Das estatísticas de cor ao estatuto da raça

A Folha de São Paulo publica na edição de hoje um artigo meu com este título. Como o espaço de jornal é limitado, tive que cortar algumas partes, e reproduzo aqui o texto completo, com algumas correções:

O Brasil nunca soube lidar direito com as questões de cor e origem. Já houve tempo em que autores como Nina Rodrigues e Oliveira Vianna acreditavam que os males do pais eram causados pelo sangue ruim dos negros e indígenas, problema que só seria resolvido, se fosse, com o branqueamento e purificação da raça. Mais tarde, Gilberto Freyre tentou difundir a idéia de uma civilização luso-tropical em que, apesar da escravidão, negros e brancos conviviam em harmonia. Nos anos 30 o Estado Novo proibia que filhos de imigrantes aprendessem a ler na língua materna, e botava na cadeia quem falasse alemão, italiano ou japonês nas ruas. Nos anos 50 e 60, os sociólogos marxistas da USP – Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni – passaram a argumentar que, em última análise, as questões de raça ou nacionalidade eram questões de classe, que desapareceriam na medida em que aumentasse a consciência de classe dos pobres e proletários e a luta pelos seus direitos.

Nos anos 70, sociólogos de formação empírica do IUPERJ – Nelson do Valle e Silva, Carlos Hasembalg – mostraram que a “cor” – uma aproximação precária do conceito de raça nas estatísticas do IBGE que começvam a aparecer – tinha relação significativa com a condição de vida das pessoas de forma independente, embora correlacionada, de fatores como educação, profissão, etc. Os “pretos” e “pardos” percebem remuneração inferior pela mesma função e têm menos educação que os “brancos” na mesma faixa de renda. Junto com a divulgação destas estatísticas, começava a ganhar corpo um ataque frontal contra a imagem do Brasil como um país culturalmente homogêneo e racialmente integrado, cultivada desde D. Pedro II pelas agências de governo encarregadas da educação e da cultura.

A antiga imagem de integração e homogeneidade coexistia com a manutenção de milhões de pessoas à margem dos benefícios e da cultura oficiais, falando mal a língua, incapazes de entender a educação das escolas, e sentindo-se inferiorizados pela cor da pele e por seus antepassados negros e indígenas. A reorientação dos anos recentes buscou inverter por completo os termos do problema. Dali em diante, a interpretação “correta” passou a ser: “o Brasil é um país racista, marcado pelo preconceito e a discriminação. A igualdade formal e harmonia entre as raças são apenas discursos ideológicos para a ocultação das diferenças. É necessário denunciar tais mitos, criar leis que reconheçam as diferenças, atribuir novos direitos aos discriminados e compensá-los pelas perdas e sofrimentos do passado. Ao invés da falsa harmonia das três raças, as crianças devem aprender nas escolas a história maldita da discriminação e do preconceito. A cultura a estimular não deve mais ser a cultura erudita, dos brancos, mas a cultura popular, das comunidades pobres e dos negros.” O projeto do Estatuto da Igualdade Racial, que o Congresso está a ponto de aprovar, pretende consagrar e transformar em ideologia oficial essa nova interpretação da sociedade brasileira.

O Estatuto é uma monstruosidade jurídica e conceitual. Ele pretende obrigar todas as pessoas a se classificarem como brancos ou afro-brasileiros nos documentos oficiais, ignorando os milhões que não se consideram nem uma coisa nem outra, e não reconhece a existência dos descendentes das populações indígenas, o grupo mais discriminado e sofrido da história brasileira. A partir daí, ele introduz direitos especiais para os afro-brasileiros na saúde, na educação, no mercado de trabalho, na justiça e em outros setores. Os direitos que o projeto de Estatuto pretende assegurar não são apenas os direitos humanos, individuais e coletivos tradicionalmente reconhecidos em nossa tradição constitucional – e que devem ser garantidos a todos. O que o projeto tem principalmente em vista é um novo direito a reparações; reparações supostamente devidas a uma categoria social, os afro-brasileiros, e que deverão ser pagas por outra categoria social – os brancos, inclusive os pobres e os filhos de imigrantes recentes, considerados coletivamente culpados e de antemão condenados pelas discriminações de hoje e de ontem. O Estatuto abole o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei e cria uma nova categoria de cidadãos, os afro-brasileiros, definidos de forma vaga e arbitrária como “as pessoas que se classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga”, presumivelmente relegando os demais, de forma implícita, a uma categoria de branco-brasileiros.

Basta pensar um pouco para darmo-nos conta de que não temos porque que optar entre as antigas ideologias da harmonia racial e cultural e a implantação de um regime de apartheid no pais, em que supostas identidades e direitos raciais se oficializem e predominem sobre o desempenho das pessoas e seu direito e liberdade de escolher e desenvolver suas próprias identidades. Nem tudo que diziam os sociólogos do passado estava errado. É certo, como observou Oracy Nogueira, que o preconceito de cor, que existe no Brasil, com infinitas gradações e matizes, é profundamente diferente do preconceito de origem que existe nos Estados Unidos, que divide a sociedade em grupos estanques, e por isto não é possível interpretar a sociedade brasileira com os óculos norte-americanos (comparações com paises como Cuba e República Dominicana fazem muito mais sentido). É certo que a “cor” tem uma relação negativa com a distribuição de oportunidades, mas a má qualidade da educação, as limitações do mercado de trabalho e a precariedade dos serviços de saúde, que afetam a todos, têm efeitos muito maiores.

Existe preconceito racial no Brasil? Sim. Mas existe também uma importante história de convivência e aceitação de diferenças raciais, religiosas e culturais, um patrimônio a ser aperfeiçoado. Por que não progredir no caminho que vem sendo tentado, identificando situações específicas de discriminação e agindo contra elas, sem dividir a sociedade em “raças” estanques ? Valorizar a cultura, as histórias e as identidades dos diferentes grupos e etnias no país é um objetivo importante, mas é perfeitamente possível alcançá-lo sem dar as costas para a cultura universal, da qual queremos e precisamos participar.

A opção é simples: de um lado, uma sociedade em que o governo não se imiscui na identidade e na vida privadas das pessoas, em que o princípio constitucional da igualdade é mantido, e em que as políticas sociais lidam com as causas da pobreza e da desigualdade; de outro, uma sociedade em que a cidadania passa a comportar “graus”, em função da cor da pele de cada um, a ser definida pelo movimento social, partido político ou pelo burocrata de plantão. Um país com políticas sociais baseadas em critérios de culpa, expiação e reparação de pecados coletivos, com a substituição da antiga ideologia oficial de igualdade racial por outra, também abominável, de preconceito e perene conflito e discriminação entre raças antagônicas.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

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