Sao Paulo e o Estado Nacional, revisitado

Quando publiquei este livro em 1973 (revisto e republicado mais tarde como Bases do Autoritarismo Brasileiro), o que mais tinha chamado minha atenção era como a política brasileira passava, historicamente, pelo eixo Rio–Minas–Nordeste–Rio Grande do Sul, deixando de fora justamente o centro mais dinâmico da economia do pais, São Paulo (e também Paraná e Santa Catarina), que no máximo produzia lideranças populistas que não transcendiam o estado, como Ademar de Barros, ou o efêmero Jânio Quadros, que afinal era mato-grossense. Eu dizia, seguindo Faoro, que o Estado Nacional era patrimonialista, no sentido de que ela não era o “representante” de determinados interesses, e sim o objeto de interesses de uma classe ou estamento político que vivia de e para o poder; que a política exercida por este Estado era ou autoritária, com os militares, ou populista, com Getúlio, ou uma combinação das duas coisas; e que o sistema partidário nacional era baseado na cooptação das lideranças (inclusive sindicais) pela oligarquia política. E eu imaginava que, com o tempo e a modernização do pais, outro tipo de política, originária em São Paulo, passaria a predominar no país – uma política mais autenticamente representativa, com partidos apoiados nas classes modernas, burguesas e proletárias, da parte mais capitalista do Brasil.

Quase acertei: a partir de Fernando Henrique, e continuando com Lula e agora, Alckmin, São Paulo saiu do isolamento, as lideranças paulistas se transformaram em lideranças nacionais, e são elas que disputam entre si o comando do Estado Nacional. Mas errei, no entanto, ao pensar que esta polarização se daria em termos de uma divisão de classes. Embora as divisões de classe continuem existindo, a política nas sociedades modernas se faz por grandes coalizões de interesses, valores e orientações, e nenhum candidato que se apresente como representante de uma classe social específica consegue apoio suficiente para ganhar uma eleição majoritária. Fernando Henrique conseguiu montar uma coalizão deste tipo, ao liderar um processo de racionalização da economia e modernização do Estado, uma agenda que Alckmin trata de dar continuidade. E Lula, que começa a carreira como um autêntico líder sindical da indústria, se transforma aos poucos no líder do sindicalismo do setor público, e finalmente, em um líder com forte apelo popular, ou populista, e com isto consegue transcender as limitações do antigo PT, e chegar à Presidência.

Neste primeiro turno, as pesquisas eleitorais mostram que Alckmin tem mais apoio nas camadas sociais mais ricas, e Lula, nas camadas mais pobres. Mas se engana quem interpreta isto em simples termos de direita–esquerda, ou burguesia–proletariado. Nem a maioria dos eleitores de Alckmin são burgueses (e sim da classe média), nem a maioria dos eleitores de Lula são proletários (e sim pobres). Mais do que a divisão de classes, é a divisão entre estados e regiões que marca a polarização política que estamos vivendo hoje. Alckmin ganha as eleições de São Paulo para baixo, e Lula, nos estados tradicionais de Minas Gerais, Rio de Janeiro e todo o Nordeste. O que dá força a Lula nestes estados, me parece, não é que ele tenha sido um líder operário e represente os pobres, mas sim sua capacidade de dar continuidade às políticas patrimonialistas tradicionais, distribuindo cargos e subsídios para ricos e pobres em regiões que dependem, para sobreviver, do fluxo de benesses do governo central.

Em outras palavras, o que marca a política brasileira hoje não é, como eu imaginei que viria a ser, a disputa entre lideranças e partidos políticos modernos, nem uma disputa de classes, nem uma disputa entre ricos e pobres, e sim o antigo confronto entre duas maneiras clássicas de fazer política, a política representativa e a política de cooptação.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

2 thoughts on “Sao Paulo e o Estado Nacional, revisitado”

  1. Minha opinião há 27 anos (desde que li o livro pela 1a. vez) é que você acertou em cheio então, e continua acertando hoje: indicou a importância central (e, portanto, duradoura) das duas maneiras de fazer política (representativa e de cooptação) e seus vínculos e enraizamentos regionais no Brasil. Esse o grande achado e a grande contribuição.
    Se você imaginou naquela época que no futuro teríamos disputas entre lideranças e partidos políticos modernos, ou de classes, não foi isso que ficou da minha leitura nesses anos todos. Na verdade, até me surpreendo com a sua surpresa de não ter “acertado”, porque esse teria sido um ponto de menor relevância frente ao que você efetivamente produziu e que mantém, mais do que nunca, a atualidade do livro.

    (Ah, e a atualidade do título também…!)

  2. Um dos textos mais brilhantes que li nos últimos dias. Perfeita sua análise. As distorções, inclusive, advindas do precaríssimo modelo representativo nacional, ficam transparentes quando olhadas por este prisma.

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