Ciência e Tecnologia no Brasil: A Capacitação Brasileira para a Pesquisa Científica e Tecnológica (vol. 3) (1)

Simon Schwartzman, editor

Publicado pela Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996. Os textos aqui são primeiras versões, antes da revisão editorial para publicação.

» Apresentação

» A capacitação brasileira para a pesquisa, Eduardo M. Krieger e Fernando Galembeck

» Biotecnologia, Antônio Paes de Carvalho

» Botânica, ecologia, genética e zoologia, Sônia M. C. Dietrich

» Avaliação das ciências sociais, Fábio Wanderley Reis

» Computação, Carlos J. P. de Lucena

» Engenharia, Sandoval Carneiro Jr.

» Física, Sérgio M. Rezende

» Physiological sciences (fisiologia) Antonio C. Paiva

» Geociências, Umberto G. Cordani

» Inteligência artificial, Walzi C. Sampaio da Silva

» Pesquisa agropecuária, João Lúcio Azevedo

» Pesquisa e tecnologia militar, Geraldo L. Cavagnari Filho

» Química, José M. Riveros

» Saúde, Oswaldo Luiz Ramos

Apresentação

Com este terceiro volume a Fundação Getúlio Vargas completa a publicação dos trabalhos preparados para o estudo sobre a política de ciência e tecnologia no Brasil, realizado entre 1992 e 1993 pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas(2). Os dois primeiros volumes incluíram, como capítulo inicial, um documento síntese com as principais recomendações e conclusões derivadas deste estudo, além de uma série de trabalhos sobre o contexto mais amplo, nacional e internacional, no qual a atividade de pesquisa científica e tecnológica se desenvolve. Este volume reúne uma série de trabalhos sobre áreas específicas do conhecimento - escritos por autores de destaque nas respectivas áreas de pesquisa - que são precedidos por um documento síntese preparado por Eduardo Krieger e Fernando Galembeck. Ainda que realizados com o apoio do Ministério de Ciência e Tecnologia, no âmbito das atividades do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT II), desenvolvido em colaboração com o Banco Mundial, estes trabalhos foram escritos com toda independência por seus autores e não refletem necessariamente as opiniões do governo brasileiro, do Banco Mundial ou do responsável pela coordenação do estudo(3).

Em seu conjunto, e cada qual a seu modo, todos estes trabalhos contam uma história semelhante e têm uma origem comum. A ciência brasileira deu seus primeiros passos mais significativos no início do século XX e vem desde então tentando encontrar seu lugar na sociedade brasileira.(4) Nos anos 30, com a criação da Universidade de São Paulo, e depois da Universidade do Brasil, a pesquisa cientifica encontra um nicho no nascente sistema universitário. Os anos do pós-guerra são um período de grande otimismo quanto aos benefícios que a ciência e a tecnologia poderiam proporcionar ao desenvolvimento econômico e social do país, e o intercâmbio científico e técnico com os países desenvolvidos se intensifica, enquanto são criadas as primeiras instituições nacionais de fomento à pesquisa, dentre as quais a Fundação de Amparo à Pesquisa de são Paulo e o Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq). Os anos de regime militar se iniciam com conflitos intensos entre o governo e muitas dás principais instituições científicas do país, mas, a partir sobretudo de meados da década de 70, os investimentos governamentais na área científica e tecnológica se intensificam, e o governo federal se reorganiza para apoiar a pesquisa de forma mais consistente e com maiores recursos. São os anos de criação do sistema nacional de pós-graduação, da Financiadora de Estudos e Projetos - FINEP), da reformulação do CNPq e do início da política nacional de informática, assim como da implantação do programa nuclear e de outros projetos de grande porte, sobretudo militares. A política do "Brasil Potência", que teve seu auge no governo de Ernesto Geisel, não tem continuidade no governo João Batista Figueiredo, nem é retomada tampouco pelos governos civis que se sucederam desde 1985. O Brasil que emerge de 20 anos de regime militar é um país com graves desequilíbrios econômicos, sociais e institucionais, que precisam ser administrados em um ambiente de intensa competição político-partidária, e neste quadro o setor de ciência e tecnologia não con- segue ser mais do que um entre tantos na disputa por recursos públicos cada vez mais escassos.

O curto período, de menos de 10 anos, em que o setor de ciência e tecnologia no Brasil pôde contar com recursos relativamente abundantes não foi suficiente para que cientistas e tecnólogos demonstrassem os eventuais benefícios que seus trabalhos poderiam trazer ao país, mas bastou para criar um conjunto muito significativo de instituições e grupos especializados, que ficaram depois com a frustração do trabalho interrompido. Em maior ou menor grau, todos os trabalhos incluí- dos neste volume espelham a visão de que a pesquisa brasileira cresceu, mas não o suficiente, e nem sempre com a qualidade que seria desejável. Existem centros e grupos de pesquisa de excelente nível, mas outros nem tanto. A falta de recursos é um problema grave, mas mais séria ainda é a instabilidade institucional, a imprevisibilidade e a falta de políticas bem definidas. As agências de fomento à pesquisa precisariam ser aperfeiçoadas, trabalhar melhor. O governo deveria ter políticas que estimulassem um interesse maior do setor produtivo pela atividade de pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Todas essas considerações são de extrema importância, sobretudo quando vistas no contexto de cada área do conhecimento. É relativamente escassa, no entanto, a discussão sobre se a estratégia de desenvolvimento científico e tecnológico que começou a se armar na década de 70 tinha realmente um futuro promissor, e sobretudo se seria realista tentar voltar às condições daqueles anos, dadas as profundas modificações havidas desde então, tanto no país quanto no mundo. E esta preocupaçãO que preside, por outro lado, a maioria dos trabalhos publicados nos dois volumes anteriores deste projeto.

Vários destes trabalhos, sobretudo os relacionados com áreas mais aplicadas como a pesquisa agropecuária, a pesquisa militar, a computação, a biotecnologia e a química, colocam o dedo em duas questões centrais, que são o relacionamento difícil e complexo entre as atividades de pesquisa e suas aplicações, e o papel do Estado e do setor privado. A leitura conjunta destes trabalhos é extremamente ilustrativa. Em um extremo, o texto de Cavagnari sobre a tecnologia militar ainda insiste no papel do Estado como grande investidor em ambiciosos projetos de alta tecnologia, enquanto Paes de Carvalho, no outro, trata de identificar os mecanismos de ativação da iniciativa privada na área da biotecnologia. Entre os dois, o trabalho de Lucena, sobre computação, testemunha a passagem de uma política de fechamento e auto-suficiência, que caracterizou o início dos anos 80, para uma política de muito mais abertura ao setor privado e à tecnologia internacional, na qual o Estado continua a ter um papel central. Não se trata, somente, de diferenças entre autores, mas sobretudo de diferenças entre áreas, mostrando que não é possível tratar todos os campos da pesquisa cientifica e tecnológica em um mesmo modelo de ação pública governamental. Apesar das diferenças, todos estes trabalhos coincidem na noção de que não basta investir na pesquisa tecnológica, nem na pesquisa acadêmica, para que bons resultados comecem a aparecer, se os mecanismos de articulação e passagem entre os centros geradores de conhecimentos e os usuários de seus produtos não estiverem adequadamente identificados e azeitados.

Dois trabalhos deste conjunto, sobre as ciências sociais e sobre a inteligência artificial, foram escritos com um espírito diferente e chamam a atenção para outros problemas, não contemplados nos demais. As ciências sociais e humanas nunca conviveram de forma confortável com as ciências físicas e biológicas, e seu status científico tende a ser continuamente contestado, tanto por cientistas naturais quanto por seus próprios especialistas. No Brasil, as ciências sociais e as humanidades não eram reconhecidas pelo CNPq até os anos 70, e ainda hoje não têm entrada na Academia Brasileira de Ciências e não recebem apoio do PADCT. O trabalho de Wanderley Reis sobre as ciências sociais é o único que coloca em questão o conteúdo dos conhecimentos produzidos pela área que analisa, e sua conclusão é bastante contundente: as ciências sociais são, em princípio, tão cientiCicas quanto as demais áreas do conhecimento, mas, quando avaliadas deste ponto de vista, o que se produz no Brasil está muito longe dos padrões internacional- mente aceitos. Esta conclusão, fadada a levantar controvérsias nos meios acadêmicos, abre duas questões que não teríamos como desenvolver aqui, mas que devem ser assinaladas. A primeira é se problemas de conteúdo semelhantes aos identificados por Wanderley Reis nas ciências sociais não surgiriam também nas ciências naturais, se estas fossem submetidas a escrutínios equivalentes. No Brasil já se utilizam indicadores de produtividade, como publicações, citações, teses aprovadas etc., como próxis de qualidade dos trabalhos científicos, mas não existe, nas ciências naturais, a tradição de examinar de maneira critica e aberta o trabalho realizado pelos colegas, como é usual na área das ciências humanas e sociais.

A segunda questão, mais complexa, é se o padrão de "cientificidade" seria o melhor critério para avaliar todo o trabalho que se realiza no país não só na área das ciências sociais e humanas, mas também em todo o conjunto de atividades que aparecem usualmente sob o nome genérico de ''ciência e tecnologia''. Uma literatura crescente questiona a existência de uma demarcação clara entre a "ciência" e outras atividades relacionadas com o conhecimento, tanto nas ciências naturais quanto nas ciencias sociais, em atividades como a educação, a inovação tecnológica, a difusão de conhecimentos e a elaboração de conceitos e interpretações simbólicas, que seriam mais típicas da política, da literatura e da história. Nesta visão, as ciências naturais estariam muito mais próximas das ciências sociais e das humanidades do que normalmente os cientistas estão dispostos a admitir(5). Uma conclusão extrema, e certamente inadequada, desta visão seria desqualificar todo trabalho que se procure fazer em nome da ciência e, dessa maneira, o próprio esforço de dar ao país uma base científica e tecnológica moderna digna deste nome. A outra conclusão, muito mais difícil, mas cada vez mais inevitável, é começar a distinguir com mais clareza o que é a atividade cientifica propriamente dita, segundo o consenso das comunidades especializadas, e o que são outras atividades eventualmente tão meritórias como esta, mas que precisariam ser conhecidas e avaliadas em seus próprios termos.

O texto de Sampaio da Silva coloca o dedo na questão da interdisciplinaridade em uma área particularmente difícil, a da inteligência artificial, que requer a convergência das ciências físicas, biológicas, sociais e da filosofia. Aqui, como em outras áreas, existem pessoas e grupos bem qualificados, mas ela sofre de um problema especial - a falta de espaços institucionais adequados para seu crescimento e desenvolvimento. A pesquisa científica e tecnológica no Brasil, organizada sobretudo em departamentos universitários, se estrutura em função de faculdades profissionais, das disciplinas acadêmicas clássicas ou, no máximo, de algumas áreas aplicadas tradicionais, como a engenharia e a pesquisa agropecuária, e tem pouquíssimas condições de se organizar de forma semelhante àquela em que as atividades de pesquisa vêm se estruturando em todo o mundo desenvolvido(6). discussão sobre o caso da inteligência artificial sugere que não basta insistir na necessidade do trabalho interdisciplinar, nem na necessidade de outras caracteristicas que seriam típicas e essenciais para a pesquisa científica e tecnológica modernas, se não tivermos condições de entender e trabalhar também as estruturas institucionais e culturais mais profundas sobre as quais nossa pesquisa científica e tecnológica ainda se equilibra com tanta precariedade.

Notas:

1. Publicado pela Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996. Os textos aqui são primeiras versões, antes da revisão editorial para publicação.

2. Os volumes anteriores são: Schwartzman, S. (coord.). Science and technology in Brazil a new policy for a global world Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas. 1995; e Schwartzman S. (coord.). Ciência e tecnologia no Brasil política industrial, mercado de trabalho e instituições de apoio. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1995.

3. Ainda que escritos entre 1992 e 1993, todos os trabalhos foram revistos ern 1995 para esta edição. Na maioria dos casos não houve, no entanto, atualização dos dados, que têm como referência o ano de 1993.

4. Para uma visão em conjunto dessa história, ver Schwartzman S. A Space For Science - The Development of The Scientífic Community In Brazil University Park, Pennsylvania State University' Press, 1991.

5. Uma das referências mais conhecidas e polêmicas é Latour, Bruno, Science in action: how to follow scientists and engineens through society. Milton Keynes. Open University Press. 1987.

6. Ver, a respeito. Gibbons, Michael; Limoges. Camille; Nowotny. Helga; Schwartzman Simon; Scott, Peter & Trow, Martin. The new production of knowledge - the dynamics of science and research in contemporary societies. London, Sage, 1994.