Cotas para estudantes de escolas federais

A polêmica surgida sobre o ingresso de alunos provenientes de escolas militares à USP pelo sistema de cotas, que comentei anteriormente no Facebook, trouxe novamente à discussão os princípios, qualidades e defeitos deste sistema. Em princípio, me parece claro que faz sentido proporcionar a estudantes provenientes de famílias em situação social em desvantagem um apoio ou facilidades adicionais para que tenham acesso ao ensino superior – o que se chama ação afirmativa.  O que não me parece que faz sentido é usar outro critério, como se eles vêm de escola pública ou particular, civil ou militar, ou têm a pele mais clara ou mais escura.  

O sistema de cotas é a maneira mais simples lidar com isto, mas também cheia de problemas, e por isto mesmo elas foram proibidas nos Estados Unidos. No caso brasileiro, o entendimento, no geral correto, é que os alunos provenientes de escolas públicas, em sua grande maioria, provêm de famílias mais pobres e menos educadas, e este seria um critério simples de fazer a diferenciação, e por isto acabou sendo adotado, junto com o de raça (que me parece ser uma outra questão). Mas existem muitas famílias pobres que fazem grandes esforços para enviar seus alunos a escolas privadas e que por isto acabam sendo excluídas das cotas, enquanto que as escolas federais, militares ou não, por serem seletivas, acabam incorporando alunos de família em melhores condições, que além disto se beneficiam das melhores instalações e professores bem pagos. Enquanto isto, as redes estaduais são obrigadas a receber todos os alunos de sua região, com muito menos recursos. 

Pouca gente sabe, além disto, que no sistema de seleção federal, o SISU (baseado nos resultados do ENEM), o número de candidatos cotistas é parecido com o de candidatos não cotistas, e que as notas de corte para entrar nos cursos superiores são bastante parecidas para os dois grupos. Isto significa que os alunos das instituições federais que entram como cotistas, por serem melhor formados, acabam ocupando os melhores lugares e excluindo outros, provenientes das redes estaduais, que realmente necessitariam de mais apoio.

As cotas não são a única nem a melhor maneira de desenvolver políticas de ação afirmativa. O governo federal e os governos estaduais poderiam estabelecer contratos de gestão com suas universidades para que elas desenvolvam políticas próprias de ação afirmativa, que não devem se limitar ao acesso, mas também à oferta de apoio e atendimento financeiro e escolar a estudantes em necessidade, e outros mecanismos de seleção e participação.  Mas deveriam sobretudo avançar na diferenciação da oferta de cursos superiores, de curta e longa duração, mais ou menos acadêmicos, como um desdobramento natural da recente reforma do ensino médio, que possam dar oportunidades efetivas de formação e qualificação para um número crescente de pessoas independentemente de suas condições prévias. 

Sem falar, claro, na necessidade de melhorar a qualidade da educação básica, sem a qual não há como avançar muito em termos de qualidade, equidade e relevância da educação superior.  

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

One thought on “Cotas para estudantes de escolas federais”

  1. Caro Professor Schwartzman,

    Que (não) surpresa acabei de ter, em meio às férias, ao saber que mais um grupo agora tem cotas para universidade, os alunos de escolas militares. Não demorará muito haverá outro, e outro, e mais outro. Como já advertiu, exaustivamente, o professor Thomas Sowell, este processo não terá fim, até que sejam abolidas.

    Não quero reescrever aqui, o que está num parecer meu sobre os problemas das cotas disponível em meu perfil no Linkedin. Rapidamente, quando o presidente John Fitzgerald Kennedy pediu por medidas “afirmativas”, ele não pediu por cotas, ele, como (primeiro presidente) católico e descendente de irlandeses, pedia que nenhuma característica adscrita, como raça, service como critério de discriminação para seleção e empregos de pessoas. A ideia era eliminar a barreira daquela característica contra a qual o candidato nada podia fazer, e deixar o processo de escolha de candidatos restrito aos aspectos dependeriam (a princípio) apenas do que os candidatos poderiam fazer e potencial para desenvolver profissionalmente.

    Mesmo a ideia de cotas para escolas públicas (onde estudei) é problemática. Porque não se consegue enfrentar o corporativismo da universidade pública que oferece cursos gratuitos para quem pode pagar (ver relatório “Um Ajuste Justo”, excertos disponível no meu perfil Linkedin), que se preferiu a alternativa menos custosa, ou o ponto de menor resistência, de “dificultar” o acesso de jovens de escolas privadas, para se “facilitar” o acesso de jovens de escolas públicas, numa confissão “pública”, desinibida, de que, com o dinheiro dos impostos, estes alunos resultam ter desempenhos, em média, inferiores aos daqueles nos exames de admissão. Desincentivando assim, as escolas públicas a melhorarem, e cabendo aos pais dos alunos das escolas privadas, se conformar com o fato de que, mesmo pagando impostos, e tendo desembolsado vultosos recursos para melhorar as chances dos próprios filhos, eis que no final, o retorno deste desembolso (a probabilidade de aprovação) será “descontado”, por partes terceiras, burocratas iluminados, em nome do que o professor Thomas Sowell chamou em livro brilhante, de “Justiça Cósmica” (The Quest for Cosmic Justice). O nosso “Gestor Cósmico” acredita, que ao se instituir cotas, o mundo ficou mais “justo” e assim ele se “sente bem”. Mas o sentir-se bem do militante é obtido ao custo de suprimir recursos e oportunidades de pessoas de carne e osso que não necessariamente se enquadram nas categorias abstratas do “gestor cósmico”. Ou seja, como citado pelo professor, mas estendendo as ramificações, quanto maior a dificuldade com que pais mantiveram seus filhos na escola particular, maior o risco deste esforço soçobrar, dos filhos tropeçarem no sarrafo que poderá se abaixar para alguém com desempenho inferior, e talvez com menos esforço financeiro parental (quem saberá? Só o onisciente) desde que este seja do grupo dos eleitos ou dos escolhidos pela benevolência das pretensões da justiça cósmica. E a alternativa? Um curso de prestígio numa universidade particular. Pode ser a pá de cal nas economias de uma família. Que é o mesmo problema do branco pobre ter suas chances reduzidas de educação superior pública por cotas raciais. Como todo grupo desorganizado, não tem força de pressão, e portanto terá a preferência na hora de pagar o pato, em nome da “justiça cósmica”.
    Para se ter a antevisão de todas as injustiças, ou da “margem líquida de justiça” de uma política de cotas de qualquer espécie, seria preciso ter um “conhecimento cósmico”, uma onisciência que não está disponível aos seres humanos.
    Porque não nos atemos a tarefas mais exequíveis, a uma justiça apenas humana, como por exemplo, um sistema de bolsas em escolas privadas para alunos talentosos, para que nenhum talento fique sem oportunidade?

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