Merval Pereira: O mal-estar na América Latina (2)

O jornal O Globo publica no domingo, 14 de outubro, a segunda parte de seu artigo a propósito da pesquisa de Coesão Social:

Apesar de ter apontado a democracia como a melhor forma de governo, uma ampla pesquisa sobre coesão social na América Latina, que integra o projeto “Bases para uma Agenda de Coesão Social em Democracia na América Latina”, financiado com recursos da União Européia, mostra que há diferenças entre concepções e valores. A pesquisa foi realizada pelo Instituto Fernando Henrique Cardoso, em conjunto com a Universidade Católica do Chile e a Corporación de Estudios para Latinoamérica, também chileno, com amostra de dez mil pessoas, em seis países da América Latina: Argentina, Guatemala, Brasil, Chile, México, Colômbia e Peru. Os valores democráticos são mais fortes na Argentina e Brasil, e menores na Colômbia, Chile e Guatemala. O que as pessoas entendem por democracia, no entanto, pode variar muito de pessoa a pessoa e de país a país.

Muitas pessoas valorizam a democracia, mas não entendem que ela supõe a garantia dos direitos individuais de todas as pessoas que fazem parte dela, ressalt ao sociólogo Simon Schwartzman, do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), que atuou na pesquisa. No Brasil e no Chile, metade dos entrevistados não crê que os criminosos têm os mesmos direitos que as pessoas honestas. A principal queixa é em relação à polícia, considerada ruim ou péssima por 30 a 40% da população, exceto no Chile.

No Brasil, a maior queixa em relação à polícia ocorre no Rio de Janeiro, enquanto que em São Paulo a queixa maior é em relação às escolas públicas. A população dos países pesquisados vive insegura. Nas casas, durante o dia, 16% das pessoas se sentem inseguras; o centro das cidades é praticamente inacessível, com uma sensação de insegurança próxima de 80%. Os níveis de vitimização, ou seja, roubos e assaltos efetivamente sofridos, chegam a ser surpreendentemente altos em países como a Argentina e Chile, cujas capitais têm uma longa tradição de segurança. A pesquisa mostra que os bairros estão deteriorados, com a propriedade privada ameaçada e riscos de violência, roubos, assaltos e a presença de tráfico de drogas.

No Brasil, a cidade que aparece como mais insegura é Porto Alegre, acima dos níveis do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Um número significativo de respondentes, 15%, acredita que se justifica ter arma de fogo em casa para se defender. Comparado com outros países, o Brasil, e mais especialmente a cidade de São Paulo, é onde as pessoas são menos favoráveis às armas de fogo; Porto Alegre, por outro lado, se aproxima dos demais países da região, aonde a aprovação da posse de arma de fogo varia entre 30 e 40%.

O expresidente Fernando Henrique Cardoso identifica, em entrevista recente à rede de televisão inglesa BBC, que existe um mal-estar difuso na sociedade devido aos péssimos serviços prestados pelo governo, à violência e à tensão política — o que impediria um novo consenso nacional que proporcione maior coesão social.

Alguns trechos de um artigo de Joaquim Villalobos, consultor para conflitos internacionais e ex-comandante guerrilheiro em El Salvador, publicado no jornal “Clarín”, da Argentina, ajudam a entender esse “malestar” na região. Na América Latina, escreve ele, “enfrentamos o que alguns qualificam como guerra civil continental contra o crime organizado, as quadrilhas urbanas, a delinqüência comum e a violência social. A produção e o tráfico de drogas estão ligados à globalização cosmopolita, mas, em nossos países, geram fragmentação social. Esse fenômeno supera em extensão as rebeliões políticas que existiram durante a Guerra Fria, e, em proporções diferentes, afeta todos os países”.

Com o cenário descrito, numa crítica à atuação de certos setores da esquerda na América Latina, Villalobos diz que “incentivar sistematicamente a violência de rua e deslegitimar as instituições das democracias emergentes é multiplicar a impunidade e a insegurança. A generalização da desordem ajuda os grupos criminosos e coloca a demanda por segurança acima das demandas sociais. Isto abre caminho para os autoritarismos”.

Como a popularidade de Lula continua alta, e a pesquisa reafirma o desprestígio das instituições junto à população, o sociólogo Simon Schwartzman crê que temos aí um problema para a democracia “porque é essa combinação, exatamente, que dá margem ao surgimento de governos unipessoais e autoritários, que passam por cima das instituições em nome de seu prestígio junto às massas”. A fraqueza dos partidos políticos e do Congresso, como atualmente no Brasil, facilitaria o surgimento de líderes populistas, como já ocorre na América L atina. Schwartzman lembra que “um Congresso fraco e desprestigiado é uma presa fácil de políticos que possam propor seu fechamento, ou sua substituição por uma assembléia constituinte, por exemplo, que possa criar as bases para um regime centralizado e autoritário”. Como explicar o sentimento de esperanças no futuro e desânimo no presente, em especial no Brasil, onde a redução da desigualdade está acontecendo e o nível de vida das populações mais pobres está melhorando ? Schwartzman tem uma visão nada otimista dessa realidade constatada pela EcosociAL: “As esperanças se dão no nível da vida quotidiana das pessoas, enquanto o desânimo é sobretudo em relação ao contexto mais amplo, os governos e as instituições públicas. Vale a pena notar que essas esperanças, na verdade, são bastante irrealistas, porque, mesmo nos melhores cenários, dificilmente a população brasileira terá tanta mobilidade educacional e econômica quanto as pessoas esperam”.

Merval Pereira: Realidade e Sonho na América Latina

O jornal O Globo de 13 de outubro publica o seguinte artigo de Merval Pereira, sobre a pesquisa ECosociAL:

A América Latina é uma região onde a democracia se encontra fragilizada, embora a maioria das pessoas a considere a melhor forma de governo. Essa preferência não está associada, no entanto, a um apoio claro aos direitos individuais, e vem acompanhada de uma grande desconfiança em relação às instituições políticas e governamentais. Apesar de tudo, os latino-americanos são felizes, uma felicidade que não está relacionada a condições reais de bem estar, mas a experiências passadas e, sobretudo, a expectativas sobre o futuro. Esse pode ser o resumo de uma ampla pesquisa sobre coesão social na América Latina, a EcosociAL, que integra o projeto “Bases para uma Agenda de Coesão Social em Democracia na América Latina”, financiado com recursos da União Européia.

A pesquisa foi realizada pelo Instituto Fernando Henrique Cardoso, em conjunto com a Universidade Católica do Chile e a Corporación de Estudios para Latinoamérica, também daquele país, com amostra de dez mil pessoas, abrangendo sete países da América Latina: Argentina, Guatemala, Brasil, Chile, México, Colômbia e Peru. No Brasil, fizeram parte da amostra as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre.

Para o sociólogo Simon Schwartzman, do Instituto de Estudo do Trabalho e Sociedade (IETS), que atuou no projeto, a lição da pesquisa é clara: “Existe um grande desafio para os países latino-americanos: dar maior substância aos seus regimes democráticos. E isso passa por aumentar a credibilidade de suas instituições, reduzir as incertezas e a insegurança nas grandes cidades, oferecer mais condições e oportunidades de trabalho e fazer da educação um meio efetivo de qualificação das pessoas e mobilidade social”.

A pesquisa detectou que os países mais felizes são a Guatemala, onde paradoxalmente os índices de condição de vida são piores, e o Brasil. O país mais infeliz é o Peru, “talvez pela experiência recente de crises políticas e falta de perspectivas”.

Segundo Schwartzman, é possível especular, de muitas maneiras, sobre as causas dessa felicidade, “mas não há dúvida de que, combinada com as grandes expectativas de mobilidade, ela pode estar dando sustentação à frágil democracia e à débil coesão social latino-americana. É importante que as oportunidades reais de vida não continuem tão distanciadas, por muito tempo, das aspirações”.

Segundo a pesquisa, quase metade dos entrevistados acredita que se justifica fazer uso da força para conquistar seus direitos. A pesquisa mostra que a grande maioria dos latinoamericanos confia pouco ou nada nas instituições políticas de seus países, sendo que a maior desconfiança é em relação aos partidos políticos.

Em geral, existe menos desconfiança em relação ao governo nacional do que em relação às demais instituições, falta de confiança que influencia a preferência por governos fortes, embora a maioria dos que não confiem nas instituições continue preferindo a democracia. A grande maioria, 61,3% dos entrevistados em todos os países, não sente afinidade ou simpatia pelos respectivos governos.

O distanciamento maior é na Guatemala, com 73,5% das pessoas sem nenhuma afinidade ou simpatia, e o menor é na Argentina, com 50,9%, seguida de perto por Brasil e Colômbia.

Chile e Colômbia são os países politicamente mais polarizados, com poucas pessoas indiferentes em relação ao governo, enquanto e o Brasil é o país com maior percentagem de pessoas indiferentes: 21,6%.

Se a afinidade com os governos é baixa, a afinidade com os partidos e coalizões políticas no poder é ainda menor: somente 11% em toda a América Latina. A pesquisa mostra que ela é um pouco maior no Chile e no México, e extremamente baixa na Argentina, Brasil e Peru.

Na análise de Simon Schwartzman, parte da desconfiança em relação às instituições e autoridades “pode estar associada à má qualidade dos serviços públicos que as pessoas recebem”.

Essa descrença e desconfiança se explicam, em grande parte, pela situação de insegurança e medo em que vivem as pessoas na região. Quase 80% se dizem inseguros ao andar noite no centro das cidades.

Mais de 50% se sentem inseguros dentro da própria casa.

Apesar de tudo, as pessoas acreditam que o futuro será melhor para todos e vêem na educação dos filhos o principal caminho para isso.

O sociólogo Simon Schwartzman ressalta que pesquisa mostra principalmente “uma situação em que a população desiste da esfera pública — dos governantes, das instituições, da sociedade como um todo — e se refugia no mundo da família, do bairro e dos amigos. A pesquisa não identifica, nem no Brasil nem em outros países, com as exceções do Chile e da Guatemala, situações de polarização e conflito, mas também não identifica os elementos de coesão social e confiança na sociedade que existem nas sociedades mais desenvolvidas e dinâmicas, como as da Europa e Extremo Oriente”.

Apesar de existirem diferenças importantes em relação esses valores e percepções, o que mais chama a atenção para Schwartzman é que eles “são bastante semelhantes entre países e classes sociais”.

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) já havia detectado esse ambiente na região em um livro sobre coesão social na América Latina, com a visão de vários autores que se apresentaram em seminário realizado no Panamá. A preocupação crescente com a coesão social recomenda que as políticas públicas atuem “sobre os obstáculos que impedem o avanço de uma cidadania efetiva”, com os altos índices de pobreza e a persistente concentração de renda.

“Diferenças raciais, de gênero, étnicas e culturais recriam hierarquias e discriminações que se expressam em desigualdades e exclusão de oportunidades econômicas”, diz o estudo da Cepal. (Continua amanhã)

Ronald Levinsohn: o melhor emprego do mundo

Creio que os leitores de seu blog gostarão de conhecer as vantagens do
melhor emprego do mundo: Procurador da República:

1- 12.000 dólares de salário afora as vantagens;
2- Não tem despesa de escritório e se forem para Brasília a casa é de
graça;
3- Não têm chefe, nem subordinados;
4- Não são empregadores, portanto não sabem o que é pagar encargo social;
5- são inamovíveis e vitalícios;
6- Não ganham por produtividade e trabalhando ou não o salário é o mesmo,
sendo irredutível;
7- Não tem legitimação popular, mas dizem agir em nome do povo e sociedade;
8- Não têm horário, nem cartão de ponto;
9- Vivem viajando de graça, somente de avião, quase sempre 1a. classe;
10- Não pegam fila em aeroporto;
11- Mandam na Polícia Federal;
12- Não têm mandato;
13- Somente eles podem acionar juízes;
14- Nada pagam em congressos, seminários, cursos e etc;
15- Andam de carro oficial;
16- Para demiti-los o processo é mais difícil do que eleição de papa;
17- Não respondem por seus atos que causem danos a terceiros.
18- Podem usar seus cargos em proveito de suas ideologias perseguindo e
difamando os adversários.
19- Todo o mundo têm medo deles, juizes, jornalistas, políticos, advogados
e empresários…

Samuel Pessoa: reforma política e corrupção

Escreve Samuel Pessoa, economista da Fundação Getúlio Vargas:

Gostaria de compartilhar consigo meu posicionamento sobre o tema.

Em um primeiro momento sinto-me como as pessoas do grupo dos panglossianos. Acho, de fato, que nosso sistema político funciona melhor do que imaginamos e tenho muito receito que ao tentar melhorar o sistema acabemos reformando em direções ruins.

Um dos maiores problemas que vejo é que várias pessoas desejam ou defendem uma reforma política com a finalidade de reduzir a corrupção. Parece-me que se há um problema é melhor atacar a fonte principal do problema. A fonte primária da corrupção não é nosso sistema político mas sim nosso sistema jurídico. Há duas características que reduzem a praticamente zero a possibilidade de um corrupto ser punido. Primeiro, há uma quantidade imensa de recursos e, adicionalmente, o escopo do recurso é total (isto é, qualquer ato processual pode ser objeto de recurso). Segundo, a enorme complexidade processual faz com que seja quase impossível existir um processo sem que haja algum erro processual de sorte que as pendências acabam inválidas antes que elas sejam julgadas no mérito. Finalmente, é possível que haja um terceiro fator, que é a inexistência, pelo menos na prática, do princípio da razoabilidade da evidência (ou da prova). Isto é, quando se acumula um conjunto suficientemente grande de evidência numa direção inverte-se o ônus da prova. Esse deveria ser o princípio ao menos no processo civil (nos EUA esse princípio é aplicado mesmo em processo penal). No entanto, a impressão que tenho é que essa inversão de ônus da prova que ocorre em outros sistemas jurídicos em função do princípio da razoabilidade da prova (beyond any reasonable doubt) é encarada pelos juristas brasileiros como um atentado ao princípio de presunção da inocência. Se não mexermos nesses aspectos do funcionamento do nosso código de processos acredito ser muito difícil reduzir a corrupção com a reforma política.

Dessa forma, se acredito que redução da corrupção depende essencialmente da reforma do judiciário, para quê reforma política? Evidentemente para reduzir a fragmentação do legislativo de sorte a produzir maiorias mais estáveis. Em segundo lugar reduzir o custo da política. Gostaria de atingir ambos os objetivos mexendo o mínimo no sistema atual de sorte a manter suas virtudes. Quando se trata de mudança institucional sou muito conservador. Penso que em geral quando avaliamos custos e benefícios de uma nova instituição somos tentados a superestimar os benefícios da alternativa (e subestimar os custos) e a subestimar os benefícios do status quo (e a superestimar os custos). Dessa forma penso que o processo de evolução institucional deve ser incremental.

Tenho muito medo com voto distrital unimodal – uma maioria frágil poderia alterar radicalmente as instituições. Não me parece apropriado para uma sociedade tão heterogenia quanto a brasileira. Distrital misto parece-me um franktein que não tem funcionado muito bem onde foi adotado. Atemoriza-me a lista fechada. Penso que uma mudança simples seria reduzir o distrito eleitoral. Poder-se-ia considerar que o máximo permitido para um distrito eleitoral seria de oito deputados. Os estados menores que tem somente oito deputados continuariam da forma como estão. Os estados maiores seriam divididos em distritos – na proporção da população – de no máximo oito deputados. Por exemplo, São Paulo teria uns dez distritos de sete deputados cada. Dentro de cada distrito manteríamos o modelo atual: voto proporcional com lista aberta. Cada indivíduo somente poderia candidatar-se em um distrito eleitoral. Essa medida reduziria o custo da campanha e funcionaria como uma cláusula de barreira reduzindo a fragmentação partidária. Segundo Lijphart no seu “Modelos de democracia” (página 179) distritos de 8 deputados corresponde a uma cláusula de barreira de aproximadamente 10% (relativamente elevada).

O que me parece interessante nessa proposta é que ela muda em muito pouco nossa prática eleitoral e não tenta repactuar a representação legislativa entre os estados o que me parece ainda muito difícil além de não ser a fonte dos maiores problemas de nossa democracia (apesar de ser uma fonte de injustiça representativa, evidentemente). Com relação a fidelidade partidária acho que deveria ser uma opção do partido. Não gosto de uma proibição ao troca-troca de partidos. Prefiro que se reduza o estímulo a que as pessoas alterem de partido. Finalmente, acredito que poderíamos evoluir numa melhor normatização do financiamento, tornando crime o caixa dois – recentemente rebatizado de “recursos não contabilizados” – e impedindo que empresas prestadoras de serviço ao estado contribuam.

Jhonatan Pereira de Souza: A Reforma Política e o Parto da Montanha

Jhonatan Pereira de Souza, da Escola de Formação de Governantes do Maranhão, enviou um texto bastante didático sobre as diferentes propostas de reforma política que estão sendo discutidas no momento – voto distrital, voto em listas, financiamento público de campanhas, fidelidade partidária – que estou disponibilizando aqui.

O que ele diz, essencialmente, é que as reformas são importantes e necessárias, mas que dificilmente este congresso que está aí vai levá-las à frente. O que levanta uma questão mais ampla, já discutida aqui tempos atrás, no auge da crise do mensalão: faz sentido insistir no tema da reforma política e dos limites à corrupção, na situação em que vivemos?

Se ouvimos em volta, encontramos três tipos de resposta a esta questão. Uma é a dos panglossianos, a turma de Candide: o sistema político brasileiro funciona muito bem, é aberto e democrático, nossos políticos são a cara do nosso povo, sempre existiu corrupção, claro, mas insistir nisto não passa de udenismo requentado. A outra é dos realistas conformados: nosso sistema democrático é uma porcaria, mas, com a pobreza e a má qualidade da educação da maioria dos brasileiros, não é possível ter nada muito diferente. A solução é tapar o nariz e acreditar que daqui a cinquenta ou cem anos tudo estará melhor, o Brasil é o país do futuro. A terceira, da qual participo, é que é necessário melhorar as instituições políticas que temos agora, e, embora difícil, isto não é impossível, na medida em que a opinião pública se mobilize para isto.

Além da dificuldade política de fazer com que este congresso faça qualquer coisa que não seja em causa própria, existe o fato de que muitas soluções que se apresentam correm o risco de ser logo corrompidas e deturpadas. A eleição em lista afasta ainda mais os eleitores dos eleitos, e fortalece as máquinas partidárias; o financiamento público das campanhas seria um enorme desperdício de dinheiro, e nenhuma garantia contra a corrupção; o voto distrital esbarra na barreira de como desenhar os distritos, etc.

Mas é possível começar pelas coisas menos controversas, e ir avançando: exigir a fidelidade partidária, acabando com a troca-troca de partidos; reestabelecer as cláusulas de barreira; introduzir o voto distrital aos poucos, começando pelas câmaras de vereadores; e ir mudando as regras de proporcionalidade, para que o voto de um maranhense ou acreano não continue valendo tanto mais do que o voto de um paulista, como ocorre hoje.

Enquanto isto… (a Democracia dos Tolos)

Ninguém deu muita importância à notícia de que vai haver um plebiscito no Maranhão para dividir o Estado em dois, e que esta decisão republicana e democrática, de ouvir o povo, é de inspiração do Senador Sarney, eleito também democraticamente pelo Amapá, aonde nunca viveu, e cujo grupo está ameaçado de perder definitivamente o controle sobre o velho Maranhão. Com o novo Estado a ser criado, teremos mais um governador, vice-governador, três senadores, deputados federais, uma nova assembléia legislativa estadual e não sei quantas secretarias, tribunal de contas, e muitos empregos públicos, todos a serem distribuidos pelo clã Sarney a seus amigos e associados.

Esta generosidade democrática com o dinheiro público é uma reedição tardia da orgia de criação de novos municípios ocorrida nos anos 90 em todo o país. O mecanismo era parecido. Organizava-se um plebiscito, o povo votava pela criação do novo município, que criava sua câmara de vereadores, etc., e passava a ser sustentado com um novo rateamento do dinheiro do Fundo de Participação dos Municípios. O município que era desmembrado, digamos, em duas partes, não perdia 50% dos seus recursos, mas somente uma pequena parcela, da mesma forma que os demais no Estado, em função do novo rateamento do dinheiro, mas, em compensação, passava a ter muito menos gente a quem atender. Então, o negócio era seguir desmembrando os municípios, e brigar para que o Fundo de Participação continuase a sustentá-los.

Em uma verdadeira democracia, a autonomia de estados e municípios deve estar associada à capacidade que eles tenham de gerar recursos através de impostos, e a uma avaliação de se esta é, realmente, a maneira pela qual preferem gastar seus impostos. Em nossa democracia de tolos, todos votam e participam alegremente, e depois mandam a conta para a viúva.

Os Círculos Bolivarianos Leonel Brizola

Pela revista Piaui, versão cabocla do “New Yorker” produzida por João Moreira Salles, aprendi que temos, no Rio de Janeiro, os Círculos Bolivarianos Leonel Brizola, que participaram ativamente da homenagem que a Assembléia Legislativa do estado prestou a Hugo Chávez, concedendo-lhe a Medalha Tiradentes. Nunca tinha percebido a afinidade óbvia entre Brizola e Chávez, mas faz todo o sentido.

Também fiquei sabendo quem é Lícia Fábio, dona de um dos principais camarotes do carnaval da Bahia; algo da disputa entre Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha na elaboração de grandes projetos arquitetônicos para São Paulo, com interferências diversas de Jânio Quadros, Paulo Maluf, Marta Suplicy e o Partido Comunista, entre outros; e também, no texto de Guilherme Wisnik, sobre o estilo bunker da arquitetura da Daslu, tão distinto dos monumentos à modernidade à la Walter Benjamin que são os grandes magazines europeus e shopping centers americanos. Ah, e tem também a história do coreano que estava organizando o festival de rock da Coréia do Norte, e acreditava piamente, por um tempo, nas virtudes democráticas de Kim Jong-Il. E muito mais.

Tudo isto para dizer que Piaui vale muito bem os $7,90 que custa, apesar de alguns textos que não justificam o nome dos autores, como a brincadeira de Ivan Lessa sobre a mistoriosa briga de Garcia Márquez com Vargas Llosa dentro de um cinema, ou o texto do próprio Vargas Llosa sobre a privada e a pobreza, ou o de Woody Allen sobre como comia Zaratrusta.

Mas pode ser que eu não estivesse com o humor apropriado, e a qualidade dos textos não tem como ser sempre a mesma. O principal, me parece, é a idéia central da publicação, de fazer uma crônica informada do quotidiano, acreditando na inteligência do leitor. Fica a recomendação.

A UDN tinha razao?

Nas últimas eleições, a tentativa de levantar a bandeira da ética não ganhou muitos votos. Para muitos, e sobretudo os mais velhos, o tema da ética lembra a antiga UDN, que criticava a corrupção pela frente e conspirava com os militares por trás. Ainda hoje, quem insiste no tema da corrupção é acusado de “udenista”. Mas afinal, será que a UDN estava tão errada assim?

Nesta semana, participei de uma mesa redonda sobre este tema na UFMG, e resolvi me perguntar se não havia, afinal, algum mérito na antiga UDN e nos que, ainda hoje, acham que a ética e a moralidade da política devem ser levadas a sério. Minha resposta foi que sim, a ética e a moralidade não só são importantes, mas essenciais para a construção de uma sociedade moderna, que depende da honestidade das pessoas e da legitimidade das instituições.

Para quem se interessar, o texto preliminar da minha apresentação, “A questão da ética na política” está aqui. Aproveitei também para reler e colocar na Internet um texto clássico do antigo Cardernos de Nosso Tempo, de 1954, sobre “o Moralismo e a alienação das classes médias”, que é uma das primeiras tentativas, em nosso meio, de desqualificar a preocupação com a ética em nome da sociologia “realista” dos conflitos de classe.

São Paulo e o Estado Nacional (2)

Vejam o artigo de hoje de Octávio Frias Filho, diretor de redação da Folha de São Paulo, com o título de “Yankees e Rebeldes”, e comparem com minha nota anterior:

MUITO SE TEM escrito sobre a divisão do Brasil em duas metades que emergiu no domingo. Os jornais trazem mapas onde Rio, Minas, o Nordeste e o Norte aparecem em vermelho (Lula), enquanto São Paulo, o Sul e o Centro-oeste estão em azul (Alckmin).

Essa divisão entre “yankees” e confederados em nossa “Guerra Civil” eleitoral já foi enfocada sob seus dois prismas mais evidentes, o antagonismo de classe e a desigualdade geográfica. Grosso modo, o primeiro opõe as classes populares às classes médias. O segundo ângulo opõe o “Norte” ao “Sul”.

Descontado o esquematismo desse tipo de recortes, há um terceiro prisma a acrescentar. É aquele que separa as regiões onde a presença do Estado na economia e na vida das pessoas ainda é muito grande (vermelho), daquelas áreas nas quais o peso do poder público é menor (azul).

O capitalismo se enraizou há muito tempo em São Paulo e no Sul, onde o dinamismo econômico prescinde, ao menos em boa parte, do Estado. Não por acaso é a região mais sensível ao único tema novo, em termos eleitorais, que surgiu nesta eleição: o da redução da carga tributária hoje próxima de 40% do PIB.

Embora se atribua a inclinação anti-Lula no Centro-oeste à crise da agricultura, essa região se mostra como típica geografia de fronteira, um eldorado de oportunidades, empreendimento pessoal e terras abundantes. Lugar onde vigora o “cada um por si, Deus por todos”.
Em grande parte do Nordeste, e mesmo em Minas e no Rio, o cenário é outro. São regiões onde a onipresença do Estado remonta ao período colonial; são lugares onde o poder do Estado para contratar, subsidiar, autorizar verbas segue enorme, até por compensar a relativa debilidade da economia privada.

Talvez por isso, também, seja notória certa ausência de debate programático. No fundo, o programa de Alckmin se resume a menos Estado ou, no eufemismo publicitário, a Estado menor, menos caro e mais eficiente. E a plataforma de Lula se resume a garantir alguma compensação social, via Estado, em troca da liberdade para o mercado.

Alckmin, por sua vez, tem pouco vínculo orgânico com o que tem sido o PSDB até agora. O núcleo tradicional do partido gravita há 30 anos em torno de intelectuais paulistas, muitos deles uspianos, muitos exilados na ditadura, quase todos antigos marxistas que desacreditaram do marxismo durante o exílio.

Em termos geracionais e ideológicos, Alckmin significa outra coisa. Subiu na política pelas mãos de Mário Covas, a quem os “intelectuais” respeitavam, mas à distância. Em vez de ex-marxista, Alckmin é católico conservador; em vez de cidadão cosmopolita, ostenta com orgulho a marca do interiorano; em vez de sociólogo ou economista, é um gerente pós-ideológico.

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