O que o referendo (não) vai decidir

Não sei se todos já leram o Estatuto do Desarmamento, aprovado em lei e regulamentado pelo governo (Lei N° 10.826, de 22 de dezembro de 2003). Sem ser especialista, penso que o Estatuto é bastante rigoroso ao controlar a venda e o uso de armas, que são permitidos nos limites estreitos da lei. Mas eis que, no finalzinho da lei, no parágrafo 35, está escrito que “é proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6o desta Lei”, e o artigo 6o lista quem pode fazer uso de armas: essencialmente, quem trabalha na área de segurança, ou determinados funcionários públicos, como auditores fiscais e técnicos da receita federal; e diz também que este artigo deve ser submetido a referendo popular.

A pergunta é: se ganhar o não, o que acontece com o resto da lei? Minha impressão é que nada. Continua proibido o uso de armas por particulares e sua comercialização ilegal, ou seja, para pessoas que não tenham direito de usar armas (é o que diz o artigo 17, que regula o comércio ilegal das armas de fogo, e que não está sendo votado no referendo). E se ganhar o sim? Isto só deve afetar o comércio privado de armas, porque alguém continuará tendo que fornecer armas a todos os que podem usá-las conforme diz a lei.

Então, para que serve mesmo o referendo? Só se for para argumentar depois que, como a população não concorda com a proibição da comercialização, o resto do Estatuto do Desarmamento deveria ser revogado. Seria uma maneira de derrubar o Estatuto, depois de aprovado, através da introdução de última hora da cláusula do referendo.

As campanhas do referendo, infelizmente, estão vendendo ilusões. Os defensores do “sim” dão a entender que, com a proibição das armas, estaremos reduzindo de forma importante a criminalidade e a violência no país, quando sabemos que, por si só, este tipo de restrições não vai muito longe. Os defensores do “não” parecem uma versão cabocla do American Riffle Association, defendo a liberdade do cidadão de portar armas, e escondendo o fato de que esta liberdade já foi devidamente restringida pelo Estatuto do Desarmamento.

Minha conclusão é que, primeiro, este referendo não deveria existir. O Congresso deveria exercer sua responsabilidade de decidir, e todo este dinheiro que está sendo gasto poderia ser melhor utilizado. Segundo, o que está em questão é a legitimidade e vigência do Estatuto do Desarmamento. E, como estou convencido de que o Estatuto é um avanço importante em relação ao que havia antes, meu voto é “sim”.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

3 thoughts on “O que o referendo (não) vai decidir”

  1. Com todo o respeito pelo Embaixador Lorenzo Fernandez, acho que ele não entendeu o que eu quis dizer, ou não consegui me expressar bem.

    Primeiro, em princípio, eu acho que o setor público tem todo o direito e o dever de regular o uso e a comercialização de armas de fogo, assim como de regular o uso de automóveis ou de qualquer outro artefato ou produto que possa fazer dano à própria pessoa ou a outrem. Isto pode ser bem ou mal feito – acredito que bem feito no caso dos cintos de segurança, por exemplo, e nas restrições crescentes ao uso do cigarro, e mal feito na proibição do uso e comercialização de drogas. Aqui pode haver uma divergência genuína, porque há pessoas, como aparentemente é o caso do Embaixador, que acreditam que as liberdades individuais não podem ter nenhuma restrição, particularmente no uso de armas de fogo. Eu não penso assim.

    Segundo, lembrei a regulamentação do uso de armas já existia antes do referendo, estabelecida através do Estatuto do Desarmamento, elaborado e aprovado pelo Congresso, e que me parece bastante razoável, tanto quanto eu, não sendo um especialista em questões de segurança, consigo ver. Então, para que o referendo? O referendo não foi, como apareceu nas campanhas, sobre o direito de usar armas, mas sobre sua comercialização, e não alterava as disposições da lei a respeito de quem podia ou não usar armas – que deveriam, naturalmente, continuar a ser adquiridas legalmente de alguma maneira, seja pelo comércio privado, seja de outra forma (fornecidas pelos órgãos de segurança, por exemplo). O referendo não era para ratificar ou abolir o Estatuto, e não alteraria suas cláusulas principais.

    Minha conclusão, portanto, e o ponto central de meu texto, foi que este referendo não deveria ter existido, e foi um claro exemplo do mau uso a que este tipo de consulta popular está sujeito. É um equívoco pensar que esta forma de decisão “popular”, que simplifica a distorce as questões, e as submete às manipulações das campanhas publicitárias, produz melhores resultados do que o processo legislativo tradicional que é próprio dos regimes democráticos. Eu não sei exatamente qual foi a história que levou o Congresso a promover este referendo, mas, no final, ele acabou se transformando em um forte e merecido voto de desconfiança às autoridades, e tudo continua exatamente como estava antes, como teria continuado, exceto para os comerciantes de armas, se o “sim” tivesse vencido.

    Como PS, vale lembrar que, nos municípios com maior nível de violência urbana, o voto sim foi maior do que nos municípios menos afetados, o que mostra que a população mais afetada vê mérito nas restrições ao direito de uso de armas de fogo. Se fosse verdadeira a tese de que a posse de armas é necessária para defender os cidadãos contra os bandidos, seria de se esperar o resultado inverso.

  2. Falo ex-post-facto,depois da séria lição imposta pela enorme maioria do povo. Surpreso e, de fato, triste, de que S. Schwartzman, de quem muitos trabalhos tenho acompanhado com respeito e admiração, haja deixado levar-se pela encenação de Mídia – a política regida por marqueteiros – e reagisse contra a falsificação, a alienação, e a pura e simples falta de decência cívica da proposta do “Sim”, que violaria um despositivo democrático universal, e parte das cláusulas pétreas da Constituição, direitos básicos do cidadão. SE quizer, mando-lhe um dos últimos artigos do grande Roberto Campos que disseca a idéia do Estatudo do Desarmamento de forma avassaladora.
    À lucidez corresponde um preço em caráter, Schwartzman, e não se trata, como na leviana manifesta
    cão de uma artista que eu considerava uma grande dama, de uma “diversão”
    À sua disposição,e também o meu currículo, se quizer,
    Embaixador Oscar S.Lorenzo Fernandez

  3. Concordo plenamente com seus argumentos. Trata-se de uma leitura objetiva, direta e simples. Para ser sincero, até um mês atrás, eu acreditava que não haveria dúvida quanto a uma vitória tranquila do SIM. Gostaria apenas de acrescentar que, do meu ponto de vista, qualquer passo por menor que seja no sentido de restringir armas é uma importante contribuição para um estado de paz no mundo.
    Professor, seus argumentos bem que poderiam ser levados à campanha televisiva. Parabéns.

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