Marcus Melo: Lulismo ou qualunquismo?

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Vota primeiro, e pensa depois!

Lulismo ou “qualunquismo”?

Marcus André Melo

Há duas visões rivais sobre a política  brasileira na era dos governos petistas. A primeira aponta para um fenômeno supostamente novo – o lulismo – que representaria um realinhamento histórico que teria ocorrido na última década. A denominação lulismo – em lugar de petismo – chama a atenção para o fato de que os votos no PT e no presidente passaram a dissociar-se. Este realinhamento se daria pela conquista dos grotões : o eleitorado petista teria se deslocado definitivamente para as regiões mais pobres – o nordeste, o norte – áreas que estiveram por décadas sob controle de setores conservadores.  Para isso teria contribuído a ampliação de programas sociais, como o bolsa família, e uma estratégia de comunicação nova – por direta e eficaz – que o presidente Lula encarnaria. A visão alternativa é que este realinhamento não teria ocorrido e a “conquista  do nordeste” seria uma mera re-atualização da patologia recorrente da política brasileira: o governismo.

Em livro clássico sobre o clientelismo no mezzogiorno italiano, Chubb analisou o “qualunquismo” – o governismo arraigado somado à indiferença e cinismo cívico. Prefiro esse termo para caracterizar a situação brasileira porque o termo governismo tout court pode sugerir alguma forma de identificação política com o governo.  “Qualunquismo” – derivado de “qualunque”, qualquer um – é uma variante invertida  do hay gobierno soy contra. Mas a ela se conjugam o cinismo, o alheamento frente ao mundo da política.

A versão forte ou maximalista do argumento do lulismo é que finalmente os pobres acordaram de sua entorpecimento histórico. A meta-narrativa presente nesta visão é que – permitindo-me recorrer a um termo meio esquecido do léxico político – os pobres passaram a ter “consciência de classe”.

Que suporte empírico é mobilizado para sustentar o argumento do lulismo? O primeiro é que ocorreu uma inegável reorganização territorial do voto no Brasil a partir de 2006. O voto petista efetivamente concentrou-se nos estados mais pobres. Inferir o comportamento individual dos eleitores de dados agregados (neste caso, municípios ou estados mais pobres) é um dos erros elementares de análise estatística (a chamada falácia ecológica) , mas há evidências que os mais pobres de fato votam no PT.  Uma variante é que estaria ocorrendo uma polarização de base territorial. Esse argumento ecoa algo da literatura acadêmica sobre realinhamento partidário nos EUA.  Só que no Brasil não há nenhum equivalente à clivagem entre o norte e o sul nos EUA em torno da questão racial. Os quatro realinhamentos que essa literatura identifica – desde a fundação do partido democrata por Andrew Jackson até a década de 60 – tiveram ela como vetor. Não há evidências que qualquer fator regional esteja associado ao lulismo – como nos EUA ou mesmo em outros países na América Latina – , para além de comentários preconceituosos disparados no facebook. Nesse caso o argumento parece uma idéia fora de lugar.

O argumento do ”qualunquismo” tem sido defendido com base em evidências que o eleitor dos grotões sempre tende a apoiar quem está no governo, mesmo quando não mantem afinidades eletivas com ele. De fato, as pesquisas mostram que nas últimas cinco eleições presidenciais o voto nessas regiões tem sido invariavelmente governista. A lógica por trás do voto ”qualunquista” já foi discutida há mais de 50 atrás por Victor Nunes Leal em “Coronelismo, enxada e voto”. A dependência dos grotões frente ao governo central impelia os moradores dessas áreas a apoiarem o governo. A intensa competição política local era apenas “uma disputa para ver quem iria ter o privilégio de apoiar o governo central”.  Nesse sentido, o voto petista concentrado no norte/nordeste  não representou uma “marcha para o nordeste” mas apenas a chegada do partido ao poder. O privilégio de quem vai apoiar o governo central continuaria sendo disputado por elites atrasadas. A força intuitiva desse argumento  vem do fato de que o rol dos que tem o privilégio de apoiar o governo central é assustador: uma mirada para Alagoas e Rondônia, passando pelo Pará e Maranhão, seria suficiente. Quem está na oposição só tem a oferecer ideologia e princípios: por isso o PT, como o MDB antes dele, nasceu urbano e cosmopolita. Mas os testes estatísticos sustentam esse argumento robustamente.

Embora a tese do qualunquismo seja mais persuasiva e esteja firmemente ancorada em evidências, ela é ainda insatisfatória. A conquista dos grotões não é nada mais que um reflexo da consolidação da democracia no Brasil.  Quando se inaugura um mercado eleitoral competitivo – como o brasileiro – a tendência no médio e longo prazo é que ocorra um realinhamento de políticas. Essa é a essência do teorema do eleitor mediano – uma espécie de lei da gravidade da ciência política. Quando a renda é fortemente concentrada, a renda do eleitor mediano é significativamente menor do que a renda per capita. Haverá então pressões redistributivas  –  tanto mais fortes quanto maior o hiato de renda entre a mediana da distribuição de renda e sua média. Isso explica porque todos os principais  contendores da disputa presidencial atual apoiam o bolsa família ou até prometam elevar seu escopo e valor. A política de transferências sociais é o que os cientistas políticos denominam  “valence issue“.  Sua consensualidade – pelo menos no que se refere à redistribuição moderada de renda – implica que os políticos são avaliados apenas pela maior ou menor competência em garantir que os objetivos da política sejam atingidos. Assim não é o nordeste mas a maioria dos brasileiros, que tem baixa renda, que sob a democracia, apoia medidas redistributivas. O que há de novo na política nacional é a “federalização  do crédito político” com a política social, o que antes só existia na fixação do salário mínimo. A política de transferência de renda não tem intermediários:  o eleitor de baixa renda vota no presidente que redistribui mais e melhor  (e no oligarca local que aprova a emenda ao orçamento). Mas o eleitor se defronta com um dilema: se deixar de apoiar seu candidato local que garante benefícios estará dando um tiro no próprio pé. Nessas outras áreas de política há um intermediário: ele se alinhará ao que tiver mais chances – em geral o incumbente do cargo – qualunque!

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

One thought on “Marcus Melo: Lulismo ou qualunquismo?”

  1. Boa noite.

    Viajando a trabalho, acabo de retornar ao Rio. Curiosamente, estive em alguns “grotões ” do Nordeste. E participei de reuniões com populações locais.

    Retirada a sensação de já ter visto e vivido experiências semelhantes , o único fato novo, ou melhor discurso novo é no sentido de quem sem a “ajuda” , o sofrimento seria pior do que , mesmo atualmente , continua sendo.

    A análise tem , portanto, em minha maneira de ver, coerência com a dura realidade que pude, mais uma vez, constatar. Espera-se a solução “do governo”. Espera-se que “olhem por nós”.

    Quem vai “olhar ” pelo sofrido nordestino serão os mesmos de sempre. Arranjos políticos locais, que, por vínculos de décadas se mantêm.

    Olho D’água das Cunhãs e municípios adjacentes, votarão no governo. Em qualunque que seja por indicado. AjS Campello

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