João Batista de Araújo e Oliveira: os três senhores do ENEM

Escreve João Batista Araujo e Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto:

Ninguém pode servir a dois senhores, o ENEM quer servir a três: reformar o ensino médio, unificar o vestibular e servir como critério para o PROUNI. E, além disso, quer inovar a psicometria, criando um construto de “competências gerais” que simplesmente não existe.

Vejamos a história do ENEM e seus desdobramentos.

1. O ENEM surgiu com a intenção de balizar a mal concebida reforma do ensino médio de 1997. A idéia era que todos alunos cursassem disciplinas de uma pretensa educação geral – e com isso engessamos ainda mais os currículos do ensino médio e também os do ensino técnico: jogamos fora o bebê com a água do banho. O ENEM foi criado para avaliar essas tais “competências da educação geral”.

2. Como o ENEM não emplacou, o MEC pediu socorro às federais, para legitimar o exame como substituto do vestibular. Sem perder o vício de origem – medir competências gerais – o ENEM deu uma leve guinada para atender ao novo senhor. E, claro, nada influiu no ensino médio, a não ser tornar mais extenso e irrelevante o currículo dos cursos técnicos.

3. A idéia de competências gerais é sedutora – antigamente se acreditava que grego, latim, xadrez e outras disciplinas teriam esse poder mágico. Até hoje a psicologia cognitiva não conseguiu descobrir competências gerais que tenham o poder de se transferir a novas situações: o conhecimento é específico aos domínios, às disciplinas. Testes que tentam medir compreensão no 2º ano primário, em vários países, não conseguem se correlacionar uns com os outros, pois não possuem construtos válidos, muito menos comparáveis. Portanto, querer um teste para medir competências gerais é missão impossível, no estágio atual de conhecimentos. O ENEM se propõe a isso, e muita gente aplaude. É pura sandice.

4. Para colocar as coisas nos trilhos, é preciso separar os problemas. E usar a evidência científica e experiência internacional como parâmetro.

5. No caso do ensino médio, não existe país com ensino médio acadêmico para 90% dos alunos, como no Brasil. Na maioria absoluta dos países da OCDE mais de 50% dos alunos cursam programas não acadêmicos. O Brasil insiste em fingir que não entende do que se trata, e, no máximo, continua falando em ampliar cursos técnicos no modelo do século XX.

6. No caso do vestibular, a experiência internacional apresenta dois modelos, e apenas dois. Todos dois se baseiam no princípio da validade preditiva, ou seja, um teste que prevê desempenho no curso superior. Um deles é o TOEFL, um teste de vocabulário, com alta correlação com testes de QI. Como nos ensina a psicologia cognitiva, o vocabulário é o maior fator preditivo da compreensão. O outro são testes de conhecimento de disciplinas específicas: quem sabe muita física é um bom candidato a ter sucesso em cursos de física. Nos vários países, os alunos nunca são obrigados a prestar mais de 7 provas, na maioria são 3 ou 4 provas. Cabe às universidades estabelecer o ponto de corte. E as provas, claro, são aplicadas de forma semi-permanente, sem comoção social. Um detalhe: desde 2005 o ETS, que patrocina o TOEFL, também oferece testes nas disciplinas específicas, para concorrer com o ACT.

7. Maior do que o problema do ENEM, o Brasil precisa enfrentar com coragem uma reforma do ensino médio. Hoje temos mais alunos do 1º ano do ensino médio do que egressos do 9º ano do Ensino Fundamental. E desses, pouco mais da metade conclui o ensino médio – a maioria deles com notas inferiores a 4 pontos no ENEM. Ou seja: sabem pouco mais do que nada. Enquanto isso importamos centenas de técnicos de nível médio da China para ajudar a implementar os projetos de desenvolvimento em Itaguaí, apenas para dar um exemplo.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

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