Samuel Pessoa: reforma política e corrupção

Escreve Samuel Pessoa, economista da Fundação Getúlio Vargas:

Gostaria de compartilhar consigo meu posicionamento sobre o tema.

Em um primeiro momento sinto-me como as pessoas do grupo dos panglossianos. Acho, de fato, que nosso sistema político funciona melhor do que imaginamos e tenho muito receito que ao tentar melhorar o sistema acabemos reformando em direções ruins.

Um dos maiores problemas que vejo é que várias pessoas desejam ou defendem uma reforma política com a finalidade de reduzir a corrupção. Parece-me que se há um problema é melhor atacar a fonte principal do problema. A fonte primária da corrupção não é nosso sistema político mas sim nosso sistema jurídico. Há duas características que reduzem a praticamente zero a possibilidade de um corrupto ser punido. Primeiro, há uma quantidade imensa de recursos e, adicionalmente, o escopo do recurso é total (isto é, qualquer ato processual pode ser objeto de recurso). Segundo, a enorme complexidade processual faz com que seja quase impossível existir um processo sem que haja algum erro processual de sorte que as pendências acabam inválidas antes que elas sejam julgadas no mérito. Finalmente, é possível que haja um terceiro fator, que é a inexistência, pelo menos na prática, do princípio da razoabilidade da evidência (ou da prova). Isto é, quando se acumula um conjunto suficientemente grande de evidência numa direção inverte-se o ônus da prova. Esse deveria ser o princípio ao menos no processo civil (nos EUA esse princípio é aplicado mesmo em processo penal). No entanto, a impressão que tenho é que essa inversão de ônus da prova que ocorre em outros sistemas jurídicos em função do princípio da razoabilidade da prova (beyond any reasonable doubt) é encarada pelos juristas brasileiros como um atentado ao princípio de presunção da inocência. Se não mexermos nesses aspectos do funcionamento do nosso código de processos acredito ser muito difícil reduzir a corrupção com a reforma política.

Dessa forma, se acredito que redução da corrupção depende essencialmente da reforma do judiciário, para quê reforma política? Evidentemente para reduzir a fragmentação do legislativo de sorte a produzir maiorias mais estáveis. Em segundo lugar reduzir o custo da política. Gostaria de atingir ambos os objetivos mexendo o mínimo no sistema atual de sorte a manter suas virtudes. Quando se trata de mudança institucional sou muito conservador. Penso que em geral quando avaliamos custos e benefícios de uma nova instituição somos tentados a superestimar os benefícios da alternativa (e subestimar os custos) e a subestimar os benefícios do status quo (e a superestimar os custos). Dessa forma penso que o processo de evolução institucional deve ser incremental.

Tenho muito medo com voto distrital unimodal – uma maioria frágil poderia alterar radicalmente as instituições. Não me parece apropriado para uma sociedade tão heterogenia quanto a brasileira. Distrital misto parece-me um franktein que não tem funcionado muito bem onde foi adotado. Atemoriza-me a lista fechada. Penso que uma mudança simples seria reduzir o distrito eleitoral. Poder-se-ia considerar que o máximo permitido para um distrito eleitoral seria de oito deputados. Os estados menores que tem somente oito deputados continuariam da forma como estão. Os estados maiores seriam divididos em distritos – na proporção da população – de no máximo oito deputados. Por exemplo, São Paulo teria uns dez distritos de sete deputados cada. Dentro de cada distrito manteríamos o modelo atual: voto proporcional com lista aberta. Cada indivíduo somente poderia candidatar-se em um distrito eleitoral. Essa medida reduziria o custo da campanha e funcionaria como uma cláusula de barreira reduzindo a fragmentação partidária. Segundo Lijphart no seu “Modelos de democracia” (página 179) distritos de 8 deputados corresponde a uma cláusula de barreira de aproximadamente 10% (relativamente elevada).

O que me parece interessante nessa proposta é que ela muda em muito pouco nossa prática eleitoral e não tenta repactuar a representação legislativa entre os estados o que me parece ainda muito difícil além de não ser a fonte dos maiores problemas de nossa democracia (apesar de ser uma fonte de injustiça representativa, evidentemente). Com relação a fidelidade partidária acho que deveria ser uma opção do partido. Não gosto de uma proibição ao troca-troca de partidos. Prefiro que se reduza o estímulo a que as pessoas alterem de partido. Finalmente, acredito que poderíamos evoluir numa melhor normatização do financiamento, tornando crime o caixa dois – recentemente rebatizado de “recursos não contabilizados” – e impedindo que empresas prestadoras de serviço ao estado contribuam.

Jhonatan Pereira de Souza: A Reforma Política e o Parto da Montanha

Jhonatan Pereira de Souza, da Escola de Formação de Governantes do Maranhão, enviou um texto bastante didático sobre as diferentes propostas de reforma política que estão sendo discutidas no momento – voto distrital, voto em listas, financiamento público de campanhas, fidelidade partidária – que estou disponibilizando aqui.

O que ele diz, essencialmente, é que as reformas são importantes e necessárias, mas que dificilmente este congresso que está aí vai levá-las à frente. O que levanta uma questão mais ampla, já discutida aqui tempos atrás, no auge da crise do mensalão: faz sentido insistir no tema da reforma política e dos limites à corrupção, na situação em que vivemos?

Se ouvimos em volta, encontramos três tipos de resposta a esta questão. Uma é a dos panglossianos, a turma de Candide: o sistema político brasileiro funciona muito bem, é aberto e democrático, nossos políticos são a cara do nosso povo, sempre existiu corrupção, claro, mas insistir nisto não passa de udenismo requentado. A outra é dos realistas conformados: nosso sistema democrático é uma porcaria, mas, com a pobreza e a má qualidade da educação da maioria dos brasileiros, não é possível ter nada muito diferente. A solução é tapar o nariz e acreditar que daqui a cinquenta ou cem anos tudo estará melhor, o Brasil é o país do futuro. A terceira, da qual participo, é que é necessário melhorar as instituições políticas que temos agora, e, embora difícil, isto não é impossível, na medida em que a opinião pública se mobilize para isto.

Além da dificuldade política de fazer com que este congresso faça qualquer coisa que não seja em causa própria, existe o fato de que muitas soluções que se apresentam correm o risco de ser logo corrompidas e deturpadas. A eleição em lista afasta ainda mais os eleitores dos eleitos, e fortalece as máquinas partidárias; o financiamento público das campanhas seria um enorme desperdício de dinheiro, e nenhuma garantia contra a corrupção; o voto distrital esbarra na barreira de como desenhar os distritos, etc.

Mas é possível começar pelas coisas menos controversas, e ir avançando: exigir a fidelidade partidária, acabando com a troca-troca de partidos; reestabelecer as cláusulas de barreira; introduzir o voto distrital aos poucos, começando pelas câmaras de vereadores; e ir mudando as regras de proporcionalidade, para que o voto de um maranhense ou acreano não continue valendo tanto mais do que o voto de um paulista, como ocorre hoje.

Pagando para passar

Como as taxas de repetência no Brasil parecem estar piorando, começaram a surgir propostas de pagar aos estudantes para que eles melhorem seu desempenho. Assim, a bolsa escola, ao invés de ser paga mensalmente, teria uma parte que ficaria como prêmio no final do ano, para quem passasse.

Os americanos já tentaram isto, e não deu certo. Vejam abaixo a matéria recente do New York Times, distribuida na lista do chileno/americano Gregory Elacqua, que explica por quê.

NYTimes
July 2, 2007
Op-Ed Contributor
Money for Nothing
By BARRY SCHWARTZ

Philadelphia

NEW YORK CITY has decided to offer cash rewards to some students based on their attendance records and exam performance. Diligent, high-achieving seventh graders will be able to earn up to $500 in a year. The plan is the brainchild of Roland G. Fryer, an economist who has been appointed as “chief equality officer” of the city’s Department of Education.

The assumption that underlies the project is simple: people respond to incentives. If you want people to do something, you have to make it worth their while. This assumption drives virtually all of economic theory.

Sure, there are already many rewards in learning: gaining understanding (of yourself and others), having mysterious or unfamiliar aspects of the world opened up to you, demonstrating mastery, satisfying curiosity, inhabiting imaginary worlds created by others, and so on. Learning is also the route to more prosaic rewards, like getting into good colleges and getting good jobs. But these rewards are not doing the job. If they were, children would be doing better in school.

The logic of the plan reveals a second assumption that economists make: the more motives the better. Give people two reasons to do something, the thinking goes, and they will be more likely to do it, and they’ll do it better, than if they have only one. Providing some cash won’t disturb the other rewards of learning, rewards that are intrinsic to the process itself. They will only provide a little boost. Mr. Fryer’s reward scheme is intended to add incentives to the ones that already exist.

Unfortunately, these assumptions that economists make about human motivation, though intuitive and straightforward, are false. In particular, the idea that adding motives always helps is false. There are circumstances in which adding an incentive competes with other motives and diminishes their impact. Psychologists have known this for more than 30 years.

In one experiment, nursery school children were given the opportunity to draw with special markers. After playing, some of the children were given “good player” awards and others were not. Some time later, the markers were reintroduced to the classroom. The researchers kept track of which children used the markers, and they collected the pictures that had been drawn. The youngsters given awards were less likely to draw at all, and drew worse pictures, than those who were not given the awards.

Why did this happen? Children draw because drawing is fun and because it leads to a result: a picture. The rewards of drawing are intrinsic to the activity itself. The “good player” award gives children another reason to draw: to earn a reward. And it matters — children want recognition. But the recognition undermines the fun, so that later, in the absence of a chance to earn an award, the children aren’t interested in drawing.

Similar results have been obtained with adults. When you pay them for doing things they like, they come to like these activities less and will no longer participate in them without a financial incentive. The intrinsic satisfaction of the activities gets “crowded out” by the extrinsic payoff.

An especially striking example of this was reported in a study of Swiss citizens about a decade ago. Switzerland was holding a referendum about where to put nuclear waste dumps. Researchers went door-to-door in two Swiss cantons and asked people if they would accept a dump in their communities. Though people thought such dumps might be dangerous and might decrease property values, 50 percent of those who were asked said they would accept one. People felt responsibility as Swiss citizens. The dumps had to go somewhere, after all.

But when people were asked if they would accept a nuclear waste dump if they were paid a substantial sum each year (equal to about six weeks’ pay for the average worker), a remarkable thing happened. Now, with two reasons to say yes, only about 25 percent of respondents agreed. The offer of cash undermined the motive to be a good citizen.

It is as if, when asked the question, people asked themselves whether they should respond based on considerations of self-interest or considerations of public responsibility. Half of the people in the uncompensated condition of the study thought they should focus on their responsibilities. But the offer of money, in effect, told people that they should consider only their self-interest. And as it turned out, through the lens of self-interest, even six weeks’ pay wasn’t enough.

Obviously, the intrinsic rewards of learning aren’t working in New York’s schools, at least not for a lot of children. It may be that the current state of achievement is low enough that desperate measures are called for, and it’s worth trying anything. And we don’t know whether in this case, motives will complement or compete.

But it is plausible that when students get paid to go to class and show up for tests, they will be even less interested in the work than they would be if no incentives were present. If that happens, the incentive system will make the learning problem worse in the long run, even if it improves achievement in the short run — unless we’re prepared to follow these children through life, giving them a pat on the head, or an M&M or a check every time they learn something new.

Perhaps worse, the plan will distract us from investigating a more pertinent set of questions: why don’t children get intrinsic satisfaction from learning in school, and how can this failing of education be fixed? Virtually all kindergartners are eager to learn. But by fourth grade, many students need to be bribed. What makes our schools so dystopian that they produce this powerful transformation, almost overnight?

Barry Schwartz, a professor of psychology at Swarthmore College, is the author of “The Paradox of Choice: Why More Is Less.”

A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre ação afirmativa

Da longa documentação que acompanhou a decisão recente da Suprema Corte Americana colocando limites às políticas raciais naquele país, Peter Fry destacou o seguinte fragmento, do voto do Juiz Anthony M. Kennedy , que diz melhor o que eu e muitos outros temos tentado dizer sobre as propostas de políticas raciais no Brasil. Esta é a tradução ao português, e, abaixo, o texto original em inglês:

“O argumento a favor de marcar os individuos conforme sua raça ignora os perigos trazidos pelas classificações individuais, perigos que não são tão significativos quando os mesmos fins são obtidos por outros meios. Quando o governo classifica um indivíduo por raça, ele precisa primeiro definir o que ele entende por raça. Quem, exatamente, é branco ou não branco? Ser forçado a viver com um rótulo racial definido pelo governo é inconsistente com a dignidade dos indivíduos em nossa sociedade. É um rótulo que os indivíduos não têm o poder de mudar. Classificações governamentais que obrigam a pessoas a marchar em diferentes direções de acordo com tipologias raciais pode causar novas divisões. A prática pode levar a um discurso corrosivo, em que a raça deixa de ser elemento de nossa herança diversificada, e se transforma em uma ficha de negociação no processo político. Por outro lado, medidas que tomam a raça em consideração, mas que não se baseiam em tratamentos diferenciais baseados em classificações individuais, não têm este risco na mesma intensidade.

A idéia de que, se a raça é o problema, a raça é o instrumento pelo qual ele deveria ser solucionado, não pode ser aceita como um passo analítico à frente. E se esta é uma frustrante dualidade da Cláusula de Igual Proteção [da Emenda 14 da Constituição dos Estados Unidos], isto reflete, simplesmente, a dualidade de nossa história e de nossas tentativas de promover a liberdade em um mundo que muitas vezes parece como disposto a impedí-la. Em nossa Constituição o indivíduo, criança ou adulto, pode buscar sua própria identidade, definir sua propria persona, sem a intervenção do estado que o classifique conforme sua raça ou a cor de sua pele.”

No original:

“The argument [in favour of marking individuals racially] ignores the dangers presented by individual classifications, dangers that are not as pressing when the same ends are achieved by more indirect means. When the government classifies an individual by race, it must first define what it means to be of a race. Who exactly is white and who is nonwhite? To be forced to live under a state-mandated racial label is inconsistent with the dignity of individuals in our society. And it is a label that an individual is powerless to change. Governmental classifications that command people to march in different directions based on racial typologies can cause a new divisiveness. The practice can lead to corrosive discourse, where race serves not as an element of our diverse heritage but instead as a bargaining chip in the political process. On the other hand race-conscious measures that do not rely on differential treatment based on individual classifications present these problems to a lesser degree.

The idea that if race is the problem, race is the instrument with which to solve it cannot be accepted as an analytical leap forward. And if this is a frustrating duality of the Equal Protection Clause it simply reflects the duality of our history and our attempts to promote freedom in a world that sometimes seems set against it.Under our Constitution the individual, child or adult, can find his own identity, can define her own persona, without state intervention that classifies on the basis of his race or the color of her skin.”

Ocupe a reitoria que há dentro de você!


Esta foto, de uma pixação na reitoria da USP, explica um bom pedaço da triste novela de sua ocupação: estudantes com problemas edipianos mal resolvidos em casa, e projetados nas autoridades públicas mais próximas. Nada que não passe com um pouco de análise e alguns anos mais de idade.

Mas é claro que não foi só isto. Em países sérios, os estudantes não ousariam ocupar desta maneira a sede de instituições públicas, e este tipo de comportamento jamais seria tolerado pelas autoridades. A USP tem mais de 40 mil estudantes, 5 mil professores, e nenhuma das assembléias convocadas para votar contra ou a favor da ocupação e das greves teve a presença de mais de algumas centenas de pessoas, se tanto, e, na prática, a maior parte da Universidade continuou funcionando normalmente. É óbvio que estes pequenos grupos de extrema esquerda não representam o pensamento nem as preferências da grande maioria de professores, alunos e funcionários da universidade. Como explicar, então, que eles conseguissem, por tanto tempo, pretender falar em nome de todos? Não existem mecanismos legais e formais para acabar com esta pseudo-representatividade de associações em cujas assembléias quase ninguém vai? Depois de algum tempo, grupos expressivos de professores se manifestaram contra a ocupação, tirando sua legitimidade, mas é possível dizer que demorou demais.

Da enorme pauta de reivindicações dos ocupantes, algumas me chamaram especial atenção. Uma foi a denúncia de que, nos famosos decretos que serviram de pretexto para o movimento, se dizia que a universidade deveria ser incentivada a fazer pesquisas “operacionais”, uma maneira pouco feliz de dizer que elas deveriam buscar resultados que tivessem aplicações no mundo real. Isto foi interpretado como um passo no caminho da “privatização” da Universidade, que, segundo estas pessoas, deveria ser subsidiada inteiramente por recursos públicos, não receber nenhum dinheiro adicional por projetos, contratos, serviços, cursos de extensão e, muito menos, anuidades, e não produzir pesquisas nem formar ninguém para o maldito “mercado”. Ora, a USP já gasta 5% de todos os impostos do Estado para sua manutenção, com outros 5% indo para a UNICAMP e a UNESP, e os governos do Estado têm conseguido resistir, até aqui, à pressão dos sindicatos por aumentar esta percentagem, às custas de outras áreas de ação prioritária e de impacto social mais equitativo, como na educação básica e média. Em todo o mundo, as universidades públicas trabalham ativamente para crescer e melhorar pela captação de recursos externos, e a USP já vinha fazendo isto com muito sucesso em várias de suas faculdades e institutos mais ativos e competentes. Nos últimos tempos, no entanto, esta liberdade de iniciativa já vinha sendo coibida, e agora é possível que se limite ainda mais.

Outra reivindicação que me impressionou foi a de acabar com o jubilamento, o princípio pelo qual o estudante que não avança em seus estudos deve deixar sua vaga para outros. Não consigo entender como um movimento que fala em nome de grandes ideiais revolucionários também consegue propor isto. Mas a reivindicação deste privilégio não vem sozinha, e se faz acompanhar de uma série de outras relativas a preços e horários de restaurantes, transporte de ônibus, facilidades de moradia no campus, etc. Pode ser que a intenção seja, simplesmente, conseguir o apoio dos possíveis beneficiários destas vantagens, que se somam ao privilégio da educação gratuita e cara que a USP já proporciona. Uma última reivindicação, que parece brincadeira, foi de retirar as contas da Universidade de um sistema transparente de informações que o Estado está implantando, sob o argumento de que, como instituição autônoma, a universidade não precisa mostrar suas contas para ninguém!

A ocupação da USP parece ter acabado muito mal. O normal seria que ficasse caracterizado o absurdo do que foi feito, assim como das idéias, ideologias e práticas destes grupos. Mas o que parece ter sido combinado é que se inicia, agora, um grande período de negociações, em que os ocupantes passarão a pautar a política institucional e acadêmica do Estado de São Paulo, sob a ameaça constante de novas invasões.

E o governo do Estado, em tudo isto? O mínimo que se pode dizer é que ele ainda não tem uma política clara para o setor, parece ter se precipitado com as decisões iniciais que foram tomadas sem maiores consultas e aparente desconhecimento da área, e acabou ficando na defensiva. Não me parece que exista nenhuma intenção, clara ou oculta, de reduzir a autonomia das universidades, e muito menos de “privatizá-las”. Mas não se sabe ainda o que o governo pensa das idéias que têm circulado sobre a expansão da educação pública do ensino superior no Estado, nem sobre as metas e objetivos de médio e longo prazo que se espera que as universidades e centros de pesquisa estaduais desempenhem, e que possam justificar os recursos que recebem. Autonomia não pode ser confundida com um cheque em branco, e esta política precisa ser desenvolvida, através do diálogo e troca de pontos de vista com a parte boa das universidades e da sociedade que ainda é, felizmente, a sua maior parte. Ainda é tempo.

Avaliação das escolas, aqui e lá.

Antônio Goes chama atenção para o artigo de capa da revista Time, de 4 de junho, sobre o programa americano No Child Left Behind (Nenhuma Criança Deixada para Trás), disponível na íntegra aqui.

Observa Antônio que “o programa tem algumas semelhanças com nosso IDEB (Índice de Desevolvimento da Educação Básica). Das várias conclusões da reportagem, duas me chamaram bastante atenção: algumas escolas melhoraram muito, mas não atingiram as metas. Nos EUA, o critério é mais rigoroso e elas correm o risco de serem fechadas. O mesmo acontece com alguns alunos que melhoraram muito, mas não atingem as metas. A outra conclusão foi que várias escolas estavam diminuindo a carga de estudos em história, ciências e outras disciplinas para reforçar inglês e matemática, que são (como cá), as únicas duas avaliadas no NCLB.”

Laura Randall no BrazilLink: Expectativas sobre o desempenho dos alunos nas escolas

Em um novo texto, disponível no BrazilLink, Laura Randall dá continuidade à análise dos dados da pesquisa feita em Belo Horizonte com Maria Ligia Barbosa sobre os determinantes das expectativas de pais e professores em relação ao desempenho dos alunos nas escolas públicas – características dos pais, como renda, cor, e educação, e agora, caracteristicas das condições em sala de aula. O novo texto está na e-library do BrazilLink, que contém também muitos outros textos de interesse sobre a educação brasleira.

História, geografia e ciências sociais nas escolas.

Procurado pela reporter da Veja, conversei longamente sobre a questão do ensino das ciências sociais das escolas brasileiras. O que saiu, em uma reportagem sobre as queixas de uma mãe sobre os livros adotados pelo Sistema COC de Ensino, foi eu dizendo que “as crianças não aprendem mais o nome dos rios ou as datas relevantes da história da humanidade. Elas estão tendo contato com uma ciência social superficial, marcada pela crítica marxista vulgar”. Espantada, a professora de geografia Zilda Rodrigues me escreve:

Dito por um sociólogo, numa revista que atinge aos mais variados segmentos sociais e intelectuais, deixa-nos, professores de Geografia, numa situação, no mínimo, constrangedora. Afinal, o que se espera de nós? Uma Geografia puramente descritiva de paisagem ou uma Geografia analítica e crítica da paisagem? O conhecimento geográfico é apolítico?
Certamente, com todo o respeito e admiração que tenho por suas idéias – sou leitora de vários artigos seus, dos livros “Pobreza, exclusão social e modernidade: uma introdução ao mundo contemporâneo” – excelente, aliás e já indiquei a vários colegas; “As causas da pobreza”, que também sempre indico; tal afirmação só pode ter sido descontextualizada, uma vez que, não se pode esperar uma escola cidadã, repetindo amontoados de nomes, fatos e datas que serviriam apenas como “decorebas”. Isso remete-nos a uma época de “obscuridade” das ciências humanas.
Não há dúvidas de que há vasto material didático “marcado pela crítica marxista vulgar”, bem como é urgente maior rigor das editoras na divulgação desse material. Mas daí a defender uma história e geografia que exaltem nomes e datas, há uma distância muito grande. Assim compreendemos(mal?) eu e vários leitores, com quem cça,onversei, a maioria deles professores, claro!…Considerando que nossa opinião não tenha grande peso, como tem a sua, não caberia, portanto, à revista esclarecer melhor tal colocação?
Lembrando Paulo Freire, que ainda continua guiando meus passos “Ai daqueles e daquelas que, em lugar de visitar de vez em quando o amanhã, o futuro, pelo profundo engajamento com o hoje, com o aqui e com o agora, se atrelem a um passado, de exploração e de rotina.”; refletindo sobre o desafio de que “…Para que a pobreza seja vencida, é necessário vontade política e compromisso com os valores da igualdade social e dos direitos humanos; uma política econômica adequada, que gere recursos; um setor público eficiente, competente responsável no uso dos recursos que recebe da sociedade; e políticas específicas na área da educação, da saúde, do trabalho, da proteção à infância, e do combate à discriminação social, e outras. Tudo isto é fácil de dizer, e dificílimo de fazer. A construção de uma sociedade competente, responsável, comprometida os valores de equidade de justiça social, e que não caia na tentação fácil do populismo e do messianismo político, é uma tarefa de longo prazo, e que pode não chegar a bom termo. Mas não há outro caminho a seguir, a não ser este.”
Creio tratar-se de um lamentável equívoco… Afinal, que papel cabe a nós, professores, na construção dessa sociedade?

O que tratei de explicar para a reporter foi que, no passado, o ensino da história nas escolas se limitava quase que à narração de uma cronologia de reis e batalhas, que os alunos tinham que decorar. Este tipo de história, que corresponde ao que os ingleses chamam de “Whig history”, e que poderíamos traduzir para “história de salto alto”, interpretava o passado como uma marcha acendente da civilização até o presente, moldada pelos grandes feitos dos políticos. Eu lembrei que, ao final dos anos 30, na França, surgiu uma nova maneira de ver a história, como processos de longo prazo, que deveriam ser entendidos com o auxílio das diversas ciências sociais. Esta nova história, conhecida como a da “ Escola dos Annales”, e representada por autores como Marc Bloch, Lucien Febre, e, depois, Fernand Braudel, teve muitos desdobramentos, e hoje a historiografia é muito diversficada, cobrindo desde a história política mais tradicional até a história econômica, história social, história das mentalidades e história da cultura, entre outros.

O problema é como transformar esta história mais aberta e cheia de especializações em um curriculo escolar. Um bom curso de história, me parece, deve dar o contexto e a interpretação dos grandes processos sociais, mas deve também dar aos estudantes um marco de referência clara, um “mapa” dos principais eventos que fazem parte de nossa memória histórica, do período clássico até a história mais recente – o que foram a civilização do Egito, o Império Romano, a Idade Média, a revolução industrial, o período das descobertas, os impérios coloniais, a guerra fria… Não há como fazer isto sem nomes de países, de personalidades e datas relevantes.

Na geografia, o problema é parecido. Mais talvez do que a história, o que era antigamente geografia está hoje dividido entre muitas disciplinas diferentes – cartografia, geociências, botânica, economia regional, demografia, sociologia urbana e sociologia rural, entre outras. Os franceses, sobretudo, com sua excelente tradição de ensino, desenvolveram uma geografia para as escolas que procura ser uma síntese didática de tudo isto, com um forte elemento descritivo – é aí aonde os alunos aprendem como são os continentes, os países, as principais formações naturais, os sistemas políticos e econômicos, como o território é ocupado pelo homem – e, claro, quais são os principais rios, e a importância que têm.

A substituição dos antigos cursos de história e geografia pelas ciências ou “estudos sociais”, feita com a boa intenção de acabar com a memorização sem sentido de datas, nomes e acidentes geográficos, redunda muitas vezes na transmissão de interpretações extremamente simplistas e ideologicamente carregadas da história e da atualidade, vazias de conteúdo, que não contribuem em nada para a boa formação dos estudantes.

Eu concordo com a professora Zilda e com Paulo Freire que devemos olhar para o futuro, buscar melhorar nossas sociedades, valorizar e garantir os direitos humanos, etc. Quem poderia pensar diferente? Mas a questão não é esta, e sim decidir o que ensinar nas escolas. E aí minha inspiração não é Paulo Freire, que pregava a junção entre educação e “conscientização”, ou doutrinação, mas Max Weber e seus textos famosos sobre a ciência e a política como vocação. A responsabilidade do professor, que trabalha do lado da ciência, é de formar os estudantes para que eles possam entender o mundo em que vivem e suas diferentes interpretações, e tomar suas próprias decisões. É uma violência, eticamente inaceitável, aproveitar da posição de professor para inculcar nos alunos uma visão e interpretação particular a respeito do passado, do presente e do que deveria ser o futuro. O político é diferente, sua vocação é defender seus pontos de vista, e tratar de destruir os argumentos dos adversários. Todos nós somos, em alguma medida, políticos, porque temos nossos pontos de vista, mas nossa obrigação, enquanto professores, é não forçá-los sobre os alunos. A melhor contribuição que os professores podem dar para a construção de um futuro melhor, me parece, não é conquistando os alunos para suas ideologias, mas dando a eles os fatos, e também as diferentes interpretações e pontos de vista, que lhes permitam exercitar, plenamente, sua cidadania.

O melhor sistema de saúde pública do mundo: médicos na cadeia

O Globo de hoje, 11/06/2007, noticia que a Dra. Yolanda Cyranka, chefe de equipe do Hospital Miguel Couto no Rio de Janeiro, foi presa por desrespeitar ordem do Tribunal de Justiça do Rio para transferir um paciente para um hospital particular, porque a UTI do hospital público não tinha vaga.

No dia 15 de maio passado, o secretário estadual de Saúde e o gerente estadual de Gerência Farmacêutica do Espírito Santo foram presos pela Polícia Federal por descumprirem uma determinação de um juiz federal de Colatina, no interior do Estado. Segundo a Justiça, a Secretaria da Saúde deveria ter fornecido o medicamento Avastin à família de uma criança de cinco anos, que está com tumor cerebral e se encontra em estado grave. Conforme noticiou o jornal A Tarde, uma dose do remédio custa mais de R$ 5 mil. “O secretário alega que a encomenda já havia sido feita, mas o laboratório não pôde cumprir o prazo determinado e a justiça já havia sido informada.”

É muito comum ouvir a afirmação de que nosso Sistema Unificado de Saúde, o SUS, implantado a partir da Constituição de 1988, é o melhor do mundo (veja por exemplo o artigo de Juliano Carvalho Lima, Mestre em Saúde Pública pelo Instituto Oswaldo Cruz, ou o documento da CUT no mesmo sentido).

A qualidade do sistema consistiria no princípio de que o atendimento à saúde é direito de todos e dever do Estado, além de sua gestão comunitária, de forma descentralizada e autônoma. Quando um doente precisa de um tratamento, e as autoridades da área de saúde não o atendem, então a justiça intervém, ordenando que o atendimento seja feito, e mandando prender os que não cumprem a ordem judicial.

Falta só um pequeno detalhe, que é o dinheiro para criar toda a infra-estrutura de atendimento, comprar todos os remédios e fazer todos os exames que sejam necessários. Na área da saúde, mais do que em outras, os custos dos equipamentos, remédios e da atenção profissional são crescentes, e, como o valor da vida é incomensurável, sempre se pode gastar mais para atender a quem necessita; mas os recursos, por mais que cresçam, serão sempre insuficientes. Todos os serviços de saúde do mundo, mesmo nos países mais ricos, têm que enfrentar este problema, através de prioridades, participação dos pacientes nos custos dos serviços (não só para arrecadar algum dinheiro, mas para desestimular a demanda por atendimentos menos prioritários) e o estabelecimento de padrões autorizados de tratamento, entre outras medidas.

O ativismo judiciário no sistema de saúde, com juizes obrigando as autoridades médicas a dar prioridade aos casos que chegam às suas mãos, só agrava as enormes dificuldades que o setor enfrenta, tendo que escolher, todos os dias, como usar melhor os parcos recursos de que dispõe.

Está na hora de dizer que o Sistema Unificado de Saúde não só não é o melhor do mundo, mas, muito pelo contrário, tem vícios de concepção e organização insanáveis, que têm como resultado o péssimo atendimento à população que depende dele, e que precisam ser profundamente revistos.

A Universidade segundo Schwartzman

O Jornal da UNICAMP, em sua edição 356, de 23 de abril a 6 de maio de 2007, publicou uma longa entrevista que dei a Álvaro Kassab, e que está tendo alguma repercussão. Amostra:

JU – O que há de anacrônico e de novo na universidade brasileira?

Schwartzman – Há varias coisas anacrônicas. Uma delas é toda essa ênfase na indissolubilidade do ensino, da pesquisa e da extensão. Trata-se de uma concepção de universidade que deixou de existir há décadas. No mundo inteiro, a pesquisa se concentra em algumas instituições; o ensino superior, em grande parte, faz educação. Essa indissolubilidade não existe mais, está ultrapassada. Ao contrário, as instituições cada vez mais se especializam.

Outra coisa anacrônica é a idéia da universidade pública gratuita. Poucos países do mundo levam adiante essa proposta. Até os países europeus, que tinham uma tradição de manter universidades gratuitas quando elas eram poucas e pequenas, estão começando a introduzir o sistema de cobrança.

JU – Mas, no caso do Brasil, o senhor não acha isso um pouco assustador?

Schwartzman – Não. Para aquele aluno que provar que não tem recursos e, conseqüentemente, não tem condições de ingressar na universidade, embora tenha mérito, o governo implementaria um sistema de apoio. Ele receberia bolsas, crédito educativo etc. O que não pode é ter um sistema gratuito que atende predominantemente a pessoas das classes média e média alta, que vão aumentar sua renda privada de forma muito substancial ao longo da vida, sem que estas pessoas compartam o custo de sua educação.

O texto completo está disponível no site do Jornal da Unicamp e pode ser também baixado, em PDF, do meu site.

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