Meu projeto de lei para o ensino médio

Desde 2015, pelo menos, tenho estudado e participado das discussões sobre o ensino médio e profissional no Brasil. Na época, o Conselho Nacional de Secretários de Educação – CONSED – estava interessado em  modificar a legislação existente, e tive a oportunidade de apresentar uma sugestão de como uma nova lei poderia ser. Sem ser especialista no emaranhado de leis,  decretos, regulamentos e pareceres que tornam a educação brasileira tão complicada e ineficiente, tive a liberdade de propor, somente, as coisas que me pareciam mais importantes. Acho que contribui de alguma maneira para o resultado deste processo, que culminou com a Medida Provisória recentemente publicada por iniciativa do Ministério da Educação. A MP, naturalmente,  não encerra o assunto, e por isto achei que vale a pena divulgar esta proposta, assim como sua justificativa, para quem tiver interesse em cotejar.

Proposta de Reformulação do Ensino Médio e Técnico (Versão 17/08/15)

Esta lei cria alternativas de formação de nível médio, e especifica os requisitos para que os alunos do ensino médio recebam os respectivos diplomas e certificados.

Da organização do currículo ensino médio.

Artigo 1. – O currículo do ensino médio, cujos objetivos são definidos no artigo 35 da Lei 9364, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, constará de uma parte mínima de conteúdo obrigatório e de uma parte opcional de formação e aprofundamento, de natureza acadêmica ou técnico-profissional.

I – Dos conteúdos mínimos exigidos

Artigo 2. Para obter o diploma de nível médio, os alunos devem completar os seguintes cursos de um ano de duração:

• Três cursos de língua portuguesa;
• Dois cursos de matemática, incluindo álgebra e estatística aplicada
• Dois cursos em ciências naturais, incluindo biologia e ciências físicas.
• Dois cursos de ciências sociais, incluindo história e geografia do Brasil, história e geografia do mundo, um semestre sobre instituições políticas brasileiras, e um semestre de economia.
• Um curso de língua inglesa
• Um curso de artes visuais ou desempenho artístico, ou um curso de formação para o mundo do trabalho

§1 A formação de nível médio deverá assegurar o domínio do uso das tecnologias de informação e comunicação social em nível compatível com seus usos no mundo do trabalho e das relações sociais.
§2 – Os Conselhos Estaduais de educação podem suplementar estes requisitos mínimos para atender a especificidades regionais.
§3 – o total dos cursos obrigatórios, incluindo os cursos definidos pelos Conselhos Estaduais, não poderá superar o total de 1.200 horas.
II – Das modalidades alternativas de formação.

Artigo 3. – Os Conselhos Estaduais de Educação poderão aprovar formas alternativas de implementação dos cursos prescritos por parte das escolas, incluindo:

• Demonstração prática de habilidades e competências
• Experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência fora da escola
• Aulas de educação técnica em carreiras oferecidas em escolas de ensino médio
• Cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais regionais
• Estudo interdisciplinar
• Estudo independente
• Créditos obtidos em uma instituição pós-secundária

III – Das opções de formação e aprofundamento

Artigo 4. – Os estabelecimentos que proporcionam ensino médio, públicos ou privados, poderão oferecer diferentes opções de formação e aprofundamento no ensino médio, quer aumentando as exigências de formação previstas no currículo mínimo para áreas específicas, quer acrescentando conteúdos adicionais de formação.

Artigo 5. – São as seguintes as possíveis áreas de formação e aprofundamento:

• Ciências físicas
• Ciências biológicas
• Humanidades (história, literatura, filosofia)
• Ciências sociais (economia, administração, direito)
• Formação técnica e profissional
• Formação e desempenho artístico

Artigo 6. – Os estabelecimentos escolares devidamente autorizados pelos Conselhos Estaduais de educação dos respectivos Estados terão autonomia para definir as áreas de formação e aprofundamento que serão oferecidas a seus alunos, emitindo os diplomas de conclusão do ensino médio, com menção da área ou áreas formação e aprofundamento.
V – Da formação técnica e profissional de nível médio

Artigo 7. A formação técnica e profissional é uma das alternativas de formação de nível médio.

Artigo 8. Os objetivos da formação técnica e profissional são capacitar os estudantes para o mundo do trabalho nos diversos de formação profissional, assim como para posterior especialização em cursos pós-secundários.

Artigo 9. O setor público e o privado poderão estabelecer escolas técnicas especializadas que ofereçam cursos em uma ou mais áreas específicas de formação, devendo atender aos requisitos mínimos de conteúdo especificados nesta lei, de forma aplicada e adaptada à sua especialização e vocação.

§ 1 – As escolas poderão também oferecer cursos experimentais em áreas que não constem do Catálogo Nacional, requerendo sua aprovação posterior pelo Ministério da Educação.

Artigo 10. – Os cursos técnicos deverão incluir, obrigatoriamente, experiência prática de trabalho no setor produtivo, estabelecendo parcerias e fazendo uso, quando aplicável, das possibilidades estabelecidas pela legislação sobre aprendizagem profissional.
IV – Dos sistemas de avaliação e certificação

Artigo 11. Todos os alunos que concluírem os requisitos mínimos e mais os requisitos adicionais de formação requeridos pelos seus estabelecimentos de ensino receberão um diploma de conclusão de curso médio de validade nacional.

Artigo 12. O governo federal estabelecerá os padrões nacionais de competências de uso da língua portuguesa e de raciocínio matemático desejados para o ensino médio, assim como para as diversas áreas de formação e aprofundamento, que servirão de referencia para sistemas de avaliação a serem implementados pelo governo federal ou governos estaduais.

Artigo 13. Os padrões de competência e sistemas de avaliação nas áreas de formação profissional deverão ser desenvolvidos, preferentemente, em parceria com organizações do setor produtivo, inclusive as do sistema nacional de aprendizagem.

Artigo 14. Os resultados das avaliações serão classificados como inadequados, aceitáveis, bons ou excelentes, e serão objeto de certificados a serem emitidos pelas instituições avaliadoras.

Artigo 15. Pessoas que não completaram a educação média formal, mas que obtiverem resultados pelo menos satisfatórios nas avaliações de competência em linguagem, raciocínio matemático e uma área específica de formação, obterão um certificado de conclusão do ensino médio.

Artigo 16. – Pessoas que não completaram a educação média formal, mas que obtiverem resultados satisfatórios nas avaliações de específica de competência, obterão um certificado de competência profissional que equivalerá, para efeitos legais, a um diploma de nível médio.

Artigo 17. Revogam-se as disposições em contrário.
Justificativa

A educação média brasileira, prevista em princípio para os jovens de 15 a 17 anos que terminam a educação fundamental, tem crescido muito nos últimos anos, e deverá crescer ainda mais, com a obrigatoriedade legal de 12 anos de educação formal a vigorar a partir de 2017. Dados do início de 2015 mostram que cerca de metade dos jovens de 15 a 17 anos de idade estavam matriculados no ensino médio, e cerca de 60% das pessoas de 25 anos de idade haviam concluído o ensino médio. Ao mesmo tempo, os resultados das avaliações nacionais e internacionais do ensino médio mostram que a grande maioria dos estudantes não adquire o mínimo de competências esperado no uso da língua e no raciocínio matemático, resultado corroborado também pelo Exame Nacional do Ensino Médio.

As causas deste problema de qualidade são inúmeras, e incluem problemas de formação inadequada de professores, mal funcionamento das escolas e a persistência de cursos noturnos para grande parte dos estudantes. Além disto, muitos estudantes chegam ao nível médio com limitações sérias de formação básica, fortemente correlacionadas com as condições sociais de suas famílias e com os problemas de organização e funcionamento das escolas de onde se originam.

Currículo mínimo e diferenciação

O formato do ensino médio no Brasil, adaptado da França no início dos anos 40 e com poucas alterações de concepção deste então, é reconhecidamente incapaz de atender a toda esta população de forma minimamente adequada. No passado, no Brasil, como em outras partes do mundo, o ensino médio era concebido como um verniz cultural ou uma preparação para os cursos universitários, para uma pequena parcela da população que conseguia chegar até este nível. Com a universalização do ensino médio, todos os países tiveram que lidar com a grande diversidade de interesses, motivações e competências deste universo de estudantes, e também com o fato de que o antigo ideal de formação geral, humanista e universal era incompatível com a grande expansão e diversificação do conhecimento em todos os campos, e acabava por reproduzir a cultura específica de determinados estratos sociais. A solução foi criar escolas abrangentes, “comprehensive”, como as high schools americanas, responsáveis por oferecer um amplo leque de opções e especializações para seus estudantes, das mais acadêmicas e exigentes às mais práticas e de conteúdo mais simples, ou, como na Europa e na maioria dos países asiáticos, diferentes redes de atendimento escolar, umas acadêmicas, outras técnicas e profissionais.

O Brasil não só não diversificou seu sistema de ensino médio, como, em uma interpretação enviesada da Lei de Diretrizes e Bases, aumentou cada vez sua carga de conteúdos obrigatórios, e eliminou as possibilidades de diferenciação que a lei permitia. De fato, a LDB, no parágrafo 2 do artigo 35, estabelece que “o ensino médio, atendida a formação geral do educando, poderá prepará-lo para o exercício de profissões técnicas”, e, no parágrafo 3, que “os cursos do ensino médio terão equivalência legal e habilitarão ao prosseguimento de estudos”. No entanto, a legislação tem sido interpretada como havendo somente uma modalidade de ensino médio, de tipo geral, deixando a formação profissional (com a denominação de “educação técnica”) como uma qualificação adicional, a ser obtida de forma integrada, concomitante ou subsequente. Este entendimento é claramente atípico, fazendo da educação média brasileira uma anomalia em termos internacionais.

Avaliação e Certificação

O dilema que os países precisam enfrentar é entre manter padrões altamente exigentes para o ensino médio em todas as suas modalidades, e com isto excluir uma parte significativa de sua população que não consegue acompanhar, ou criar diferentes caminhos e níveis de formação para diferentes setores da população, com o risco de reforçar, pela educação, as desigualdades sociais existentes. Os sistemas diferenciados europeus, que têm uma história reconhecida de bons resultados em termos de capacitação para o trabalho e alta empregabilidade de seus formados, hoje estão sendo revistos no sentido de ampliar o período de formação comum para os jovens até os 15 anos de idade, e combinar a formação técnica com o desenvolvimento de competências mais amplas e transferíveis entre diferentes tipos de atividades, reduzindo o grande número de áreas de capacitação extremamente detalhadas e altamente suscetíveis a se tornar obsoletas pela evolução da tecnologia e as transformações do mercado de trabalho.

O ensino médio brasileiro hoje, embora homogêneo quanto a seu formato, é altamente diferenciado em termos de qualidade, com estabelecimentos federais, estaduais municipais, públicos e privados, diurnos, noturnos e de tempo integral. Estabelecer por lei um padrão altamente exigente de organização e qualidade de desempenho, medido por exames periódicos rigorosos, pode significar, simplesmente, que a lei não será cumprida pela grande maioria dos estabelecimentos, e a grande maioria dos estudantes ficará sem certificação de nível médio, com graves problemas de acesso ao mercado de trabalho. O Brasil já tem uma experiência negativa em relação a isto, que foi a lei da reforma universitária de 1966, que pretendeu implantar o modelo norte-americano de universidade de pesquisa para todo o sistema, e que, cinquenta anos depois, está mais distante da realidade do que nunca.

A alternativa é estabelecer um padrão mínimo de exigências, deixando espaço para diferentes modalidades de formação e qualificação, e criar e desenvolver, ao mesmo tempo, padrões de competências que identifiquem os diversos níveis de desempenho considerados aceitáveis, a partir dos quais tanto o setor privado quanto os estudantes e o setor público sejam estimulados e possam favorecer a melhoria e fortalecimento contínuo do setor.

É necessário também permitir que os estudantes façam escolhas em função de seus interesses, motivações e capacitação prévia, não só entre áreas de conhecimento, mas também em áreas de formação técnica de nível médio, que pode ser proporcionada em conjunto com os requisitos mínimos de formação.

Um sistema de ensino médio diferenciado é incompatível com o atual Exame Nacional de Ensino Médio, que hoje reforça o padrão único que existe até aqui. É necessário haver um ou mais sistemas de avaliação de competências gerais em linguagem e raciocínio matemático, que toda a população precisa adquirir, e permitir que surjam ou se desenvolvam diferentes sistemas de avaliação e certificação das diferentes áreas de formação, a serem implementados por governos estaduais e instituições associadas, incluindo universidades e associações profissionais.

Este projeto estabelece uma diferença clara entre o diploma de nível médio, que é outorgado pelas escolas devidamente autorizadas para funcionar, e as certificações resultantes de avaliações externa. Para a formação acadêmica, a certificação informa se a pessoa tem um nível de competências adequado na parte geral e na parte específica de sua formação. Para a formação técnica, a certificação pode corresponder ao credenciamento para o exercício determinadas profissões, e por isto deve ser administrada em cooperação com as instituições por este credenciamento, quando for o caso.

Os sistemas de avaliação produzem escalas numéricas de pontuações, mas as interpretações dos resultados são normalmente agrupadas em poucos níveis, de insatisfatório a excelente. Este projeto estabelece que os resultados das avaliações sejam expressos nestes níveis.

Ensino Técnico

O ensino técnico tem uma natureza peculiar, na qual se destaca a necessidade de experiência prática profissional, e precisa estabelecer seus próprios sistemas de avaliação e certificação, começando pelas áreas de maior demanda e mais estruturadas, contando para isto com a experiência e a colaboração do Sistema S, dos Institutos federais, do Centro Paula Souza e outros sistemas públicos e privados do país. É importante que os alunos que seguem o ensino técnico desenvolvam competências gerais no uso de linguagem, raciocínio matemático, conhecimentos científicos e sociais, que são parte geral requerida para completar a educação secundária. Estes conteúdos, no entanto, devem ser desenvolvidos preferentemente de forma associada à área de formação especializada no estudante, e não de forma geral e disassociada.

O papel dos Estados e do Governo Federal

Finalmente, a educação média, constitucionalmente, é da responsabilidade dos Estados, e este projeto procura devolver aos Estados esta responsabilidade, em muitos aspectos. Isto é importante não só por cumprir um preceito legal, mas também porque é uma maneira de estimular a diversificação a experimentação, sem que o governo federal deixe de ter o papel importante de apoiar os estados financeira e tecnicamente, e difundir as boas práticas.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

4 thoughts on “Meu projeto de lei para o ensino médio”

  1. Estou curioso sobre vossa opinião a respeito dos prós e contras da recente MP do ensino médio. Apesar da via por MP ser meio apressada, muitas das reformas eram desejadas há tempos, como o fortalecimento do ensino técnico. Grato.
    PS: o blog aparece em branco no celular às vezes.

    1. Já disse o que penso no facebook: o projeto em geral é importante, vai na direção correta, mas está amarrado a definições da base nacional curricular que anda não existem.

  2. Prezado Simon,

    Excelente projeto. Faço apenas um comentário: por que, no artigo 5, você não incluiu uma opção de formação e aprofundamento intitulada “Formação e desempenho esportivo”? Num país tão afeito a esportes, essa seria uma forma legítima de canalizar o potencial dos adolescentes, não acha? Abraços, Marcus Freitas

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