Peter Fry e Yvonne Maggie sobre cotas nas universidades

Peter Fry e Yvonne Maggie publicaram o seguinte texto no O Globo de 11 de abril:

Política social de Alto Risco

A Câmara dos Deputados votará nas próximas semanas o projeto de lei 73/99 que obriga todas as instituições federais de ensino superior a adotar 50% de cotas ou reserva de vagas para estudantes de escolas públicas e dentro dessa cota um percentual de estudantes negros (pretos e pardos na classificação do IBGE), indígenas e outras minorias. Estas cotas serão aplicadas linearmente em todos os cursos das universidades federais.

Por que essa medida é polêmica? Uns dizem que vai reduzir a qualidade de ensino e pesquisa das universidades federais. Pode ser. Mas o que queríamos sugerir é que esta lei traz conseqüências que vão muito além das portas das universidades. Ela implica um projeto radicalmente novo de nação. A lei, se aprovada, irá instituir, no âmbito federal, o negro como figura jurídica, o que já ocorreu em 2001 no Estado do Rio de Janeiro, com a aprovação da lei de reserva de vagas para as universidades estaduais votado por aclamação pela Assembléia Legislativa.

O que significa instituir o negro como entidade jurídica? Significa uma mudança radical no nosso estatuto jurídico republicano, que, até agora, ignora “raça” e pune o racismo como crime inafiançável e imprescritível como os demais crimes hediondos. Se passar essa lei e os cidadãos serão divididos em duas “raças” com direitos distintos de acordo com a sua pertença a uma ou outra dessas duas categorias. A política de cotas raciais, como vem sendo denominada, institui, portanto uma sociedade dividida entre “brancos” e “negros”. Em outros lugares do mundo esse tipo de engenharia social trouxe mais dor do que alívio para os problemas a que visava solucionar.

Há uns que dizem que quem é contra as cotas apenas defende os seus privilégios. A política de cotas raciais em nada vai afetar as elites endinheiradas do país. Estas continuarão mandando os seus rebentos para os cursos pré-vestibulares mais badalados, e encaminharão a sua prole menos competitiva para universidades no primeiro mundo. As cotas são destinadas justamente para a classe média baixa que só agora com a expansão do ensino de segundo grau pode sonhar em ver os seus filhos entrarem na universidade. E essa classe média ascendente é justamente aquela em que gentes de todas as cores convivem nas mesmas famílias e vizinhanças. Queremos cindir esse universo social em duas “raças”?

Dirão os proponentes dessa política que o país já é dividido na prática, na realidade, no dia a dia. Mas é justamente contra isso que o anti-racista deve lutar. A luta contra o racismo deve ser prioritária, dever de todo o cidadão. No entanto, o remédio que está sendo ofertado em uma bandeja de prata, é um remédio barato (posto que é uma política de custo zero que não irá onerar os cofres públicos) e arriscado, pois o seu custo social pode ser muito alto. É uma política de curto prazo cujas conseqüências serão sentidas no longo prazo.

Outros defensores das cotas acusam aqueles que têm dúvidas, de racistas, evidentemente no intuito de calar a crítica. Mas as nossas críticas em relação à política de cotas raciais partem de um anti-racismo que se espanta com a forte correlação entre cor escura e pobreza, e que se revolta perante o preconceito e discriminação, velados ou não, que contribuem para tal desigualdade. Um anti-racismo que percebe com toda clareza que a discriminação e o preconceito derivam das representações sociais que hierarquizam entidades denominadas “raças”. Por isso, nos sentimos na obrigação de lutar contra essas representações, uma vez que é a persistência delas que possibilita a continuidade da discriminação e, portanto, da desigualdade.

O debate sobre as cotas é um debate sobre o Brasil. O que está em pauta são dois projetos de combate ao racismo: um pela via do fortalecimento das identidades “raciais” e, em última análise, do genocídio dos “pardos”, “caboclos”, “morenos”etc.; outro pela via do anti-racismo que procura concentrar esforços na diminuição das diferenças de classe e uma luta contínua contra as representações negativas atribuídas às pessoas mais escuras. Esses projetos também são projetos distintos de nação. Um vislumbra uma nação pautada das diferenças “étnicas/raciais”—isto é uma nação de comunidades. Outro projeto aposta na construção de uma cidadania com direitos em comum independentemente de “raça”, “etnia”, gênero, orientação sexual, etc., salvaguardando o direito de cada individuo a seguir o estilo de vida que mais lhe convém—isto é uma nação de indivíduos. Enfim, argumentamos que não se pode acabar com o racismo com uma política que entroniza a “raça”. Quando o Estado legisla sobre esta matéria ele funda a “raça”, cria justamente aquilo que quer ver destruído. Merecemos melhor solução para os graves problemas que nos assolam.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

3 thoughts on “Peter Fry e Yvonne Maggie sobre cotas nas universidades”

  1. Fry levanta alguns pontos pertinentes e relevantes na discussão ‘racial’. Mesmo atualmente defendendo as cotas, percebo, com um olhar teórico (academicista?), que há algumas consequencias a medio e longo prazo que deveriam ser melhores pensadas. mas, graças aos céus que a ciência é falha, e a Humanas é mais ainda.
    Neste assunto, acredito que se entrepermeiam duas dimensões essenciais: o lado epistemológico e o lado político. sempre afirmo que não se deve confundir tais dimensões, embora devemos considerá-las imbricadas na realidade social. estou escrevendo um artigo sobre isto e logo publicarei.
    Por último, tento ‘espetar’ Fry em algumas afirmações que se encontram no final do texto. quando ele fala de um projeto distinto de nação, nação de indivíduos, me deu a entender como que isso fosse um ótimo projeto a se buscar. o que ele entende por nação? o brasil é e/ou possui possibilidades de vir a ser? isso é bom? pra quem?

    outra afirmação é: “Quando o Estado legisla sobre esta matéria ele funda a “raça”, cria justamente aquilo que quer ver destruído.” Por mais que existam críticas sobre a atual bibliografia que trata a respeito do assunto (Levy Cruz), é aceito pela maioria dos autores e estudiosos atualmente raça como categoria de análise social, categoria por sua vez sociológica. é visível também o(s) uso(s) da palavra “raça” no dia a dia, e, principalmente, é constatado a classificação das pessoas pela representação “raça”. Ou seja, o estado não funda a raça, ela, como constructo social, já existe.

  2. Olá,

    Realizando uma pesquisa sobre o debate online que ocorre no tema ‘cotas nas universidades brasileiras’, encontrei aqui no seu blog uma referência interessante, que acabei citando no artigo ‘Quotas in Brazilian Universities: The Online Debate‘, publicado no site ‘Global Voices’ — projeto do Berkman Center de Harvard. Agradeço pelo bom trabalho desenvolvido aí do seu lado da rede.
    Saudações.

  3. Realmente, o que vemos é apenas isso. Com essa preocupação exacerbada em se dar “direitos” iguais para todos os que compõem a sociedade brasileira, tudo que se consegue, por enquanto, é apenas colocar em lei que “brancos” e “negros” tem competências diferenciadas, nesse caso específico, dentro da competição por uma vaga nas universidades públicas de nosso país. O “problema” não está no nível universitário. Infelizmente, a disparidade racial dentro do nível superior do ensino público deve-se a uma política educacional errônea em sua base, os ensinos fundamentais e médios. A correção deve vir na base, de “baixo pra cima”, ao invés do “de cima pra baixo”. A medida de se instituir cotas para negros nas universidades sem dúvida alguma é louvável, mas ela traz em si um preconceito disfarçado pela boa vontade de se dar condições iguais entre negros e brancos, o que acaba tornando-a de uma falta de respeito para com o negro simplesmente absurda. Ainda temos muito o que discutir antes que tais medidas sejam impostas pelos políticos em ano de campanha eleitoral, que se usam dessas atitudes que soam “bonitinhas” para com isso sensibilizar a sociedade e conseguir, dessa forma, cada vez mais votos para suas legendas.

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