O homem que inventou Trump

(publicado em O Estado de São Paulo, 14 de fevereiro de 2025)

Em uma longa entrevista ao jornalista Ross Douthat no The New York Times de 31/1/2025, Steve Bannon, a quem se atribui ter levado Donald Trump à sua primeira vitória em 2016, mostra-se articulado, culto, divertido, e quase convence. De família pobre, democrata dos tempos de John F. Kennedy, formado pela Harvard Business School, Bannon se define como populista e nacionalista. A pax americana, segundo ele, que se impôs ao mundo ocidental após a 2.ª Guerra, é uma construção que tem no topo uma elite bilionária, sustentada por uma grande burocracia de pessoas com títulos universitários – a “classe dos diplomados”, incluindo generais, professores universitários e jornalistas da grande imprensa –, e na base grupos de interesse formados por sindicatos e organizações que se articulam em nome de direitos sociais para receber partes do bolo. Tudo à custa do little guy, o homem do povo que é enviado para matar e morrer em guerras longínquas, cujos valores e estilos de vida são corroídos pelas políticas identitárias financiadas com recursos públicos e cujos empregos e salários são aviltados pelos imigrantes e a concorrência de investimentos em outros países.

Para vencer esse sistema, seria preciso se comunicar diretamente com o povo pelas redes sociais, deixando de lado a grande imprensa; usar argumentos emocionais, para não precisar discutir com a classe dos diplomados; e encontrar um líder capaz de dar voz aos ressentimentos e frustrações do little guy: Donald Trump. Uma vez no poder, seria necessário equilibrar as contas, cobrando impostos dos milionários e cortando subsídios; proteger a indústria nacional, com investimentos e barreiras alfandegárias; desmontar a burocracia pública e as organizações sociais que ela alimenta; deportar os imigrantes e taxar as importações, valorizando o trabalhador americano.

A estratégia funcionou para ganhar eleições, tanto a primeira quanto a de 2024, mas não para governar. Bannon saiu do primeiro governo Trump logo nos primeiros meses, e ficou fora do atual, criticando de longe a influência do novo grupo de bilionários das tecnologias digitais – Elon Musk, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg –, que, segundo ele, formam uma nova oligarquia de “trans-humanistas”. Eles seriam os líderes de um novo “tecnofeudalismo”, com o poder concentrado nas mãos de engenheiros e, cada vez mais, em sistemas autônomos de inteligência artificial. Nesse novo mundo, as hierarquias baseadas nas fortunas familiares e nos diplomas seriam substituídas pela nova hierarquia formada pela simbiose homem-máquina, acumulação ilimitada de recursos em poucas mãos e administração tecnocrática da sociedade das pessoas e da natureza, levando ao fim as identidades locais e nacionais.

Como explicar que Trump tenha abraçado essa distopia, e em que medida isso afeta a lealdade de Bannon à sua criatura? Trump é imperfeito, explica Bannon, e tende a ficar sempre do lado de empresários bem-sucedidos, que agora são esses. Mas essa imperfeição seria a sua grandeza, diz ele, o que o tornaria comparável aos grandes presidentes americanos como George Washington e Abraham Lincoln, embora Trump mesmo prefira se comparar ao populista Andrew Jackson e a William McKinley , o presidente que ficou famoso por entregar a economia americana aos robber barons do final do século 19.

Bannon foi astuto ao perceber as debilidades da democracia americana e como atacá-la, e apostar num personagem sem limites como Trump como instrumento para vencê-la, mas nenhum dos dois parece ter ideia do que colocar em seu lugar. Nestas primeiras semanas do novo governo, o que vemos são movimentos para cumprir as promessas mais espetaculares e destrutivas da campanha, como a deportação de milhões de imigrantes, a suspensão da cooperação internacional, o ataque às políticas de inclusão e ao funcionamento da administração federal, as barreiras alfandegárias à China e aos países vizinhos e a indicação de personalidades marginais para os cargos mais importantes. A aposta de que dos escombros uma nova e mais grandiosa América surgiria, sob o comando dos novos tecnocratas bilionários, foi abalada pelo surpreendente sistema de inteligência artificial chinês, lembrando que é a China, e não os Estados Unidos, que lidera hoje a pesquisa, a produção industrial e o uso das novas tecnologias em quase todos os campos.

Trump tem dito, em seus ataques às políticas de inclusão, que agora as pessoas passarão a valer pelos seus méritos, e não mais por seus supostos direitos. Mas o little guy é, justamente, aquele que não conseguiu se valer das oportunidades criadas pela sociedade americana em seus melhores momentos, e é difícil conciliar essa suposta redescoberta do mérito com o ataque generalizado à “classe dos diplomados” e suas instituições, incluindo as universidades, os centros de pesquisa e as agências governamentais nas áreas de educação, saúde e meio ambiente.

É provável que, passado o primeiro susto, a sociedade norte-americana comece a reagir e, daqui a dois anos, Trump perca, nas eleições, a maioria que tem no Congresso. Mas o diagnóstico de Bannon sobre a debilidade e a vulnerabilidade da democracia americana, e de outras que tentam emulá-la, continua valendo, e deve preocupar.

Velhos e novos doutorados

(publicado em O Estado de São Paulo, 9 de janeiro de 2015)

O novo modelo de pós-graduação que está sendo introduzido pelas universidades paulistas, facilitando a passagem do mestrado para o doutorado, é muito bem-vindo,  embora mais tímido do que poderia ser e sem uma consideração adequada, me parece, das diferenças de propósito dos programas de mestrado e doutorado, fruto da maneira pela qual os programas de pós-graduação foram criados e se desenvolveram no Brasil.

Quando a Universidade de São Paulo foi criada em 1934, ela trouxe da Europa a instituição do doutorado, em que um candidato, querendo se dedicar à carreira de ensino e pesquisa, desenvolvia um projeto sob a orientação de um professor catedrático. Para prosseguir na carreira, era preciso, depois, fazer uma tese de livre-docência, e finalmente de professor titular, quando havia vaga. A reforma universitária de 1968 trouxe para o Brasil um modelo totalmente diferente, o das graduate schools americanas, com cursos de pós-graduação organizados em unidades administrativas próprias, com currículos organizados e sistemas regulares de avaliação dos candidatos. Nas graduate schools, a seleção dos estudantes é feita pelos departamentos, e não pelos professores, e só depois de um período inicial de estudos  e exames é que eles definem um projeto de tese e são formalmente promovidos a candidatos ao doutorado, aí sim sob a orientação de um professor. As duas grandes vantagens do sistema americano, que começou a ser introduzido no início do século 20 e hoje é adotado em todo o mundo, é que os doutores se formam com uma base de conhecimentos muito mais ampla, e em muito maior número do que no sistema artesanal europeu.

A  dificuldade para a adoção do modelo americano no Brasil foi que a USP era, na época, a única instituição com capacidade de dar títulos de doutorado, mas no modelo europeu, enquanto as universidades federais, em sua quase totalidade, no máximo conseguiam reunir massa crítica para organizar cursos iniciais de mestrado.  Aos poucos, a USP foi se adaptando ao novo modelo, organizando programas de pós-graduação e instituindo mestrados como etapa inicial de formação, enquanto as demais universidades, também aos poucos, foram se capacitando para criar programas de doutorado próprios. O resultado é que os mestrados, que deveriam ser cursos curtos de complementação e formação especializada para o mercado de trabalho, como em todo o mundo, se transformaram, no Brasil, em pré-requisitos para os doutorados, ou mini doutorados destinados a suprir a carência de professores qualificados nas universidades públicas.

Entre as virtudes da pós-graduação brasileira estão que ela pôde contar, desde o início, com um sistema de avaliação dos cursos organizado pela CAPES; que os cursos são gratuitos; e que boa parte dos alunos recebem bolsas de estudo para se manter.  Com o tempo, o sistema foi crescendo, e começaram a surgir os problemas: os alunos que o faziam demoravam demais em completar os doutorados, e as avaliações da CAPES eram demasiado acadêmicas. Apesar disso os mestrados, na prática, foram se aproximando do modelo do resto do mundo, de formação complementar ao ensino de graduação, em que os estudantes estão mais interessados em obter uma melhor colocação no mercado de trabalho do que completar o doutorado com a perspectiva de se seguir uma carreira de professor universitário e pesquisador. A CAPES tentou lidar com isso criando os mestrados e doutorados profissionais e modificando o sistema de avaliação, ao mesmo tempo em que se criou um grande mercado privado e não regulado de cursos de MBA e especialização, hoje três vezes maior do que o de pós-graduação estrito senso.

O novo modelo das universidades paulistas pretende lidar com estes problemas facilitando a passagem do mestrado para o doutorado após um primeiro ano de cursos gerais e de empreendedorismo, dando bolsas mais robustas para os alunos selecionados para o doutorado após este primeiro ano, e uma formação complementar a nível de mestrado para os demais. O modelo é tímido porque ele poderia, simplesmente, facilitar o recrutamento de estudantes de doutorado diretamente dos cursos de graduação, deixando o projeto de tese para após um período inicial de formação, como nas graduate schools americanas; e peca por dar a entender que os mestrados seriam, simplesmente, prêmios de consolação para os que não conseguissem entrar nos doutorados, e não uma alternativa de formação válida em seus próprios termos.

E peca também, me parece, por pretender que a questão do pouco vínculo das universidades e programas de pós-graduação e pesquisa brasileiros com o setor produtivo possa ser resolvida com cursos de empreendedorismo ou mudanças de currículo de um tipo ou outro, quando a dificuldade está, sobretudo, na falta de competitividade e estímulo à inovação da economia brasileira, fechada e protegida como é. Com ou sem  cursos deste tipo, se houver demanda por inovação, e os profissionais tiverem formação sólida em suas áreas de informação, ela virá. Se não houver, não serão cursos de empreendedorismo ou mudanças pedagógicas que farão a diferença.

Bestializado

(Versão modificada de artigo publicado em O Estado de São Paulo, 22 de novembro de 2024)

José Murilo de Carvalho, em “Os bestializados”, lembra como o povo do Rio de Janeiro, sem saber do que se tratava,  assistiu à mobilização dos militares que implantaram a República em 1889. Foi assim que me senti ao acompanhar de perto, na Zona Sul do Rio de Janeiro, as grandes movimentações da reunião do G20, só comparáveis às da Olimpíada e da Copa do Mundo em 2014 e 2016. Mais uma vez o Brasil, e especialmente o Rio de Janeiro,  se colocavam no centro do mundo, e eu, tão pertinho, não havia sido convidado…

Não é que o povo, desta vez, tivesse ficado totalmente de fora. A Cúpula Social do G20, alguns dias antes, contou com a presença de milhares de participantes de 271 entidades da sociedade civil, que em três dias aprovaram, por unanimidade, um documento que foi encaminhado ao Presidente Lula para ser incluído na pauta da reunião. Além disso, inúmeros grupos de trabalho e de engajamento foram mobilizados, e a declaração final foi um documento com 85 recomendações e compromissos assinados pelos chefes de estado das maiores economias do mundo, sob a coordenação do governo brasileiro. A proposta de taxação das grandes fortunas não foi aprovada, mas em compensação ficou registrada a criação da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza. Fala-se em mais de 40 bilhões de dólares a serem mobilizados até 2030, com recursos já existentes em agências como o Banco Interamericano de Desenvolvimento e outros a serem levantados. Para gerenciar a aliança, o Brasil desde já vai financiar a instalação de um escritório em Brasília e outro em Roma. Um grande sucesso, e mais uma vez não só a Europa, como o mundo, se curvam diante do Brasil

Será? Criado 25 anos atrás como um fórum para lidar com as crises financeiras internacionais, reunindo ministros de finanças e presidentes de bancos centrais das grandes potências e países emergentes, o G20 evoluiu para uma reunião anual de chefes de Estado e de Governo, tendo como prioridade o fortalecimento da governança internacional da economia, mas ampliando a agenda para temas como crescimento sustentável, redução da pobreza e desigualdade e clima.  Na reunião do Rio de Janeiro predominou a ideia de que ela deveria contribuir para a instalação de uma nova ordem internacional, baseada no consenso e na participação ampla de países do “sul global” e da sociedade civil, que substituiria a ordem criada depois da Segunda Guerra, com as Nações Unidas, o FMI e o Banco Mundial. Nesta nova ordem países de porte médio, ou “emergentes”, como o Brasil, Índia, México, África do Sul e Indonésia, assumiriam posições de liderança em um sistema multipolar no qual os Estados Unidos e a Rússia teriam menos importância do que até agora. Com a Rússia isolada pela guerra da Ucrânia e a eleição de Trump apontando para um novo isolacionismo americano, esta nova ordem seria claramente liderada pela China. Não é à toa que a figura em destaque da reunião foi Xi Jinping, que vem liderando os esforços de criação de uma um novo sistema internacional multipolar e globalizado liderada por Pequim.

Sem Vladimir Putin e com Joseph Biden em final de mandato, nada de novo surgiu em relação às guerras da Ucrânia e de Gaza, e as propostas de reformular as Nações Unidas, reforçando o peso da Assembléia Geral e a composição do Conselho de Segurança, simplesmente reiteram o que representantes do Brasil e de outros países vêm dizendo há anos, e não há nenhuma indicação de que elas serão implementadas desta vez. Neste como nos temas de mudança climática e as questões emergentes das novas tecnologias de informação e da inteligência artificial, a maioria das decisões e compromissos do documento final são recomendações gerais,  inexequíveis  ou já em andamento de alguma outra forma.

A pergunta que fica é se grandes mobilizações de pessoas e recursos como esta, que culminou com dois dias de caos na Zona Sul do Rio de Janeiro – com tropas e caminhões do exército nas esquinas, aeroporto fechado, motocicletas e sirenes abrindo caminho para as autoridades, sem falar no dinheiro gasto – produz resultados que justificam o esforço, ou não são simplesmente um grande exemplo de turismo diplomático. A resposta está em algum lugar entre os extemos do entusiasmo e do ceticismo total, e eu tendo a ficar mais próximo do segundo. Não há dúvida que juntar pessoas para discutir e elaborar propostas sobre temas importantes é sempre útil, e contatos entre representantes de governos e outras entidades públicas e privadas podem gerar novas modalidades de cooperação. As reuniões servem também para colocar em evidência alguns temas relevantes que algum dia podem gerar políticas e mecanismos específicos de cooperação.

O velho sistema bipolar do pós-guerra já não existe, mas a construção desta nova ordem é uma tarefa difícil, que passa entre outras coisas pela capacidade de a comunidade internacional administrar conflitos locais como as guerras da Ucrânia e Gaza e cooperar efetivamente em grandes temas de comércio, meio ambiente, pobreza e valores democráticos.  É uma construção complexa e incerta, que depende mais de negociações técnicas bi e multilaterais do que por conferências de grande visibilidade como as do G20.

Tomara que as recomendações da reunião do Rio de Janeiro se cumpram. Enquanto isto, se houver lugar, me candidato para trabalhar no novo escritório em Roma que o governo brasileiro vai abrir.

Ao pé da lareira

(Publicado em O Estado de São Paulo, 8 de novembro, 2024)

Quando Gustavo Capanema quis fundar a Universidade do Brasil, na década de 1930, ele abriu um concurso internacional para construir a Cidade Universitária. Ganhou Marcelo Piacentini, o arquiteto de Mussolini. Os perdedores, o grupo de Lúcio Costa associado ao francês Le Corbusier, protestaram, e acabaram recebendo como compensação o projeto do edifício do Ministério da Educação. Com a guerra, a universidade de Piacentini nunca passou da maquete. O Edifício do Ministério da Educação ainda resiste, meio abandonado no caos urbano do centro do Rio de Janeiro.  Aprendi isso quando pesquisava os arquivos de Capanema, e me fazia lembrar a  frase de que uma universidade começa com uma conversa informal ao pé de uma lareira, que havia lido nos papeis que descreviam a fundação, cem anos antes, da Universidade da California em Berkeley, onde estive para meus estudos de doutorado.

A ideia de que universidades são feitas por comunidades de pessoas, e só depois por leis e edifícios, foi o fio condutor de uma série de estudos  em que participei ao longo dos anos. Claro, elas precisam de prédios, equipamentos, pessoal administrativo,  e atender às expectativas dos estudantes, da sociedade e das profissões. Mas seu principal capital, que faz a diferença, é o talento de seus professores e uma cultura de valorização do estudo, da pesquisa, da independência intelectual e da competência técnica, que desenvolvem e transmitem a seus alunos e a toda sociedade. Se isto é verdade, então os professores universitários formariam uma espécie de profissão das profissões, uma comunidade cuja identidade central seriam estes valores, que transcenderiam outras identidades institucionais, profissionais e mesmo nacionais.

Existe, no entanto, outra visão, a de que o ideal das profissões autônomas é um mito, que elas na prática são ou acabam sendo controladas pelas grandes burocracias públicas e privadas. Os profissionais autônomos de transformariam em empregados, e as comunidades profissionais, em sindicatos de um proletariado letrado.  Quando, na década de 90, fizemos uma pesquisa sobre os professores universitários no Brasil, constatamos que havia, no país, um pequeno grupo de professores de alta formação, pesquisadores, que compartilhavam os valores de autonomia e liderança intelectual da comunidade acadêmica; um grupo bem maior, de formação intermediária, funcionários das universidades públicas, em que prevalecia a identidade corporativa e sindical; e um terceiro grupo fragmentado, sem identidade própria, trabalhando de forma precária para o mercado de ensino superior privado.

O que aconteceu com os professores universitários brasileiros desde então? Olhando os dados, algumas coisas chamam a atenção. Entre 2010 e 2023, o número de estudantes universitários passou de 6 para 10 milhões, mas o número de professores permaneceu praticamente o mesmo, cerca de 350 mil, metade no setor público, metade no privado. A razão é que o sistema público cresceu pouco, e o sistema privado aumentou sua eficiência pelo uso mais intensivo de seus professores, sobretudo através do ensino à distância. O número de alunos por professor no setor privado subiu de 22 para 40, enquanto, no setor público, permaneceu entre 10 e 12. Desapareceu, praticamente, a figura do professor horista no setor privado, substituído pelos contratos em tempo parcial.

Depois, os professores ficaram mais velhos e mais qualificados. Esta é a tendência geral, mas existem grandes diferenças por setor. No setor privado, a proporção de professores de 40 anos ou menos passou de 46% para 35%. Nas universidades federais, de 37% para 26%; e nas universidades paulistas, de 16% para 9%. A proporção de professores com doutorado passou de 56% para 75% no sistema federal, de 15% para 33% no sistema privado, e permaneceu acima de 95% no sistema paulista.

Ao mesmo tempo, a posição relativa dos professores universitários em termos renda piorou. Para demonstrar essa mudança, comparei três rendas médias: a das pessoas com educação superior em geral, a dos professores universitários do sistema privado e a dos professores do sistema público, todas em relação à renda média do país. A análise foi feita com dados de dois anos: 2012 e 2023.

Assim, tomando a renda média do país em cada ano como referência (igual a 100), em 2012, as pessoas com diploma universitário ganhavam, em média, 253% da renda nacional — mais do que duas vezes e meia a média do país. Professores universitários do setor privado recebiam 300%, e os do setor público, 400%. Já em 2023, essas proporções caíram para 202%, 268% e 357%, respectivamente, conforme os dados da PNAD.

Essa redução indica um enfraquecimento da vantagem salarial tanto para os portadores de diploma quanto, em maior medida, para os professores universitários.

Só com estes dados não dá para dizer quanto ainda persiste, entre eles, o modelo das comunidades profissionais autônomas, das corporações profissionais ou dos sindicatos. Mas temos indicações, por  outros lados, que o prestígio dos professores tem caído e sua autoridade, e da ciência que incorporam, contestada. No setor privado há um processo de profissionalização fragmentada que parece se consolidar: os professores trabalham mais, ganham menos, não têm estabilidade no trabalho,  e formam um “precariado” que não consegue se organizar para defender seus interesses. No setor público, com a maior qualificação, envelhecimento e a perda relativa de vantagens, podemos entender que prevaleça entre muitos uma atitude defensiva e de ressentimento, mais do que a de uma profissão autônoma e altiva. E mal temos lareiras para nos sentarmos a seu pé para conversar.

Reagan e Trump

Assim que saíram os resultados da eleição de Trump, mandei uma nota para alguns amigos dizendo que estava vendendo baratinho, no site “enjoei”, meu diploma de doutorado em ciências políticas da Universidade da California, Berkeley, assinado por Ronald Reagan, então governador da California. Na véspera, havia sido feliz por dois dias, acreditando, com base em alguns farrapos de evidência (como os resultados de uma pesquisa no estado de Iowa), que havia uma boa chance de uma maré pró Kamala Harris que poderia decidir a eleição em seu favor. A maré aconteceu, mas contra. Há muito que desisti de dar prioridade a meu chapéu de cientista político, preferindo o de sociólogo, mas achei que agora não poderia deixar de dizer alguma coisa sobre as eleições, e me pareceu que o paralelo com Ronald Reagan seria bom um gancho.

Reagan era um locutor de rádio, artista de filmes “b” e apresentador de televisão que ganhou notoriedade por se comunicar bem, e foi financiado por um grupo de empresários para propagar as ideias conservadoras que lhes interessavam. A California, nos anos 60, era um dos estados mais prósperos e dinâmicos dos Estados Unidos, e possuía também o sistema mais avançado de educação superior pública, liderado pela Universidade da California e tendo por base uma grande rede de colégios comunitários. A California foi também o berço do movimento hippie, do movimento estudantil nos Estados Unidos, e das mobilizações contra a guerra do Vietnam.  O governo estava solidamente nas mãos do Partido Democrata, que havia se comprometido nacionalmente com o movimento dos direitos civis e procurava se desvencilhar da guerra no Vietnam, na qual havia se envolvido. Reagan ganhou as eleições pelo Partido Republicano em 1966 apoiado por empresários que queriam mais liberdade para seus negócios, grupos religiosos e de classe média que se ressentiam da revolução de costumes e dos movimentos sociais  e dos impostos que o Estado cobrava para manter suas políticas sociais e de modernização econômica, e pessoas pouco educadas que se ressentiam das elites formadas pelas universidades do Estado. Foi governador até 1975, e, depois de algumas tentativas, foi eleito presidente dos Estados Unidos de 1981 a 1989.

Exceto talvez em relação ao tema dos imigrantes, era uma plataforma praticamente igual à de Trump, em sua oposição aos movimentos sociais, à presença do Estado na economia e na sociedade e ao anti-intelectualismo. Uma outra semelhança entre Reagan e Trump é que nenhum dos dois tinha muita paciência nem competência para entender as complexidades da tarefa de governar. A diferença é que Reagan se contentava com o  papel de presidente de fachada, deixando o governo para os “adultos” que o rodeavam, enquanto Trump acha que pode decidir tudo sozinho, e não tem o menor respeito ou consideração pelas instituições públicas, que Reagan não questionava.

Nos dois anos que passei em Berkeley, 1967-8,  havia duas agendas, a dos movimentos políticos que agitavam o campus e o programa de estudos do departamento de ciência política, que estava dividido em duas correntes, a de “filosofia política”, que buscava dar um fundamento acadêmico e intelectual aos movimentos da rua, e a mais empírica, que buscava entender e explicar a lógica de funcionamento dos sistemas políticos, sobretudo o americano. Eu já tinha tido meu aprendizado de movimento estudantil no Brasil de pré-1964, e dei prioridade à segunda, tentando entender sobretudo as origens institucionais dos sistemas modernos de governo. Este foi o tema de minha tese de doutorado, voltada para as instituições coloniais brasileiras e seu impacto na política e sociedade contemporâneas, muito antes que Daron Acemoglu e colegas ganhassem o prêmio Nobel de economia por redescobrirem esta questão.

Em Berkeley, nunca conheci um americano que fosse republicano, mas havia montes deles em Los Angeles e outras partes. Reagan, como governador,  mandou cortar parte dos recursos da Universidade, mas presidia seu Conselho de Regentes e assinou meu diploma (quase certamente por alguma máquina). Naqueles anos o establishment americano, assustado pelos movimentos reformistas, começava um ciclo de reação conservadora, e o Brasil continuava mergulhado no autoritarismo do regime militar. Mas ainda reconhecia e avalizava os diplomas produzidos por suas instituições.

A moral da história, se é que ela tem moral, é que não há nada especialmente novo na reação conservadora de Trump, vitorioso contra um Partido Democrata que se exauriu ao tentar atender ao mesmo tempo as agendas dos movimentos sociais, dos movimentos identitários, da agenda climática, e as responsabilidades econômicas e militares de “big brother” de um mundo cada vez mais complicado e refratário a seu comando. Parte dos apoiadores de Trump endossam sua agenda conservadora; mas suspeito que a grande maioria dos que votaram nele são, simplesmente, “contra tudo que está aí”.

A diferença é que o ataque de Trump ao establishment americano é muito mais profundo do que uma simples oscilação da balança de poder. O paralelo com Reagan faz algum sentido, mas talvez o principal paralelo a ser feito, com os devidos cuidados, é com as lideranças fascistas que dominaram a política de seus países e destruiram os governos constitucionais na Itália e Alemanha um século atrás.

Recordistas mundiais

(Publicado em O Estado de São Paulo, 11 de novembro de 2024)

O Censo da Educação Superior de 2023, publicado recentemente, confirma que somos recordistas mundiais em pelo menos duas coisas, a proporção de estudantes em instituições privadas, 80%, e em cursos à distância, metade. No setor público, somente 10% dos alunos estão em cursos à distância; no setor privado, 60%.  São ao todo cerca de 10 milhões de estudantes: 27% em cursos de negócios, administração e direito; 22% na área de saúde e bem-estar; e 17% na área de educação. Nas engenharias são 9%, na computação 7%, e, nas ciências naturais, 1.3%.

O Brasil não difere muito da maioria dos países, mas exagera. Em quase todo o mundo, também, são três as áreas com mais estudantes: administração (incluído economia, negócios e direito) saúde (incluindo medicina) e educação. A principal diferença do Brasil é o tamanho diminuto das áreas de ciências naturais e engenharias. Nos últimos anos, em quase toda parte, a educação superior privada cresceu, assim como a educação à distância. O setor privado cresceu porque o setor público não dá conta de atender toda a demanda, e a venda de serviços de  ensino se transformou em um bom negócio. Além disto, o setor privado conta geralmente com mais autonomia e capacidade empresarial para ir atrás de sua clientela.  O alunos das instituições públicas são em geral  jovens de origem social média ou alta que completam o ensino médio de qualidade e conseguem passar com boas notas nos processos seletivos. Para os mais velhos, geralmente mais pobres, que terminam o ensino médio com dificuldade e precisam trabalhar, a alternativa eram os cursos noturnos em instituições privadas. A pandemia mostrou que era possível dar estes mesmos conteúdos à distância a um menor custo, e isto se tornou irreversível. 

A principal explicação para nossos extremos é o elitismo do modelo adotado na reforma universitária de 1968, que perdura em suas linhas gerais. A reforma procurou trazer para o Brasil um modelo único de universidade de pesquisa vagamente inspirado na universidade alemã do início do século 19 e adotado por algumas universidades americanas, com professores doutores trabalhando em tempo integral, envolvidos em atividades de ensino e pesquisa e alunos bem qualificados e estudando também em tempo integral. É um modelo que custa caro e não tem como dar conta da crescente demanda por educação superior que só começaria no Brasil a partir da década 70, vinda de estudantes que chegam do ensino médio com formação menos rigorosa e precisando trabalhar. Os países que conseguiram lidar com esta transição foram o que os que mantiveram e até ampliaram a presença de suas instituições de elite, mas também investiram em outras modalidades de ensino profissional e técnico, já a partir do ensino médio. O Brasil insistiu em um modelo público único que se manteve imutável na forma, mas, ao se ampliar de maneira forçada, acabou se deteriorando em parte, criando grande desigualdade em seu interior e abrindo espaço para que o setor privado expandisse.

Por muitos anos, o governo federal tratou o setor privado como um problema, e não como parte da solução para sua incapacidade de ampliar e diversificar a oferta de educação. O sistema de avaliação criado em 2004 tinha como principal objetivo controlar o setor privado, o que nunca conseguiu. E os governos do PT,  supostamente contrários ao setor privado, ao se darem conta que só ele seria capaz de ampliar o acesso, passaram a subsidiá-lo através de dois mecanismos, as isenções fiscais do Prouni e o crédito estudantil garantido do FIES, fazendo com que ele se transformasse em um negócio cada vez mais vantajoso.

Os governos também fizeram um esforço de ampliar o setor público, através dos financiamentos do programa Reuni, e de democratizar o acesso através da política de cotas. Com a crise financeira a partir de 2015 e a rigidez burocrática e administrativa,  o setor público só conseguiu passar de 1.6 para 1.9 milhões de matrículas entre 2010 e 2020, enquanto o setor privado passava de 4,7 a 6,7 milhões. Com a política de cotas, a composição social do alunos no setor púbico se tornou mais equitativa, mas foi o setor privado que abriu mais oportunidades de estudo para pessoas vindas de condição social mais desfavorável.

E tem a questão, nunca enfrentada, da má qualidade e das altas taxas abandono. Entre todos que  entraram no ensino superior em 2019,  as taxas de desistência, em 2023, eram de 64% no ensino privado à distância, em um extremo, e 42% no presencial público no outro. Dos que se formam, metade não consegue trabalhar em atividades de nível superior. Cada vez há mais pessoas querendo estudar, cada vez mais os governos buscam subsidiar os estudos, mas não existe nenhum sistema que informe aos estudantes, aos futuros empregadores e aos próprios governos, em que instituições e áreas as pessoas têm mais chances de se qualificar a partir das condições trazem e fazer uso de seus conhecimentos. O sistema incha, mas fica do mesmo tamanho.

A radicalidade de Inez

(Publicado em O Estado de São Paulo, 13 de setembro de 2024)

“Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora, para as  pessoas, a raiz é a própria pessoa” (Karl Marx)

Neste mês me despeço de Inez Farah, companheira querida de meio século. Neta de imigrantes, carioca, professora, psicóloga, mãe, Inez faz parte da história das mulheres brasileiras e cariocas, radicalmente modernas, que ainda precisa ser mais bem contada, antes que a pós-modernidade as sepulte de vez.
No início do século 20, imigrantes de Portugal, Itália, Japão, mas também do Oriente Médio e Europa Central, vinham aos milhões para o Brasil, fugindo das guerras e perseguições, buscando um lugar em que pudessem viver em paz, trabalhar e formar suas famílias. Os avós de Inez, cristãos sírio-libaneses, tal como os meus, judeus, faziam parte destas levas, trabalhando no comércio, dando crédito quando as grandes lojas ainda não existiam, e investindo na educação dos filhos. Os homens iam à luta para ganhar dinheiro e as mulheres se casavam cedo, tinham um filho por ano e se refugiavam na religião. Não Inez. Uma de sete irmãos, não escapa da primeira comunhão, e é enviada cedo para o colégio interno Santos dos Anjos em Vassouras. Indisciplinada, aproveita as detenções de fim de semana para se tornar amiga das madres francesas e conversar sobre literatura e artes. Depois se muda do interior para a casa da avó na zona norte do Rio de Janeiro, onde se prepara para ingressar no Instituto de Educação.
Nos anos 50, no Brasil, poucos estudavam, e metade da população era analfabeta. Mas o país se modernizava, e as famílias tradicionais no Rio de Janeiro mandavam seus filhos para os colégios católicos, como o São Bento e Santo Inácio para os homens, e o Sacre Cœur de Marie para as moças. Para os filhos de imigrantes e das novas classe médias, as alternativas eram o Colégio Pedro II e o Instituto de Educação, públicos e gratuitos, que davam acesso às carreiras universitárias para os homens e ao magistério para as mulheres. Os exames de admissão eram difíceis, os professores os melhores que havia, e a educação, laica. Inez se encanta com a qualidade do ensino e das instalações do Instituto, participa do grêmio e do jornal dos estudantes. Em 1958, aos 19 anos, se forma como professora e já sai contratada pelo governo do Estado. Enquanto alfabetiza crianças na Zona Norte, se candidata para o novo curso de psicologia na Pontifícia Universidade Católica na Zona Sul. Se forma em 1962 e é promovida, no Estado, para trabalhar no “Serviço de “Ortofrenia e Psicologia”, do Instituto de Pesquisas Educacionais.
A palavra “ortofrenia” era um resquício das ideias eugenistas que imperavam na saúde pública brasileira até antes da guerra, e o trabalho incluía a seleção de diretores de escola e orientação psicológica para orientadores educacionais e professores. Mas o que interessava mesmo a Inez era o entendimento radical que a psicanálise havia trazido sobre o desenvolvimento da personalidade infantil, através de autores ingleses como Melaine Klein, D. Winnicott e W. R. Bion, cujos livros fazem parte de sua biblioteca daqueles anos. Independente e agora com dinheiro, compra um pequeno apartamento em Ipanema, frequenta as praias da Zona Sul e começa a trabalhar como psicóloga clínica. Não atua na política, mas tem lado: depois do golpe de 64, por mais de uma vez seu velho fusca serviu para transportar militantes procurados, e teve a casa invadida por militares armados em busca de um irmão.
A prática da psicanálise naqueles anos era controlada por médicos, quase todos homens, reunidos nas sociedades psicanalíticas. Inez contribui para quebrar o monopólio ao dar aulas e organizar um curso pioneiro de especialização em psicologia clínica na PUC, cujas alunas eram sobretudo mulheres. Logo depois surge outro monopólio, o dos graduados em mestrados e doutorados. Inez não vê sentido em fazer, só pelo título, uma pós-graduação em psicologia experimental, e acaba deixando a universidade. Aos poucos, os antigos monopólios são substituídos por novos modismos das diferentes correntes psicanalíticas, aos quais Inez, cética, se recusa a aderir. Na busca de novos caminhos, se especializa em terapia de família e promove a tradução, para o português, do livro de T. Berry Brazelton sobre crianças e mães, que nos ensina que cada criança é única, e precisa ser reconhecida e respeitada em suas diferenças pelos pais, ao mesmo tempo em que cada um, à sua maneira, pode sempre mais.
Profissional estabelecida, passados dos 30 anos, era chegada a hora de investir na própria família, ao mesmo tempo em que continua a marcar a vida de tantos em seu trabalho. Foi quando nos conhecemos, e passamos juntos décadas de muita alegria e perdas importantes, que ela vivia com força, animação e dor, muitas vezes ao mesmo tempo. Entre filhos, obras na casa, mousse de chocolate, orquídeas, viagens, pacientes e amigas fiéis de toda a vida, Inez foi sempre a grande companheira e cúmplice, minha, dos filhos e de tantos mais. Radical em seu compromisso com as pessoas, e moderna em aceitar as diferenças e apostar na possibilidade de cada um de construir seu próprio caminho, como ela mesma sempre fez.

Saúde e morte das democracias

(Publicado em O Estado de São Paulo, 9 de agosto de 2024)

Em Por que a democracia brasileira não morreu? (Companhia das Letras, 2024), Marcus André Melo e Carlos Pereira argumentam que ela é mais forte do que se pensa, graças à complexidade dos interesses diversos própria do chamado “presidencialismo de coalizão”.   Bolsonaro tentou, mas não teve força suficiente para contrariar os interesses consolidados no legislativo, judiciário, governos estaduais e na burocracia pública, incluindo parte importante das forças armadas. Em diversos momentos, setores ligados ao PT tentaram governar sozinhos, mas não conseguiram. A arte de governar consistiria em reconhecer como legítima e negociar com esta pluralidade de interesses setoriais e particulares, e assim obter apoio para políticas mais amplas que possam ser de interesse geral, como o controle da inflação, o crescimento da economia e a redução da violência.

Claro que estas políticas serão sempre menos perfeitas na democracia do que se fossem implementadas por um governo idealmente todo-poderoso, mas também menos sujeitas a grandes desastres. A democracia, na frase famosa de Churchill, é a menos ruim entre as diversas formas de governo e, bem ou mal, temos feito progresso. Se equivocariam, assim, os que acreditam que a democracia está em crise. Como Felipe Nunes e Thomas Traumann, que, em livro recente, dizem que, por causa da polarização, o Brasil como um todo, e não só o sistema político, entrou em um abismo (Biografia do abismo, Harper, 2023). Ou Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que, alguns anos antes, mostraram em detalhe como as democracias morrem por dentro (How democracies die, Crown, 2018).

O livro de Melo e Pereira ajuda muito a entender como funciona nosso sistema político, mas, ao afastar o medo da morte, corre o risco de fazermo-nos despreocupar com sua saúde. É sem dúvida importante reconhecer e dar legitimidade à pluralidade de interesses na sociedade, mas não é saudável que o sistema eleitoral funcione de maneira tal que os eleitores não sabem quem elegem para o Congresso, que parte crescente do orçamento federal seja destinado a emendas parlamentares de destinação desconhecida, que o aumento dos gastos seja sempre superior ao aumento dos impostos, e que os governos, em seus diferentes níveis, não consigam desenvolver políticas efetivas para lidar com a baixa produtividade, desigualdade econômica, educação, pobreza, violência pública e deterioro ambiental.  Assim como é não é normal que o judiciário sistematicamente livre os políticos de processos por corrupção, e que tantos interesses privados sejam protegidos por isenções fiscais e parcerias pouco claras com agências governamentais. Os autores reconhecem estes problemas, mas argumentam que eles não se devem a “patologias imaginárias” do sistema político, como as deformações do sistema de representação proporcional e do multipartidarismo, mas à falta de mecanismos efetivos de controle, que deveriam se fortalecer em função da disputa eleitoral a alternância no poder.  Não parece, no entanto, que o processo político brasileiro desde o fim do regime militar tenha tido este efeito.

São duas as principais doenças de nossa democracia de coalizão que deveriam nos preocupar.  São enfermidades crônicas, mas vêm se agravando, e não podem ser simplesmente ignoradas pelo “business as usual” da política. A primeira é quando o custo da conciliação e cooptação dos diversos interesses se torna alto demais em comparação com os benefícios que a estabilidade pode trazer. Aqui, é importante não confundir a repartição de benefícios e vantagens com formas descentralizadas de governo, que podem ser superiores à de um executivo todo-poderoso. A segunda é a perda de legitimidade do sistema político quando se torna claro que a lógica do toma-lá-dá-cá prevalece sobre o interesse geral da população. A primeira doença corrói a democracia por dentro, fazendo com que ela se torne cada vez mais disfuncional; a segunda doença a ameaça de fora, destruindo instituições e colocando o país nas mãos de demagogos.

O Brasil tem uma grande concentração de riqueza, e muitos setores, ricos e pobres, que vivem da apropriação das rendas geradas pelos setores mais produtivos. É fato que muitas destas desigualdades e privilégios estão hoje consagrados na Constituição, como se fossem direitos, mas é fato também que a Constituição está longe de ser imutável. A função da política não pode ser, simplesmente, a de manter os diferentes setores satisfeitos, como se fossem imutáveis, ao pêndulo da alternância de poder, e atender os interesses gerais da sociedade com os recursos que sobram, se é que sobram. Em uma democracia, a política é também uma disputa permanente para alterar a distribuição da riqueza e do poder. Isto se faz tanto através dos mecanismos regulares de participação política, as eleições, como também pela disputa de ideias, o trabalho de convencimento pelos meios de comunicação e diferentes formas de participação social e política, incluindo a atividade empresarial, os movimentos religiosos e as sociedades civis de diferentes tipos. A política vai muito além do jogo partidário e eleitoral, e é isto que a torna arriscada, mas também relevante e necessária.

Simon Schwartzman é sociólogo e autor de Falso Mineiro: memórias da política, ciência, educação e sociedade (Intrínseca /  Selo Real, 2021)

O Plano Real e outros planos

(Publicado em O Estado de São Paulo. 12 de julho de 2024)

Meio de penetra, também participo da festa dos 30 anos do Real,  como responsável que fui, na presidência do IBGE, por cuidar da credibilidade dos  índices de preços da nova moeda. Apesar das turbulência desde então, os resultados principais do Real ainda persistem, como o controle da inflação, o fortalecimento das instituições financeiras e a abertura da economia. Duas explicações principais têm sido oferecidas para seu sucesso: a qualidade técnica dos economistas responsáveis e a liderança política de Fernando Henrique Cardoso, que fez com que o Congresso aprovasse as reformas necessárias para que o projeto ficasse de pé. Contribuiu também o sentimento de urgência criado pela inflação galopante, que facilitou sua aprovação.

De lá para cá, muitos outros planos foram instituídos por lei, como os de educação, cultura, mudança do clima, saneamento básico, segurança alimentar, igualdade racial, juventude, política de mulheres, direitos humanos,  defesa e combate à corrupção e ciência, tecnologia e inovação. Nenhum deles apresentou resultados de magnitude semelhante ao do Plano Real e alguns só ficaram no papel, com destaque para o fracassado Plano Nacional de Educação de 2014,  que agora se pretende reeditar. A pergunta que fica é porque o Plano Real deu tão certo e os demais nem tanto.

Parte da resposta é que o Real, na verdade, nunca foi um plano. A Medida Provisória que criou o Real, de 1994, falava de “programa de estabilização econômica”. Na de junho de 1995, convertida na lei 9.069, a expressão “Plano Real” aparecia na ementa, mas não no texto da lei, que trata da reorganização do sistema monetário, tributação, dívida pública e correção monetária. Não é, apenas, uma questão de palavras. O Real não foi um plano como se entende usualmente, com metas detalhadas a serem cumpridas em determinados prazos, mas um projeto de reforma institucional, alterando as regras de funcionamento de uma série de mecanismos básicos da economia. Era um projeto  de inspiração social-democrata, que buscava organizar o espaço para uma economia aberta, competitiva e mais igualitária, colocando limites ao uso abusivo do poder do Estado e de setores privilegiados na apropriação dos recursos da sociedade,  através do endividamento e emissão de moedas sem limites. Para isto, era necessário equilibrar as contas públicas, fechar ou privatizar empresas estatais ineficientes e corrigir distorções tributárias. Não era um projeto de estado mínimo, já que não se questionava a importância de investimentos públicos em áreas como educação, saúde, proteção social,  segurança pública, infraestrutura e modernização econômica. Mas o principal benefício que se esperava de imediato era a melhoria da renda da população através do fim do imposto inflacionário, como de fato ocorreu.

A estabilidade da economia era condição para as outras políticas públicas, mas não suficiente. Esgotados os benefícios iniciais do Real, as agendas sociais impulsionadas pelo Partido dos Trabalhadores e diferentes movimentos sociais foram ganhando força, resultando no sucesso inicial dos governos do PT, mas também em sua frustração com a crise que culmina em 2015, da qual ainda não saímos.  Parte desta crise se explica, certamente, pelo fim do boom das commodities e a desorganização da economia provocada pela “nova matriz econômica”; mas também pela proliferação de planos que consistiam, sobretudo, em metas físicas que resultavam, quase sempre, em crescimento da burocracia, engessamento dos gastos e corrupção, sem benefícios mensuráveis para a sociedade.

São três, pelo menos, as diferenças entre a maioria destes planos e o Real. A primeira é o contraste entre reformas institucionais, que alteram as regras do jogo e o comportamento de diferentes setores da sociedade, e o planejamento de tipo “soviético”, baseado em metas rígidas. A segunda é a existência de equipes técnicas competentes e amadurecidas, capazes de encaminhar soluções baseadas no estado da arte em suas áreas de atuação; e a terceira é a presença de liderança política capaz de negociar com diferentes setores da sociedade, incluindo o legislativo, as condições para que a equipe técnica possa trabalhar. Muitas dos planos instituídos  desde o Real ficaram pelo caminho porque estavam baseados em diagnósticos equivocados, ou foram propostos e administrados por grupos de interesse ou seus “representantes” em que predominam, geralmente, os setores mais organizados e seus parceiros na burocracia pública (os “anéis burocráticos” descritos por Fernando Henrique Cardoso em um livro de 1975), ou não contavam com o apoio de uma liderança política convencida de sua importância e com legitimidade para defendê-los.

Políticas públicas, tanto quanto as políticas econômicas, precisam, para resultar, de especialistas competentes que não errem em seu diagnóstico e formulação,  assim como apoio, legitimidade e engenhosidade política para serem implementadas. São as mudanças institucionais e de cultura, e não planos com metas ou orçamentos detalhados, que, a longo prazo, podem fazer a diferença. Esta me parece ser a grande lição do Plano Real.

Simon Schwartzman é sociólogo e autor de Falso Mineiro: memórias da política, ciência, educação e sociedade (Intrínseca /  Selo Real, 2021)

O Plano Real e outros planos

(Publicado em O Estado de São Paulo, 12 de julho de 2024)

Meio de penetra, também participo da festa dos 30 anos do Real,  como responsável que fui, na presidência do IBGE, por cuidar da credibilidade dos  índices de preços da nova moeda. Apesar das turbulência desde então, os resultados principais do Real ainda persistem, como o controle da inflação, o fortalecimento das instituições financeiras e a abertura da economia. Duas explicações principais têm sido oferecidas para seu sucesso: a qualidade técnica dos economistas responsáveis e a liderança política de Fernando Henrique Cardoso, que fez com que o Congresso aprovasse as reformas necessárias para que o projeto ficasse de pé. Contribuiu também o sentimento de urgência criado pela inflação galopante, que facilitou sua aprovação.

De lá para cá, muitos outros planos foram instituídos por lei, como os de educação, cultura, mudança do clima, saneamento básico, segurança alimentar, igualdade racial, juventude, política de mulheres, direitos humanos,  defesa e combate à corrupção e ciência, tecnologia e inovação. Nenhum deles apresentou resultados de magnitude semelhante ao do Plano Real e alguns só ficaram no papel, com destaque para o fracassado Plano Nacional de Educação de 2014,  que agora se pretende reeditar. A pergunta que fica é porque o Plano Real deu tão certo e os demais nem tanto.

Parte da resposta é que o Real, na verdade, nunca foi um plano. A Medida Provisória que criou o Real, de 1994, falava de “programa de estabilização econômica”. Na de junho de 1995, convertida na lei 9.069, a expressão “Plano Real” aparecia na ementa, mas não no texto da lei, que trata da reorganização do sistema monetário, tributação, dívida pública e correção monetária. Não é, apenas, uma questão de palavras. O Real não foi um plano como se entende usualmente, com metas detalhadas a serem cumpridas em determinados prazos, mas um projeto de reforma institucional, alterando as regras de funcionamento de uma série de mecanismos básicos da economia. Era um projeto  de inspiração social-democrata, que buscava organizar o espaço para uma economia aberta, competitiva e mais igualitária, colocando limites ao uso abusivo do poder do Estado e de setores privilegiados na apropriação dos recursos da sociedade,  através do endividamento e emissão de moedas sem limites. Para isto, era necessário equilibrar as contas públicas, fechar ou privatizar empresas estatais ineficientes e corrigir distorções tributárias. Não era um projeto de estado mínimo, já que não se questionava a importância de investimentos públicos em áreas como educação, saúde, proteção social,  segurança pública, infraestrutura e modernização econômica. Mas o principal benefício que se esperava de imediato era a melhoria da renda da população através do fim do imposto inflacionário, como de fato ocorreu.

A estabilidade da economia era condição para as outras políticas públicas, mas não suficiente. Esgotados os benefícios iniciais do Real, as agendas sociais impulsionadas pelo Partido dos Trabalhadores e diferentes movimentos sociais foram ganhando força, resultando no sucesso inicial dos governos do PT, mas também em sua frustração com a crise que culmina em 2015, da qual ainda não saímos.  Parte desta crise se explica, certamente, pelo fim do boom das commodities e a desorganização da economia provocada pela “nova matriz econômica”; mas também pela proliferação de planos que consistiam, sobretudo, em metas físicas que resultavam, quase sempre, em crescimento da burocracia, engessamento dos gastos e corrupção, sem benefícios mensuráveis para a sociedade.

São três, pelo menos, as diferenças entre a maioria destes planos e o Real. A primeira é o contraste entre reformas institucionais, que alteram as regras do jogo e o comportamento de diferentes setores da sociedade, e o planejamento de tipo “soviético”, baseado em metas rígidas. A segunda é a existência de equipes técnicas competentes e amadurecidas, capazes de encaminhar soluções baseadas no estado da arte em suas áreas de atuação; e a terceira é a presença de liderança política capaz de negociar com diferentes setores da sociedade, incluindo o legislativo, as condições para que a equipe técnica possa trabalhar. Muitas dos planos instituídos  desde o Real ficaram pelo caminho porque estavam baseados em diagnósticos equivocados, ou foram propostos e administrados por grupos de interesse ou seus “representantes” em que predominam, geralmente, os setores mais organizados e seus parceiros na burocracia pública (os “anéis burocráticos” descritos por Fernando Henrique Cardoso em um livro de 1975), ou não contavam com o apoio de uma liderança política convencida de sua importância e com legitimidade para defendê-los.

Políticas públicas, tanto quanto as políticas econômicas, precisam, para resultar, de especialistas competentes que não errem em seu diagnóstico e formulação,  assim como apoio, legitimidade e engenhosidade política para serem implementadas. São as mudanças institucionais e de cultura, e não planos com metas ou orçamentos detalhados, que, a longo prazo, podem fazer a diferença. Esta me parece ser a grande lição do Plano Real.

Simon Schwartzman é sociólogo e autor de Falso Mineiro: memórias da política, ciência, educação e sociedade (Intrínseca /  Selo Real, 2021)

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