruturadas e salários competitivos. Áreas como Saúde, Educação, Transportes e Minas e Energia enfrentam graves déficits de capacidade, em especial de pessoal.

O corporativismo dos estamentos burocráticos mostrou as imperfeições da nossa democracia. Não possuímos um regime de “checks and balances”. O Judiciário, o TCU e o MPF são irresponsabilizáveis, salvo por seus pares, e, mesmo assim, as evidências recentes atestam a dificuldade de atuação do CNJ e CNMP.

O TCU tem demonstrado capacidade de exercer o controle externo de forma construtiva e efetiva, como tem ocorrido nas esferas de infraestrutura, governança e desenvolvimento regional. A atuação do MPF no combate à corrupção nos anos recentes vem dando impulso decisivo à moralização da Administração Pública. Estes avanços não podem ser comprometidos por excessos e distorções que comprometam o funcionamento do Estado. A presunção de culpa não se coaduna com o regime democrático e não pode se transformar em uma indústria que se auto-alimenta.

O PL nº 7448/2017, aprovado pelo Congresso e aguardando a sanção presidencial, dá um passo importante para recuperar o equilíbrio. A proposta busca trazer racionalidade às decisões administrativas, judiciais e de órgãos de controle, assegurando que as consequências práticas das decisões sejam levadas em conta, e que medidas para a mitigação de prejuízos à sociedade sejam implementadas sempre que necessário. A aplicação do direito não pode ocorrer de forma descolada da realidade: precisa levar em consideração os diversos impactos gerados pelas decisões, considerando o bem-estar da sociedade e assegurando uma previsibilidade mínima aos gestores públicos.

A governabilidade administrativa não depende apenas do Executivo. Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Tribunal de Contas são sócios da governabilidade do país. A guerra de facções corporativas, a disputa por recursos e a concorrência pelo poder precisam ser contidas pelas instituições do país. O corporativismo, o voluntarismo, o messianismo e o punitivismo precisam ser enfrentados para o país caminhar na direção de uma nova normalidade, aderente às práticas do regime democrático, sem prejuízo do combate à corrupção e da modernização da gestão pública.

Os problemas estruturais do país – integração na economia global, redução das desigualdades, aumento da produtividade e da competitividade, mudança climática e desenvolvimento regional, dentre outros – estão se agravando. O PL nº 7.448/2017 é um avanço na contenção de excessos e preservação da capacidade de gestão. Esta iniciativa é vital para o país sair do encurralamento paralisante.


(*) Francisco Gaetani é presidente da Escola Nacional de Administração Pública e ex-Secretário-Executivo dos Ministérios do Planejamento e do Meio Ambiente. É doutor pela London School of Economics e professor da EBAPE/FGV

 

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