Universidade para todos? (2)

(Publicado no site GaúchaZH e Jornal Zero Hora de Porto Alegre)

Com somente 18% da população entre 25 e 34 anos com educação superior, o Brasil está muito atrasado neste aspecto, se comparado com Colômbia (28%) e Chile (30%), sem falar em Portugal (34%), Estados Unidos (47%) e Coréia do Sul (70%) (dados da OECD).  “Universidade para Todos” não existe em nenhum lugar no mundo, mas a preocupação com expandir o acesso à educação superior no Brasil é legítima, e, como as possibilidades de acesso dependem fortemente das condições socioeconômicas das famílias, também faz sentido se preocupar em tornar este acesso mais equitativo. 

A grande expansão da educação superior que vem ocorrendo em todo o mundo acompanhou o crescimento das cidades, a ampliação do setor público e dos serviços, a industrialização e, mais recentemente, a crescente necessidade de pessoas mais qualificadas, que possam participar plenamente do que hoje se denomina “economia do conhecimento”.  Existe uma aspiração crescente, na população, por mais educação superior, não só pela expectativa de maior renda e melhores empregos, como também culturalmente – para as classes altas e médias, ter uma educação superior é cada vez mais o que se espera dos jovens, o “novo normal”.  No Brasil os benefícios financeiros para quem tem educação superior, embora venham caindo, ainda são muito altos: o rendimento médio mensal do trabalho de quem tinha educação superior em 2017 era de cerca de 5 mil reais, comparado com 1.600 para quem tinha somente o nível médio. 

Sensíveis a esta aspiração, os governos do PT investiram pesadamente tanto na expansão do ensino superior público quanto no financiamento do setor privado, que hoje atende a cerca de 75% da matrícula. Pelos dados publicados em 2017 pela Secretaria do Tesouro Nacional, os gastos do governo federal com educação superior e profissional passaram de 32 a 79 bilhões de reais entre 2008 e 2015, e o quantitativo de pessoal das universidades e institutos federais passou de 190 a 300 mil entre 2008 e 2017. Para o setor privado, o principal subsídio foi o sistema de financiamento do crédito educativo (FIES), cujo custo chegou a 32 bilhões de reais em 2016, ainda segundo o Ministério da Fazenda.

Este enorme esforço talvez se justificasse se ele tivesse levado a um aumento significativo do número e sobretudo da qualificação de pessoas altamente educadas no país, e se o ingresso à educação superior de fato proporcionasse as vantagens de emprego e renda tão esperados. Em números, o total de alunos matriculados no ensino superior no setor público aumentou em 50% e duplicou no setor privado desde 2015. No entanto, não sabemos o que aconteceu com a qualidade, porque o sistema de avaliação da educação superior utilizado pelo Ministério da Educação só compara os cursos uns com os outros, sem nos dizer se são bons ou ruins. Temos muitos dados, no entanto, que indicam a grande ineficiência e inequidade do sistema. 

Para entrar no sistema federal, milhões de estudantes enfrentam anualmente a prova do ENEM disputando cerca de 300 mil vagas, e, depois de 4 anos, 30% dos estudantes que entram sistema federal, e quase 40% dos que entram no setor privado, abandonam os estudos antes de terminar. Uma vez formados, quase metade, entre os que têm 40 anos de idade ou menos, terminam trabalhando em atividades de nível médio, bem longe das posições de alta renda e prestígio a que aspiravam. Em termos de equidade, o aumento do número de matrículas abriu  espaço para estudantes provenientes de setores mais pobres, sobretudo no setor privado e nas carreiras menos disputadas, já que, nas universidades federais, o grande filtro operado pelo ENEM se aplica igualmente a estudantes cotistas e não cotistas; e uma análise mais detalhada dos que abandonam os cursos ou terminam trabalhando em atividades de nível médio seguramente mostrará que são, sobretudo, os provenientes de famílias mais pobres e menos educadas. Enquanto isto, a produtividade da economia, medida pelos economistas, tem se mantido baixa e inalterada ao longo do tempo.

O caminho para sair desta situação não é o de restringir a educação superior a um número pequeno de universidades no modelo tradicional, limitando o acesso através de um sistema ainda mais seletivo que o atual ENEM. O caminho é trabalhar para desenvolver um sistema cada vez mais amplo de alternativas de formação de nível superior, atendendo a diferentes públicos; reduzir os privilégios de mercado de trabalho associados às credenciais que não estejam efetivamente associadas a competências, diminuindo assim a demanda por diplomas vazios de conteúdo; condicionar o financiamento público a contratos de gestão claramente estabelecidos com as instituições públicas e privadas, em termos de eficiência, qualidade e empregabilidade de seus formados; informar efetivamente à sociedade dos custos e benefícios associados às diferentes modalidades de educação; e eliminar os subsídios à educação superior quando eles não se justifiquem claramente em termos de equidade e necessidade social.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

7 thoughts on “Universidade para todos? (2)”

  1. O Prof. Schwartzman tem o saudável hábito de indicar por atalhos documentos que subsidiam suas afirmações. Mas não esta afirmação:
    “Uma vez formados, quase metade, entre os que têm 40 anos de idade ou menos, terminam trabalhando em atividades de nível médio, bem longe das posições de alta renda e prestígio a que aspiravam”.
    Gostaria de saber a fonte, dado o impacto do fato.

    Quanto ao nosso ministro, acho que se expressou (propositalmente) fora da “novilíngua” petista, o que deve ter soado muito estranho os ouvidos de algumas gerações que foram formados no caldo de cultura de esquerda que mistura PT e PSDB, em que qualquer coisa que ressoe a palavra “elite” é um autêntico palavrão.
    Foi uma maneira não politicamente correta, e reduzida, de dizer que um modelo único de ensino, pesquisa e extensão (que funciona mal) para TODAS as IFES em todo o território nacional não é viável. Não haverá excelência nem nos três itens em cada IFES e nem ao menos num deste itens em TODAS as IFES a não ser que se procure pela diversificação. Umas serão excelentes em pesquisa, outras serão centros de ensino, outras vocacionais e assim por diante. Alguns cursos não estritamente “universitários”, graduações curtas, mais vocacionais poderão estar abrigadas em grandes campi, mas poderia haver institutos com outras propostas, diferentes das graduações plenas, de 4 anos, todas querendo emular o prestígio de umas poucas profissões de prestígio estratosférico (que não têm como ser emuladas).
    A diversificação é um meio de evitar qualquer ponto claro de “dissuasão”, ou de barreira inequívoca, que separe uma “elite” dos restos dos mortais, de um modo institucionalizado. Se há “trilhas”, que não sejam rastreáveis.
    A palavra elite é o gatilho do mais perigoso dos 3 elementos que os pensadores liberais já haviam identificado como sendo um problema das sociedades modernas: o ressentimento, além do egoísmo, e do materialismo.
    Agora, para diversificar, falta combinar com a corporação de professores, que se vê como um bloco (também com “julgamentos em bloco”) de “professores, pesquisadores e extensionistas”, quando o que mais fazemos é trabalho administrativo, participar de reuniões, ainda mais se tiver cargo, como é o meu caso, de vice-diretor (felizmente a meses do fim). Um bloco cuja renda média a deve colocar possivelmente (já vi este número em algum lugar, mas não lembro ao certo) no primeiro decil de renda (mas para quem “elite” é xingamento…). Mas, de acordo com princípio do Homem Aranha, “maiores os poderes, maiores as responsabilidades”, sempre se pode sacrificar os fins de semana, os recessos, e as férias para manter as leituras em dia, certo?

    1. Os dados são da PNAD contínua de 12/2018. Das pessoas que tem nivel superior, entre 25 e 60 anos (16.6 milhões), 10.% são agrupadas como “dirigentes e gerentes”, 49.8% como “profissionais das ciências e intelectuais”, , 1.8% como “membros das forças armadas, policiais e bombeiros”, e os demais em 7 outras categorias, que podem todas ser consideradas de nível médio.

      1. Obrigado pela fonte professor.
        Gostaria de comentar o uso deste tipo de raciocínio, quando classificamos em categorias ordinais indivíduos por grupos cujo critério de classificação ou discriminação é eminentemente uma característica longitudinal. Ou seja, quando distribuímos indivíduos por categorias baseados numa determinada coleta de dados a respeito de aspectos que dependem da trajetória individual, como renda e trabalho, esta classificação ainda assim é latidudinal, funciona como um retrato de um momento das trajetórias de vida dos indivíduos. Deste modo, distribuições por renda e por categorias profissionais só podem captar um átimo de suas vidas e não podem ser tomadas como o “ponto final” de sua trajetória. Como dizia a lenda do rei Creso da Lidia, “nunca diga que um homem teve uma vida feliz até que ela tenha chegado a termo”.
        Menciono este aspecto por ser comum vermos distribuições percentuais por níveis de renda serem aduzidas como “prova” da desigualdade, quando se pode estar comparando jovens em início de carreira com pessoas maduras em final de carreira. Um boa parte da desigualdade de renda pode ser explicada pela diferença geracional. Ao longo da vida os indivíduos vão acumulando experiência, prestígio, clientela, patrimônio, ou são promovidos, ou se tornam microempreendedores, no caso brasileiro, fazem concurso público para “carreiras típicas de estado” e se tornam a típica casta superior com os salários estratosféricos que não tinham quando saíram dos bancos universitários por volta dos 24 ou 25 anos.
        A categoria mencionada pelo prof. inclui indivíduos entre25 e 60 anos, o que abarca um bocado de desigualdade geracional, que é um fenômeno longitudinal. As pessoas agrupadas em categorias profissionais, não estão no mesmo momento de suas vidas e não saíram dos bancos escolares no mesmo dia, logo uma comparação deste tipo recomendaria testar esta hipótese, se por coorte, os indivíduos, tendo deixado os bancos universitários no mesmo ano, chegaram a resultados diferentes. É claro que chegarão a resultados diferentes, mas se se puder isolar algumas variáveis (pelo menos) associadas a estas diferenças, já seria um ganho. Afinal, há infinitos fenômenos concorrentes, “do fluxo do devir em direção ao infinito” a contribuir para pessoas de carne e osso, e não categorias abstratas intertemporais, tenham, a cada momento um resultado diferente, porque o cosmos é variação, e a igualdade uma abstração matemática.

        1. Sem dúvida, é possível sofisticar mais a informação comparado diferentes grupos de idade (o que é fácil de fazer) ou evolução no tempo (o que é muito mais difícil porque não temos dados longitudinais individualizados). Mas de qualquer maneira a desigualdade é evidente, a distribuição de idade nos diferentes grupos deve ser similar.

  2. A parte final do artigo botou o dedo na ferirda: enquanto o sistema de recrutamento do mercado de trabalho não se tornar mais realista o circulo vicioso da busca por diplomas vazios, baixa remuneração das ocupações e futilidade dos cursos superiores permanece. É pior aí no Brasil, mas não inexistente aqui nos Estados Unidos. Há uma tendência de crescente preocupação com essa questão tanto entre educadores, organizações não-governamentais e até mesmo empresas aqui nos Estados Unidos. Uma coisa interessante (mas só isso: “interessante” e não ainda útil) é a informação organizada sobre o mercado de trabalho. Listo algumas plataformas online desenhadas para aqueles que buscam trabalho ou, mais ainda, para aqueles que precisam tomar uma decisão de médio-longo prazo de formação:
    https://careertrend.com/
    https://www.onetonline.org/
    https://www.thebalancecareers.com/high-paying-jobs-that-don-not-require-a-degree-4147576
    E aqui um artigo do New York Times sobre o assunto: https://www.nwitimes.com/business/jobs-and-employment/high-paying-jobs-that-don-t-require-a-college-degree/collection_db42de6b-5746-5fd1-9b3d-2033f7249822.html#16
    Mike Rowe é um jornalista (conservador, olha só: nem só de liberal vive a reflexão sobre pobreza e mercado) que criou um show chamado “Dirty Jobs”. Aqui vai o link: https://www.youtube.com/playlist?list=ELOn9qi8q4qrw . Ele fez um TED talk sobre o que aprendeu durante o show, onde ele fazia “observação participativa” em ocupações pouco usuais, que não exigem diplomas mas que obviamente são qualificadas: https://www.youtube.com/watch?v=IRVdiHu1VCc&t=7s
    Acho que a moral da história para os Estados Unidos (e me pergunto qual seria para o Brasil) é diferenciar entre “trabalho qualificado/não-qualificado” e “trabalho que requer diploma universitário/não requer diploma universitário”.
    Olhando os links acima, é bem claro que estas ocupações exigem qualificação, sim. Muitas delas não estão associadas a vocational schools. Alguns destes “dirty jobs” só podem ser aprendidos em “internships” e “apprenticeships”, coisa que os empregadores estão mais e mais investindo. Não são sem risco: ser um “esterilizador de ovinos” ou um “reparador de linhas de trem” é um serviço que leva anos para desenvolver proficiência e não é um mercado imenso. Se aquele criador de ovelhas for à falência e o sujeito for um esterlizador profissional de ovinos, boa sorte para conseguir trabalho em alguma fazenda que não implique relocar para outro estado. Isso é comum a qualquer trabalho qualificado, seja ele dependente ou não de um diploma universitário.
    As faixas salariais destes “dirty jobs” e mesmo os não-tão-sujos (New York Times) são bem mais altas do que diversas ocupações que requerem curso superior.
    Várias ocupações gerenciais e mesmo tecnológicas, como técnico em informática, não necessariamente requerem uma formação universitária. O super versátil e frequentemente negligenciado técnico em informática não precisa de 4 anos de matemática aplicada para aprender a resolver problemas de funcionamento de plataforma online ou programas. Pior: os quatro anos de matemática aplicada podem não ser suficientes.
    Isso tudo remete a um problema cultural bem maior: por anos (ou décadas), os governos dos países industrializados trabalharam para incentivar a população a buscar formação universitária. Nada mais ilustrativo que o documento original à presidência no imediato pós guerra, o relatório de Vanevar Bush (Science, the endless frontier). Fico pensando se não falta agora o complemento dele, apontando que cientistas e pessoal de alta qualificação universitária continua sendo necessária, mas os sistemas de ensino superior já estão dando conta disso. Penso que falta uma reflexão sobre a necessidade de qualificação para estes serviços.

    1. Adorei o seu comentário e suas inserções! Eles complementam o artigo e levantam a questão que a meu ver é fundamental. Qual é a necessidade real para o crescimento da população e do mercado? A qualificação de qualidade x o diploma vazio? É uma questão muito importante a ser explorada.

  3. Muito bom. Estou sendo atacado por todos os lados porque ousei concordar publicamente com a afirmação do ministro, que está equivocado em quase todas suas posições. Simon como sempre fazendo a análise mais acertada.

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