Heloisa Pait: A Greve – Um Ritual do Estamento Universitário

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Comparto o texto abaixo de Helosia Pait, Professora Assistente do Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da UNESP – Marília:

A Greve – Um Ritual do Estamento Universitário

A greve nas universidades públicas é um ritual onde a comunidade acadêmica abandona, pela coerção se necessário, a própria razão de ser da universidade. É nela que se reforça o sentimento grupal do estamento universitário, à exclusão de outras obrigações, desejos e relações que os membros da comunidade acadêmica possam ter: pesquisar, aprender, dialogar com as novas gerações, servir à sociedade e, de forma geral, construir um mundo melhor através das idéias.

A participação em greves funciona como um tributo pago ao grupo em troca do atestado de pertencimento, uma presença, de coração ou não, em rituais expiatórios coletivos. As greves são periódicas, trazendo para dentro do estamento novos professores e estudantes, e alienando os que por uma razão ou outra não conseguem se agregar ao grupo. O estamento brasileiro, na definição de Faoro, é o grupo coeso mas maleável, que incrustado no Estado o usa para proveito próprio, estabelecendo uma relação de tutela com relação à sociedade como um todo.

O analista não deve perder muito tempo buscando compreender a ideologia do movimento grevista, pois sua única característica importante é que seja irrelevante como ferramenta de análise social e que, portanto, nada produtivo saia dela, principalmente o diálogo com o todo social. Caso, de dentro de sua ideologia, se resgatem idéias úteis, o estamento irá buscar outras formas de não-pensar. Tenha-se em mente que a ideologia real do estamento é sua própria manutenção enquanto grupo.

Não é por conservadorismo ou mais dedicação, por parte de professores individuais, ao prazer de ensinar, que as escolas tradicionais da USP rejeitam a greve. São Francisco, Pinheiros e Escola Politécnica têm seus rituais de passagem próprios, sua identidade construída de forma independente de qualquer órgão sindical, que é quem dá voz ao estamento, sem tê-lo criado, obviamente. As escolas profissionais tem um lugar simbólico na sociedade que prescinde de polêmicas periódicas ou da greve.

O movimento grevista apela para o discurso ético na intimidação de professores e alunos que querem aprender, ensinar, ler, escrever, examinar, pesquisar e de modo geral realizar as tarefas incluídas na atividade que por livre e espontânea vontade escolheram para suas vidas. Ensinar é ser anti-ético ou mesmo louco: a única norma permitida é a que justifica processos de inclusão e exclusão do próprio estamento. De fato, há uma certa insensatez em se contrapor aos grupos que tomam decisões em conselhos acadêmicos, pois a chance de sair prejudicado é real, mesmo que esse discurso, fora do mundo universitário, não faça sentido algum.

As bandeiras do estamento são menos relevantes que a agitação em si, mas ele se rebela contra práticas que possam colocá-lo em perigo, reduzindo seu controle monopolista sobre a instituição, tais como o uso de novas ferramentas de aprendizado, a transparência administrativa, a internacionalização dos campi, a flexibilização curricular e, preventivamente, o bom senso aplicado em instâncias diversas. Ele busca reforçar controles de entrada em processos vários de admissão, muitas vezes criando escassez artificial e reduzindo o benefício público do investimento na instituição, mas aumentando o valor de a ele se integrar.

Na medida em que pode ser burocratizado e domesticado, o produtivismo acadêmico – as exigências quantitativas de publicação – não apresenta grandes desafios ao estamento. O importante é que não se crie uma elite intelectual legítima, que obtenha a admiração de jovens pesquisadores e possa portanto competir com o estamento como liderança de fato ética.

Os alunos buscam sofregamente reproduzir a prática estamental que se origina do corpo docente, e isso é o mais triste de tudo, pois esse estamento se baseia em certa medida no monopólio do saber ou, melhor dizendo, no monopólio das condições para a busca do saber, que até muito recentemente a universidade detinha. Hoje, com a brutal transformação na distribuição da informação e nas possibilidades de diálogo abertas pelos novos meios de comunicação, esse monopólio inexiste.

A não ser que busquem por conta própria alternativas realizadoras nas artes, nos negócios, e nas novas esferas de ação que a sociedade em transformação lhes apresenta, ou seja, que toquem suas vidas adiante alheios ao ensino formal, resta aos alunos lutar portanto para construir um estamento que terá bases materiais muito frágeis. A luta do estamento universitário em geral é um luta inglória, pois seja pela crescente demanda por transparência, seja pelas mudanças na produção de conhecimento, cada vez mais seu lugar estará ameaçado. E talvez daí a violência recente nos campi de nossas universidades estaduais. As ocupações estudantis são a bucha de canhão do estamento com aposentadoria integral.

Não se trata de uma luta de classes, nem ideológica, e nem gerencial, ou seja, das reitorias contra as unidades. Pois o estamento, assim como o desejo de aprender, está em todos os lugares e, para usar um termo querido a ele, categorias. A sociedade deve exigir o fim da greve, mas isso não levará a nada se não exigir o fim do próprio estamento, o que é muito mais difícil: o fim da apropriação da universidade pública por um grupo particular.

A sociedade deve, para usar uma palavra na moda, ocupar a universidade pública. Deve usar as bibliotecas, fazer cursos de extensão, usar os espaços que são públicos, pagos por ela apenas. Ela deve se inteirar do que nós fazemos academicamente e também gerencialmente, deve estar presente nos concursos para professor, que são formalmente públicos. Ela deve, obviamente, exigir transparência completa de gastos. Adote um professor, venha visitá-lo e perguntar de seus projetos em andamento.

Essa atitude generosa da sociedade vai dar à universidade um novo sentido, um senso de pertencimento que reduzirá o apelo grupal do estamento. Venham mesmo: imprensa, empresas, aposentados, professores de particulares, funcionários das prefeituras, usem-nos. Pessoas comuns em busca de conhecimento. Escrevam-nos, perguntem-nos. Venham ver nossos cursos, na graduação e na pós, a casa é sua!

É a abertura à sociedade que vai restringir a ação do estamento universitário, transformar sindicatos em órgãos de verdadeira representação laboral, que hoje não são, e, fundamentalmente, fazer com que a comunidade universitária expresse livremente os valores humanos mais profundos, como a amizade e a solidariedade, forjadas no dia-a-dia da busca coletiva do saber, do fazer e do bem viver, que é nossa razão de ser

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

6 thoughts on “Heloisa Pait: A Greve – Um Ritual do Estamento Universitário”

  1. Lindo texto, quase poético. Nunca tinha pensado nas greves (ou melhor, na adesão às mesmas, pois sua origem são agendas perversas de grupos em busca de poder) como produto dessa fragilidade identitária e muito menos como resultado do isolamento das comunidades universitárias em relação ao entorno. Sensacional.

    1. Muito obrigada, Marília, fico realmente contente com o seu comentário. Eu vejo muito os alunos querendo ser – legitimamente – parte de algo, e também vejo a mim, meus colegas – também legitimamente – querendo ser parte de coisas mais amplas, e para alguns o estamento responde a esse anseio.

  2. Muito obrigada pelo seu comentário, Marco Aurélio, respeito muito tua opinião e fico mesmo contente! Particularmente, eu gostaria de ter um sindicato forte, que pensasse em questões trabalhistas, que sempre existem.
    Mas acredito que na forma atual, eles não representam meus interesses laborais e apenas dão voz ao grupo que cria, alimenta a burocracia universitária e faz tudo para protegê-la de qualquer mudança…

  3. Interpretação sociológica inspirada, pelo modo como conecta a dinâmica das greves nas universidades públicas com estruturas de poder historicamente profundas, e que vigem ainda hoje na sociedade brasileira.

    1. Muito obrigada, Fraya! Acho que foram anos ouvindo essa palavra, “ética”, que para mim tem um signficado muito simples, sendo usada em situações na qual ela não cabia. Aí quando li Faoro me toquei que ética era essa e tudo fez sentido.

  4. Excelente texto. Toca num ponto que não tem sido devidamente considerado, o do encurralamento do poder acadêmico pelo poder sindical. Ajuda a que se entenda melhor a situação de várias de nossas universidades públicas.

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