ENEM: Caso de Polícia

O fiasco do adiamento das provas do novo ENEM, seguido em detalhe pela imprensa como caso de polícia, não tem sido acompanhado de nenhuma discussão mais aprofundada sobre o impacto mais amplo desta nova prova sobre a educação do país, e mais especialmente sobre as questões do acesso à educação e sobre o ensino médio.

Em relação à equidade, dois anos atrás escrevi uma nota comparando o ENEM brasileiro com o “General Certificate of Secondary Education” inglês,  o CGSE, que tinha a intenção semelhante de criar um padrão único de qualidade, e acabou sendo abandonado porque significaria a desqualificação de uma série de diplomas técnicos e profissionais que existem no país.. Na ocasião, perguntava se o ENEM não estaria na contramão das reformas educacionais que o pais necessita. Continuo achando que está.

Discussão semelhante tem ocorrido no Chile, que tinha uma prova nacional denominada PAA (Prueba de Aptitud Académica), que media competências genéricas, e foi substituida pela Prova de Seleção Universitária, PSU, que mede também conhecimentos específicos do curriculo escolar. No Chile, o ingresso ao ensino superior se faz estritamente em função desta prova, com os alunos melhor qualificados escolhendo os cursos e universidades de sua preferência.

A justificativa para estas provas unificadas é que elas funcionam como um padrão de referência para o ensino médio, e criam um sistema mais universal de acesso ao ensino superior. A crítica é que elas obrigam todos os cursos de ensino médio a preparar os alunos para esta prova, sobrecarregando os currículos escolares e impedindo portanto que os cursos se diversifiquem e que os estudantes possam optar por modalidades distintas de formação. No caso do Chile, estudos estatísticos mostram que, com a passagem do antigo PAA para o novo PSU, instituido em 2004, a discriminação social no acesso ao ensino superior aumentou, na medida em que a nova prova se tornou mais difícil para os estudantes provenientes de escolas públicas de pior qualidade.

Está havendo hoje, no Brasil, um movimento de reforma do ensino médio, que, se bem conduzida, daria aos estudantes mais opções, não somente por áreas de conhecimento, mas também por tipo de formação – mais acadêmica, mais prática, mais profissional ou mais geral, conforme as motivações e condições dos estudantes. Isto deveria também desembocar em um ensino superior com um grande leque de opções e diferentes portas de entrada, possibilidade que o novo ENEM, na prática, impede.

Se o novo ENEM abrisse espaço para que os alunos pudessem optar por diferentes provas, com os cursos superiores também utilizando estes diferentes resultados para selecionar os alunos mais adequados a seus programas, isto permitiria que o ensino médio se diversificasse, e que o ensino superior também se ampliasse (e não somente crescesse) para atender melhor à grande variedade de pessoas que querem continuar estudando depois do ensino médio.

O caminho que estamos seguindo, no entanto, é o de manter o ENEM como exame unificado, colocar todos na mesma camisa de força, e depois tentar corrigir os problemas de acesso e estratificação que ele cria estabelecendo cotas para os que não conseguem bons resultados. Não parece ser o caminho mais inteligente.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

3 thoughts on “ENEM: Caso de Polícia”

  1. Caro Simon,
    Muito oportuno o seu comentário sobre o caso do ENEM. Como você mostra, o ocorrido é mais do que um caso de polícia. A quebra do sigilo foi um ato criminoso que precisa ser apurado e punido. Todavia, há outros aspectos de maior dimensão e gravidade nessa farsa do ENEM, enquanto processo seletivo para o acesso à universidade. Na verdade, o caso contribui para revelar um pouco desses desvios. Todos eles estão ligados às inúmeras e reiteradas evidências sobre as distorções, as desigualdades e as profundas injustiças presentes na educação brasileira. O Brasil ostenta um dos mais baixos índices de escolarização superior do mundo. Nossos jovens, como os quatro milhões de candidatos agora lesados, se vêm subordinados a uma parafernália burocrática de regras e procedimentos destinados a eliminar os estudantes menos preparados e menos capazes, quase sempre os trabalhadores e os filhos de trabalhadores mais pobres e sediados nas regiões mais carentes.
    É o que faz o ENEM como um processo padronizado que não considera as disparidades regionais e as diferenças entre vocações, conteúdos requisitos das diferentes carreiras.
    Assim, o caso do ENEM é apenas a ponta de um quadro caótico mais amplo e inteiramente dominado pelo centralismo concentrador. Isso enfraquece a perspectiva do federalismo cooperativo que poderia assegurar uma expansão da educação universitária DE QAULIDADE e com a almejada democratização do acesso. Entretanto, pelo que se vê, tudo concorre para o desrespeito ao regionalismo, para a castração do exercício da autonomia universitária (ressalvada a posição da UsP) e para a manutenção do sistema universitário aos ditames do credencialismo e do corporativismo profissional, principais fatores de segregação que corroem o processo educativo.
    Portanto, são muitos os equívocos e os farsantes dessa estrutura educacional iníqua e conservadora. O paradoxo irônico é que ela é reforçada por políticas apresentadas como instrumentos para se corrigir as desigualdades e a exclusão social como é o caso das cotas (raça e categoria administrativa das escolas) e outros artifícios que sacrificam o mérito, os direitos individuais e a qualidade do ensino.
    Abs
    Geraldo

  2. Prezado Simon,
    Pode não ser o caminho mais inteligente. Mas é certamente mais fácil. Criar condições para valorizar a diversidade humana é uma tarefa hercúlea, que demanda muito preparo e esforço. Professores sabem muito bem a dificuldade em se ensinar para uma classe heterogênea. É necessário muita atenção, boa formação, jogo de cintura, criatividade e ações positivas. Um exame nacional, pasteurizado, que faz a mesma avaliação em todo o Brasil, independentemente das diferenças regionais e culturais, apenas acentua as diferenças, sem criar condições para valorizá-las.
    Embora a iniciativa do ENEM seja, em princípio, boa, devemos ainda percorrer um longo caminho para aperfeiçoá-la.

    Teu texto é muito oportuno.
    cordialmente,
    Roberto Berlinck

  3. Prezado Simon:

    Seus argumentos sobre o ENEM são bastante sólidos. Por outro lado, essa prova parece um avanço sobre o sistema anterior, que obrigava os vestibulandos a perambular por diferentes cidades, e, enfrentar provas elaboradas com diferentes critérios, em busca de uma vaga na universidade pública. Obviamente, somente pessoas de classe média alta tinham recursos para sair pelo Brasil afora fazendo vestibulares…

    Não acha melhor o sistema SAT americano, no qual um aluno pode fazer tanto uma prova de aptidão geral, quanto exames de temas específicos, e cada universidade decide que testes são relevantes para cada curso? Ademais, por serem estandardizados, os SATs podem ser feitos em qualquer época do ano e tem um prazo de validade relativamente longo.

    Abração,

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