O crescimento do ensino superior e as mudanças nos salários dos professores

A PNAD 2006 mostra um extraordinário aumento de 12% do número de pessoas estudando em cursos de graduação no Brasil em relação ao ano anterior – de 4.684.653 para 5.262.568, um aumento de 578 mil estudantes.

Fui olhar mais de perto o que teria acontecido, e encontrei algumas coisas interessantes. A primeira é que o aumento se deu sobretudo no setor privado, 14%, contra 7% no setor público. Com isto, a proporção de estudantes no setor privado cresceu de 75.1% para 76.3%. Depois, este aumento se deu sobretudo nas faixas de renda mais alta: 17% na faixa de 2 a 3 salários mínimos, 25% na faixa de 3 a 5 salários, e 21% na faixa de mais de 5 salários.

O outro dado é que, em 2005, haviam 316 mil estudantes que eram professores de nível fundamental e médio, e, em 2006, 611 mil, quase o dobro. É aí, principalmente, que está o crescimento, e há uma razão clara para isto, o grande aumento da renda dos professores estaduais e municipais neste período: 20,1% nos estados, e 16,2% nos municípios. Enquanto isto, a renda dos professores no setor privado caiu em média em 4.3%, e seu valor, de 1.237,06 reais, é hoje inferior ao dos professores estaduais, de 1.511,30 (renda média de todos os trabalhos).

Estes aumentos devem estar associados à obtenção dos títulos de nível superior, e os professores ainda sem qualificação estão entrando em grande número nas faculdades privadas para obter seus títulos. Resta saber se, com isto, a qualidade do ensino que os alunos recebem também vai melhorar.

O Napoleãozinho de Campinas

O Mandarim – História da Infância da Unicamp, do jornalista Eustáquio Gomes, publicado em 2006 pela própria Universidade, é sobretudo a história dos mandos e desmandos de seu fundador, Zeferino Vaz, que havia sido antes interventor na Universidade de Brasília e, antes ainda, fundador da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. O livro é bem escrito, baseado em depoimentos e documentos internos da Universidade, e um excelente exemplo do que pode e não pode fazer um ditador. Entre 1966 e 1978, Zeferino Vaz fez o que quis na UNICAMP, navegando nas águas turvas da ditadura militar, exibindo quando necessário suas credenciais de anti-comunista militante, defendendo e até tirando da cadeia ¨seus comunistas¨, e manobrando todo o tempo para tirar do caminho as pessoas que questionavam seu poder.

Zeferino tinha uma qualidade, que era haver entendido desde cedo que ¨instituições científicas, universitárias ou isoladas, constroem-se com cérebros e não com edifícios¨. Curiosamente, o livro não diz nada sobre o que Zeferino Vaz fez em sua própria área, de medicina e zoologia. Nas outras áreas, que não conhecia diretamente, buscou nomes de grande prestígio e reputação, trazendo para Campinas e dando total apoio a alguns cientistas brilhantes que haviam feito seu nome no exterior, especialmente Sérgio Porto, Rogério Cerqueira Leite, que criaram a nova área de física do estado sólido, e a grande estrela que era César Lattes, que permaneceu isolado. Na área das ciências sociais e humanas, começou, não se sabe por quê, entregando-a um obscuro professor de filosofia fenomenológica, que foi um desastre; em economia, optou por fazer da universidade a continuadora da tradição da CEPAL, então na moda na América Latina; e descobriu depois que, com o fim da ditadura que já se pressentia, era dos sociólogos marxistas que precisava, desde que não fizessem política nem se confrontassem com ele. Em 1975, promoveu um grande seminário internacional estrelado pelo historiador marxista Eric Hobsbaum que deu à universidade da ditadura uma áurea de centro avançado de pensamento de esquerda, preparada para os anos que viriam.

Comparada com a criação da USP trinta anos antes, que foi buscar nos centros universitários europeus os melhores talentos, chama a atenção o provincianismo do projeto da Unicamp, aonde o único estrangeiro de renome, que estava lá por acaso, era o geneticista Gustav Brieger, que cedo se indispôs com Zeferino e acabou se afastando. Zeferino entendia que sem cérebros não se constrói uma universidade, mas nunca entendeu ou aceitou que estes cérebros formam comunidades de pessoas ativas e pensantes, sem cuja participação as instituições não têm como crescer e fortalecer. O livro é rico de documentos que mostram as brigas por poder na Universidade, mas nada que mostre a existência de deliberações e consultas sobre programas, prioridades, e política de recursos humanos.

O livro também vale pelas fofocas que revelam o estilo e o caráter de muitos personagens que ainda estão entre nós – mas isto fica para o juízo pessoal de cada um.

A invasão da Reitoria da USP

O Boston College Center for International Education tem uma publicação denominada International Higher Education que, no número 48, do verão de 2007, publicou um pequeno texto meu sobre a invasão da reitoria da USP, escrito ao final de maio deste ano. Para quem tiver interesse, a versão original do texto está disponível aqui.

Ocupe a reitoria que há dentro de você!


Esta foto, de uma pixação na reitoria da USP, explica um bom pedaço da triste novela de sua ocupação: estudantes com problemas edipianos mal resolvidos em casa, e projetados nas autoridades públicas mais próximas. Nada que não passe com um pouco de análise e alguns anos mais de idade.

Mas é claro que não foi só isto. Em países sérios, os estudantes não ousariam ocupar desta maneira a sede de instituições públicas, e este tipo de comportamento jamais seria tolerado pelas autoridades. A USP tem mais de 40 mil estudantes, 5 mil professores, e nenhuma das assembléias convocadas para votar contra ou a favor da ocupação e das greves teve a presença de mais de algumas centenas de pessoas, se tanto, e, na prática, a maior parte da Universidade continuou funcionando normalmente. É óbvio que estes pequenos grupos de extrema esquerda não representam o pensamento nem as preferências da grande maioria de professores, alunos e funcionários da universidade. Como explicar, então, que eles conseguissem, por tanto tempo, pretender falar em nome de todos? Não existem mecanismos legais e formais para acabar com esta pseudo-representatividade de associações em cujas assembléias quase ninguém vai? Depois de algum tempo, grupos expressivos de professores se manifestaram contra a ocupação, tirando sua legitimidade, mas é possível dizer que demorou demais.

Da enorme pauta de reivindicações dos ocupantes, algumas me chamaram especial atenção. Uma foi a denúncia de que, nos famosos decretos que serviram de pretexto para o movimento, se dizia que a universidade deveria ser incentivada a fazer pesquisas “operacionais”, uma maneira pouco feliz de dizer que elas deveriam buscar resultados que tivessem aplicações no mundo real. Isto foi interpretado como um passo no caminho da “privatização” da Universidade, que, segundo estas pessoas, deveria ser subsidiada inteiramente por recursos públicos, não receber nenhum dinheiro adicional por projetos, contratos, serviços, cursos de extensão e, muito menos, anuidades, e não produzir pesquisas nem formar ninguém para o maldito “mercado”. Ora, a USP já gasta 5% de todos os impostos do Estado para sua manutenção, com outros 5% indo para a UNICAMP e a UNESP, e os governos do Estado têm conseguido resistir, até aqui, à pressão dos sindicatos por aumentar esta percentagem, às custas de outras áreas de ação prioritária e de impacto social mais equitativo, como na educação básica e média. Em todo o mundo, as universidades públicas trabalham ativamente para crescer e melhorar pela captação de recursos externos, e a USP já vinha fazendo isto com muito sucesso em várias de suas faculdades e institutos mais ativos e competentes. Nos últimos tempos, no entanto, esta liberdade de iniciativa já vinha sendo coibida, e agora é possível que se limite ainda mais.

Outra reivindicação que me impressionou foi a de acabar com o jubilamento, o princípio pelo qual o estudante que não avança em seus estudos deve deixar sua vaga para outros. Não consigo entender como um movimento que fala em nome de grandes ideiais revolucionários também consegue propor isto. Mas a reivindicação deste privilégio não vem sozinha, e se faz acompanhar de uma série de outras relativas a preços e horários de restaurantes, transporte de ônibus, facilidades de moradia no campus, etc. Pode ser que a intenção seja, simplesmente, conseguir o apoio dos possíveis beneficiários destas vantagens, que se somam ao privilégio da educação gratuita e cara que a USP já proporciona. Uma última reivindicação, que parece brincadeira, foi de retirar as contas da Universidade de um sistema transparente de informações que o Estado está implantando, sob o argumento de que, como instituição autônoma, a universidade não precisa mostrar suas contas para ninguém!

A ocupação da USP parece ter acabado muito mal. O normal seria que ficasse caracterizado o absurdo do que foi feito, assim como das idéias, ideologias e práticas destes grupos. Mas o que parece ter sido combinado é que se inicia, agora, um grande período de negociações, em que os ocupantes passarão a pautar a política institucional e acadêmica do Estado de São Paulo, sob a ameaça constante de novas invasões.

E o governo do Estado, em tudo isto? O mínimo que se pode dizer é que ele ainda não tem uma política clara para o setor, parece ter se precipitado com as decisões iniciais que foram tomadas sem maiores consultas e aparente desconhecimento da área, e acabou ficando na defensiva. Não me parece que exista nenhuma intenção, clara ou oculta, de reduzir a autonomia das universidades, e muito menos de “privatizá-las”. Mas não se sabe ainda o que o governo pensa das idéias que têm circulado sobre a expansão da educação pública do ensino superior no Estado, nem sobre as metas e objetivos de médio e longo prazo que se espera que as universidades e centros de pesquisa estaduais desempenhem, e que possam justificar os recursos que recebem. Autonomia não pode ser confundida com um cheque em branco, e esta política precisa ser desenvolvida, através do diálogo e troca de pontos de vista com a parte boa das universidades e da sociedade que ainda é, felizmente, a sua maior parte. Ainda é tempo.

A Universidade segundo Schwartzman

O Jornal da UNICAMP, em sua edição 356, de 23 de abril a 6 de maio de 2007, publicou uma longa entrevista que dei a Álvaro Kassab, e que está tendo alguma repercussão. Amostra:

JU – O que há de anacrônico e de novo na universidade brasileira?

Schwartzman – Há varias coisas anacrônicas. Uma delas é toda essa ênfase na indissolubilidade do ensino, da pesquisa e da extensão. Trata-se de uma concepção de universidade que deixou de existir há décadas. No mundo inteiro, a pesquisa se concentra em algumas instituições; o ensino superior, em grande parte, faz educação. Essa indissolubilidade não existe mais, está ultrapassada. Ao contrário, as instituições cada vez mais se especializam.

Outra coisa anacrônica é a idéia da universidade pública gratuita. Poucos países do mundo levam adiante essa proposta. Até os países europeus, que tinham uma tradição de manter universidades gratuitas quando elas eram poucas e pequenas, estão começando a introduzir o sistema de cobrança.

JU – Mas, no caso do Brasil, o senhor não acha isso um pouco assustador?

Schwartzman – Não. Para aquele aluno que provar que não tem recursos e, conseqüentemente, não tem condições de ingressar na universidade, embora tenha mérito, o governo implementaria um sistema de apoio. Ele receberia bolsas, crédito educativo etc. O que não pode é ter um sistema gratuito que atende predominantemente a pessoas das classes média e média alta, que vão aumentar sua renda privada de forma muito substancial ao longo da vida, sem que estas pessoas compartam o custo de sua educação.

O texto completo está disponível no site do Jornal da Unicamp e pode ser também baixado, em PDF, do meu site.

Jacques Schwartzman: O Ensino Superior no Programa de Desenvolvimento da Educação

O seguinte artigo foi publicado no Estado de Minas de 31 de maio de 2007:

Ainda que, acertadamente, a maioria das ações deste novo Programa se dirijam ao ensino básico, ele também inclui cinco importantes medidas para as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). A primeira e mais audaciosa delas é a proposta de se dobrar as vagas oferecidas em 10 anos, através da ampliação de cursos noturnos, redução da evasão para 10% e aumento da relação aluno professor de 10 para 18. Estimula também maior flexibilidade nos currículos, permitindo a maior circulação de alunos entre instituições e cursos e, reduzindo a especialização precoce. As Instituições Federais de Ensino Superior poderão propor ao MEC um projeto dentro dessas linhas e assim obter o respectivo financiamento. Segundo alguns cálculos preliminares, o orçamento poderá ser acrescentado em 2,1 bilhões de reais, o que representaria uma adição de 20% em relação ao que se pratica hoje, não considerando os inativos. Esta proposta parte do entendimento de que existe um certo grau de capacidade ociosa de professores, funcionários e espaço físico, o que deve ser verdadeiro, embora em graus diferentes entre as IFES. Um outro mérito da proposta é a adesão voluntária e a possibilidade de se obter o financiamento com combinações diferentes de metas, em termos de evasão, cursos noturnos e ampliação de vagas diurnas. As IFES também poderão traçar seus projetos de tal forma que não se prejudique a qualidade dos cursos de graduação e o funcionamento da pós-graduação onde ela for significativa.

Uma outra proposta, aparentemente simples, poderá trazer importantes mudanças na política de pessoal das IFES e afetar positivamente a qualidade dos gastos em Pessoal docente. Trata-se de um banco de horas que substituirá os atuais procedimentos. Desde muitos anos, o governo libera para as IFES um certo número de cargos de professor, constante dos quadros de cada uma delas. Ao obtê-lo, procura contratar professores em dedicação exclusiva, o que certamente é melhor para elas do que contratar professores em tempo parcial. A consequência é que a maioria das IFES têm em seus quadros hoje cerca de 90% de professores neste regime, algumas chegando a 100% . Isto eleva desnecessariamente as despesas com pessoal, mesmo porque nem todos podem ou querem fazer pesquisa, e muitos cursos profissionais se beneficiariam com a contratação de mais professores em 20 horas, que trariam a sua experiência prática para dentro da Universidade Na nova lógica seria possível contratar 3 professores de 20 horas ao invés de apenas 1 em dedicação exclusiva. Esta é uma decisão que cabe a cada IFES e certamente contribui para a sua tão almejada autonomia. Restaria incluir no projeto professores horistas(que poderiam substituir os atuais de 20 horas) que
não precisariam de estar na carreira docente,mas poderiam trazer sua vivência profissional sem se preocupar com publicações e títulos de pós-graduação.

A modernização da lei dos estágios é necessária para que ele seja mais um instrumento de aprendizagem( inclusive valendo créditos) e não se constitua numa mão de obra barata graças a isenção de encargos sociais.

As modificações no Programa de Financiamento Estudantil – FIES (aumento do prazo de carencia para o dobro do tempo do curso) e o Programa Universidade Para Todos – PROUNI (utilização dos certificados dos alunos do FIES no PROUNI para pagamento de débitos fiscais) certamente aumentarão a oferta de vagas no sistema privado, embora seja difícil avaliar o seu impacto.

Finalmente, é lançado mais um programa de incentivos , liderado pela CAPES, que procura reter no Brasil jovens doutores. Ele não é exclusivo para as IFES, podendo participar outras IES, Centros de pesquisa e empresas privadas,mediante projetos que demonstrem uma inserção relevante dos recém graduados.

Este conjunto de medidas não exaure a lista de problemas que as IFES enfrentam, mas certamente trará mais eficiência e levará mais racionalidade nos processos decisórios.

Jacques Schwartzman , Diretor do Centro de Estudos sobre Ensino Superior e Politicas Públicas, da Universidade Federal de Minas Gerais.

Totalitarismo Universitário

Pedro Lincoln Leão de Mattos, de Recife, envia o seguinte artigo de José Luiz Delgado, publicado no Jornal do Commércio de 17/4/2007:

Totalitarismo universitário

A muitos escandalizou questão de uma prova de ingresso extra-vestibular da Universidade Federal de Pernambuco, cujo enunciado cometia o grosseiríssimo erro de atribuir a Graciliano Ramos a autoria de “Grande sertão: veredas”. A mim não chocou tanto esse erro. Claro que foi equívoco inadmissível, absurdo, distração brutal, absoluta desatenção, com o agravante da deficiente, ou inexistente, revisão, o pouco ou nenhum controle, etc. Mas tudo isso pode acontecer a qualquer um, é apenas um erro.

Muitíssimo mais me chocou, e me horroriza (até porque obviamente consciente e intencional, não um erro), foi, na mesma prova, o teor da questão anterior pedindo que o candidato apontasse “os exemplos de homens éticos com visão filosófica engajada (para além da hipocrisia)” e dando como alternativas: “a) Bush, Olavo de Carvalho, Editora Abril, Inocêncio Oliveira, Roberto Marinho, b) Dalai Lama, Gandhi, Marina da Silva, Frei Beto, D.Helder, c) FHC, Marco Maciel, ACM, Ratinho, Reginaldo Rossi, d) Leonardo Boff, Irmã Dulce, Ariano Suassuna, Betinho, Zilda Arns, e) Dalai Lama, Gandhi, ACM, Frei Beto, Leonardo Boff”.

Não se tratava de um juízo apenas de fato – por exemplo: indicar os que se dedicaram sobretudo às questões sociais – mas de um juízo de valor: quem seria “ético” e quem não seria, quem teria “visão filosófica engajada” e quem não teria, acrescentando-se que essa visão teria de ser “para além da hipocrisia”, ou seja, que algumas das personalidades arroladas poderiam apenas parecer, mas seriam substancialmente hipócritas. Ora, além de gravemente ofender personalidades públicas como sendo “do mal”, ensejando que elas até processem a Universidade por injúria e difamação, – aquele questionamento é completamente inadmissível numa universidade, que deve ser, por excelência, o lugar da liberdade de pensamento e de crítica.

É possível que eu formule, a respeito deste ou daquele personagem, o mesmo juízo subentendido na redação da questão, mas quero ter sempre a lucidez de distinguir aquilo que é meu pensamento individual (legítimo) daquilo que, como professor, posso exigir dos alunos como critério de aprovação numa prova qualquer. Com que autoridade posso impor a alunos que considerem Bush, Olavo de Carvalho, FHC, ACM, Roberto Marinho, Inocêncio Oliveira, Marco Maciel, por exemplo, como intrinsecamente aéticos, não engajados, hipócritas? E posso, ao contrário, exigir de estudantes que tenham o Dalai Lama, Gandhi, Marina da Silva, Frei Beto, D.Helder, Leonardo Boff, como intrinsecamente éticos, engajados e não hipócritas? Onde fica a liberdade intelectual, o livre convencimento, o juízo honesto que cada um deve, essencialmente, apenas à própria consciência?

O episódio dessa prova é particularmente emblemático. É sintoma claríssimo de uma ditadura do pensamento único, o totalitarismo dos que não aceitam senão uma verdade. Se certa corrente prevalecer vultosamente no Brasil, será com isso que teremos de conviver: a imposição de certos modelos de pensamento, a massacrante intolerância em relação a idéias discordantes? Quem não pensar segundo a ideologia oficial será execrado, isolado, excluído? Ao invés, a vida intelectual não se faz autenticamente senão mediante a mais ampla liberdade de investigação e de crítica. Sem ela, a universidade – e de modo especialíssimo a universidade pública (que não tem dono e não se filia a nenhuma confissão filosófica ou religiosa) – não passará de uma farsa.

Cada vez mais é preciso retornar à imortal lição de Voltaire, de “não concordar com uma palavra do que dizeis, mas sustentar até à morte o direito de dizerdes”. Já é gravíssimo se essa questão não foi anulada. Mas nem a anulação basta. Urge que as autoridades universitárias nítida e firmemente repudiem aquele absurdo e tomem providências concretas enérgicas, para que não pareça que os redatores da prova contam, de algum modo, com o beneplácito e a complacência delas, favoráveis, nessa medida, ao totalitarismo intelectual, à ditadura do partido único, à camisa de força imposta ao pensamento livre (que é a suprema dignidade do ser humano).

José Luiz Delgado é professor universitário.

O Enigma do ENADE (2)


Estive revendo as informações disponíveis sobre o ENADE, para um texto que deve ser publicado brevemente (a versão preliminar está aqui). O quadro ao lado, referente aos cursos de medicina nos dois exames, mostra algo que eu já havia assinalado, que é que os resultados do ENADE são em geral muito mais altos do que os do Provão.

O que eu não havia entendido claramente antes é que estes resultados se explicam pela maneira pela qual os conceitos finais do ENADE são calculados. O INEP soma os conceitos da prova de conhecimentos específicos dos alunos que entram com o dos alunos que saem, e ainda com os resultados médios de todos, que entram e saem, na prova geral. As provas têm pesos diferentes – 15%, 60% e 25%, respectivamente.

Isto é muito curioso, porque a idéia, ao examinar alunos que entram e que saem, era ver quanto os cursos adicionavam de conhecimentos aos alunos ao longo dos anos, descontando o efeito da qualificação inicial, ou seja, subtraindo um do outro. Assim, por exemplo, se os alunos que entram tivessem o conceito 30, e ao sair o conceito 80, o ganho seria de 50: mas, se os alunos entrassem com 70, e terminassem com 80, o ganho seria só de 10, e o primeiro curso seria considerado muito melhor do que o outro. Como o ENADE soma os dois resultados, o segundo curso acaba tendo um resultado final melhor, porque os alunos já entram mais qualificados (não usei os pesos nas continhas acima para simplificar).

Não encontrei nenhuma explicação de porque o ENADE faz isto, mas a consequência é clara: a avaliação tende a favorecer as instituições mais seletivas, em geral públicas, e prejudicar as que recebem alunos com pior formação, em geral privadas. Enquanto o provão só media o resultado final, e por isto era criticado, o ENADE piora a situação; só dá um peso de 60% ao resultado, final e dá um bonus às instituições mais seletivas.

O relatório técnico do ENADE 2005, disponível no site do INEP, apresenta um esforço interessante de calcular o valor adicionado pelos cursos em função das características dos alunos que entram, como deve ser. Mas os resultados só são mostrados de forma agregada, não por cursos, e é impossível interpretar o sentido dos números que são apresentados. Que significa, por exemplo, dizer que determinados cursos acrescentam 5, 10 ou 20 pontos aos alunos ao longo de 4 anos? Isto é satisfatório, muito ruim, ou ótimo? Justifica ou não o tempo e dinheiro investidos, dos alunos e da sociedade?

O ENADE tem outros problemas metodológicos graves, que eu discuto no meu texto. A impressão clara é que são vícios de origem e concepção, que não têm como ser sanados por análises estatísticas posteriores, embora competentes.

Jacques Schwartzman: ainda a “relevância social” de cursos superiores

O jornal O Estado de Minas publicou no dia 19 de fevereiro o seguinte artigo, de Jacques Schwartzman, professor da UFMG:

A recém editada Portaria 147 do MEC estabelece novos procedimentos para a abertura de Cursos de Direito e de Medicina, dentre elas a “demonstração de relevância social, com base na demanda social” e observados parâmetros de qualidade e no caso da Medicina “a demonstração de integração do Curso com a gestão local e regional do Sistema Único de Saúde”. Ambos os cursos ser também avaliados pela OAB e pelo Conselho Nacional de Saúde.

Esta Portaria, aparentemente, reflete o entendimento de que há cursos em excesso e muitos de má qualidade nestas áreas. Mas isto não acontece também em outras áreas tais como Administração e Educação ? Para entender a motivação da Portaria só mesmo se valendo da força da OAB e do CNS que notoriamente tem se destacado na defesa de seus interesses corporativos.

A outra questão é a de se indagar porque existe um mesmo tratamento para cursos do setor público e privado. Para os primeiros vale a preocupação com a relevância social pois trata-se da alocação de recursos públicos que devem ser alocados com a máxima eficiência. Cabe ao governo estimular os setores mais estratégicos para o País e dar estímulos para a sua viabilização. Mas, qual é a lógica de interferir diretamente no setor privado, além da verificação da qualidade e de sua publicização aos interessados? Que mal há em formar mais médicos e advogados de que se precisa? Os que não conseguirem ocupação de acordo com a sua formação podem se dedicar a trabalhos correlatos como administradores, pesquisadores, professores, representantes comerciais, etc. O fato é que ao restringirem a oferta beneficiam os que permanecem com poderes oligopolísticos que elevam preços (consultas médica e honorários, por exemplo) diminuem a concorrência e cerceiam o acesso daqueles que desejam ingressar na profissão. Para estabelecer um mínimo de qualidade para o exercício da profissão pode-se aperfeiçoar e disseminar o Exame de Ordem da OAB e introduzir o mesmo tipo de Exame para os que quiserem exercer a medicina, como já se faz experimentalmente, de forma voluntária, em São Paulo.

Chama a atenção também a necessidade de integração ao SUS, como se não houvesse lugar também para um atendimento médico privado de alto custo ou mesmo para formar pesquisadores. Em síntese, “relevância social” deve ser critério quando há utilização de recursos públicos e deve ser aplicado para Instituições de Ensino Superior mantidas pelo governo federal e estadual. Quanto ao setor privado, basta certificar-se de sua qualidade e informar ao publico os resultados da avaliação como se pretende fazer quando o SINAES estiver completo. O setor privado já vem demonstrando sua flexibilidade ao diminuir o ritmo de crescimento das matrículas, aumentar a oferta de cursos tecnológicos , fechar alguns cursos, como os de Economia e diminuir o valor das mensalidades. Resta analisar alguns aspectos formais. As Universidades, em princípio têm autonomia para criar novos cursos que somente serão reconhecidos após em média tres anos de sua implantação. Esta é a prática para todos os outros cursos, inclusive Odontologia e Psicologia na área médica e não há como explicar logicamente a exceção atribuída aos dois cursos aqui tratados. Uma outra consideração refere-se à obrigatoriedade dos Conselhos Estaduais de Educação de seguirem a mesma diretiva, já que foi instituída por uma Portaria do MEC e não por um decreto ou por uma lei.

Ainda sobre a “necessidade social”

Recentemente, o Ministério da Educação aprovou a criação de dois cursos de medicina em São Paulo, das Universidades Anhembi-Morumbi e Paulista, cujos pedidos de autorização ficaram retidos por dois anos por uma suposta falta de “necessidade social”, embora não houvesse dúvida sobre sua qualidade. Edson Nunes, do Conselho Nacional de Educação, escreveu os pareceres mostrando, com dados, a impossibilidade de utilizar este critério. O Ministério da Educação concordou, tanto que acabou aprovando a criação dos cursos, mas agora volta à carga, por decreto, com a mesma idéia da necessidade social. Os pareceres do CNE, de número CNE/ CES 321/2004 e CNE/CES 322/2004, são públicos.

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