Chico Soares: qual desempenho é adequado nos testes da Prova Brasil?

Escreve José Francisco Soares, do Conselho Nacional de Educação:

O governo federal, ao divulgar, na semana passada, os resultados da Prova Brasil,  dividiu  as notas  dos estudantes em três níveis referidos como: Insuficiente, Básico e Adequado.  Ao usar adjetivos com claras interpretações pedagógicas, busca facilitar o uso dos dados para o planejamento pedagógico das escolas e das redes de ensino, assim como a comunicação com a sociedade. 

No entanto, as escolhas de pontos de corte que definiram os níveis  produziram  uma mudança drástica no  diagnóstico da realidade educacional brasileira. Experiencias consideradas exemplares até 2017 se tornaram fracassos com a nova metodologia. Por exemplo,  a cidade de Sobral, que era considerada exemplo nacional, passou a ter apenas 13,4% dos alunos com  aprendizado adequado em língua portuguesa, ao invés de 79,8 % em 2015. 

Na realidade não ocorreu nenhum desastre educacional nos últimos dois anos, mas apenas a introdução de uma forma  equivocada de sintetizar os dados da Prova Brasil. 

A classificação das notas dos estudantes em níveis exige basicamente a definição de pontos de corte na escala usada para expressar as notas. Para estas escolhas, a técnica usada internacionalmente consiste, primeiramente, em  ordenar por nível de dificuldade os itens usados no teste. A seguir um painel de professores, depois de informados sobre quantos níveis serão criados e a função  pedagógica esperada de cada um,  escolhem  os pontos de cortes, primeiramente, de forma individual e depois em grupos. Várias rodadas de discussão são usualmente necessárias para a criação de um  consenso.

Infelizmente, a pesquisa necessária para o uso desta métrica ainda não foi feita de forma definitiva no Brasil, apesar de grandes avanços recentes. Diante disso, a definição de valores de referência para a escala do SAEB tem sido feita de forma comparativa. Tanto na definição de metas para o IDEB, como as metas do movimento “Todos pela Educação”, quanto para a criação de níveis nos sistemas de avaliação estaduais,  utilizou-se a experiência brasileira no  PISA. Basicamente, mediu-se  o aumento  necessário  no desempenho obtido pelos estudantes brasileiros no PISA para que  as notas do conjunto de estudantes brasileiros tivessem a mesma distribuição estatística que a dos estudantes de um país típico da OECD.  Este aumento, transformado em desvios-padrão, é utilizado para criar a distribuição de referência na escala do SAEB. Nesta distribuição escolheu-se,  por consenso pedagógico,  o ponto de 70% para definir o ponto de corte do nível adequado. Dois outros pontos de corte  adicionais foram escolhidos, definindo-se quatro níveis: abaixo do básico, básico, adequado e avançado. Os níveis assim obtidos vêm sendo usados há anos em artigos, por muitos sistemas de ensino, em plataformas de acesso aos dados e por setores da sociedade civil. No entanto, é importante registrar que outras escolhas poderiam ser feitas.

Para a divulgação dos dados referentes à Prova Brasil de 2017, o  governo federal optou por trabalhar com uma divisão estatística de níveis feita  sem comparação externa. Em seguida, arbitrou, sem nenhuma  justificativa, valores para os pontos de corte muito maiores do que os que tem sido praticados.  Como consequência, a nova síntese sugere que os resultados em Língua Portuguesa são melhores do que os resultados em Matemática, em completo desacordo com o que vem sido aceito, que é que os resultados de aprendizagem de todos estudantes brasileiros estão em níveis catastróficos. 

Usar evidências empíricas em relação aos resultados educacionais: acesso, permanência na escola e aprendizado, assim como indicadores das condições das escolas, é fundamental para a melhoria da educação. Mas isso exige a criação de consensos baseados em análises compartilhadas dos dados.  O trabalho que vem sendo feito nessa direção mostra que o sistema educacional tem sérios problemas no aprendizado de seus estudantes, assim como de condições de funcionamento. Mas uma mudança abrupta de metodologia não ajuda no debate.

O governo federal deveria  usar a oportunidade para não só corrigir o diagnóstico apresentado  como também  para iniciar um processo, baseado na literatura internacional e conduzido por especialistas e professores,  que defina e interprete níveis de referência oficiais para a análise dos dados de aprendizado obtidos pela  Prova Brasil.

João Batista Araujo e Oliveira: Os Presidenciáveis e a Educação

 

Reproduzo abaixo o artigo publicado hoje no O Estado de São Paulo.

Os Presidenciáveis e a Educação

João Batista Araujo e Oliveira (*)

A educação nunca foi e possivelmente tampouco será tema importante ou decisivo na próxima campanha presidencial. Mas essa pode ser uma oportunidade para se iniciar um debate qualificado sobre o tema.

Há três grandes conjuntos de questões que devem ser considerados na pauta dos candidatos. O primeiro refere-se ao paradoxo da enorme expansão da oferta de vagas nas escolas – e do aumento da taxa de escolaridade da população nos últimos 30 anos – e seu efeito nulo na produtividade. Mas não bastará reconhecer que a educação não está contribuindo para aumentar a produtividade do País. Os candidatos, independentemente de seus partidos, precisam reconhecer que as políticas educacionais dos últimos 30 anos – e o fato de os recursos per capita terem mais que dobrado no período – pouco ou nada contribuíram para melhorar esse impacto.

Essa discussão poderia ter duas importantes derivadas. A primeira vai além da educação e permitiria entender por que a produtividade não aumenta no Brasil. Os mesmos fatores que impedem o aumento da produtividade, em especial o protecionismo e a falta de competição, também impedem a melhoria da qualidade da educação. A segunda seria o exame do tipo de escola e de currículo de que um país precisa para impulsionar sua economia e, de modo particular, o papel do ensino médio técnico e a participação do setor produtivo, especialmente do Sistema S. Isso exporia as fragilidades da Base Nacional Curricular Comum e da atropelada lei do ensino médio, que carecem de profundos ajustes.

Se os candidatos reconhecerem esses dois grandes problemas, já terão dado um grande passo para elevar o nível do debate. Deve-se decidir se a educação continuará sendo tratada como gasto, como “política social” de caráter tipicamente compensatório e cunho populista, ou como parte central da política econômica focada na formação do capital humano. A educação continuará a ser tratada em foros corporativistas, dominados por grupos ideológicos, ou será tratada em foros legítimos, qualificados e adequados, juntamente com outros temas cruciais para o desenvolvimento do País, como ciência, tecnologia e inovação? A posição dos candidatos sobre esses temas poderá dar aos eleitores uma ideia concreta do seu nível de seriedade e compromisso com o futuro do País.

O segundo conjunto de questões refere-se ao equilíbrio fiscal do País e suas consequências para o financiamento da educação. O setor público, em especial Estados e municípios, estão à beira da falência. Na área da educação, os gastos vêm aumentando acentuadamente, apesar da redução demográfica. O aumento de gastos é provocado, em grande parte, por políticas capitaneadas pelo governo federal, notadamente com a instituição de mecanismos como o Plano Nacional de Educação e a Lei do Piso Salarial. A situação é agravada pelo entendimento – ou falta dele pelo Ministério Público – de que é insano obrigar Estados e municípios a efetivar mais professores em tempos de vertiginosa redução demográfica. Essa discussão levará inevitavelmente a questões relacionadas ao pacto federativo e vai determinar se o candidato está preparado para mudar os rumos da educação ou vai manter a retórica de que “nunca faltarão recursos para boas ideias e bons projetos”.

Já o terceiro conjunto de questões diz respeito ao modelo fácil da expansão: mais escolas, mais vagas, mais bolsas, mais professores, mais salários, mais investimentos. Nada disso resultou em qualidade e eficiência. Felizmente, não há mais dinheiro para continuar essa gastança ineficaz. Os futuros governantes vão fazer mais do mesmo? Darão continuidade a políticas que comprovadamente não têm funcionado há décadas? Continuarão a ignorar as evidências científicas e as melhores práticas, cultivando extensas plantações de jabuticaba na paisagem educacional? Vão criar novos e inócuos programas, sempre lançados com pompa e circunstância? Vão promover ridículos “choques de gestão”? Afinal, o que os candidatos sabem sobre os reais problemas da educação? O que pretendem fazer para mudar o vetor atual? Ou, ao menos, por onde pretendem começar?

As propostas de cada candidato devem ser calibradas por uma análise do seu potencial impacto na qualidade, eficiência e equidade da educação. Aqui entram também as propostas para lidar com as questões da pobreza – principal determinante do sucesso escolar. Tudo isso é importante, mas a conta precisa fechar.

Nas últimas décadas houve importantes avanços tanto no campo da economia quanto no da educação. Hoje há conhecimentos e instrumentos que permitem lidar com gigantescas crises financeiras, como a que resultou da “nova matriz econômica”. Na área da educação, também existem conhecimentos científicos e experiências comprovadas que nos permitiriam dar saltos qualitativos em tempo relativamente reduzido. Das dezenas de reformas educativas de vulto empreendidas nos últimos 20 anos em todo o mundo, pelo menos uma boa dúzia levaram a modelos e ensinamentos que, conduzidos competente e adequadamente, poderiam melhorar a qualidade do nosso sistema educacional.

Programas de partidos políticos raramente serviram de critério para orientar votos e tanto no plano federal quanto no estadual e municipal é impossível identificar uma identidade partidária nas políticas educacionais. Ao contrário, o que se nota é um forte consenso em torno de equivocadas mesmices que, apesar da grandiloquência dos discursos e dos aplausos da plateia, não produziram frutos nem contribuíram sequer para dar início ao estabelecimento das bases de um sistema educativo de qualidade. O início da mudança começa com o debate, mas este precisa situar-se num patamar que só estadistas, estimulados por debatedores competentes, incisivos e bem preparados, conseguirão promover e sustentar.


(*) Presidente do Instituto Alfa e Beto

Chico Soares: Contribuição para o debate sobre competências

Contribuição para o debate sobre competências

CHICOsoares (*)

  1. Caveat

Mineiro e escaldado, entro no debate sobre competências com uma nota de precaução. Andrei Sakharov, cientista e prêmio Nobel da Paz, disse certa vez que ideias transformadoras aparecem apenas através de debates, nos quais há longa sequência de troca de argumentos, e nos quais seus participantes expressam tanto ideias já solidamente justificadas, como também dúvidas, perguntas e propostas de soluções ainda em estágio inicial de formulação.  Sei que isso é muito difícil de acontecer hoje no Brasil, um país dividido em tudo, mas assumo que isso é verdade nessa discussão.

  1. Este debate é necessário

O tema da competência é importante. Afinal o uso desta opção de organização do trabalho pedagógico é uma das respostas possíveis para o problema dos conhecimentos inertes, usualmente associados com o texto The aims of Education de Alfred Whitehead. O autor diz que a inclusão de itens no currículo escolar deve ser baseada na sua relevância para a vida dos estudantes.  Crachay e Marcoux, em um texto construído em uma tradição muito crítica ao uso de competências na educação, reconhecem a importância nessa dimensão.

  1. Polissemia

Não há na literatura uma definição consensual do conceito de competência. Diferentes atores usam este termo com sentidos similares, mas cujas diferenças tem impactos pedagógicos. O conceito adotado mais amplamente no Brasil não é o mesmo adotado pelo PISA e OCDE, a definição mais influente no debate mundial educacional

  1. Definição – OCDE

Para a organização do PISA, a OCDE organizou um grupo de trabalho: DeSeCo – Defining and Selecting Key Competencies. O artigo de Weinert (2001) conclui que “não existe uma definição única do confeito de competência aceita amplamente nem uma teoria latente”. Assim sua recomendação, aceita por muitos, foi adotar uma definição funcional do conceito. Para ele,

“Competência é a capacidade atender com êxito demandas complexas em um contexto particular, através da mobilização de pré-requisitos psicossociais (incluindo aspectos cognitivos e não-cognitivos. Esta definição foi também adotada pela União Europeia que define competência como uma combinação de conhecimentos, habilidades (skills) e atitudes exigidas pelo contexto”.

Esta definição foi recentemente reafirmada pela OCDE no texto The Future of Education and Skills – The Future we want.

Há três polos nessa definição: contexto específico, mobilização e diversidade de recursos: conhecimentos, habilidades e atitudes. Nessa definição, o foco principal do conceito está nas ações, escolhas e maneira de se comportar com que cada pessoa enfrenta os problemas que a vida lhe põe.

  1. Nomenclatura

Nesta abordagem, as palavras “skill”e “competence”, traduzidos usualmente para o português do Brasil como habilidade e competências, referem-se a conceitos diferentes, ainda que associados. O relatório do DeSeCo é enfático ao afirmar que “nem os componentes cognitivos nem os aspectos motivacionais isoladamente constituem uma competência. Por exemplo, habilidades (skills) de pensamento crítico, habilidades analíticas, capacidade de solução de problemas gerais, ou persistência não são competências, porque não descrevem uma resposta individual completa a uma demanda específica.Constituem, no entanto, elementos valiosos, se não indispensáveis de competência de ação.” A ideia de que o conceito de competência está associado à capacidade de resolver problemas específicos e complexos, como são os da vida cotidiana, tem consequências tanto na organização do ensino como da avaliação

  1. Avaliação de Competências

O PISA é organizado por competências e, por isso, a OECD desenvolveu documentos conceituais que descrevem as competências que avalia: Leitura, Matemática e Ciências. Importante para o debate brasileiro notar que o PISA não descreve estas competências como um conjunto de habilidades.  Os itens incluídos nos testes do PISA são escolhidos analisando a relevância da tarefa proposta e sua adequação para expressar a competência a ser testada. Aceita a sua relevância, a etapa seguinte do processo de produção do item envolve uma análise detalhada do item para a identificação dos conhecimentos e habilidades necessários para que os estudantes produzam a resposta correta.  Ou seja, o PISA trabalha indo do conceito de competência para o de habilidades. A discussão no Brasil se organiza da forma oposta. Com frequência a instrução para a construção do item é o texto da habilidade.

  1. Ensino por Competências

A opção por organizar por competências tem claro impacto na organização do ensino. Como consequência lógica da sua definição, o ensino organizado por competências deve ser organizado através da exposição dos estudantes a situações reais que exigem determinados conhecimentos, habilidades, atitudes e o discernimento possibilidade pelos valores.  Isso foi formalizado com a abordagem pedagógica denominada “situated learning theory”, introduzida por Lave e Wenger (1991),  que preconiza que qualquer conhecimento é criado apenas pela participação dos estudantes em ações concretas em diferentes contextos.

  1. Vocabulário comum

Na forma atual do debate, o termo competência é usado por diferentes atores e textos legais e normativos com sentidos diferentes. Como argumentado acima, a posição da OEDC não pode ser usada para justificar todas as posições no nosso debate, já que a definição daquela organização se baseia em pontos não considerados por muitos dos atores brasileiros:  a essencialidade de problemas concretos e a impossibilidade de reduzir a competência a seus componentes e a ênfase apenas em aspectos cognitivos.  Algum acordo conceitual é necessário.

  1. Alternativas conceituais

Além da abordagem por competência, pode-se considerar a alternativa de organização por objetivos de aprendizagem, usada nas experiências americanas, ou aquela defendida por  Michael Young, um sociólogo do currículo inglês que responde à questão: ‘Qual é o conhecimento a que os alunos têm direito?’ sugerindo uma organização disciplinar para as recomendações curriculares comuns de um país. Usa para apoiar sua posição o conceito de conhecimento poderoso.  Naturalmente todas estas opções se interconectam e não devem ser confundidas com opções sobre a pedagogia – a forma de ensinar – apropriada. O estudante do século 21 pede pedagogias ativas como: debates estruturados, discussões mediadas, discussão de eventos atuais, jogos cooperativos, aprendizagem baseada em projetos, aprendizagem pela participação em serviços

  1. Continuar o debate

Pessoalmente entendo que a solução para o problema dos conhecimentos inertes deve ser construída com a contribuição da noção de competência. No entanto, isso não resolve o problema de como organizar as recomendações curriculares comuns para os sistemas de ensino. Nos próximos meses é importante concentrar o debate na reorganização do ensino médio, considerando o que a lei que já estabelece.

Há uma parte obrigatória: Língua Portuguesa, Matemática e Língua estrangeira, constituída daquilo que todos os estudantes devem saber. Esta parte é continuação do Ensino Fundamental II, onde a organização por competências tem justificativas mais fortes, como mostra a experiência e os documentos do PISA, que é aplicado em estudantes, idealmente, no fim da educação obrigatória (que na maioria dos países é aos 15 ou 16 anos). A terceira parte do currículo do ensino médio preconizado pela lei consiste de uma parte específica – os itinerários propedêuticos e técnicos.  Nesta parte o estudante deve ser exposto às formas pelas quais o conhecimento é produzido e transferido, e não somente como é usado. Por isso, nesta etapa é fundamental a possibilidade de opção pessoal, diferentemente do Ensino Fundamental II, que deve ter muito claramente um núcleo comum.  Cada uma destas três etapas exige uma pedagogia específica.

  1. Coda

Termino reafirmando meu caveat inicial, desta vez com uma licença poética em um verso de Raul Seixas.  “E para aquele que mostrar que eu estou errado, eu tiro o meu chapéu”

  1. Referências

Crahay, M., & Marcoux, G. (2016). “Construir e mobilizar conhecimentos numa relação crítica com os saberes”. Cadernos de Pesquisa, 46(159), 260-273.

Figel, J. (2007). Key competences for lifelong learning-European reference framework. Luxembourg: Office for Official Publications of the European Communities. Retrieved May, 25, 2009.

Lave, J., & Wenger, E. (1991). Situated learning: Legitimate Peripheral Participation. Cambridge University Press.

OECD.  2006. PISA 2006 Technical Report.

OECD. 2018. The Future of Education and Skills – The Future we want.

Weinert, F. E. (2001).” Concept of competence: A conceptual clarification”. In Rychen, D. S. E., & Salganik, L. H. E. (2001). Defining and selecting key competencies (pp. 45- 65) Gottingen, Germany: Hogrefe & Huber

Whitehead, A. N. (1959). The aims of education. Daedalus, 88(1), 192-205.

Young, M. (2014). “Superando a crise na teoria do currículo: uma abordagem baseada no conhecimento”. Cadernos Cenpec| Nova série, 3(2).


(*) José Francisco Soares, matemático e estatístico, é professor aposentado da UFMG, membro do Conselho Nacional de Educação e ex-presidente do INEP.

A contribuição da educação para o progresso social

O International Panel for Social Progress  é uma iniciativa de tem reunido, desde 2015, centenas de cientistas sociais de todo o mundo em um esforço para pensar em que medida a pesquisa social pode dar respostas aos grandes desafios do século 21. O primeiro resultado deste trabalho está por ser publicado proximamente pela Cambridge University Press, em 3 volumes e 22 capítulos sob o título de Rethinking Society for the 21st Century e as versões preliminares dos textos estão disponíveis na Internet.

É com prazer que comparto a versão brasileira do capítulo 19, sobre A Contribuição da Educação para o Progresso Social, publicada pela revista Ciência & Trópico, e disponível na Internet.  O texto, que ajudei a coordenar, foi preparado por um grupo com participantes da África do Sul, Alemanha,  Austria, Brasil, Índia, Israel, e Reino Unido, e pretende identificar, primeiro, quais são as grandes funções que as sociedades esperam que a educação desempenhe – o desenvolvimento humanístico, a equidade  a coesão social  e o desenvolvimento econômico – e, o que as pesquisas sociais nos dizem sobre como a educação de fato tem contribuido ou pode contribuir para estes fins. Foi um esforço de colocar uma grande quantidade de ideias e informações em um texto relativamente pequeno, por um grupo constituido por pessoas de diferentes  formações e maneiras de ver o mundo. Cabe aos leitores dizer se conseguimos ou não cumprir bem a tarefa.

Crônicas da Crise: livros disponíveis na Amazon


Volume 1: Política, governo, sociedade e pobreza: Edição Kindle  / Livro impresso

Volume 2: Educação geral, média e profissional:  Edição Kindle / Livro impresso

Volume 3 – Educação Superior, ações afirmativas, pós-graduação, ciência e tecnologia:  Edição Kindle / Livro Impresso

Estes três livros, disponíveis em formato eletrônico e em papel na Amazon,  reúnem pequenos textos publicados na Internet ou em jornais e revistas entre 2004, quando as políticas sociais e educacionais do governo Lula começam a ganhar forma, e 2017, em meio a uma crise política, social e econômica profunda, em que todos se indagam, ou deveriam se indagar, sobre o que deu errado na experiência desse período, e que alternativas temos pela frente.  O crescimento da economia, a expansão dos gastos sociais, o vigor dos debates e das campanhas eleitorais, tudo isto criou a esperança, para muitos, de que o país finalmente estaria mudando de patamar, deixando de ser um país subdesenvolvido marcado pela pobreza, baixa produtividade econômica e instabilidade política, e se transformando em uma moderna democracia menos desigual e com uma população cada vez mais educada e produtiva.  A educação, crescendo em todos os níveis e envolvendo recursos cada vez maiores, seria o grande instrumento para este salto de qualidade.

Eu também compartia a esperança de que isto seria possível, mas, desde o início, vi com muitas reservas as políticas sociais e educacionais que foram adotadas pelos sucessivos governos de Lula e Dilma, não só pelos equívocos que procurava identificar, mas sobretudo pelo contexto político mais amplo em que estas políticas se davam, e que não permitiam que elas fossem diferentes do que foram. Participei, nesses anos, de diversos debates públicos sobre bolsa família, reforma universitária, política de cotas e a reforma do ensino médio, entre outros, sempre com a sensação de que, independentemente da qualidade dos argumentos, que não eram só meus, as decisões seguiam uma outra lógica na qual a pertinência das ideias não tinha muito lugar. Pode ser que a crise atual crie a oportunidade para construir uma nova lógica de implementação de políticas públicas, onde a evidência dos dados, o acúmulo de conhecimentos da literatura especializada e a força dos argumentos tenham mais espaço.

Ao longo destes anos, editei e publiquei vários livros e artigos, quase todos disponíveis no Internet Archive, aonde procuro tratar destes diferentes temas com mais detalhe e profundidade, mas que, pela sua natureza, não têm como transmitir o calor do debate destes textos menores. Para facilitar a leitura, dividi os textos em artigos em três volumes, o primeiro lidando com questões de política, governo, sociedade e pobreza; o segundo com questões de educação geral, média e profissional; e o terceiro com questões de educação superior, ações afirmativas, pós-graduação e ciência e tecnologia. Dentro de cada um, os textos estão agrupados por temas semelhantes, sem respeitar muito a ordem cronológica em que foram escritos.

Avaliação e monitoramento do Plano Nacional de Educação

A convite da Associação Brasileira de Avaliação Educacional, ABAVE, fiz a conferência de abertura de sua IX Reunião Anual em Salvador, cujo tema é a avaliação e monitoramento do Plano Nacional de Educação. O  Plano  foi sancionado como lei em junho de 2014, depois de um longo processo de discussões iniciado ao término do Plano 2001-2010, incluindo as Conferências Nacionais de Educação de 2010 e 2014. Tal como o Plano anterior, é um documento extremamente ambicioso, e, da mesma forma que o anterior, já existem fortes indicações de que estará longe de cumprir seu principal objetivo, que seria o de melhorar de forma significativa a qualidade e a equidade da educação brasileira.

Nesta minha apresentação, procurei mostrar que as dificuldades que o Plano encontra já eram previsíveis desde sua formulação, e se tornaram evidentes com a grande crise econômica, política e fiscal que o país vem enfrentando desde 2015. Estas dificuldades se originam da própria ideia de que um Plano Decenal como este seria o melhor instrumento para a melhorar a educação do país, e se tornaram ainda maiores pela maneira pela qual o plano foi elaborado e suas metas estabelecidas.

Na conclusão, lembrei que a lei que instituiu o PNE continua em vigor, apesar do não cumprimento da maioria de suas metas e do recente veto presidencial ao artigo 25 da Lei de Diretrizes Orçamentárias que alocava recursos federais para sua execução. Dada esta situação, qual deveria ser o papel da avaliação em seu acompanhamento? A avaliação não pode ser um simples monitoramento mecânico do cumprimento de metas quantitativas questionáveis e na maioria dos casos inatingíveis, mas um processo qualificado de revisão permanente dos objetivos buscados, de identificação de pontos de estrangulamento que precisam ser atacados, e, aí sim, do monitoramento detalhado de diversas intervenções para verificar se de fato elas cumprem os objetivos propostos ou se precisam ser modificadas. O horizonte de tempo deve variar conforme o tema, mas dez anos é certamente demasiado quando políticas claramente errôneas ou prejudiciais são identificadas.

O texto completo de minha apresentação está disponível aqui.

Os custos do PNE – o rei está nu

Marcos Mendes, A Despesa Federal em Educação 2004-2014, Boletim Legislativo 26, de 2015

Uma análise detalhada dos custos do Plano Nacional de Educação feita pelo Idados – Inteligência Educacional mostrou que, se plenamente executado, o Plano teria custado 16.4% do PIB em 2014, com uma pequena redução nos anos seguintes, sobretudo pelas mudanças demográficas que estão ocorrendo.

Segundo  os autores, ” se o plano for implementado em sua integridade, a educação passaria a representar 16,4% do PIB por ano (em 2014) ou 13,5% do PIB em 2024. Em termos de recursos públicos isso significa que, em 2014, a implementação plena do PNE consumiria 37,68% de todos os recursos públicos disponíveis no pais. Os gastos mais elevados seriam com o ensino fundamental, no qual se encontra a maioria dos alunos, que passaria a custar 5,8% do PIB. As menores proporções de gastos seriam com Educação Profissional e Educação Especial. O estudo também mostra o impacto do Plano no valor total de recursos que seriam destinados ao pagamento de professores do ensino básico. Considerando que o PNE prevê a melhoria da remuneração de professores, estimamos que os gastos com Pessoal e Encargos Sociais passaria dos atuais 3,3% para 11,8% do PIB. E os autores concluem:  “Torna-se evidente que o Plano não apenas é inexequível, mas que sua implementação desavisada pode comprometer ainda mais as frágeis finanças dos estados e municípios. A dimensão do custo estimado – calculado em R$ 602 bilhões além do atual já despendido com educação – aponta para a irresponsabilidade de se aplicar suas metas sem uma prévia avaliação do custo final do PNE. Daí o senso de urgência e oportunidade de um debate sobre o tema”.  O texto completo do estudo pode também ser baixado daqui.

Que o Plano era inexequível era claro desde o começo, não só pelos custos irrealistas (a expectativa era que ele custaria ‘só” 10% do BIB), mas pela falta de conexão entre a grande lista de metas a serem cumpridas e os resultados esperados em termos da qualidade da educação do país. Dissemos, em 2011, que o plano não passava de uma grande lista de Papai Noel, e voltamos a comentar mais recentemente sua inviabilidade; agora temos os números na mão.

Com plano ou sem plano, os governos brasileiros já vinha aumentando sistematicamente os gastos públicos com educação desde 2004, como mostra o gráfico acima, inclusive triplicando o gasto por aluno na educação básica, sem que isto tivesse qualquer impacto mais significativo na melhoria da educação.

Apesar disto, o governo federal ainda faz de conta que o plano, porque está consagrado em lei, está sendo cumprido, e não se dispôs ainda a dizer, com todas as letras, que o rei está nu, e que ele precisa ser rapidamente substituído por uma política educativa mais consistente e compatível com a realidade econômica do país, da mesma forma que está fazendo com a previdência social e com a expansão descontrolada dos gastos públicos.

 

Chico Soares: As meias-verdades do ENEM por Escola

rankingComparto texto de José Francisco Soares, membro do Conselho Nacional de Educação e ex-presidente do INEP, sobre o significado dos dados do ENEM por escola, que acabam de ser divulgados:

As meias-verdades do ENEM por Escola

José Francisco Soares

O ranking do ENEM simplesmente consagra as escolas que fazem seleção de seus alunos. Entre as escolas bem classificadas, as privadas selecionam seus alunos pela renda e entre os que podem pagar escolhem os alunos que se saem bem em provas. Esta seleção interna é frequentemente feita ao longo da trajetória escolar dos alunos. A escola alega que o estudante não se adequou ao projeto pedagógico e convida os alunos seus alunos mais fracos a saírem As escolas públicas, que estão entre nas melhores colocações, são aquelas que admitem seus alunos através de difíceis vestibulares.

Depois da divulgação, as escolas privadas pertencentes a redes de ensino comprarão páginas de jornal para convencer as famílias que qualquer escola da rede é igualmente boa. Por outro lado, os gestores públicos das escolas bem classificadas darão declarações dizendo que o ensino público pode ser de excelência, não enfatizando nem a seleção nem o custo de suas escolas.

Em ambos os casos a sociedade recebe meias verdades. A dura realidade é que os projetos pedagógicos das escolas bem classificadas no ENEM são projetos excludentes socialmente, comuns em um Brasil que aceita, sem critica, dar tudo para poucos e nada para muitos.
Expor a fragilidade do argumento que a boa escola é aquela mais bem posicionada no ranking do ENEM, não deve obscurecer o fato de que, entre as escolas lideres, há projetos de muito boa qualidade pedagógica, que precisam ser conhecidos e que podem inspirar as mudanças que o sistema de educação básica brasileira precisa. Se a viabilidade destes projetos vem das boas condições de funcionamento e dos alunos selecionados, por outro lado são experiências feitas com estudantes e professores brasileiros, e, portanto, úteis para indicar formas de organização do ensino médio que podem ser usadas em escolas públicas abertas e todos os estudantes.

No entanto, a divulgação do ranking do ENEM, mesmo com suas limitações, permite discussões importantes pedagogicamente. Se a escola privada escolhida pela família for grande e mantiver seus alunos ao longo de sua trajetória escolar, não ficará nas primeiras posições do ranking. No entanto, manter os filhos nestas escolas é uma opção racional. Por um lado, garante-se um ambiente de formação humana mais diversificada, que o maior número de alunos permite, e, por outro lado, permite a convivência dos filhos com estudantes de alto desempenho, que serão uma fonte de desafio. Para identificar estas escolas o INEP criou dois indicadores. O primeiro mostra o percentual de alunos matriculados há vários anos na escola e o segundo é a média de desempenho dos 30 melhores alunos de cada escola.
Há escolas públicas e privadas que não selecionam seus alunos e cujo alunado é de baixo nível socioeconômico. Também há escolas privadas que acolhem número substancial de alunos bolsistas. As escolas com este perfil, cujos alunos tem bom desempenho, precisam ter seus projetos reconhecidos; outro efeito da divulgação do ranking, contextualizados com indicadores escolares e sociais.

Os dois senhores da educação média

matthew-624-10-03-13O Jornal Folha de São Paulo publica hoje, 31 de agosto de 2016, um rico caderno  especial sobre o tema do ensino médio e técnico no Brasil, para o qual contribui com o texto abaixo:

Os Dois Senhores da Educação Média

A educação média, no mundo de hoje, é chamada a atender a dois senhores: o da qualificação para as atividades profissionais e acesso ao mercado de trabalho, e o da equidade social.

No passado, a questão da equidade não se colocava: os jovens das famílias mais ricas estudavam nas escolas de elite para as profissões de mais prestígio e mais bem pagas, e os mais pobres, ou não estudavam, ou iam para cursos práticos onde eram preparados para empregos de menor prestígio e baixos salários. O Brasil, nos anos 40, que até então mal educava suas elites, tentou copiar o modelo europeu, dividindo a educação média entre cursos gerais, para os poucos que se preparavam para as universidades, e cursos profissionais (industriais, agrícolas, comerciais) para os filhos dos trabalhadores. Na Europa, com isto, foi possível ampliar a educação e criar um operariado competente que se beneficiou do crescimento da economia, sem, entretanto, eliminar as diferenças sociais entre os dois tipos de educação. No Brasil, a educação profissional de nível médio estagnou, e os empresários, com fortes subsídios, tomaram em suas mãos a aprendizagem dos trabalhadores com o Sistema “S”.

No Brasil e no mundo, agora, as coisas mudaram. Na Europa, o setor industrial diminuiu, os empregos para as qualificações profissionais mais simples se reduziram, e a divisão rígida entre educação geral e educação profissional começou a ser vista como discriminatória e em grande parte disfuncional. Enquanto isto, o Brasil ampliou o acesso ao ensino médio, que hoje é obrigatório por lei, e eliminou de vez a possibilidade de trilhas diferentes de formação – a educação técnica, que antes era uma opção, hoje só é aceita como um estudo complementar ao ensino convencional.

Na Europa, ninguém pensa em acabar com os diferentes tipos de formação para a juventude, não só porque a economia moderna requer pessoas com perfis muito distintos, mas também porque as pessoas diferem em seus interesses, motivações e capacidade de estudar e aprender, e não podem ser colocadas em um molde único. Nos diferentes países europeus, a educação comum, que terminava aos 11 ou 12 anos, agora vai até os 15 ou 16, os conteúdos gerais de linguagem, computação e raciocínio matemático dos cursos técnicos são reforçados, e os certificados técnicos de nível médio, como bac técnico francês, são valorizados e dão acesso à educação superior.

A opção brasileira por um currículo médio único, pautado por um Exame Nacional também único, tem uma explicação prática, e outra ideológica. A prática é que o prestígio e a renda proporcionados pelos diplomas universitários ainda são relativamente muito altos,  quando comparados os os diplomas de nível médio, e o ensino técnico, com a exceção dos cursos altamente seletivos dos institutos federais e estaduais, ainda é visto pela população como um caminho menos desejado. A ideológica é a noção, buscada nos escritos de Gramsci dos anos 20, e adotada pelo Ministério da Educação, de que a educação técnica, voltada para as necessidades do mercado de trabalho, aliena os trabalhadores e os impede de desenvolver a consciência crítica e revolucionária que só uma educação clássica tradicional poderia proporcionar.

O resultado desta opção foi que ela não consegue atender a nenhum de seus dois senhores. A educação geral é de péssima qualidade, e não produz os quadros técnicos e profissionais com a qualidade e a quantidade necessários para economia moderna; e o sistema escolar é fortemente estratificado, com milhões de estudantes submetidos a um currículo tradicional que poucos conseguem acompanhar, na disputa encarniçada no ENEM pelas poucas vagas disponíveis na educação superior de qualidade. Parece uma competição por competências, mas por detrás dela estão as profundas diferenças de condições de vida e oportunidades que persistem na sociedade brasileira.

É este duplo fracasso, de relevância econômica e equidade social, que leva à necessidade de se transformar profundamente o ensino médio brasileiro, aproximando-o do que ocorre no resto do mundo, com uma pluralidade de caminhos e alternativas, gerais e profissionais, teóricas e práticas, capazes de dar oportunidades e atender às condições e necessidades de uma população heterogênea e de uma economia que precisa de pessoas capacitadas em todos os níveis para se desenvolver.

A reforma necessária do ensino médio: além de Gramsci

TH_Cultural Hegemony_GramsciA reforma necessária do ensino médio: além de Gramsci

Simon Schwartzman

Em boa hora o Ministério da Educação decidiu retirar o ensino médio da projeto da base nacional curricular comum que está sendo proposto para a educação brasileira. A principal razão para isto foi o entendimento de que o atual modelo único do ensino médio precisa ser alterado, reduzindo o numero de matérias obrigatórias e permitindo que os estudantes possam optar por diferentes trilhas de formação, inclusive de natureza profissional ou técnica, como acontece em todo o mundo.

Além de alterar o texto da proposta para abrir a possibilidade de diversificação que agora se espera, é importante também rever as premissas endossadas até recentemente pelo Ministério da Educação, para que elas não ressurjam com outras roupagens no novo formato que deve ser introduzido. Para isto, é preciso examinar com cuidado o texto sobre o ensino médio que consta da versão revista da Base Nacional Curricular publicada recentemente.

Ao justificar o currículo enciclopédico e inviável que temos hoje, a proposta pretendia resolver um problema equivocado e inexistente, que é o da “fragmentação do saber”, como se nao vivêssemos em um mundo em que o saber é altamente diferenciado e especializado, e em que ninguém pode pretender dominar de forma abrangente todos os campos de conhecimento. Segundo a proposta, “a definição de uma base comum deve se comprometer com a criação de alternativas que superem a fragmentação dos conhecimentos e tornem o trato com o saber um desafio interessante e envolvente para os/as estudantes”, como se uma coisa tivesse que ver com a outra.

A proposta da base reproduz trechos do parecer anterior do Conselho Nacional de Educação que aprova as diretrizes curriculares para o ensino profissional médio (Conselho Nacional de Educação 2012), Este parecer preconizava que trabalho, ciência, tecnologia e cultura sejam entendidas “como dimensões indissociáveis da formação humana”, propondo que o ponto de partida da análise fosse o “conceito de trabalho, simplesmente pelo fato de ser o mesmo compreendido como uma mediação de primeira ordem no processo de produção da existência e de objetivação da vida humana”; e mantém a preferência pelo princípio utópico da “formação integral”, que deveria ser “o elo articulador e para o qual convergem todas as áreas do conhecimento, de forma que os componentes curriculares, com seus objetivos de aprendizagem entrelaçados aos eixos formativos, componham um mosaico de aprendizagens que assegurem o desenvolvimento dos/das estudantes em todas as suas dimensões (intelectual, física, social, emocional e simbólica)”.

A origem desta preocupação com a formação integral, aparentemente louvável e inócua, está nas notas de prisão dos anos 20 do marxista italiano Antônio Gramsci, trazidas para o Brasil por alguns filósofos da educação, e que tiveram grande penetração entre os pedagogos brasileiros (Saviani 1989, Saviani 2003). Gramsci ficou conhecido sobretudo pela sua preocupação com o tema da hegemonia, que pretendia ir além do conceito tradicional de dominação de classes desenvolvido por Marx. Para Gramsci, as classes dominantes mantinham seu poder não somente pela força, mas também pela influência intelectual e moral que exerciam sobre a toda a sociedade. A luta de classes, assim, não poderia ser simplesmente uma disputa política, mas também uma luta intelectual, em que os operários pudessem disputar com os burgueses a hegemonia intelectual e cultural sobre a sociedade. Para que os operários pudessem fazer isto, eles precisariam ter a mesma educação que os burgueses, e o próprio Gramsci, tivera na escola, baseada no estudo da filosofia,  língua e da literatura clássicas, e por isto ele se opunha à educação profissional e técnica que era oferecida para os trabalhadores, que seria uma forma de mantê-los sob o domínio hegemônico da burguesia.

A principal inovação de Gramsci não foi a ideia de que os operários deveriam desenvolver uma cultura e visão de mundo própria e superior à dos burgueses, que já estava presente nos escritos filosóficos de Marx, Engels, Lenin e Georgy Lukács, entre outros; e sim que ela deveria ser desenvolvida no interior das escolas. Suas ideias se transformaram, assim, em em uma ideologia radical pedagógica que passou a ser adotada por algumas correntes de educadores, que criticavam a educação voltada para a capacitação para o mercado de trabalho; e ainda que Gramsci,  um revolucionário na política, fosse um  conservador em educação, que  se opunha às tentativas de aproximar a educação pública da cultura popular, assim como à pedagogia progressiva, ou progressista, que estava sendo introduzida na Itália pela reforma Gentile de 1923, do regime fascista (Entwistle 1979).

Muita água passou por debaixo da ponte nos quase cem anos deste os tempos de Gramsci. A crítica à divisão entre a educação letrada, da burguesia, e a educação prática e manual, para os trabalhadores, já existia entre os autores da chamada “escola nova”, com destaque para o norte-americano John Dewey, e foi proposta para o Brasil em 1931 no Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, escrito por Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira (Dewey 1916, Azevedo 1932). A efetiva educação integral baseada no trabalho proposta pelos escolanovistas (mas,  no caso dos gramscianos, por oposição à qualificação para o mercado de trabalho) nunca se materializou plenamente, exceto talvez em algumas escolas experimentais; mas, na maioria dos países, os trabalhos práticos e o envolvimento dos estudantes com os problemas do mundo real  e a capacitação para o mercado de trabalho fazem parte da educação em todas suas modalidades. A crítica de Gramsci à natureza classista da divisão européia entre a educação geral e a educação profissional era correta, mas os países que conseguiram desenvolver uma educação profissional de qualidade conseguiram também proporcionar melhores condições de vida para todos, reduzir as desigualdades sociais, e foram diminuindo aos poucos as desigualdades de oportunidades de estudo e desenvolvimento pessoal. Ao mesmo tempo, a ciência e a tecnologia avançavam, os campos de saber se multiplicavam, e a escola tradicional e de elite que Gramsci conheceu, e que pretendia corporificar e transmitir a cultura em sua mais alta expressão, começou a ser transformada, abrindo espaço para as ciências naturais e para a diferenciação crescente de conteúdos dos cursos de formação. Nas sociedades modernas, as diferenças sociais, econômicas e individuais persistem, os sistemas escolares refletem e podem até mesmo reforçar estas diferenças, e por isto mesmo são constantemente revistos e aperfeiçoados, de tal maneira que possam, ao mesmo tempo, atender à diversidade existente e assegurar a igualdade de oportunidades de educação e desenvolvimento das pessoas.

No Brasil, a adoção das ideias de Gramsci se corporificou no conceito de “politecnia”, que resume esta ideia de união entre o trabalho intelectual e o trabalho manual. Este conceito foi adotado sobretudo por educadores associados às escolas técnicas federais, que podiam assim reivindicar para si o mesmo prestígio, e as mesmas condições salário  e trabalho, que os professores das universidades federais, sem abandonar uma postura política radical. Foi uma estratégia bem sucedida, que levou o governo Lula a transformar os antigos Centros Federais de Educação Técnica, os CEFETS, em Institutos Federais de Ciência e Tecnologia, com os mesmos  privilégios corporativos que as universidades públicas, inclusive os de dar cursos de pós-graduação e desenvolver projetos de pesquisa. No ensino médio, sua consequência foi a eliminação da pouca diferenciação que havia no passado entre diferentes tipos de formação, fazendo da formação técnica uma atividade adicional, e não alternativa, ao ensino médio tradicional. A consequência social não foi tornar a educação mais acessível e igualitária, mas, sim, mais elitista e discriminatória – todos agora devem passar pelo mesmo corretor estreito de um ensino médio tradicional, controlado na porta de saída pelo ENEM, que na prática só é acessível aos filhos de famílias mais ricas e educadas que estudam em escolas particulares. Para os demais, resta um simulacro de educação geral que forma pouco e não qualifica nem para o mercado de trabalho nem para o ensino superior.

Na tentativa de implementar um esquema geral e integrado de formação, o documento da Base Nacional Curricular Comum propunha quatro eixos de formação para o ensino médio que, aparentemente, poderiam significar opções, mas, na realidade, são temas gerais e comuns a todas as áreas de estudo: (i) Pensamento crítico e projeto de vida, (ii) Intervenção no mundo natural e social, (iii) letramentos e capacidade de aprender, e (iv) solidariedade e sociabilidade; e insiste na prioridade à formação integrada, identificando quatro “temas integradores”, que seriam (i) economia, educação financeira e sustentabilidade (ii) culturas africanas e indígenas (iii) culturas digitais e computação (iv) direitos humanos e cidadania e (v) educação ambiental. Esta proposta poderia ser entendida como uma reação salutar ao modelo atual de organização curricular, baseado em matérias obrigatórias com números de horas-aula estabelecidos de forma rígida, mas cai no extremo oposto: desaparecem as disciplinas clássicas de formação científica e humanística, como a física, química, história, direito e literatura, que se dissolvem sob o manto das culturas e das interdisciplinaridades.

Apesar da posição subordinada da educação técnica de nível médio neste projeto, ela vem crescendo nos últimos anos no Brasil, e a proposta tenta lidar com ele de alguma forma, mas propõe um caminho equivocado. O Censo Escolar, hoje, lista cerca de 150 áreas de formação técnica de nível médio no Brasil, que são agrupadas, por similaridade e conveniência estatística, em 13 “eixos” gerais de formação, como Ambiente e Saúde, Desenvolvimento Educacional e Social, recursos naturais, e outros. O documento atribui a estes eixos uma consistência conceitual que eles não têm, ao postular que “o Eixo Tecnológico é o conceito que organiza os cursos da educação profissional e tecnológica e os agrupa conforme suas características comuns relativas à concepção, à produção e ao uso da tecnologia. Cada eixo define a convergência dos conteúdos de um conjunto de cursos, que apresentam identidade técnica e tecnológica. Cada eixo apresenta um núcleo politécnico comum que compreende os fundamentos científicos, sociais, organizacionais, econômicos, políticos, culturais, ambientais, estéticos e éticos que alicerçam as tecnologias e a contextualização do mesmo no sistema de produção”. Ora, não faz sentido pensar que áreas profissionais como agricultura, agronegócios, geologia, pesca e mineração, por exemplo, que fazem parte do eixo de recursos naturais, tenham os mesmos “fundamentos científicos, sociais, organizacionais, estéticos”. Esta maneira de tentar juntá-los no papel é uma tentativa de manter a suposta unidade das diferentes formas de conhecimento e atividade humanas, que pode ter consequências problemáticas se servirem de base para a organização de currículos ou sistemas de avaliação.

A forma em que estava concebida a proposta da base curricular para o ensino médio, a partir de construções intelectuais abstratas, ideologias pedagógicas e utopias que não tomam em conta nem a experiência prática de outros países nem a realidade do sistema escolar e da população estudantil do Brasil, não permitia que se pudesse esperar muito de seus efeitos práticos. A dúvida é se esta maneira de pensar persistirá ou será finalmente deixada de lado no novo modelo de educação média que será implantado no futuro próximo.

A diversificação do ensino médio, que existe em todo mundo menos no Brasil, não significa que não existam conhecimentos e competências gerais que devem ser desenvolvidos e compartidos por todos os cidadãos de um país. Estas competências incluem, necessariamente, o domínio da língua culta;  a capacidade de raciocínio quantitativo;  familiarização com conceitos e informações gerais das ciências naturais e sociais; o uso dos recursos computacionais; e familiaridade com a língua inglesa.  Além disto, dá-se cada vez mais importância às chamadas “competências emocionais”, ou “não cognitivas”. Tudo isto deve fazer parte da educação fundamental, que no Brasil termina aos 15 anos, e continuado no contexto das opções de formação e aprofundamento seguidas pelos estudantes a partir daí.

Referências

Azevedo, F. (1932). A reconstrução educacional no Brasil, ao povo e ao governo. Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional.
Conselho Nacional de Educação (2012) “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio – Parecer CNE/CEB 11/2012 – Parecer Homologado.” Brasília D.O.U. de 4/9/2012, Seção 1, Pág. 98.
Dewey, J. (1916). Democracy and education: an introduction to the philosophy of education. New York,, The Macmillan Company.
Entwistle, H. (1979). Antonio Gramsci Conservative schooling for radical politics. London, Boston and Henley, Routledge & Kegan Paul.
Saviani, D. (1989). Sobre a concepção de politecnia. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz,. Politécnico da Saúde Joaquim Venâncio.
Saviani, D. (2003). “O choque teórico da politecnia: trabalho, educação e saúde.” Trabalho, Educação e Saúde 1: 131-152.

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