
A Igreja e
o Estado Novo: O Estatuto da Família Simon Schwartzman
publicado em Cadernos de Pesquisa. São Paulo,
Fundação Carlos Chagas, vol. 37, Maio, 1980
Em fevereiro de 1940, Getúlio vargas assina o decreto-lei n 2024, tendo
como tema a "coordenação das atividades relativas à proteção à maternidade,
à infância e a adolescência"; seu principal objetivo é a criação de
mais um órgão da burocracia federal, o Departamento Nacional da criança,
subordinado ao Ministério da Educação e Saúde.
Em sua aparência modesta, o decreto é o resultado, no entanto, de um projeto
muito mais ambicioso que, a pretexto de dar proteção à família brasileira,
teria profundas conseqüências em relação à política de previdência social,
ao papel da mulher na sociedade, à educação e até, eventualmente, em relação
à política populacional do país. É este projeto, e a discussão por ele gerada,
que nos interessa examinar. Ele nos permite uma visão bastante rica das
mentalidades que circulavam nos altos escalões do governo brasileiro de
então, assim como algo do processo decisório pelo qual projetos deste tipo
eram tratados.
O ponto de partida é o texto de um decreto-lei de um "Estatuto de Família"
que seria assinado por vargas em sete de setembro de 1939, oriundo do Ministério
Capanema, mas que não chega a ser promulgado. Antes, ele sofreria as críticas
de Francisco Campos e Oswaldo Aranha, haveria uma réplica de Capanema, outros
pareceres seriam elaborados, e finalmente seria constituída uma "Comissão
Nacional de Proteção da Família", da qual uma série de projetos específicos
se originariam.
O Estatuto proposto por Capanema é um documento doutrinário que busca combinar
duas idéias para ele indissociáveis: a necessidade de aumentar a população
do país e a de consolidar e proteger a família em sua estrutura tradicional.
A prosperidade, o prestigio e o poder de um país dependem de sua população
e de suas forças morais: a família é a fonte geradora de ambos. No dizer
do preâmbulo do projeto, "a família é a maior base da política demográfica
e ao mesmo tempo a fonte das mais elevadas inspirações de estímulos morais".
A moral e a conveniência estão, por conseguinte, totalmente conjugadas.
A família é definida como uma "comunidade constituída pelo casamento
indissolúvel com o fim essencial de gerar, criar e educar a descendência",
e por isto considerada como "o primeiro fundamento da Nação".
Seria um equívoco pensar, no entanto, que ela de fato "fundasse"
o Estado, ou tivesse, de alguma forma, precedência sobre ele. Ao contrário,
à família é vista como uma planta tenra, bastante vulnerável e sob a ameaça
constante de corrupção e degradação. É por isto que ela é colocada sob a
tutela e "a proteção especial do Estado, que velará pela sua formação,
pelo seu desenvolvimento, pela sua segurança e pela sua honra". Daí
uma série de corolários inevitáveis que são explicitados no projeto. A primeira
medida é facilitar ao máximo o casamento. Existe uma providência jurídica
para isto - o reconhecimento civil do casamento religioso e uma série de
providências de tipo econômico: o casamento é incentivado por empréstimos
matrimoniais, impostos são propostos para solteiros e casados ou viúvos
sem filho, e um abono é sugerido para recompensar financeiramente as famílias
de prole numerosa. Outras medidas constantes do Estatuto incluem o amparo
à maternidade através da subvenção a instituições de assistência na área
privada, o amparo à infância e à adolescência, a proteção legal aos filhos
ilegítimos, e a concessão de prêmios de núpcias, de natalidade, de boa criação
e outros. Não falta, no projeto, a criação do Dia Nacional da Família.
Além destas medidas voltadas especificamente para o núcleo familiar, existem
várias outras com repercussões muito mais profundas. Uma delas se refere
ao mercado de trabalho. O Estatuto previa que os pais de família tivessem
preferência "em investidura e acesso a todos os cargos e funções públicas",
na competição com os solteiros ou casados sem filhos, exceto em cargos de
responsabilidade. Mais ainda, o artigo 14 previa que "o Estado adotar
medidas que possibilitem a progressiva restrição da admissão de mulheres
nos empregos públicos e privados. Não poderão as mulheres ser admitidas
senão aos empregos próprios da natureza feminina, e dentro dos estritos
limites da conveniência familiar".
Esta restrição ao trabalho feminino estava ligada à tese da mais absoluta
divisão de papéis e de responsabilidades dentro do casamento. Isto se refletia,
também, na área da educação, onde estava previsto que "O Estado educará
ou fará educar a infância e a juventude para a família. Devem ser os homens
educados de modo a que se tornem plenamente aptos para a responsabilidade
de chefes de família. Às mulheres será dada uma educação que as torne afeiçoadas
ao casamento, desejosas da maternidade, competentes para a criação dos filhos
e capazes da administração da casa" (art.. 13). Esta divisão de papéis
precisava, evidentemente, ser garantida e protegida. Para isto, seria necessário
fortalecer a comunidade familiar, "quer pela elevação da autoridade
do chefe de família, quer pela maior solidificação dos laços conjugais,
quer pela mais extensa e imperiosa obrigação de assistência espiritual e
material dentro do núcleo familiar".
Não bastariam, entretanto, estas medidas, porque a ameaça à família parecia
vir de todas as partes. Por isto, impõe-se a necessidade da censura generalizada:
o artigo 15 previa que "O estado impedirá que, pela cátedra, pelo livro,
pela imprensa periódica, pelo cinema, pelo teatro e pelo rádio, ou ainda
por qual quer meio de divulgação, se faça, direta ou indiretamente, toda
e qualquer propaganda contra o instituto da família ou destinada a estabelecer
restrições à sua capacidade de proliferação". Mas não basta proibir,
é necessário incentivar: assim, o Estatuto estabelecia para o Estado a responsabilidade
de favorecer, "de modo especial, o desenvolvimento das letras e das
artes dignamente inspiradas no problema e na existência familiar, e utilizará
os diferentes processos de propaganda para criar, em todos os meios, o clima
moral propício à formação, à duração, à fecundidade e ao prestígio das famílias".
O casamento incentivado, a prole numerosa premiada, a mulher presa ao lar
e condicionada ao casamento, a chefia paterna reforçada, a censura moral
estabelecida em todos os níveis , as letras e as artes condicionadas pela
propaganda governamental: tal é o projeto que sai do Ministério da Educação
e Saúde.
O arquivo Capanema contém inúmeros estudos e subsídios para a elaboração
deste projeto, que consistem, basicamente, em analises demográficas, por
um lado, e materiais a respeito de outros países, por outro. Dentre estes,
ressalta um documento do Padre Leonel Franca entitulado "O problema
da denatalidade", e que foi sem dúvida a inspiração principal para
o Estatuto proposto. Nele, Leonel Franca começa por afirmar que a diminuição
da natalidade é o maior flagelo que pode ameaçar uma nação na sua vitalidade.
Leva diretamente ao suicídio social". Além disto, esta seria uma doença
de cura quase impossível, sendo necessário, portanto, preveni-la. Dai, uma
série de sugestões, entre as quais:
- "redução progressiva do trabalho feminino fora do lar (a mulher
que trabalha fora, funcionaria ou operaria, ou não é mãe, ou não é boa
mãe, ou não é boa funcionaria). O salário familiar permite a volta da
mulher a casa, com mentalidade renovada."
-"luta contra o urbanismo. Os grandes centros são hostis
às famílias numerosas. Rumo à terra! Rumo ao campo!".
- "proibição de instrumentos e drogas destinadas a praticas anticoncepcionais
(veja anexa a lei francesa, de 31 de julho de 1920)".
- "proibição de livros, folhetos, cartazes, filmes, peças de teatro
e de qualquer propaganda anticoncepcional."
- "proibição legal eficiente do aborto."
- "conservar o clima espiritual e cristão em que respiram as famílias
brasileiras e lutar contra o materialismo que alimenta a concepção egoísta
da vida estéril".
Vargas sente, evidentemente, as dificuldades de um Estatuto desta natureza,
e prefere ouvir outras opiniões. A critica feita em conjunto por Oswaldo
Aranha e Francisco Campos é bastante negativa na forma, mas, curiosamente,
não apresenta maiores divergências de fundo. Assim, muitos dos artigos propostos
são criticados porque já estariam implícitos na legislação ou na constituição
de 1937. Do artigo 13, por exemplo, que previa uma educação diferenciada
para os sexos, diz-se que ele "se reduz a uma tirada puramente literária",
já que "esses fins já estão implícitos na legislação". O artigo
14, que restringia o trabalho feminino. foi considerado "de caráter
puramente regulamentar, visto que os regulamentos relativos à admissão ao
serviço público compreendem a restrição recomendada no artigo"; a parte
sobre a censura é também considerada supérflua, já que "a propaganda
contra a família já é considerada pelas leis em vigor como atividade subversiva";
os empréstimos familiares, finalmente, são considerados como um incentivo
monetário ao "casamento de pessoas incapazes ou miseráveis, não cabendo
evidentemente ao Estado estimular ou favorecer este tipo de casamento".
Capanema não teria maiores dificuldades em rebater ponto por ponto este
tipo de objeções, e isto lhe dá oportunidade para explicitar melhor seus
pontos de vista. Em sua "análise do parecer oposto ao projeto de Estatuto
da Família", ele reafirma a importância da família para o crescimento
demográfico do país, tendo em vista, principalmente, que "as boas correntes
imigratórias vão escasseando, e, de outro lado, a nossa legislação adotou,
em matéria de imigração, uma política restritiva. E não haveria dúvida de
que a grandeza de um país depende, em grande parte, do número de habitantes
que contém." Para confirmar isto, cita Daladier, e também Mussolini:
"la potenza militare dello Stato, l'avvenire e la sicurezza della Nazione
sono legati al problema demografico, assilante in tuti i paesi di razza
bianca e anche nel nostro. Bisogna riaffirmare ancora una volta e nella
manera piú perentoria e non sara l'ultima che condizione insostituible del
primato è il numero"
Ora, a família, base para o poder nacional, está sob ameaça: "também
entre nós", escreve Capanema, "contra a estrutura material e moral
da família conspiram os costumes", e isto exige ir muito além do que
prescrevia a legislação existente. "É sabido que, apesar da declaração
constitucional da indissolubilidade do casamento, apesar do caráter anti-divorcista
da nossa legislação civil, a sociedade conjugal aqui e ali se dissolve ,
não para o mero efeito da separação inevitável, mas para dar lugar a novos
casamentos, celebrados alhures, sem validade perante nossas leis, mas praticamente
com os mesmos efeitos do casamento verdadeiro. Neste ponto da defesa da
comunidade conjugal, não pode o Estado cruzar os braços e dizer que o que
cumpria fazer está feito." Uma das medidas propostas, a restrição ao
trabalho feminino, também é justificada como inovação importante: "a
restrição de que cogita o artigo criticado se refere também aos empregos
de ordem privada" , diz Capanema, observando que, até então, "as
mulheres (eram) continuamente admitidas, sem nenhuma restrição, em quase
todos os serviços públicos do país".
A réplica de Capanema conclui, finalmente, com uma visão clara das profundas
implicações do Estatuto que propunha: "é necessário realizar uma grande
reforma na nossa legislação sobre tudo que diz respeito ao problema da família.
Esta reforma deverá consistir em modificações a serem feitas no direito
civil e no direito penal, nas leis relativas à previdência e a assistência
social, nas leis dos impostos e outras; há de consistir sobretudo na introdução
de inovações substanciais de grande importância como selam o abono familiar,
o voto familiar, a educação familiar, etc. É de notar que medidas parciais
não bastam".
Esta legislação não passaria, entre outras razões pelo fato de que o Governo
Vargas preferia sempre a legislação pragmática e casuística à legislação
doutrinária e ideológica. Não faltaram, além disso, outras vozes discordantes.
Uma delas, cuja influência real é difícil avaliar, foi a de Rosalina Coelho
Lisboa, jornalista e diplomata extremamente ativa nos anos 30, e identificada
com o feminismo, por uma parte, e com as ideologias de direita por outra.
Em 1939, ela escreve a Oswaldo Aranha uma longa carta sobre a questão feminina
no Brasil, provocada, sem dúvida, pelo próprio Aranha, no contexto da discussão
sobre o Estatuto da Família. Rosalina Lisboa atribui a Vargas um papel importante
na melhoria da condição feminina no país. "Antes dele no Brasil a mulher
era uma coisa que geralmente estava à venda como objeto de matrimônio (preço:
casa, roupa, teto, dinheiro para alfinetes e, last but not least, garantia
para os filhos); ou na venda aviltante da escravatura branca." Limitar
hoje seu campo de trabalho, impedir que ela possa competir, "leal e
limpamente", com os homens, seria voltar atrás na emancipação política
que Vargas havia dado à mulher. E Rosalina Lisboa rebate argumentos do próprio
Aranha: "Como é possível que se limite a possibilidade de trabalho
de milhões de mulheres porque 'há países que não as aceitam e ridicularizam'?
Mas você diz: qual tratamento devido ao marido? Vaidade dos homens, terrível
e cruel! (...) Pois o marido terá a posição a que ganhar direito - igualdade
se é de valor pelo seu lado, e inferioridade se é inferior". . "O
elemento melhor do casal é que deve se impor naturalmente" (Arquivo
Oswaldo Aranha, OA. 39.00.00/6).
A carta de Rosalina Lisboa desvenda um aspecto central da legislação proposta
por Capanema, que não tem a ver nem com a questão demográfica, nem com os
princípios religiosos, mas, simplesmente, com os preconceitos e a "vaidade
dos homens" . Uma crítica mais profunda ao projeto, feita por um assessor
qualificado de Vargas, cujo nome não consta de seu parecer, leva este desvendamento
mais longe.
Segundo o parecer, nenhum dos projetos em consideração, o de Capanema ou
o substituto de Aranha-Campos, mereceriam ser aprovados. Este último, por
ser muito limitado e modesto; o primeiro, por ser, "realmente, um amontoado
de disposições legais sem objetivo, inaceitável mesmo como base de discussão.
Os seus consideranda são truismos e os artigos de lei bem merecem a critica
Aranha-Campos , que é ainda benevolente".
O ponto básico da crítica é estabelecer a dissociação entre o problema demográfico,
que o Estatuto procura resolver, e as soluções propostas, que são o fortalecimento
da família tradicional e os incentivos econômicos à família e à natalidade.
O parecer não se preocupa em entrar no mérito das concepções a respeito
da família de um ponto de vista moral, e procura mudar o foco da questão
para o exame das condições sociais e econômicas da população brasileira.
"É ingênuo citar o recente estatuto da França", diz o texto. "Basta
lembrarmos dois ou três fatos da geografia humana e social desse país para
verificarmos que não é o nosso caso, também diferente do que apresenta a
Inglaterra e a Bélgica". O parecer não cita estes fatos, mas não é
difícil imaginar quais sejam: o tamanho reduzido das famílias europeias,
em contraposição às numerosas famílias brasileiras; a alta mortalidade infantil
em nosso país, em contraste com a Europa; e a composição etária das populações
dos dois países.
A consideração destes fatos levaria a uma conclusão óbvia, que o parecer,
por motivos também evidentes, deixa implícita: que a preocupação com a manutenção
da família tradicional, com a restrição ao trabalho feminino, com a proibição
ao uso de anti-conceptivos, a implantação da censura, etc., tem na realidade
pouco a ver com a questão demográfica, e muito com as concepções dominantes
entre os setores católicos mais conservadores do país. O parecerista vê
nas propostas de Aranha-Campos e Capanema implicações políticas e orçamentarias
profundas, que necessitariam melhor análise: "parece-me que a União
não dispõe nem de meios financeiros nem de aparelhamento burocrático capaz
de fazer cumprir a legislação que se pretende decretar. Em segundo lugar,
os benefícios do anteprojeto Aranha-Campos viriam afetar de modo vário as
rendas da União e, dada a impossibilidade de uma fiscalização séria, constituiriam,
em numerosos casos, instrumentos políticos em mãos de municípios em encargo
quase total da União".
O caminho alternativo que o parecerista aponta é fazer da questão demográfica
parte da legislação social e trabalhista: "auxiliar a natalidade deve
ser auxiliar a produção nacional , auxiliar as camadas mais pobres para
que elevem a capacidade aquisitiva e, principalmente, melhorem a qualidade
da população, tornando-a mais hígida e forte". Assim como a população
é diferenciada, seria necessário tratar diferentemente os trabalhadores
da indústria, os do campo e os demais. Para os primeiros, são sugeridos
auxílios pecuniários para o casamento e a criação de filhos. No campo, o
básico seria o desenvolvimento de serviços de assistência médico-higiênicas,
e a "distribuição de terras públicas e pequeno empréstimo de instalação
ao trabalhador rural que tenha seis ou mais filhos" . Para os demais,
uma série de medidas mais indiretas, como a isenção de certos tipos de impostos,
facilidade de empréstimos, etc., para o casamento.
E o parecer conclui: "tentativas como a que pretende o projeto Capanema
dificultam mais do que facilitam as soluções certas. A participação das
mulheres no processo econômico não é um mal. Qualquer observador objetivo,
atento às estatísticas, sabe que no Brasil o mal é, verdadeiramente, o reduzido
número de produtores que sustentam o peso do orçamento familial"
Este parece ter sido, ao que tudo indica, o golpe de misericórdia. Uma "Comissão
Nacional de Proteção a Família" foi estabelecida em 10 de novembro
de 1939, seguindo sugestão do próprio Capanema em sua réplica a crítica
de Aranha-Campos, e em 9 de julho de 1940 ela conclui seus trabalhos. Composta
por pessoas ilustres de varias origens - Levi Carneiro, Stela de Faro, Oliveira
Viana, Cândido Motta Filho, Paulo Sá, João Domingues de Oliveira, Ernâni
Reis - ela propõe uma série de medidas já aventadas pelos projetos Capanema
e Aranha-Campos, sem entrar em temas mais controversos, e sem adotar a defesa
tão intransigente da família tradicional. Na área do trabalho feminino,
ela pretendeu assegurar à mulher funcionária pública garantia de manutenção
de emprego e salário em caso de transferência do marido, indo assim contra
a legislação restritiva que se propunha. A criação do Departamento Nacional
da Criança foi oficializada antes do trabalho da Comissão, e suas sugestões
nem de longe tiveram o alcance e a repercussão que o Estatuto da Família
de Capanema pretendera.
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