A Base Nacional Curricular e a Reforma do Ensino Médio

Esta é a versão completa de meu comentário sobre a proposta da Base Nacional Curricular do Ensino Médio, publicado de forma resumida no jornal  O Estado de São Paulo em 9/4/2018

A Base Nacional Curricular e a Reforma do Ensino Médio

Depois de meses de expectativa, o Ministério da Educação revelou sua proposta para a Base Curricular do Ensino Médio, que deveria indicar como a reforma do ensino médio aprovada em fevereiro de 2017 deve ser implementada. É um documento de 150 páginas, ainda por ser revisto pelo Conselho Nacional de Educação, que, ao mesmo tempo, está elaborando suas próprias “diretrizes curriculares” para o ensino médio. Tudo isto deve convergir, em algum momento, no gabinete do Ministro da Educação, que pode ou não homologar os trabalhos e transformá-los em política governamental.

O que pensar deste documento, e do que ele promete para a melhoria do ensino médio brasileiro? Creio que é possível discutir isto em dois níveis, o da concepção geral e o do conteúdo em si do documento.

Quanto à concepção geral, a proposta pode frustrar ainda mais as boas intenções que estavam contidas, pelo menos em parte, no projeto inicial da reforma do ensino médio. A intenção era sair da camisa de força de um currículo acadêmico, tradicional, pesado e único, que não abria espaço para itinerários formativos distintos, de natureza acadêmica ou profissional, e substitui-lo por um programa enxuto, com um núcleo central de formação básica, sobretudo de linguagem e raciocínio matemático, e um leque de alternativas claras de aprofundamento, sejam mais acadêmicas, com opções nas áreas das ciências naturais ou sociais, ou vocacionais, com um leque mais amplo de opções. O pressuposto era não só que o currículo tradicional era inexequível, como que os estudantes chegam ao ensino médio com interesses e formação muito distintas, e é necessário oferecer opções de formação e aperfeiçoamento apropriadas a diferentes perfis.

A proposta provocou a oposição de todos que temiam que suas matérias de preferência ficassem de fora ou perdessem importância, e conseguiram que a parte comum passasse a ocupar a maior parte do tempo escolar – até 1.800 horas em três anos, ou 60% das três mil horas que todo o ensino médio deveria durar ao longo de três anos a partir de 2017, o que está ainda longe de se efetivar. Nesta parte comum inchada voltaram os temas cujos defensores se sentiam ameaçados– educação física, sociologia, filosofia, arte, entre outros – e ficaram de fora temas como a economia, o direito e as tecnologias propriamente ditas.

Todas as  150 páginas do documento do Ministério foram dedicadas a elaborar o que seria esta parte comum inchada, e nada foi feito no sentido de especificar quais seriam os conteúdos básicos dos itinerários formativos, deixados para ser implementados a critério de cada escola ou rede escolar. O Ministério também decidiu não fazer nada no sentido de substituir o atual ENEM, que força todos os alunos a se preparar para um exame único, por um conjunto limitado de opções, sem as quais a diferenciação não tem como se dar. Em resumo, o documento confirma que o Ministério da Educação não “comprou” de fato a ideia da diversificação, que fica assim postergada até que um novo governo, quem sabe, decida aproveitar os espaços criados pela nova legislação, ou encaminhar uma nova, para de fato avançar.

E o que dizer do documento em si? É um texto prolixo, carregado de frases aparentemente eruditas mas frequentemente retóricas e muitas vezes equivocadas. Ele procura definir os marcos a partir do qual cada rede ou escola possa estabelecer seus próprios currículos, mas isto é feito através de listas extremamente detalhadas de boas intenções que, me parece, ou não servem para nada, ou podem se transformar em pesadelos se o Ministério pretender um dia verificar se estão sendo de fato implementadas. O documento procura fugir, de propósito, da organização do conhecimento em disciplinas e linhas de pesquisa e estudo, que é a forma em que o conhecimento se dá e é transmitido na prática, e procura substitui-los por uma linguagem formal e abstrata de “competências” e “habilidades” que pode ser útil em processos muito específicos de treinamento para atividades práticas, mas é muito questionável quando se pretende aplicá-la a processos formativos mais amplos.

Para dar um exemplo, na área de “linguagem e suas tecnologias”, que, no entendimento peculiar do MEC, é uma “área de conhecimento” que inclui português, inglês, dança e educação física (?!), uma das sete “competências específicas” a ser desenvolvidas é “compreender o funcionamento das diferentes linguagens e práticas (artísticas, corporais e verbais) e mobilizar esses conhecimentos na recepção e produção de discursos nos diferentes campos de atuação social e nas diversas mídias, para ampliar as formas de participação social, o entendimento e as possibilidades de explicação e interpretação crítica da realidade e para continuar aprendendo”. Estas sete competências específicas são detalhadas em 25 “habilidades”, a primeira das quais é “compreender e analisar processos de produção e circulação de discursos, nas diferentes linguagens, para fazer escolhas fundamentadas em função de interesses pessoais e coletivos”. Na parte específica da língua portuguesa, são especificadas mais 53 “habilidades” em cinco diferentes “campos”, uma das quais é “analisar relações de intertextualidade e interdiscursividade que permitam a explicitação de relações dialógicas, a identificação de posicionamentos ou de perspectivas, a compreensão de paródias e estilizações, entre outras possibilidades”.

Na área de “Ciências Humanas e Sociais Aplicadas”, que na concepção do MEC inclui filosofia, geografia, história e sociologia (mas não economia, direito, ciência política, antropologia, linguística ou administração) a primeira das competências é “analisar processos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais nos âmbitos local, regional, nacional e mundial em diferentes tempos, a partir de procedimentos epistemológicos e científicos, de modo a compreender e posicionar-se criticamente com relação a esses processos e às possíveis relações entre eles”; e, para fazer isto, a primeira das habilidades seria “analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão e à crítica de ideias filosóficas e processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais”. . .

Na matemática, que teve a sorte de ser preservada como uma disciplina em separado, a listagem de habilidades e competências faz mais sentido, como por exemplo, a habilidade de “resolver e elaborar problemas do cotidiano, da Matemática e de outras áreas do conhecimento, que envolvem equações lineares simultâneas, usando técnicas algébricas e gráficas, incluindo ou não tecnologias digitais”, associada à competência de “investigar relações entre números expressos em tabelas para representá-los no plano cartesiano, identificando padrões e criando conjecturas para generalizar e expressar algebricamente essa generalização, reconhecendo quando essa representação é de função polinomial de 1º grau”. O problema principal, nesta área, é definir quanta e qual matemática os estudantes que estejam se preparando para cursos superiores nas engenharias, ciências sociais, na literatura ou em cursos profissionais como auxiliar de enfermagem ou processamento de dados, precisariam e teriam condições de aprender.

Na área das ciências naturais as coisas se complicam novamente, porque, apesar do que o MEC diga, não existe uma “área de conhecimento” denominada “Ciências da Natureza e Suas Tecnologias” e sim diferentes ciências como física, química, fisiologia, bioquímica, genética, etc., e tecnologias como robótica, mecânica, computação, engenharia genética e tantas outras. A segunda das habilidades propostas para esta área é “construir e utilizar interpretações sobre a dinâmica da Vida, da Terra e do Cosmos para elaborar argumentos, realizar previsões sobre o funcionamento e a evolução dos seres vivos e do Universo, e fundamentar decisões éticas e responsáveis”, que pode incluir as teorias de Hawking sobre a origem do universo, as teorias evolucionistas de Darwin e as teorias criacionistas mais radicais; e com o problema adicional de pretender usar estas teorias para “fundamentar decisões éticas e responsáveis”, o que talvez pudesse ser tratado no campo da filosofia normativa, mas não, seguramente, no campo das ciências naturais enquanto tais. Uma das competências associadas a esta habilidade seria a capacidade de “analisar e utilizar modelos científicos, propostos em diferentes épocas e culturas para avaliar distintas explicações sobre o surgimento e a evolução da Vida, da Terra e do Universo”, difícil de ser adquirida sem um bom doutorado em história e filosofia das ciências.

Eu acredito que escreva razoavelmente e conheça relativamente bem minhas áreas de formação em ciências sociais, nas nunca teria chegado aonde cheguei se tivesse que passar pelo ensino das 53 habilidades em português e as outras dezenas de habilidades em matemática, ciências naturais e ciências sociais. Não é assim que as pessoas se formam.

O que deve acontecer com este documento? É improvável que o Conselho Nacional de Educação venha a melhorá-lo. Como, ao lado da elaboração bizantina de habilidades e competências, os currículos ficaram a cargo das escolas e redes, o mais provável é que ele venha a ser ignorado. Com a nova lei e estas bases curriculares, o ensino médio ficou mais amorfo, o que pode ser aproveitado pelas escolas e redes para criar suas próprias alternativas, não fosse o fantasma do ENEM no final do túnel, fechando o caminho para todos exceto os privilegiados das escolas privadas e públicas de elite que conseguem preparar seus estudantes para o paraíso do ensino superior de mais qualidade.

Para os demais, nada muda.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

7 thoughts on “A Base Nacional Curricular e a Reforma do Ensino Médio”

  1. Caro Simom,
    Aprendo muito com seus textos sobre o tema. Neste, se me permite, não gostei do fim: “exceto os privilegiados das escolas privadas e públicas de elite que conseguem preparar seus estudantes para o paraíso do ensino superior de mais qualidade.” Chamar esse pessoal de “privilegiado” não me soa justo. Parece que eles estão fazendo algo errado ou injusto, ou que essa condição lhes foi dada como um presente. Refiro-me especialmente aos alunos da rede privada e suas famílias. Por que o esforço de pagar uma escola particular, além de pagar pela pública através dos impostos (e não usá-la), a busca por dar uma educação melhor aos filhos seria um “privilégio”?
    Definição de privilégio no Aurélio:
    1.Vantagem que se concede a alguém com exclusão de outrem e contra o direito comum.
    2.Permissão especial.
    3.Prerrogativa, imunidade.
    4.Dom, condão. [Cf. privilegio, do v. privilegiar.]
    Estudar numa escola particular não é algo concedido a alguém, mas algo conquistado pelo esforço das famílias.

    1. Caro Estêvão, entendo o seu ponto, e não usei o termo “privilégio” como acusação. O que quiz dizer é que a política educativa deve ser diferenciada para oferecer alternativas de formação para todos, e não somente para os que conseguem se sair bem na educação tradicional e obter boas notas no ENEM. Claro que estes resultados dependem também do esforço das famílias e dos próprios estudantes. Mas sabemos que as crianças que nascem em famílias mais ricas e mais educadas têm muito mais oportunidade de ir para uma boa escola, se beneficiar muito mais da educação tradicional e obter boas notas no ENEM do que crianças que nascem em famílias pobres e com pouca educação; e que, como existe pouca mobilidade social no Brasil, as famílias mais ricas e educadas geralmente provêm de pais também mais ricos e educados – e nesse sentido pode-se falar de um privilégio que vem do berço.

  2. É ainda pior. Toda essa discussão do MEC esquece que qualquer reforma de qualquer coisa precisa ser implementada por pessoa. Em garrinchês: é preciso combinar com os beques do outro time. Se tiver no Brasil (ou no mundo) um único professor de ensino médio capaz de “realizar previsões sobre o funcionamento e a evolução dos seres vivos e do Universo” deveríamos estar muito felizes. Aliás, se algum professor souber realizar previsões sobre a evolução ele está no lugar errado.

  3. Caro Simon, bom apanhado sobre o documento. Essa ênfase exagerada em “competências e habilidades” em linguagem(ns) e em c. humanas/sociais aplicadas é um desses modismos adotados pelos nossos colegas educadores que acaba tornando a prática educacional cada vez mais complicada e impossível de ser desenvolvida adequadamente, ainda mais no nosso contexto de carências crônicas de formação do professorado.

    Como vc menciona, ainda há enormes diferença de “approach” entre as grandes áreas, o que passa uma mensagem ainda mais confusa para os órgãos estaduais e municipais que desenvolvem o processo, escolhem livros, etc. Nesse nível geral e indicativo, deveríamos fazer algo mais simples, enxuto, estruturado em poucos princípios gerais sobre habilidades que se aplicassem a todas as áreas (não muito difícil de formular) e centrar nas proficiências centrais esperadas em cada grande área, deixando para estados formatar os detalhes.

    Países federados, como EUA, Alemanha e Canadá fazem isso. Até mesmo na avaliação: o Abitur, processo de avaliação para o ingresso nas universidades alemãs, é diferente por Land (estado). E o estudante escolhe as áreas em que quer ser avaliado, segundo alguns critérios. Isso é que deveria ocorrer, eventualmente, com o ENEM.

    Como vc diz, essa proposta ou morre nas eternas discussões ou passa e nunca vai ser implementada.

  4. Baseada numa mistura de idéias, com noções de habilidades e competências, a base parece não levar em conta o que vem sendo discutido no âmbito mundial. Basta compará-la com propostas curriculares da Europa e dos Estados Unidos, apenas para citar dois exemplos. Penso que não erro em dizer que o ensino “tradicional” organizado em “caixinhas” vai acabar sendo uma proposta mais viável. A organização em competências e habilidades é uma visão possível, mas absolutamente discutível. Vale citar que seu idealizador, Perrenoud é suíço. Por que será que países europeus e americanos (exceto o Brasil) não adotam essa proposta?

    1. O tema da educação por competências de fato merece uma discussão mais aprofundada. Na verdade a proposta é anterior aos trabalhos de Perrenoud, e tem se difundido em muitas partes do mundo inclusive na Europa (mas não nos Estados Unidos), veja a respeito http://journals.openedition.org/cres/3010 . Mas tem sido usada de maneiras muito distintas, e é bastante problemática.

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