Educação técnica de nível médio: como avançar?

vocationalParticipei, no dia 5 de outubro, de uma Audiência Pública da Comissão de Educação da Câmara de Deputados sobre o tema da educação técnica e profissional no Brasil. Na semana anterior, tive também a oportunidade de participar, em Manaus, de reunião do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED), aonde foi elaborada uma proposta de revisão do Projeto de Lei 6840 de reforma do ensino médio. O que observo é que há um consenso crescente sobre a necessidade de reformar o ensino médio brasileiro em quatro pontos fundamentais:  ao invés de um currículo uniforme e carregado de matérias, deve haver um currículo diferenciado, com uma base comum e opções de formação e aprofundamento em diferentes áreas; o ensino técnico de nível médio deve ser uma destas opções, e não, como é hoje, um curso adicional;  o ENEM precisa ser modificado para refletir esta mudança, passando a ter uma parte comum e avaliações opcionais diferentes para as diferentes áreas; e a base nacional curricular comum, hora em discussão, tem que refletir este formato. O texto abaixo resume  os principais pontos que procurei apresentar na Audiência Pública sobre educação técnica e profissional,  para discussão:

Diagnóstico e Perspectivas para a Educação Técnica e Profissional do Brasil: Pontos para Discussão

Conceito: A expressão “educação técnica e profissional” pode significar coisas muito distintas, desde a formação inicial de curta duração (160 horas) em atividades simples até formação especializada em nível de pós-graduação, e inclui também a formação proporcionada por cursos não regulamentados e empresas privadas. No Brasil, “educação técnica” é o termo utilizado para a formação profissional de nível médio, que tem uma duração de 800 a 1200 horas, independentemente do conteúdo, e é neste sentido que o termo será usado aqui.

A Educação Técnica no Brasil e no mundo: Em todo o mundo, a educação técnica e profissional é uma das opções de formação de nível médio, ao lado de outras opções de formação geral ou de preparação para estudos universitários. No Brasil, diferentemente do resto do mundo, a educação técnica é uma capacitação adicional ao ensino médio regular. O ensino médio regular requer atualmente 2.400 horas de estudo em três anos:  o estudante que desejar obter uma qualificação técnica terá que cumprir 2.400 mais 800 ou 1.200 horas de formação conforme sua área de estudo. Esta é uma situação absurda que necessita ser urgentemente corrigida.

Consequências do modelo brasileiro de educação técnica e profissional

A atual legislação permite que a educação técnica seja feita de forma integrada, concomitante e subsequente ao ensino médio regular, mas não como alternativa. Pelos dados mais recentes, do censo escolar de 2014, haviam 1.784 mil estudantes matriculados em cursos técnicos, 16,4% do total de matrículas neste nível. Destes, um milhão estavam em cursos subsequentes, ou seja, já haviam terminado o ensino médio regular e agora voltavam para obter uma certificação profissional que deveriam ter obtido durante o próprio ensino médio. O principal provedor de educação técnica é o setor privado, 693 mil alunos, seguido dos sistemas estaduais, 536 mil, com destaque para o sistema Paula Souza de Sao Paulo, e depois o Sistema S e o governo federal, com cerca de 300 mil cada um. No atual formato, a educação técnica integrada ao ensino médio regular. considerada como preferida, só ocorre em instituições públicas federais e estaduais, e só atende a 366 mil estudantes em total, uma pequena maioria.

As consequências do atual sistema brasileiro são:

  • Para a grande maioria dos jovens, o ensino médio nem permite acesso ao ensino superior (que não chega a absorver 20% dos jovens) nem qualifica para o mercado de trabalho;
  • para os que conseguem uma qualificação técnica de ensino médio, a obrigação de completar o currículo da educação regular é uma exigência burocrática desmedida, que traz pouco ou nenhum benefício, devido à sua má qualidade, sobretudo nas redes estaduais;
  • O Brasil nao consegue formar técnicos especialistas de nível médio na quantidade e qualidade necessários para a sua economia.

Para superar esta situação, é preciso alterar a atual legislação sobre o ensino médio, modificar o atual sistema da avaliação do ensino médio – o ENEM – e alterar a base nacional curricular comum que está sendo proposta pelo Ministério da Educação. Os pontos principais são:

Alterar o currículo obrigatório do ensino médio. No atual formato, o currículo do ensino médio exige um total de 13 a 15 matérias obrigatórias, entre as quais sociologia, filosofia e espanhol.  No formato proposto:

  • Metade das horas destinadas ao ensino médio (1.200 das 2.400 obrigatórias)  seriam para a formação geral, comum a todos, com ênfase em matemática e linguagem;  e metade seria em áreas opcionais de aprofundamento, em linguagens, matemática, ciências naturais, ciências humanas, e formação técnica profissional.
  • Os temas regionais dos diferentes estados devem ser incluídos na parte comum, e não pa parte opcional de aprofundamento e especialização.
  • Dentro destas áreas as únicas matérias obrigatórias seriam o português, matemática e inglês. As demais seriam dadas conforme as orientações das redes escolares e das propostas educacionais das escolas.

Mudar o projeto da Base Nacional Curricular Comum que está sendo elaborado. O proposta da Base Nacional é muito extensa e detalhista,  inclusive para o ensino médio, não considera o tempo necessário para ensinar tudo isto, e não abre espaço para opções e aprofundamento. Para o ensino médio, ela deveria se limitar aos conteúdos comuns, que poderiam depois ser aprofundados ou nao pelos estudantes conforme suas opções.

Alterar o ENEM. O atual ENEM, como uma prova enciclopédica em todas as áreas, impõe o mesmo currículo para todo o ensino médio, e é incompatível com um sistema diferenciado e modular como o que está sendo proposto.

Um ENEM reformado deveria:

  • Ser dividido entre uma parte geral, com ênfase em competências no uso da lingua portuguesa e do raciocínio matemático, e provas específicas e opcionais em ciências físicas, biológicas, sociais, linguagem, etc.
  • Todos os alunos deveriam fazer a parte comum, e optar por uma das provas específicas.
  • A aplicação das provas deveria ser distribuída no espaço e no tempo, fazendo uso das modernas técnicas de avaliação em larga escala disponíveis
  • As universidades, ao selecionar seus alunos deveriam ser estimuladas a combinar os resultados destas provas com outros critérios regionais e associados a seus projetos pedagógicos.

Criar sistemas específicos de certificação profissional para os cursos técnicos. De forma análoga, o desempenho dos alunos nos cursos técnicos poderia ser objeto de certificação profissional, dada por instituições devidamente autorizadas, como associações profissionais, o Sistema S, ou sistemas de ensino como os Institutos Federais de Ciência e Tecnologia e o Sistema Paula Souza em São Paulo.

Fortalecer o sistema de formação técnica através de parcerias com o setor produtivo e com instituições especializadas, e fazendo uso da Lei de Aprendizagem. O ensino técnico profissional, para ter bons resultados, necessita de experiência prática.  O Brasil tem pouca experiência de ensino profissional em larga escala, e dificilmente as atuais escolas da rede estadual teriam condições, por elas mesmas, de criar cursos técnicos de qualidade a curto prazo. Por isto, é necessário desenvolver diferentes formas de cooperação  das escolas com o setor produtivo, incluindo serviços como hospitais, com o sistema S e outras instituições especializadas, que possam ajudar tanto na definição dos currículos quanto no compartilhamento de recursos e na oferta de estágios sob supervisão.

Implicações financeiras. Existem várias implicações financeiras neste novo modelo, que precisam ser consideradas:

  • Ao ser incluído como parte opcional dentro dos cursos médios regulares, a educação profissional passa a ser coberta pelo FUNDEB. Em caso de cursos dados em parcerias com outras instituições públicas ou privadas, estes recursos poderiam ser compartidos conforme a carga horária de cada um;
  • Para os alunos que já concluíram ou concluam o ensino médio e desejam obter uma certificação profissional adicional haverá um custo extra não coberto pelo FUNDEB, e será necessário um financiamento adicional.
  • De maneira geral, por requerer equipamentos e instalações adequadas, a educação técnica é mais cara do que a educação geral, e por isto mesmo é necessário ter mecanismos específicos de financiamento, na linha do PRONATEC.

Implicações quanto aos professores. Em termos gerais, a reorganização do ensino médio como está sendo proposta poderá tornar alguns professores sem função, e exigir professores com competências específicas que hoje não existem em número suficiente. Isto requer políticas adequadas de transição e de formação de professores, que são importantes mas de tipo administrativo, e não requerem legislação especial.

A situação é ainda mais didicil para o ensino profissional, que requer que os professores tenham experiência concreta de trabalho, e não necessariamente as licenciaturas requeridas pelo ensino médio regular.  É importante que os professores não deixem o setor produtivo para trabalhar nas escolas, sob o risco de se desatualizar.  Isto requer um sistema flexível de contratação temporária, e mais autonomia para a redes  selecionarem os professores segundo critérios próprios e diferentes dos utilizados para o ensino geral.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

5 thoughts on “Educação técnica de nível médio: como avançar?”

  1. Boa tarde.
    Tenho dúvidas de fundo. Ou seja , principalmente a respeito da crise multifacetada que vem se instalando em nosso país . Também tenho dúvidas a respeito da ou das influências derivadas de ideologias sôbre a Educação em seu sentido amplo.
    Recentemente a Presidente da República , em discurso, tentou esclarecer como é vista a resolução de um dos conjuntos de facetas da já referida crise. Pareceu-me algo keynesiano : investimento em infraestrutura.
    Por uma outra vertente , a postura da nossa mandatária em relação ao amplo tema da Educação tem me parecido a de um certo silêncio. O que pode ser visto como uma perda na escala de prioridades.
    Esta perda de prioridades parece se concretizar com a redução de frações da LDO mormente em relação ao PRONATEC e , me corrijam se eu estiver errado , em relação ao Ensino Superior – entendido desde o bacharelado até o Doutorado.
    Um outro aspecto preocupante vem a ser uma nova investida sobre o financiamento do Sistema “S”. Pode ser indicativo de algo como, parafraseando : “mateus , primeiro o meu. Primeiro o PRONATEC , o sistema “S” que se exploda.
    Já comentei aqui , tendo como mote outro assunto, que as Políticas Públicas em boa parte não passam de um discurso , que não é desdobrado em etapas subsequentes e , principalmente, com forte tendência a resultarem em “ações” posteriores que não se articulam com outras políticas públicas , projetos , programas…o nome que se quiser dar-lhes. O descontinuar , total ou parcial ou , a introdução de alterações que ferem os parâmetros iniciais, trazendo-lhes inconsistência(s) interna(s).
    Observo – novamente , me corrijam se incido em êrro , que tais políticas, programas , projetos , quando dependem de Legislação nova ou alteração da vigente, tendem a cair na inoperância congressual pelo sim – legislação nova ou alteração da vigente na dependência dos PLs e quetais, pelo não , via as Medidas Provisórias que , ou passam a valer por decurso de prazo ou são desfiguradas….
    No momento e ainda por um tempo que pode ser dilatado, o que acabo de comentar sobre Políticas Públicas que dependam de legislação , me parece , se aplicaria a Legislação nova ou alteração da vigente, quando se aponta como necessário alterar a base legal.
    Aquele tempo dilatado se prende a um substancial conjunto de leis novas ou alterações das vigentes relativas ao pretendido “ajuste fiscal”. Tome-se como exemplo a necessidade de alterar aspectos importantes do sistema federativo atual.
    Um outro campo que me preocupa será a mudança de paradigmas na indústria , na mineração e nos serviços. Procupa-me porquanto o ranço bacharelista (nada contra a nobre Ciênci Jurídica) tende a cristalizar situações do momento e assim criar obstáculos a alterações. Aqui , permitam-me lembrar que uma dada capacitação ou domínio efetivo de uma tecnologia, pode e com frequência é tornado obsoleto. A velocidade destas rupturas técnicas e mesmo científicas, tem se acelerado.
    Cordialmente , AJS Campello

  2. Simon, obrigada pela atenção:
    Fico bem tranquila com a hipótese de se deixar as escola técnicas federais em seu modelo com ênfase na formação teórica e prática de ponta.Acredito que dai sairão os profissionais técnicos de nível médio avançados e os futuros graduados em áreas tecnológicas capazes de inovações e adaptações rápidas a uma mercado de trabalho em mudanças.
    Não estou conseguindo perceber bem como os recursos do FUNDEB PODERÃO MANTER O FUNDAMENTAL E O MÉDIO COM QUALIDADE.NAO SERIAM NECESSÁRIOS RECURSOS ADICIONAIS? .Laboratorios? Bibliotecas contemporâneas? Professores qualificados para fazer diferença junto a seus alunos?.
    E, finalmente, o ensino Médio vem sendo reformado desde a Lei 5692/71. Vamos ver se desta vez se conseguirá um consenso sobre o modelo que queremos olhando o futuro sócio econômico do país.
    Atenciosamente, Ana Maria de Rezende Pinto

  3. Obrigada pela atenção.Fico bastante tranquilizada com a hipótese de se deixar as escolas técnicas federais funcionado em se modelo tradicional: ênfase no ensino académico de bom nível e M. boa formação profissional com rigor na formação profissional.Acredito que delas virá o bom profissional e o Excelente aluno do ensino superior para as áreas de conhecimento “duras” conforme você bem enfatizou.
    Quanto aos recursos do Fundeb, não sei bem qual o per capta por aluno do ensino básico versus médio.Nao seriam nescessarios novos recursos? O Ensino Médio teria um custo mais elevado,não? Por outro lado, do que lembro sobre a Corea e que achei interessante é que o salário do professor era o mesmo do fundamental ao Médio. Para o Médio se supõe laboratórios e bibliotecas mais densas e contemporâneas de nossos tempos.
    Gostei da propostas, reafirmo.
    Pelo que me lembro o Médio não para de se modificado e reformado desde
    a Lei 5692/ 71.Vamos ver se conseguimos uma concertacao sobre o modelo adequado para o desenvolvimento sócio econômico do país.
    Atenciosamente,
    Ana Maria Rezende Pinto

  4. Ana Maria, a ideia é que possam haver diferentes tipos de educação profissional. Se as escolas do sistema federal são realmente excelentes, não há porque mexer nelas, e elas poderiam se beneficiar da redução da carga acadêmica obrigatória. Mas, pelo perfil destas escolas e de seus alunos, o mais provável é que elas continuem funcionando sobretudo como via de acesso ao ensino superior, com ênfase na formação em CTEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática).

    Em relação ao FUNDEB, se o ensino profissional passar a ser considerado parte do ensino médio, então naturalmente ele será financiado pelo FUNDEB, assim como as outras modalidades de ensino médio propedêutico. A situação do que é hoje o ensino subsequente é diferente, porque estes alunos já completaram o ensino médio, e por isto precisariam de um financiamento próprio, via Pronatec ou outro mecanismo.

  5. Prezado Simon,
    Excelente proposta para reformular o Ensino Médio e Profissional.Resta- me tão somente cumprimentá-lo.
    Tenho contudo algumas dúvidas:
    1-Não entendi muito bem, se nesta sua proposta o modo de operação das escolas técnicas federais será modificado.Trata-se de um excelente modelo de escolas profissional de ponta,,não para a massa, mas para a elite egressa da oitava série, pública ou particular, mediante concurso.
    2- Outra, a proposta supõe que a ensino profissionalizante seja financiado com recursos do Fundeb? Ou apenas a formação geral?

    Muito boa a proposta de colocar os recursos do Pronatec a servido do Ensino Médio Profissional
    Atenciosamente, Ana Maria de Rezende Pinto

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