Juventude, educação e emprego no Brasil

O último número dos Cadernos Adenauer, publicação da Fundação Konrad Adenauer, tem o título de Geração Futuro, e inclui vários artigos sobre a juventude brasileira, inclusive um de Maurício Blanco Cossio e meu, sobre juventude, educação e emprego, que está disponível aqui.

O ponto de partida foi a constatação de que, nos últimos anos, tem havido muitas iniciativas e programas para aumentar a empregabilidade e o nível de remuneração dos jovens que já estão ocupados, mas estas iniciativas, em geral, não têm tido bons resultados. O desemprego entre os jovens é significativamente alto quando comparado com o resto da população economicamente ativa, e está aumentando, sobretudo entre aqueles com baixa escolaridade.

A principal dificuldade tem sido superar o círculo vicioso entre um nível educacional baixo – provocado principalmente pelo abandono escolar e as altas taxas de repetência – e as condições socioeconômicas precárias enfrentadas por esta faixa populacional. É muito freqüente a afirmação de que as altas taxas de evasão entre jovens de baixa renda são causadas pela necessidade dos jovens de se inserir prematuramente no mercado de trabalho. A solução derivada deste raciocínio é aparentemente óbvia: programas condicionais de renda mínima, que incentivem as famílias a fazer com que os seus filhos permaneçam na escola.
Os resultados destes programas, no entanto, tem sido decepcionantes. No Brasil, como em outros países, estes programas podem resultar em um pequeno aumento da freqüência escolar entre setores sociais de renda mais baixa, mas não mostram resultados detectáveis na melhoria do desempenho escolar, nem na redução das taxas de abandono e repetência.

Os dados nos permitem questionar a idéia de que o baixo nível educacional dos jovens é apenas produto das suas condições socioeconômicas, que explicaria a entrada prematura ao mercado de trabalho de milhões de jovens brasileiros, provocando por sua vez desemprego e baixas remunerações. Ao contrário, o que argumentamos é que o problema principal se encontra no interior do sistema educacional e, que este problema incide, principalmente, nos jovens pobres e, em conseqüência, nas suas oportunidades de encontrar melhores empregos. É devido à educação deficiente que as crianças pobres enfrentam maiores dificuldades e altas taxas de repetência desde os primeiros anos da escola, o que incide, posteriormente, no alto grau de evasão escolar, fazendo com que ingressem ao mercado de trabalho sem condições adequadas. Se isto é verdade, então o trabalho fundamental para romper o círculo vicioso da má educação e trabalho precário e mal remunerado precisa ser feito junto ao sistema escolar, e não no mercado de trabalho, e nem por subsídios à demanda por educação, embora políticas específicas nestas áreas possam também ter seu lugar.

Bolsa família para jovens de 15 a 17 anos: vai funcionar?

Em 2004 fiz uma análise dos dados da PNAD/IBGE dos beneficiados com programas de bolsa escola, e mostrei que havia um erro grave de focalização: a bolsa era para famílias com crianças até 15 anos, mas a deserção escolar só ocorria, de forma mais significativa, a partir dos 15 anos de idade. Outros estudos mostraram a mesma coisa, e agora, finalmente, o governo resolveu ampliar a bolsa para famílias com jovens de 15 a 17 anos. Será que vai resolver?

A tabela abaixo, extraída da PNAD 2005, mostra que, dos 3.1 milhões de jovens de 15 a 17 anos em famílias de renda familiar per capita inferior a 120 reais por mês, que é o critério do programa, 75% estuda, e não precisa da bolsa. Dos que não estudam, 42% trabalham e ganham em média 75 reais por mês, que é aproximadamente o que sua familia receberia se já não estivesse recebendo a bolsa por causa de filhos menores (60 reais para a familia e mais 15 por estudante, até 3 por familia). Existem 105 mil que estão buscando trabalho, e outros 359 mil que não trabalham nem estudam.


Ocorre que 25% destes jovens fazem parte de familias de 4 ou mais filhos, e por isto já recebem pelo teto do programa, e mais 50% estão em famílias de 2 e 3 filhos, e poderiam receber no máximo um adicional de 15 reais. Sobram um quarto, ou 200 mil jovens que não estudam e cujas familias poderiam receber o auxilio de 75 reais. Outras 595 mil familias poderiam também receber, cujos filhos já estão na escola de qualquer maneira.

Trazer de volta à escola 200 mil jovens seria importante, mas a grande dúvida é se eles realmente estão fora da escola por falta de dinheiro. Os dados mostram que só metade deste grupo de 800 mil jovens de familias pobres trabalha ou busca trabalho; por outro lado, existem 732 mil jovens de renda semelhante que trabalham e nem por isto deixam de estudar. Existem fortes razões para acreditar que os que abandonam a escola o fazem por que não conseguem aprender e acompanhar os cursos, dada a forte e conhecida relação entre nível socioeconomico, educação das famílias, e desempenho escolar dos filhos.

O reconhecimento, embora tardio, que o grupo alvo da política de reter os jovens na escola deve ser o da faixa de 15 a 17 anos é importante; mas o remédio, claramente, não é a bolsa familia, e sim o caminho mais difícil e trabalhoso de melhorar a qualidade das escolas públicas e torná-las atrativas e proveitosas para os jovens que as freqüentam.

Jacques Schwartzman: O Ensino Superior no Programa de Desenvolvimento da Educação

O seguinte artigo foi publicado no Estado de Minas de 31 de maio de 2007:

Ainda que, acertadamente, a maioria das ações deste novo Programa se dirijam ao ensino básico, ele também inclui cinco importantes medidas para as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). A primeira e mais audaciosa delas é a proposta de se dobrar as vagas oferecidas em 10 anos, através da ampliação de cursos noturnos, redução da evasão para 10% e aumento da relação aluno professor de 10 para 18. Estimula também maior flexibilidade nos currículos, permitindo a maior circulação de alunos entre instituições e cursos e, reduzindo a especialização precoce. As Instituições Federais de Ensino Superior poderão propor ao MEC um projeto dentro dessas linhas e assim obter o respectivo financiamento. Segundo alguns cálculos preliminares, o orçamento poderá ser acrescentado em 2,1 bilhões de reais, o que representaria uma adição de 20% em relação ao que se pratica hoje, não considerando os inativos. Esta proposta parte do entendimento de que existe um certo grau de capacidade ociosa de professores, funcionários e espaço físico, o que deve ser verdadeiro, embora em graus diferentes entre as IFES. Um outro mérito da proposta é a adesão voluntária e a possibilidade de se obter o financiamento com combinações diferentes de metas, em termos de evasão, cursos noturnos e ampliação de vagas diurnas. As IFES também poderão traçar seus projetos de tal forma que não se prejudique a qualidade dos cursos de graduação e o funcionamento da pós-graduação onde ela for significativa.

Uma outra proposta, aparentemente simples, poderá trazer importantes mudanças na política de pessoal das IFES e afetar positivamente a qualidade dos gastos em Pessoal docente. Trata-se de um banco de horas que substituirá os atuais procedimentos. Desde muitos anos, o governo libera para as IFES um certo número de cargos de professor, constante dos quadros de cada uma delas. Ao obtê-lo, procura contratar professores em dedicação exclusiva, o que certamente é melhor para elas do que contratar professores em tempo parcial. A consequência é que a maioria das IFES têm em seus quadros hoje cerca de 90% de professores neste regime, algumas chegando a 100% . Isto eleva desnecessariamente as despesas com pessoal, mesmo porque nem todos podem ou querem fazer pesquisa, e muitos cursos profissionais se beneficiariam com a contratação de mais professores em 20 horas, que trariam a sua experiência prática para dentro da Universidade Na nova lógica seria possível contratar 3 professores de 20 horas ao invés de apenas 1 em dedicação exclusiva. Esta é uma decisão que cabe a cada IFES e certamente contribui para a sua tão almejada autonomia. Restaria incluir no projeto professores horistas(que poderiam substituir os atuais de 20 horas) que
não precisariam de estar na carreira docente,mas poderiam trazer sua vivência profissional sem se preocupar com publicações e títulos de pós-graduação.

A modernização da lei dos estágios é necessária para que ele seja mais um instrumento de aprendizagem( inclusive valendo créditos) e não se constitua numa mão de obra barata graças a isenção de encargos sociais.

As modificações no Programa de Financiamento Estudantil – FIES (aumento do prazo de carencia para o dobro do tempo do curso) e o Programa Universidade Para Todos – PROUNI (utilização dos certificados dos alunos do FIES no PROUNI para pagamento de débitos fiscais) certamente aumentarão a oferta de vagas no sistema privado, embora seja difícil avaliar o seu impacto.

Finalmente, é lançado mais um programa de incentivos , liderado pela CAPES, que procura reter no Brasil jovens doutores. Ele não é exclusivo para as IFES, podendo participar outras IES, Centros de pesquisa e empresas privadas,mediante projetos que demonstrem uma inserção relevante dos recém graduados.

Este conjunto de medidas não exaure a lista de problemas que as IFES enfrentam, mas certamente trará mais eficiência e levará mais racionalidade nos processos decisórios.

Jacques Schwartzman , Diretor do Centro de Estudos sobre Ensino Superior e Politicas Públicas, da Universidade Federal de Minas Gerais.

Mercado e qualidade da educação: os exemplos lá fora

– Na Inglaterra, o governo cria um novo programa para aumentar dramaticamente os recursos públicos e privados das universidades de elite, conforme artigo no The Guardian

– Nos Estados Unidos, a Universidade de Phoenix, maior instituição privada do país, voltada para estudantes que trabalham, enfrenta problemas de qualidade, segundo o New York Times

O aumento do trabalho infantil e a educação

Ontem eu publiquei uma nota comparando os dados da PNAD / IBGE de 2004 e 2005, tratando de entender o aumento do trabalho infantil ocorrido neste período, e sua possível relação com a redução da matrícula escolar, que vem aparecendo no censo escolar do Ministério da Educação. Ao contrário do que eu havia dito naquela nota, que por isto foi retirada, os dados na PNAD não acusam a redução da matrícula escolar, e sim um pequeno aumento, além de uma redução pequena, mas salutar, na proporção de jovens de 15 a 17 anos que ainda estão no primeiro grau. Minha hipótese, de que o aumento do trabalho infant poderia se dever a uma piora da situação escolar, não pode ser verificada com estes dados. Quando entender melhor o que está passado, digo.

Chile: descolando da América Latina

Com o PIB mas alto da região, segundo relatório recente do FMI, o Chile deixa cada vez mais de ser um país “latino-americano”, e se transforma em um país moderno e desenvolvido. Isto se vê com facilidade andando por Santiago, com a arquitetura moderna dos bairros altos, a recuperação do centro histórico, a modernização dos transportes urbanos e as obras rodoviárias por toda parte; e as ruas cheias de gente fazendo compras e enchendo bares e restaurantes, tanto na região elegante da Providencia como na parte antiga da Plaza de Armas e do Mercado Central. Os índices de pobreza no Chile vêm caindo a cada ano, e a distribuição dos gastos sociais é uma das melhores da região. A zona da antiga e decadente Avenida da República é hoje uma área fervilhante de universidades e institutos técnicos privados, freqüentados todos os dias por mais de 50 mil estudantes, sem falar nas universidades tradicionais como a do Chile e a Católica. Até as águas do Rio Mapocho parecem correr mais limpas. Com a proximidade da festa nacional de 18 de setembro, as ruas se enfeitam de bandeiras, e por toda parte se fala da comemoração da “Chilenidad”.

Também há problemas, e muitos. No dia 11 de setembro, aniversário do golpe de Pinochet, grupos de extrema esquerda encapuzados atacaram lojas e repartições públicas com bombas molotov, uma delas provocando um incêndio no palácio presidencial de La Moneda; uma greve dos serviços médicos havia paralisado o atendimento à população; e professores e estudantes das escolas municipais ameaçam com greves e mais manifestações, enquanto o governo tenta resolver os problemas através de comissões de trabalho e negociações que parecem não terminar. Na última década, o governo chileno aumentou muito os investimentos em educação, o ensino médio está praticamente universalizado, a jornada completa se expande rapidamente por toda a rede escolar; mas os resultados do Chile no teste de Pisa são tão ruins quanto os do Brasil ou do México.

Em que medida o que acontece hoje no Chile, de bom e de ruim, tem a ver com as reformas liberais introduzidas durante regime Pinochet? Estas reformas foram mantidas, com modificações, pelos governos de centro-esquerda da Concertación, e o consenso do país, inclusive nos governos socialistas de Lagos e Michelle Bachelet, é que não faz sentido voltar aos velhos tempos, de uma sociedade burocratizada e paralisada. O Chile tem hoje a economia mais competitiva da América Latina, aonde se pode, com mais facilidade, abrir e fechar um negócio, e aonde a abertura ao comércio internacional é maior. Este tipo de economia tem também seus perdedores, e isto explica, talvez, a virulência dos ataques da extrema esquerda, apesar do grande apoio da presidente Michelle Bachelet entre a população.

E existe também o cobre, cujo preço no mercado internacional aumentou enormemente nos últimos anos, gerando grande quantidade de recursos, ao lado das indústrias de exportação como o vinho, as frutas e o salmão. Mas o Chile, diferentemente de outros paises que se enriqueceram com o petróleo, investe a longo prazo e cuida para que a riqueza do cobre não inflacione a economia nem sobre-valorize a moeda, evitando, desta forma, a “doença holandesa” que é a praga dos paises que se enriquecem desta maneira.

Mas o mais importante de tudo, talvez, seja a maturidade política que sempre existiu no país de alguma maneira, sobreviveu aos anos de chumbo da ditadura, e hoje é, possivelmente, a principal diferença entre o Chile e a maioria dos outros paises do continente. Os partidos políticos têm princípios e programas, os políticos são pessoas honradas, há pouca corrupção e pouco espaço para o populismo barato que conhecemos tão bem. Temas controversos – como a política de distribuição da “pílula do dia seguinte” para adolescentes, a reforma da educação, ou as relações sempre difíceis com a Argentina – são discutidos de forma civilizada pela imprensa, o judiciário é independente e acatado e, com a exceção da extrema esquerda alienada, todos respeitam e valorizam as instituições e os processos democráticos de decisão.

Que dá inveja, dá…

Meu reino por uma tomada!

Em Oslo por uma temporada, saí procurando adaptadores poder ligar meus diversos aparelhos de três pinos ou com padrão americano nas tomadas daqui. Ninguém tinha, fui mandado de loja em loja, até que alguém me indicou uma grande loja especializada em todo tipo de artigos elétricos. Depois de procurar em todas as prateleiras, resolvi pedir a ajuda do técnico especializado que me disse, em excelente inglês, que nenhuma loja da Noruega venderia isto – e havia um certo tom de reprovação na voz, como se eu tivesse querendo comprar algum tipo de droga proibida. Me lembrei que, dez anos atrás, tive o mesmo problema em Oxford, na Inglaterra, aonde acabei sendo socorrido pelo técnico do sistema de computação da universidade, que me passou um adaptador como quem vende uisque contrabandeado.

Imagino que seja um velho mecanismo de reserva de mercado, para forçar as pessoas a comprar produtos nacionais ou importados localmente, ao invés de trazê-los dos Estados Unidos, aonde custam a metade, ou da Ásia. Algo como as “regiões” de proteção dos DVDs, e mais fáceis ainda de burlar (mas vou ter que esperar a primeira viagem para comprar adaptadores em algum aeroporto, aonde são vendidos aos montões, ou então em algum camelô em algum outro país, já que aqui não existem). E isto quando , na area de produtos eletrônicos, a única indústria local que ainda parece sobreviver na Escandinávia, pelo design extraordinário, é a dinamarquesa Bang & Olufsen, mesmo assim enfrentando a forte concorrência em estilo da Sony e, cada vez mais, da Apple. É uma mostra da força da indústria local, capaz de manter indefinidamente esta proibição ridícula de venda de adaptadores, mas também da sua obsolecência, no mundo globalizado do qual os países escandinavos participam tão bem em tantos aspectos.

O Banqueiro do Mundo

Para quem se interessa pelos temas da pobreza, desigualdade social e direitos humanos, o livro de Sebastian Mallaby, The World’s Banker – uma história de estados falidos, crises financeiras e a riqueza e a pobreza das Nações (New York, Penguin, 2004) é leitura obrigatória. O “Banqueiro do Mundo” é Jim Wolfenshon, presidente do Banco Mundial entre 1995 e 2005, personalidade ambiciosa e contraditória, ao redor da qual Mallaby produz uma esplêndida análise das atividades do Banco Mundial, não somente através de seus projetos, como sobretudo através do confronto permanente entre diferentes visões a respeito do seu papel e de como enfrentar as questões da pobreza e do subdesenvolvimento, do meio às pressões políticas de todos os lados, as grandes crises financeiras e as guerras civis que marcaram a última década, antes que o 11 de setembro sinalizasse, talvez, o início de uma nova era.

Nestes anos, o Banco Mundial deixou de ser uma agência de investimentos em grandes obras de infra-estrutura, e tentou se transformar no campeão mundial dos direitos humanos, da proteção do meio ambiente e da organização dos pobres e discriminados em defesa de seus direitos e interesses. Mallaby resume esta passagem dizendo que o Banco, que no início só se preocupava com o capital físico, passa pelo tema do capital humano, e termina como o grande propulsor do capital social. Esta mudança não se explica, simplesmente, pelas idéias do seu presidente, mas pela maneira pela qual ele reage e procura se adaptar a todo o tipo de pressões e conflitos que atingem a instituição, desde os governos conservadores que não acreditam que exista um papel para organizações multilaterais como esta, nem políticas de combate à pobreza que possam resultar, até as organizações não governamentais que vêm no Banco um agente dos interesses da globalização, do capitalismo multinacional e das ambições imperialistas dos Estados Unidos. Não é uma mudança bem sucedida: o livro mostra como, na ânsia de agradar a todos, o desagrado é geral, o Banco passa por graves crises e conflitos internos, e termina voltando, dentro de certos limites, aos projetos de infra-estrutura mais tradicionais.

Wolfensohn assume o Banco quando, em Madrid, manifestantes exigiam nas ruas o fechamento da Instituição, proclamando que “cinqüenta anos já bastam”. Segundo os críticos, o Banco funcionava como braço auxiliar do Fundo Monetário Internacional das políticas de ajuste fiscal que forçavam os países pobres a cortar orçamentos, desmantelar os sistemas de bem estar social, privatizar empresas estatais e abrir as fronteiras para o capitalismo internacional; e, além disto, vinha de uma tradição de apoio a governos corruptos e ditatoriais, aliados do ocidente na Guerra Fria. “A imagem do economista do Banco Mundial viajando de primeira classe de Washington para uma capital qualquer do terceiro mundo, trazendo uma mala de dinheiro para ditadores corruptos, ficou gravada na imagem do público: os ajustes estruturais passaram a ser vistos como um pacto pernicioso entre o burocrata e o autocrata” (p. 49).

Wolfensohn tenta mudar esta situação, criando ou recuperando a imagem do Banco como instituição sensível, preocupada com a pobreza e com o meio ambiente, e intolerante com a corrupção. Para mostrar sensibilidade, o banco deveria ouvir e responder a todas as demandas e críticas das organizações não governamentais, e ser ainda mais radical que elas em seu compromisso com os pobres; para cuidar do meio ambiente, o Banco passa a incorporar normas cada vez severas de avaliação de impacto ambiental de seus projetos, e reduz o financiamento a barragens e outras obras que pudessem levar ao deslocamento de populações, a ameaça a espécies e à poluição do meio ambiente; para não se comprometer com a corrupção, o Banco procura apoiar programas que transferem recursos diretamente às pessoas, e não às burocracias, ou condicionar os empréstimos e financiamentos à criação de mecanismos e instituições que possam garantir seu bom uso. O Banco transfere os escritórios de suas coordenações nacionais para os respectivos países, e passa a ser um defensor do perdão da dívida externa dos paises mais pobres. A reforma do setor público, com a criação de instituições modernas e eficientes nos países em desenvolvimento, passa a ser objeto de atenção cada vez maior. Ao mesmo tempo, o Banco continua e amplia suas atividades de análise e pesquisa, transformando-se no principal centro de estudos sobre temas relacionados à pobreza e ao desenvolvimento em todo o mundo.

Existiam limites, no entanto, para tudo isto. As políticas de ajuste estrutural não estavam ajudando a maioria dos países a revigorar suas economias, e elas não dependiam do Banco, que, no entanto, era chamado a colaborar com o FMI na montagem dos pacotes de financiamento para atender às crises mais graves. As críticas que o Banco poderia ter a estas políticas, expressas de forma mais radical nos escritos de Joe Stiglitz, se referiam sobretudo à forma em que estas políticas eram impostas e implementadas nos países, e não à sua necessidade do ponto de vista macroeconômico. O problema parecia estar relacionado, sobretudo, à questão da “good governance”, bom governo, que era associada mas não se reduzia à questão da corrupção política. Nos tempos da Guerra Fria, e antes da crise do ajuste econômico, o Banco apoiava governos como o do Presidente Suharto da Indonésia, entendendo pragmaticamente que o importante era que a economia crescesse e o que país se mantivesse alinhado ao bloco ocidental, mesmo que neste processo algumas pessoas se fizessem multimilionárias e os princípios democráticos sofressem. A crise do ajuste mostrou que, na hora de disciplinar os gastos públicos, privatizar companhias e redirecionar os gastos sociais, ter um governo agindo com competência e responsabilidade e outro que só está interessado em se manter no poder e distribuir favores entre amigos podia fazer toda a diferença. Países bem governados, como a Uganda, a China e o Chile, encontraram formas de usar bem os recursos internacionais e enfrentar as crises, enquanto que outros, como as Filipinas, a Indonésia e a Bolívia não o fizeram.

As relações entre ética, competência e resultados, no entanto, são muito mais complexas do que aparentam: na economia, não há boas intenções que sobrevivam a uma política macroeconômica equivocada; na política, governos totalitários cometem os piores crimes em nome de princípios elevados e da busca da eficiência econômica e da ordem social, enquanto que líderes democráticos necessitam negociar apoios e alianças sem sempre palatáveis. O casos da Argentina e Brasil, que Mallaby não analisa ilustram bem os dilemas envolvidos. Por um tempo, na Argentina, parecia que a paridade com o dólar, estimulada e elogiada pelo FMI, havia feito a mágica de fazer o país entrar definitivamente para o primeiro mundo. Diante disto, a corrupção do governo Menem e o descontrole das finanças públicas pareciam um inconveniente desagradável, mas sem maiores conseqüências. Depois do desastre, discute-se ainda se era a política econômica que estava errada, e que fracassaria com qualquer governo, ou se foi a irresponsabilidade das autoridades que faz o país perder uma oportunidade de ouro. No Brasil, governos democráticos e honestos como os de Fernando Henrique Cardoso e Lula nem sempre souberam definir com clareza a fronteira entre políticas necessárias de aliança e tolerância inadmissível à corrupção.

Esta complexidade não existe para os ideólogos da política e dos movimentos sociais. A maioria das organizações não governamentais do primeiro mundo, descritas por Mallaby como “a máfia de Berkeley”, vê o mundo em preto e branco, e depende da mobilização constante e do impacto na mídia para continuar existindo. Mallaby examina em detalhe um caso extremo, a polêmica criada contra o projeto de financiamento de construção da represa de Qinghai na China, na região do Tibet, aparentemente de grande valor e interesse para os habitantes da região, mas contestada violentamente pelas ONGS nos Estados Unidos. “O cerco das ONGS, visível nas ruas ao redor dos escritórios do Banco em Washington, existia de forma invisível dentro do próprio Banco. Para aplacar os missionários, o Banco os deixou entrar em seus domínios, criou regras que refletiam os valores dos missionários, e jurou obedecê-las. O resultado foi uma organização de desenvolvimento que foi perdendo contato com os países em desenvolvimento, uma organização que refletia a agenda dos ativistas do Norte, e não as difíceis circunstâncias de seus clientes mais pobres.”

A oposição dos círculos mais conservadores, que se intensificou a partir da presidência de George W. Bush, não era muito diferente. Por um lado, havia os que, como o Secretário do Tesouro Paul O’Neill, consideravam que o crescimento do mercado privado de capitais tornava uma instituição multilateral como o Banco Mundial desnecessária, e não viam nenhum valor em suas tentativas de agir em todas as áreas relacionadas com os temas da pobreza, sem a eficiência e a clareza de objetivos das grandes empresas privadas, como a Alcoa, de onde vinha o Secretário. Mais amplamente, o governo Bush, como principal acionista do Banco, nunca aceitou de bom grado que esta fosse uma instituição multilateral que tivesse suas políticas próprias, e não alinhadas às orientações e aos valores do governo norte-americano. Esta situação se tornou particularmente difícil depois da invasão do Iraque, quando o Banco é chamado, mas reluta, em participar do financiamento da reconstrução do país. O mundo é simples, para os conservadores americanos. De um lado, estão as virtudes do capitalismo, da democracia e do American way of life; de outro, o resto. Cabe a cada um decidir de que lado quer ficar, sem dúvidas, complicações e elaborações intelectuais mais complexas, que só expressam a falta de clareza moral e de convicções das pessoas. De alguma maneira, Wolfensohn consegue sobreviver ao primeiro mandato de Bush, mas, em 2005, o governo americano nomeia para seu lugar um de seus ideólogos mais conservadores, Paul Wolfowitz.

Mallaby não é um radical, e sua avaliação do Banco Mundial nos anos de Wolfensohn é balanceada. Ele critica Wolfensohn pelas tentativas de reforma institucional do Banco, que jamais poderia funcionar como uma empresa, e que sofreu grande desgaste pelos processos constantes de reorganização interna. Ele considera correta a postura do Banco em relação às políticas de ajuste estrutural do FMI, ao considerar que medidas financeiras não funcionariam por elas mesmas, e colocar o foco de atenção nos problemas de corrupção, do perdão da dívida dos países mais pobre, e do enfrentamento direto dos problemas da pobreza. Por outro lado, ele critica a tentativa do Banco de criar uma nova estratégia global de atuação, através do que ficou conhecido como o “Comprehensive Development Framework”. As duas principais idéias nesta estratégia era que os projetos de desenvolvimento não poderiam ser impostos pelo Banco aos países e controlados por condicionalidades, mas deveriam ser solicitados e “apropriados” por eles (a expressão inglesa é “country ownership”); a segunda era a abrangência dos projetos: não haviam prioridades, tudo precisava ser feito ao mesmo tempo – educação, saúde, reforma institucional, sistema de crédito, infra-estrutura de transportes e eletricidade… Ainda que plausíveis em teoria, estas idéias dificilmente funcionavam na prática, pela própria relação assimétrica entre um grande Banco com muito dinheiro e países pequenos buscando adivinhar as intenções e agradar o financiador.

Ao final, Mallaby diz que o principal problema com a gestão de Wolfensohn foi a grande ambição de atender a todos, e fazer do Banco o grande motor do desenvolvimento e do combate à pobreza. O Banco Mundial não é um substituto para um governo mundial, o dinheiro que dispõe é só uma fração dos recursos que os países necessitam para se desenvolver, e seus milhares de funcionários, por melhores que sejam, são poucos se comparados com as grandes administrações dos países ricos ou em desenvolvimento. Não é possível, ao mesmo tempo, agradar os acionistas, atender aos ditames da política externa e interna norte-americana, obter o apoio dos governos dos países em desenvolvimento e as ONGS da “máfia de Berkeley”, enfrentar a corrupção, e ajudar os pobres do terceiro mundo a se tornarem responsáveis pelo seu próprio destino. A esta ambição messiânica e desmesurada, Mallaby contrapõe a importância da humildade, que poderia fazer com que o Banco pudesse usar, da melhor maneira possível, o grande acervo de experiências e conhecimentos que tem acumulado ao longo destes anos tão tumultuados. Agora é esperar para ver.

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