Freio de Arrumação no Ensino Médio

(Publicado em O Estado de São Paulo, 14 de abril de 2023)

Finalmente, o Ministério da Educação viu que a reforma do ensino médio não andava bem, e deu uma parada. Agora se discute se ela deveria ser anulada ou se dá para consertar, mas pouco se fala sobre porque foi feita, e os problemas que tentou resolver.

(Já escrevi inúmeras vezes sobre os temas da reforma do ensino médio, dos itinerários, dos parâmetros curriculares, da necessidade de reformar o ENEM, do ensino profissional, etc., participando de um debate que já deveria ter amadurecido. Volto ao assunto agora porque ele voltou à agenda, e na esperança de que, de tento repetir, alguém preste atenção….. para ver os artigos anteriores publicdos aqui, basta clicar em “ensino médio” no alto à esquerda do blog).

O ensino médio tem que atender a uma população de quase 10 milhões de pessoas em condições, interesses e projetos de vida muito diferentes, e não é possível que todos sigam o currículo tradicional que vem dos tempos de Gustavo Capanema 80 anos atrás. Era um currículo destinado aos filhos das elites que se preparavam para as profissões universitárias, quando a grande maioria mal completava um curso primário de quatro anos.

Aos poucos, o acesso à educação primária aumentou, até quase se universalizar na década de 1990, tendo como foco a capacitação inicial em leitura, escrita e aritmética. O ensino superior também se expandiu. Falava-se em “universidade para todos”, para o qual o ensino médio seria a porta de entrada. O antigo ginásio, para crianças entre 11 e 14 anos, se incorporou ao primário, ficando como o patinho feio da educação brasileira, espremido entre os que se preocupam com a alfabetização, em uma ponta, e com o ensino médio e o acesso ao ensino superior na outra.

Mas a educação brasileira cresceu de forma muito desigual. Uma pequena minoria consegue completar razoavelmente bem o ensino médio unificado, em escolas particulares ou em poucas escolas públicas seletivas, e entra nas carreiras universitárias mais valorizadas. A grande maioria mal cumpre as obrigações mínimas dos currículos obrigatórios e, ou fica com um diploma de nível médio sem qualificação profissional, ou tenta uma carreira superior de fácil acesso, mas com grandes chances de ficar pelo caminho e não se profissionalizar.

Em todos os países existem desigualdades na educação, porque as pessoas vêm de ambientes diferentes e têm interesses e capacidades distintas. As escolas podem pouco para compensar as diferenças que os estudantes trazem, e as melhores politicas educacionais são aqueles que buscam compensar estas diferenças o mais cedo possível. Não é à toa que o exame de Pisa, adotado em quase todo o mundo para aferir a qualidade da educação, é aplicado a jovens de 15 anos, quando devem estar completando a educação fundamental, e já deveriam ter os conhecimentos fundamentais de leitura, raciocínio matemático e formação geral nas ciências naturais, sociais e humanidades.  Muitas das críticas que têm sido feitas à reforma do ensino médio de 2017 é que ela deixaria de dar a educação geral que seria necessária para todos. Mas é no ensino fundamental, até aos 15 anos, e não no médio, que esta formação geral precisa ser dada.

Aos 16 ou 17 anos de idade, que é quando a maioria dos jovens brasileiros entra no ensino médio, as cartas já estão dadas. Pretender que todos vão seguir o mesmo caminho e se tornar universitários é condenar a grande maioria à frustração. Dividir desde cedo entre os que seguirão os cursos universitários e os destinados aos cursos técnico-profissionais, como tem sido feito na maioria dos países na Europa e Ásia, pode ser mais eficaz, mas mantém a sociedade divida em classes, e com os menos qualificados sujeitos às incertezas de um mercado de trabalho em permanente sobressalto.

O caminho é oferecer um leque de escolhas, reconhecendo que existem diferenças, mas sem colocar a população em camisas de força. Para os que pretendem entrar desde logo em carreiras universitárias, é preciso permitir que se direcionem desde logo para suas áreas de preferência. É possível desenhar os currículos de muitas maneiras, mas, basicamente, são quatro opções: a formação nas áreas técnicas de matemática e engenharia: nas ciências biológicas e da saúde: nas profissões sociais como administração ou direito: ou nas artes e humanidades, escolhendo uma como principal e outras como secundarias. 

Para os que precisam trabalhar mais cedo, não têm interesse ou condições de seguir desde logo a trilha universitária, deve ser possível oferecer uma formação mais prática e valorizada no mercado de trabalho.  Um bom curso profissional de nível médio ou pós-secundário pode ser tão ou mais interessante do que muitos diplomas universitários. As redes públicas estaduais não sabem fazer isto, é preciso trazer a ajuda do Sistema S e de algumas poucas escolas técnicas estaduais, e fortalecer o sistema de aprendizagem em parecerias com o setor produtivo.  E é preciso abrir mais espaços na educação superior, pela ampliação da formação mais prática e aplicada também neste nível.

Não há como amarrar tudo isto em currículos fixos, mas é possível direcionar as mudanças através de um conjunto de exames e certificações que substituam o atual Enem, nas quatro áreas principais de formação e nas principais áreas de qualificaçõ profissional, como tecnologia da informação, profissões de saúde, eletrônica, etc., deixando as redes escolares buscarem seus próprios caminhos.

O Apagão do Ensino Médio

(publicado em O Estado de São Paulo, 11 de março de 2022)

Levantamento recente da Secretaria de Educação de São Paulo mostra o impacto da pandemia no ensino médio do Estado, que já não vinha bem. Em Língua Portuguesa, em 2019, os alunos que terminavam o ensino médio já estavam, em média, 3,83 anos atrasados em termos do que haviam aprendido, ou seja, sabiam menos do que o esperado no 9.º ano do ensino fundamental. Em 2021, este atraso havia aumentado para 4,24 anos. Em Matemática, o atraso, que era de 5,14 anos, aumentou para 6,53 anos, ou seja, tinham o nível próximo ao esperado no 5.º ano. É provável que, no resto do País, o impacto tenha sido maior (o impacto mais dramático, no entanto, foi entre os alunos da 5a série, como se pode ver no gráfico, com dados extraídos da publicação da Secretaria de Educação).

É assim que estes estudantes estão entrando, em 2022, no novo ensino médio, estabelecido em 2017. Pela lei, os estudantes que entram no ensino médio como um caminho para o ensino superior deveriam escolher as áreas de estudo de sua preferência; para a maioria, sobretudo da rede pública, que não irá além do nível médio, seria possível obter uma qualificação profissional valorizada no mercado de trabalho. E, para todos, haveria mais espaço para fortalecer as competências básicas gerais, como os conhecimentos essenciais de linguagem e raciocínio matemático. A intenção foi boa, mas a lei ficou confusa, e caberia ao Ministério da Educação liderar a transição para o novo sistema, resolvendo as ambiguidades e apoiando as redes neste processo. O ministério se omitiu, e cada Estado está tratando de fazer as mudanças como pode. 

A omissão do governo federal tem que ver com a incompetência e hostilidade do governo Bolsonaro em relação aos temas de ciência, cultura e educação, mas também com uma forte resistência do establishment educacional aos dois objetivos da reforma. Esta resistência se deu e ainda se dá em dois níveis, o das ideologias e concepções e o das dificuldades práticas que a reforma acarreta, que me parece o mais importante. 

A oposição à diferenciação de trajetórias se manifesta muitas vezes na forma de defesa do direito à educação, que seria afetado se o estudante tivesse um currículo mais direcionado. Ela veio, também, associada ao temor de que a flexibilização dos currículos afetaria a rotina e o emprego de professores de filosofia, sociologia, educação física, religião e tantos outros que têm asseguradas suas horas de ensino nos currículos tradicionais. O resultado foi aumentar, na lei, o tamanho e os conteúdos da parte de formação comum do ensino médio, e adotar, para os diferentes itinerários de formação, uma classificação formal e arbitrária de áreas de conhecimento (linguagem, Matemática, ciências da natureza, ciências sociais), ao invés de temas mais próximos das áreas de formação profissional (tecnologia e engenharia, ciências da saúde, profissões sociais, humanidades), como se dá no resto do mundo. 

Nem tudo estava perdido, porque é o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) que define o que fazem, na prática, as escolas do ensino médio. Pensando nisso, o Conselho Nacional de Educação (CNE) desenvolveu uma proposta para um novo Enem, que consistiria em duas partes, a primeira de competências gerais, semelhante ao Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), e a segunda com opções nas quatro áreas de formação profissional. 

Mas o Ministério da Educação, com o apoio de associações como o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), acabou adotando um projeto diferente. São, também, duas partes, a primeira juntando todo o conteúdo da parte geral e a segunda com quatro módulos diferentes à escolha dos alunos, combinando as diferentes áreas formais de conhecimento. É uma proposta confusa, carregada de linguagem pretensiosa (“intervenção social”, “articulação de competências”, “interdisciplinaridade”, etc.), tecnicamente duvidosa e que mal esconde a resistência à inovação. 

O principal argumento ideológico contra a reforma do ensino técnico é de que ele estaria subordinando a educação ao mercado de trabalho (horror!), abandonando o suposto ideal gramsciano de “politecnia”. Esta reforma deveria ter sido acompanhada de uma política efetiva de fortalecimento dos vínculos entre as redes estaduais e os sistemas de formação profissional existentes, como os do sistema S e o sistema Paula Souza, em São Paulo, e da implantação progressiva de um sistema nacional de certificações de competências profissionais, em parceria com o setor produtivo, que pudesse dar rumos e valorizar as carreiras vocacionais. 

Além disso, deveria haver um esforço de ampliação e qualificação de um sistema moderno de aprendizagem profissional e do ensino superior de curta duração, que dariam continuidade à formação técnica de nível médio. Ao invés disso, o que se viu foi uma preocupação em manter o ensino técnico integrado ao currículo tradicional, como uma formação elitista só possível para os poucos institutos tecnológicos federais que, na prática, selecionam e preparam seus estudantes para as carreiras universitárias. 

É este o apagão do ensino médio brasileiro em 2022: uma reforma confusa, sem ter quem a lidere e com alunos prejudicados por dois anos de escolas fechadas. Seria um bom tema para as campanhas eleitorais, se os políticos realmente se interessassem por educação. 

É quase fim do ano: onde estão os nossos jovens?

(Publicado em O Estado de São Paulo, 12/11/2021)

Este deveria ser o ano em que as escolas concluiriam os preparativos para dar início, em 2022, ao novo ensino médio. É também o segundo ano da pandemia, em que elas ficaram fechadas ou oferecendo ensino à distância de qualidade e eficácia desconhecidas. Muitos jovens abandonaram os cursos, e muitos mais ficaram mas aprenderam pouco ou nada. Os candidatos ao ENEM, que em 2016 eram mais de 8 milhões, caíram para a metade em 2021. Este número já vinha caindo, com a percepção crescente de que o roteiro tradicional do ensino médio único aos cursos universitários tradicionais, que já era inacessível para a maioria da população, se tornou mais difícil ainda.

O lei do novo ensino médio foi uma tentativa de tornar o ensino médio  mais significativo, abrindo a possibilidade de diferentes itinerários formativos, e criando uma ampla oferta de ensino técnico-profissional para os que buscassem uma qualificação mais prática e mais acessível. Agora, além de ter que introduzir o novo currículo, as escolas terão que lidar com milhões de estudantes que ficaram fora da escola ou aprenderam ainda menos do que antes. O que farão? Como estão se preparando para recuperar os anos perdidos? Como será, na prática, este novo ensino médio tão anunciado?

O Ministério da Educação deveria estar liderando esta transição, mas, de onde menos se espera, daí é que não vem nada mesmo.  As secretarias estaduais têm tomado a iniciativa, preparando os currículos para os diferentes itinerários e organizando a oferta de ensino técnico-profissional. Algumas já publicaram suas conclusões, que, embora diferentes entre si, parecem ter algumas coisas em comum. Todas supõem que o regime de 3 mil horas, ou 5 horas diárias, estará implantado, e várias anunciam que darão prioridade às escolas de tempo integral, de 8 horas. Todas anunciam novos conteúdos e atividades como projeto de vida, empreendedorismo, sustentabilidade, vida futura, cultura digital. Nada contra, deste que não seja à custa da iniciação apropriada nas disciplinas acadêmicas centrais para os diferentes  itinerários. Para estes itinerários, poucas conseguem se desvencilhar da estranha classificação das áreas de conhecimento inventada pelo MEC e avançar em opções focadas nos temas de tecnologia e engenharia, profissões sociais, ciências da vida e humanidades, como no resto do mundo. E, para o ensino técnico, alguns estados planejam dar prioridade a algumas áreas  – eletrotécnica, agronegócio, administração, etc. – e abrir espaço tanto para cursos técnicos mais longos quanto curtos, na antiga modalidade de formação inicial continuada (FIC); mas poucas dizem como vão fazer isso.

Na pressa, é compreensível que os currículos sejam tratados com prioridade, mas chama atenção a ausência de informações sobre como as redes pretendem lidar com a enorme diversificação de seus estudantes, como esperam preparar seus professores lidar com o novo formato, e como  vão tentar compensar o impacto da epidemia na formação dos estudantes que vão receber. Fala-se muito em educação profissional integrada e estudo em tempo integral, mas  não se considera que 20% dos alunos de ensino médio regular nas redes públicas estudam à noite, que um terço tenha 18 anos ou mais (dados do Censo Escolar), e que 30% trabalham (dados da Pnad Continua). Sem falar nos cerca de 1,2 milhões que estão hoje matriculados nos cursos médios de educação de jovens e adultos (EJA), reconhecidamente precários. Estes estudantes mais velhos, que estudam à noite, trabalham e estão nos cursos de EJA, deveriam ser os principais beneficiários de cursos técnicos mais práticos, em tempo parcial e com uso apropriado de tecnologias de ensino híbridas, em carreiras com boas perspectivas de emprego mais imediato, e não me parece que estejam sendo devidamente considerados.

Organizar itinerários de formação é menos uma questão de currículo do que da existência de professores que tenham uma concepção clara da formação que se deseja proporcionar e possam liderar este trabalho. Nossos professores, no melhor dos casos, podem ensinar bem as respectivas matérias, mas seria preciso um trabalho intenso e coordenado de identificação e capacitação de coordenadores de área com esta visão mais ampla. Para o ensino técnico, é preciso professores com um perfil muito diferente dos que se formam pelas licenciaturas tradicionais, que possam combinar experiência de trabalho com capacidade de ensino, assim como de convênios de cooperação entre as redes escolares e instituições especializadas, com destaque para as dos sistemas nacionais de aprendizagem.

É bom que cada estado esteja buscando seu caminho, mas, sem a âncora  de um sistema adequado de avaliação e certificação de competências, que substitua o atual ENEM, cada um continuará atirando para um lado, sem saber bem os alvos a que devem mirar. A lei do novo ensino médio desorganizou um sistema que estava ruim, mas ainda não se sabe se isto resultará em um outro melhor.

ENEM: avaliação ou seleção?

(Publicado em O Estado de São Paulo, 9 de julho de 2021)

Em 2022 entra em vigor o novo ensino médio, com a possibilidade de os estudantes optarem por diversas áreas de formação e também por cursos técnico-profissionais, o que significa que o Exame Nacional do Ensino Médio deverá também mudar. Em sua origem, o ENEM tinha por objetivo ser uma avaliação, referência de qualidade para as escolas de ensino médio. Mas em 2009 ele se transformou em um exame nacional de seleção para as universidades federais, o que fez com que todas as escolas se organizassem para preparar seus alunos para a prova. Atualmente, as redes escolares públicas e privadas estão se organizando para dar início ao novo ensino médio, e uma das dificuldades é não saber que tipo de avaliação os estudantes terão pela frente.

O Ministério e o Conselho Nacional de Educação estão trabalhando sobre o tema e é provável que cheguem a alguma conclusão nos próximos meses, o que influenciará o destino de milhões de jovens nos próximos anos. É a oportunidade para avaliar a experiência até aqui à luz das experiências de outros países e entender melhor para que serve este exame e quais seriam as alternativas.

O que deve ser o ENEM? Uma avaliação dos alunos que terminam o ensino médio, ou um grande exame vestibular para as universidades? Qual a diferença e qual a importância disso? Muitos países, sobretudo na Europa, têm sistemas nacionais de avaliação dos alunos ao término do ensino médio, como os Baccalauréats franceses, o Abitur alemão, os A-Levels ingleses e os exames nacionais do ensino secundário em Portugal. Mas poucos têm um grande exame vestibular nacional como a China, a Turquia, o Chile e o Brasil. 

São coisas muito diferentes. As avaliações nacionais marcam o término do ensino médio, especificando que tipo de formação os alunos tiveram e que resultados alcançaram, enquanto que os exames são provas de ingresso ao ensino superior para pessoas já formadas. Nas primeiras, há um leque de opções que os alunos fazem conforme seus interesses e as áreas de concentração, mais acadêmicas ou mais profissionais. Nos segundos é uma prova só. A outra diferença é que, nas primeiras, os resultados das provas influenciam o acesso dos estudantes ao ensino superior, mas as universidades mantêm sua autonomia para selecionar seus alunos entre os que se qualificam, combinando com outros critérios. A terceira diferença é que, além das provas que habilitam para o ensino universitário, há outras que habilitam para atividades profissionais e cursos técnicos pós-secundários. Nos Estados Unidos não existe nem uma coisa nem outra. Algumas instituições privadas oferecem testes padronizados para pessoas que querem se candidatar ao ensino superior, como o Scholastic Assessment Test, American College Test e o Graduate Record Examination, que as universidades e escolas superiores podem usar ou não, com maior ou menor peso. 

Quando o ENEM se transformou em um vestibular nacional, a ideia foi que ele ajudaria a democratizar o ensino superior, fazendo com que os estudantes, com uma só prova em sua cidade de residência, pudessem se candidatar a qualquer universidade federal do país. Mas a prova única acabou criando uma grande discriminação a favor dos filhos de famílias mais educadas e que estudaram em escolas privadas, que conseguem as notas mais altas e entram nas universidades e carreiras mais prestigiadas. São menos de 300 mil vagas para 6 milhões de candidatos a cada ano, com problemas operacionais que se repetem. Nem o sistema de cotas consegue tornar o sistema mais igualitário, porque todos necessitam médias altas para conseguir uma vaga.

Com a diversificação do ensino médio, a prova única do ENEM não pode continuar existindo. Mas o Brasil não tem ainda condições de criar um sistema de provas nacionais qualitativas como as dos países europeus, que decidem quem se forma, e com que nota ou conceito. Faz mais sentido um sistema como o norte-americano, em que as escolas continuam dando os diplomas, mas os estudantes podem se apresentar, voluntariamente, para avaliações que produzem certificados de competência que podem ser utilizados pelas universidades para selecionar seus alunos e também para o exercício de profissões técnicas. Uma destas avaliações deve ser de tipo mais geral, para todos, de competência no uso da linguagem, raciocínio matemático e conceitos básicos de ciências sociais e naturais, semelhante ao exame de PISA, ou o GRE geral americano. Outras serão mais específicas, alinhadas com as grandes áreas profissionais de nível superior, como ciência e tecnologia, ciências da saúde, ciências sociais e letras e humanidades. E outras mais específicas ainda, de certificação de competência técnica em áreas como serviços de saúde, processos industriais, informação e comunicação e gestão de negócios. Estes exames não precisam ocorrer no mesmo dia, nem precisam ser feitos todos pelo MEC.  

É este o caminho que deveria ser seguido, saindo da camisa de força do atual ENEM.

Os itinerários do novo ensino médio

(Publicado no jornal O Estado de São Paulo, 11 de junho de 2021)

Em 2022, finalmente, o ensino médio brasileiro deverá começar a adotar o novo formato estabelecido pela reforma de 2017. A ideia continua importante. Ao invés de um currículo tradicional, rígido e amarrado às provas do ENEM, criar alternativas diferentes de formação conforme os interesses e as condições dos milhões de jovens que chegam ao ensino médio. Ao invés de dificultar a formação profissional, torná-la mais acessível, como uma das alternativas de formação neste nível. É assim em todo o mundo. 

Mas como fazer isto? Na falta de uma orientação clara por parte do governo federal, as secretarias de educação, escolas e redes de ensino estão procurando alternativas, no meio ao emaranhado de leis, bases curriculares, resoluções, diretrizes e o novo palavreado introduzido pelo MEC e o Conselho Nacional de Educação nos últimos anos – itinerários formativos, formação integrada, projetos de vida, diversificação, competências, mediação sociocultural, empreendedorismo… 

Parte da confusão tem a ver com uma estranha classificação das áreas de conhecimento adotada pelo MEC, tirada não se sabe de onde, que acabou entrando na base nacional curricular e na lei como definidora dos diferentes itinerários de formação. Estas áreas seriam “linguagens” (uma salada que inclui inglês, educação física, dança, língua portuguesa e tecnologias de informação), “ciências da natureza”, “ciências humanas” e “matemática”, cada uma (menos as ciências humanas) com “suas tecnologias”. A interpretação literal da legislação indica que estas áreas deveriam ser também os “itinerários formativos” a serem oferecidos, sobrando ainda um “5º itinerário”, que seria o da educação técnica ou profissional.

Basta olhar o que fazem outros países para ver que isto não faz sentido. Em Portugal e na França, por exemplo, existem pelo menos três modalidades diferentes de ensino médio, cada uma oferecendo diferentes opções. A primeira é o que se chama de “propedêutica”, de preparação para os cursos universitários. A segunda é a formação tecnológica, voltada para atividades profissionais mais complexas no mundo dos serviços, da indústria e das novas tecnologias. E a terceira é a formação denominada “vocacional”, mais simples e diretamente orientada para o mercado de trabalho.

Na França, a primeira modalidade, que culmina nas provas do “baccalauréat générale”, inclui três opções: ciências naturais; ciências econômicas e sociais; e literatura. Em Portugal, as opções são ciência e tecnologia; ciências socioeconômicas’; línguas e humanidades; e artes. O que estas áreas têm em comum é que elas são internamente coerentes, e preparam os alunos para os tipos de formação universitária e vida profissional que pretendem seguir. Ninguém se forma em “linguagens e suas tecnologias”; a matemática nunca vem sozinha, mas sempre junto com a tecnologia ou as ciências naturais e sociais; e existe uma clara separação entre as ciências sociais e as humanidades. Uma leitura mais atenta da lei brasileira mostra que, felizmente, as escolas não são obrigadas a se organizar conforme as “áreas” do MEC, e podem criar itinerários integrados semelhantes aos que existem no resto do mundo. É o que deve ser feito.

Das outras duas modalidades, o que no Brasil se chama de “educação técnica”, com quase duzentas opções diferentes listadas em um catálogo feito pelo MEC, é mais parecido com os cursos vocacionais europeus do que com os cursos de conteúdo tecnológico, que ficaram esquecidos (embora o termo “tecnológico” seja utilizado entre nós para denominar os cursos superiores curtos, qualquer que sejam seus conteúdos).  Em outros países, e que dá robustez à formação tecnológica, oferecida desde o ensino médio, é que ela é mais prática e aplicada do que a formação acadêmica, se desenvolve em parceria com o setor produtivo, e dá acesso a cursos superiores de curta duração, para quem quiser continuar se aperfeiçoando, em áreas como ciência e tecnologia da saúde e bem-estar social, agronomia, design e artes plásticas, atividades industriais, alimentação e gestão e outras. Os cursos vocacionais são mais simples, voltados sobretudo a atividades de serviço e manutenção, e destinados a pessoas que necessitam trabalhar de forma mais imediata e não têm condições de seguir cursos mais complexos.

A outra característica importante do ensino diversificado no resto do mundo é que não se trata, simplesmente, de diferentes arranjos curriculares, mas de escolas públicas e privadas que se especializam em determinadas áreas e tipos de formação. Algo disto já existe no Brasil, com algumas redes de escolas técnicas como as do Sistema Paula Souza e do Sesi-Senai, ou a escola ORT no Rio de Janeiro.  A decisão sobre que itinerários formativos oferecer é também uma decisão sobre como as escolas do ensino médio deverão se reorganizar, identificando as características e necessidades de seus alunos, buscando parcerias e se capacitando para melhor atendê-los. É só um primeiro passo.

Quebrando o gargalo do ENEM

(versão revista de texto publicado em O Estado de São Paulo, 11 de dezembro de 2020)

Dizem que a vida vai voltar ao normal. E em 2021 o Ministério da Educação pretende começar a implantar o novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), com duas modificações importantes. A primeira, desde já, é o “Enem seriado”, em que os alunos do ensino médio serão avaliados a partir do primeiro ano, com uma nova versão da Prova Brasil. A segunda, a partir de 2024 ou 2025, é a adaptação do Enem à reforma do ensino médio, que prevê que os estudantes possam escolher seus itinerários de formação. Como a maioria dos candidatos ao Enem não vem diretamente do ensino regular, a prova geral vai continuar existindo, ao lado do sistema seriado, divida em duas partes: uma comum, para todos os estudantes, e outra diferenciada, para os diferentes itinerários (no sistema seriado, a previsão é que a avaliação dos itinerários opcionais seja feita no terceiro ano)

Imagino que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) tenha estimado o custo desse novo formato, a maneira como os resultados das avaliações seriadas vão ser utilizados para melhorar a qualidade do ensino e como compatibilizar os dois sistemas para que um não se torne mais valorizado do que o outro. Digo “imagino” porque não encontrei nenhum documento oficial que explique mais em detalhe as razões e os custos dessa mudança.

Tomara que o Ministério da Educação (MEC) saiba o que está fazendo, mas há pelo menos três coisas importantes que precisariam ser discutidas antes de embarcar nesse caminho sem volta. A primeira é se precisamos realmente continuar tendo um vestibular nacional unificado como o Enem. Quando o exame foi criado, em 1998, o objetivo era ter um marco de referência de qualidade para o ensino médio brasileiro, como a Prova Brasil. Em 2009 ele se transformou em vestibular nacional e as universidades renunciaram à sua autonomia e responsabilidade por selecionar seus estudantes. A justificativa foi que assim os estudantes não precisariam mais se inscrever em diferentes concursos e poderiam se candidatar a vagas em qualquer parte do país.

Mas o Enem transformou o ensino médio num grande cursinho de preparação para a prova, com resultados totalmente previsíveis – as vagas mais disputadas são quase todas ocupadas por filhos de pais de nível universitário que estudaram em escolas privadas e em algumas poucas escolas federais. O Brasil não é o único país que tem um exame desse tipo e em todo mundo se discute, hoje, se esses exames realmente medem o que pretendem – ou seja, a capacidade de o aluno adquirir uma boa formação e se transformar em bom profissional e cidadão – e se não existem formas melhores de tornar o acesso ao ensino superior melhor e mais equitativo.

No Brasil cerca de metade dos alunos que entram no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), o mecanismo de escolha de cursos do Enem, são cotistas, mas as notas de corte para os cursos são semelhantes para cotistas e não cotistas, o que significa que elas não beneficiam quem realmente precisaria. A tendência, ao menos nos Estados Unidos, é reduzir o peso dos resultados em provas padronizadas como o ACT e fazer uma seleção mais rica e complexa dos estudantes, tomando em conta capacidade de liderança, motivação, experiência escolar, vínculo com suas comunidades de origem, etc. Essa seleção precisa ser feita pelas universidades, até para fortalecer seus vínculos com a população das regiões onde estão.

A segunda questão é se a prova comum e os itinerários formativos que o novo Enem pretende implementar estão alinhados com as intenções da reforma do ensino médio iniciada em 2017. Se a prova comum for um resumo de tudo o que estava no currículo tradicional, do português à física, passando pela filosofia e sociologia, o Enem continuará mantendo o ensino médio brasileiro na camisa de força do currículo único. E se as provas específicas, dos itinerários formativos, continuarem submetidas à esdrúxula classificação de áreas de conhecimento adotada pelo MEC, vão retirar a força da principal inovação do novo ensino médio, que são os itinerários. A sugestão é tornar a prova geral mais leve, semelhante ao Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), de competências em leitura, matemática e raciocínio científico, e alinhar os itinerários com as áreas de formação mais próximas ao mundo da educação superior e do trabalho, adotadas de forma semelhante em outros países: ciências exatas, matemática e tecnologia (STEM); ciências biológicas e da saúde: ciências e profissões sociais; e humanidades, letras e artes.

A reforma do ensino médio abriu também a possibilidade de um “quinto itinerário”, de capacitação técnica para quem precisa entrar logo no mercado de trabalho, e é necessário associar ao Enem sistemas adequados de certificação pelo menos para as áreas de formação técnica de maior demanda – enfermagem, administração, informática, agropecuária, segurança no trabalho.

A terceira questão é se não seria o caso de criar uma avaliação individualizada ao final do ensino fundamental, aos 15 anos, como faz a Inglaterra com o exame GCSE. O chamado “fundamental II” é o patinho feio da educação brasileira, é aí que os eventuais resultados de melhora dos resultados do antigo primário se perdem. Um exame desse tipo ajudaria a estabelecer um padrão de qualidade para esse nível e orientar os estudantes para que encontrem seus caminhos nos anos seguintes.

Investir e exigir mais da educação fundamental e abrir o leque de alternativas no ensino médio, quebrando o gargalo do Enem, esse parece ser o caminho que precisamos.

O ENEM de hoje e do futuro

1 – A reforma do ensino médio e o novo ENEM

Com cerca de 5 milhões de participantes arregimentados em todo o país em uma prova única, mobilizando as forças armadas e milhares de funcionários e pessoal contratado, a um custo direto estimado de 500 milhões de reais, mais os indiretos, o Exame Nacional do Ensino Médio se transformou em um grande evento sujeito a problemas reiterados de tentativas de fraude, incompreensões e questionamentos de seus conteúdos. Hoje mesmo a presidente do INEP, Maria Inês Fini, publica no jornal O Estado de São Paulo uma vigorosa defesa do exame, e anuncia as mudanças que estão por vir.  De  fato, nas novas diretrizes curriculares para o ensino médio aprovadas recentemente pelo Conselho Nacional de Educação consta a indicação de que o ENEM deverá ser modificado, com uma parte geral, correspondente à parte comum da Base Nacional Curricular do Ensino Médio, e outra com várias opções à escolha do participante, conforme seu “itinerário formativo” e a área de curso superior que pretende seguir.  

É compreensível o interesse da atual gestão do Ministério em completar este processo de reforma do ensino médio antes do fim do ano, mas talvez seja mais prudente tomar mais tempo para amadurecer a questão da reforma do ENEM que deverá ser implementada pelo próximo governo, sobretudo porque a proposta da Base Nacional Curricular Comum para o ensino médio ainda está por ser aprovada, e nada se sabe sobre os “referenciais para a elaboração dos itinerários formativos” que segundo o CNE, deveriam ser definidos pelo MEC em 90 dias.

A ideia de diversificar o ENEM, permitindo que os alunos possam escolher a área de conhecimento em que serão avaliados, é importante e compatível com o que acontece em outras partes do mundo, em que ninguém é obrigado a se preparar exaustivamente para o exame de conteúdos que não são de seu interesse prioritário.  Mas a Base Nacional Curricular Comum, como está sendo proposta, acabou ficando como uma versão reduzida do antigo currículo do ensino médio, com todo seu conteúdo de linguagem, matemática, ciências naturais e ciências sociais. Se o que está sendo proposto é fazer uma versão compacta, em um dia, do ENEM atual que dura dois dias, com o que o MEC considera serem as  “cinco áreas do conhecimento”,  e depois uma prova especializada no itinerário formativo, então o estudante continuará sendo obrigado a  se preparar para uma prova de tudo, e além disso fazer uma segunda prova especializada. Ou seja, pode ficar pior do que agora.

2 – Para que serve o ENEM?

A discussão sobre o que fazer com o ENEM não pode ser separada da pergunta mais geral de para que ele serve. A ideia inicial era que o exame poderia servir como referência de qualidade para as escolas do ensino médio, mas, hoje, ele funciona como um grande vestibular unificado para as universidades federais, e seus resultados são também em parte utilizados por algumas redes estaduais e instituições privadas (as universidades paulistas, no entanto, mantêm seus próprios sistemas de seleção); além disto, o ENEM funciona como um filtro para escolher alunos candidatos aos subsídios do Prouni. 

Acontece que estes objetivos requerem exames muito diferentes. A função de avaliar o ensino médio deixou de existir, tendo sido substituída pela a prova do SAEB, de avaliação do ensino básico, agora aplicada a todas as escolas ao final do ensino médio. O SAEB avalia competências em linguagem e matemática, e pode ser ampliado para incluir ciências, ficando semelhante ao exame internacional da OECD, o PISA (com a grande diferença de que o PISA avalia os estudantes no início do ensino médio, aos 15 anos). Por outro lado, os exames vestibulares são, além de um teste de competências específicas dos alunos conforme as carreiras que pretendem estudar, também uma maneira de selecionar um pequeno número de candidatos dentre muitos outros que poderiam igualmente se qualificar, mas para os quais não há vagas. 

Uma das virtudes do ENEM seria que ele teria democratizado o acesso ao ensino superior público, porque os estudantes poderiam fazer uma só prova e ir para qualquer instituição no país, conforme seus resultados. Na prática, os resultados do ENEM, e consequentemente do SISU, que é o sistema de distribuição de vagas nas universidades públicas, dependem fortemente da educação da família do estudante e do tipo de escola que ele frequentou.  A nota de corte para os cursos mais disputados pode ser próxima de 700 pontos, o que significa, como mostra o gráfico abaixo, que alunos de escolas estaduais e municipais com pais sem educação superior não têm praticamente nenhuma chance de ser admitidos.  Além disso, como as universidades federais quase não dispõem de alojamentos e bolsas de manutenção para estudantes de outras regiões, é muito difícil que os alunos aprovados decidam sair de suas cidades, exceto em carreiras altamente disputadas, como medicina, em que candidatos de estados mais desenvolvidos tendem a deslocar os estudantes locais de universidades em outras regiões. 

Na prática, o ENEM, no seu atual formato, serviu sobretudo  para as universidades federais  transferirem ao Ministério da Educação a responsabilidade por selecionar seus estudantes. Ao invés de democratizar o acesso, o ENEM acaba impondo a todos os candidatos do país um padrão único de qualidade que tem mais a ver com a condição social dos estudantes e suas escolas do que com sua potencialidade individual, e impede que universidades locais adotem critérios próprios e eventualmente mais flexíveis para a seleção de seus alunos. Não parece justo colocar todos os estudantes de um país sob uma mesma régua, fortemente dependente de sua condição social, para definir seu acesso ao ensino superior, e isto tem sido questionado em países que, como China, Turquia e Chile, adotam procedimentos semelhantes (veja a respeito o meu artigo publicado em colaboração com Marcelo Knobel). O sistema de cotas seria uma maneira de reduzir um pouco a estratificação criada pelo ENEM, mas, na prática, as notas de corte para os candidatos cotistas não são muito diferentes das dos alunos do sistema de ampla concorrência. Por exemplo, a nota de corte no curso de direito da UFRJ para 2018 foi de 790 pontos para 90 vagas para ampla concorrência, e 723 pontos para 20 vagas para cotistas. 

3. Alternativas

A proposta do INEP, adotada pelo Conselho Nacional de Educação, de transformar o atual ENEM único em um ENEM múltiplo, como dito antes, pode torná-lo mais difícil e complicado do que o atual.  

A alternativa é não tentar avaliar toda a base nacional curricular comum em uma prova, mas somente as competências mais gerais de leitura, raciocínio numérico e entendimento de conceitos científicos mais gerais, que pode ser a mesma para todos os estudantes que terminam o ensino médio, independentemente de seu itinerário formativo. É assim que funciona o Scholastic Aptitude Test (SAT) amplamente usado nos Estados Unidos. É um teste desenvolvido e administrado por uma fundação de direito privado, financiado pelas taxas cobradas pelos participantes, e aplicado de forma eletrônica e descentralizada várias vezes por ano. Um exame como este daria um padrão geral de referência do estudante, que poderia ser usado pelas universidades de forma complementar a seus processos próprios de seleção, e também de forma complementar para propósitos como a seleção para o Prouni ou crédito educativo. Embora trabalhosa, a metodologia para a elaboração e aplicação de um teste como este de forma eletrônica e descentralizada é conhecida, e evitaria os problemas que se repetem anualmente com a “operação de guerra” que é o ENEM.

A segunda prova, referida aos itinerários formativos, depende ainda de o Ministério da Educação conseguir superar o erro que foi fazer uso de sua questionável classificação das “áreas de conhecimento” em linguagens, matemática, ciências naturais e ciências sociais para definir os possíveis itinerários de formação do ensino médio. Faz mais sentido pensar em áreas mais próximas do mundo cultural e profissional, como STEM (matemáticas, engenharia, ciência e tecnologia), ciências da saúde, letras e artes, ciências sociais e econômicas. Estas provas poderiam ser desenvolvidas em parceria com as universidades que se interessassem, e aplicadas também de forma eletrônica e descentralizada aos alunos que optarem por carreiras nestes diferentes campos. Para os estudantes que optarem por itinerários de tipo técnico, mais vocacionais, é possível ir desenvolvendo aos poucos sistemas de certificação de competências pelas áreas profissionais respectivas, que sejam reconhecidos e valorizados pelo mercado de trabalho.

Este novo ENEM, se bem implementado, reduziria o peso do antigo currículo tradicional em benefício da avaliação de competências mais gerais, por um lado, e mais específicas para as áreas opcionais, de outro, e devolveria às universidades a responsabilidade por selecionar seus alunos, da qual elas nunca deveriam ter abdicado. Sua implantação inicial pode ser custosa, pela incorporação de novas tecnologias de avaliação decentralizada e on-line, mas, uma vez feita, acaba o pesadelo anual para os estudantes e os enormes custos e problemas da operação logística que ocorrem a cada ano. Vale a pena pensar com calma, antes de adotar a solução aparentemente simples indicada pelo Conselho Nacional de Educação

As novas diretrizes curriculares para o ensino médio: o bom, o ruim e o inútil

Das 16 páginas das Diretrizes Curriculares aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação, os jornais só noticiaram, praticamente, a possibilidade de usar até 20% do tempo em atividades à distância, como se isto fosse o mas importante. Olhando o documento em detalhe, pode-se ver que tem muitas coisas novas e importantes, outras nem tanto, e muita coisa inútil, que acaba tornando o documento difícil de ler e interpretar.

Antes de mais nada, é preciso entender para que serve este documento. O introito cita um emaranhado de leis, artigos, pareceres e despachos que são um testemunho do cipoal que é a legislação brasileira sobre educação, mas não explica com clareza seu objetivo. Existe uma nova lei sobre o ensino médio, aprovada no início de 2017; e a função destas diretrizes é dizer como esta lei deve ser entendida e implementada. Elas deveriam ser um documento escrito em linguagem simples e clara, inteligível para professores e gestores escolares em todo país, e servir de referência para a elaboração de uma Base Nacional Curricular Comum muito mais objetiva e clara do que a proposta pelo Ministério da Educação meses atrás; mas, infelizmente, continua sendo um documento prolixo, cheio de frases e difíceis ou impossíveis de interpretar. No todo, tem muitas coisas boas, algumas ruins, e muitas outras inúteis. Foi o que o Conselho Nacional de Educação conseguiu fazer, e é importante separar ao joio do trigo.

O principal mérito destas diretrizes é que elas reafirmam a ideia fundamental da nova legislação sobre o ensino médio, a diversificação, que está lá no item VII do artigo 5, sobre os princípios gerais que devem fundamentar o novo ensino médio:

Diversificação da oferta de forma a possibilitar múltiplas trajetórias por parte dos estudantes e a articulação dos saberes com o contexto histórico, econômico, social, científico, ambiental, cultural local e do mundo do trabalho”.

A primeira parte da frase é clara e importante: ao invés de um currículo único e obrigatório para todos, deve haver múltiplas trajetórias, que os estudantes podem seguir segundo seus interesses, condições e disponibilidade da oferta das escolas. Estas trajetórias podem incluir a formação técnica do nível médio, que até agora era tratada como atividade suplementar em relação ao ensino médio regular. A segunda parte do texto, da “articulação dos sabres”, etc., é uma das tantas frases cheias de boas intenções, mas sem interpretação clara e aplicação prática que permeiam o texto, resquícios de um estilo barroco que ainda persiste nos documentos sobre educação no Brasil.

O principal problema é que ele não avança o suficiente no entendimento do que seriam estas múltiplas trajetórias. Vamos voltar a isto mais adiante. Primeiro, é importante ressaltar os méritos.

O segundo mérito é que ele procura se afastar do formato tradicional da educação baseada em aulas expositivas, em que os alunos simplesmente aprendem a repetir o que o professor diz, e abre a possibilidade de uso de uma pluralidade de formas. Os projetos pedagógicos das escolas, descritos no artigo 8, devem incluir

“Atividades teóricas e práticas, provas orais e escritas, seminários, projetos e atividades online, autoria, resolução de problemas, diagnósticos em sala de aula, projetos de aprendizagem inovadores e atividades orientadas”.

E o item 13 do artigo 17 fala em

“Aulas, cursos, estágios, oficinas, trabalho supervisionado, atividades de extensão, pesquisa de campo, iniciação científica, aprendizagem profissional, participação em trabalhos voluntários e demais atividades com intencionalidade pedagógica orientadas pelos docentes; assim como podem ser realizadas na forma presencial – mediada ou não por tecnologia – ou a distância, inclusive mediante regime de parceria com instituições previamente credenciadas pelo sistema de ensino”.

Estas atividades devem ter por objetivo não somente a absorção e reprodução de conhecimentos, mas competências e habilidades na solução de problemas, domínio de princípios científicos e tecnológicos próprios das diversas áreas de conhecimento, práticas produtivas e sociais, capacidade de refletir sobre o que está sendo aprendido, e uso de linguagem apropriada para sua expressão. São coisas mais fáceis de dizer do que de fazer, mas, na medida em que os estudantes se liberem da obrigação de estudar para a maratona do ENEM – outro tema importante tratado nas diretrizes – se torna mais factível sair da camisa de força da educação tradicional.

Um terceiro mérito importante do documento é que ele flexibiliza as formas pelas quais os conhecimentos podem ser reconhecidos e adquiridos, assim como a forma pela quais os professores podem ser recrutados. Esta flexibilização aparece em diferentes partes; através de parcerias entre diferentes instituições, sobretudo para os itinerários de formação técnica; no reconhecimento de competências prévias; na revalidação de estudos feitos em outras instituições nacionais e estrangeiras, etc.

Sobre os professores, o documento reitera a necessidade de licenciatura para ensinar no ensino, médio, e o artigo 29 limita o reconhecimento de notório saber de docentes apenas para atuar nos itinerários de formação técnica e profissional. Mas o artigo 30 abre uma importante janela, ao admitir que “podem ser admitidos para a docência no ensino médio, profissionais graduados que tenham realizado programas de complementação pedagógica ou concluído curso de pós-graduação orientado para o magistério na educação básica”. Dependendo do que seja esta complementação pedagógica, que pode ser bastante prática e objetiva, isto permite trazer para a educação profissionais de diferentes áreas que tenham interesse em ensinar, suprindo a carência de professores que existe hoje sobretudo nas áreas mais especializadas.

O quarto mérito importante é que ele mexe com o atual formato do ENEM. Ao invés de uma prova única, obrigatória para todos, as diretrizes dividem a prova em duas partes, uma geral, correspondente à parte comum de formação que todos os estudantes devem ter, e uma segunda à escolha dos estudantes, conforme seus itinerários formativos. Esta questão do ENEM ainda precisa ser melhor estudada e discutida, mas se trata, sem dúvida, de um avanço em relação ao sistema atual.

Finalmente, as diretrizes incluem um esforço importante, embora ainda insuficiente, de estabelecer como deverá ser o ensino técnico de nível médio. Há um entendimento claro de que este tipo de formação não pode ser dado pelas escolas tradicionais, que não têm a cultura de formação profissional, e por isto são abertas várias janelas para o estabelecimento de convênios e parcerias, para o recrutamento de professores com experiência de trabalho profissional (e daí a necessidade de reconhecimento do notório saber), para sistemas de aprendizagem combinando ensino com trabalhos práticos na indústria, e inclusive para a possibilidade de dar aos alunos “certificados intermediários” equivalentes aos cursos FIC (de formação inicial e continuada) que podem ou não servir de etapa para o diploma de nível técnico completo. O outro avanço nesta parte é estabelecer que os cursos técnicos devem corresponder à ampla Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), e não ao limitado Catálogo Nacional de Cursos Técnicos adotado pelo Ministério da Educação, facilitando ainda a criação de novos cursos experimentais.

O principal problema das diretrizes é que elas não conseguem avançar em relação a um vício de origem da nova lei do ensino médio, que é a adoção de uma classificação totalmente inadequada das áreas de conhecimento adotada no passado pelo Conselho Nacional de Educação, que é utilizada tanto para a definição dos conteúdos da parte de formação comum quanto para a definição dos diferentes itinerários formativos. Esta classificação divide o conhecimento em quatro categorias, a “linguagem e suas tecnologias”, que incluem desde o português até as “linguagens corporais”, como a dança, passando por design, artes cênicas e linguagens digitais; as “ciências naturais e suas tecnologias”, incluindo todas as ciências físicas, biológicas, química, ciências da saúde e tecnologia; as “ciências humanas e sociais aplicadas”, que juntam no mesmo saco temas de filosofia, sociologia, economia, artes e literatura; e “matemática e suas tecnologias”, que fica separada, quando na realidade a matemática é um instrumento central para a grande maioria das diferentes áreas de conhecimento teórico e aplicado.

Esta classificação, quando utilizada para descrever o conteúdo da parte comum de formação, é inócua, mas se torna um problema grave quando se pretende que defina também os possíveis itinerários formativos. Em todo o mundo, os itinerários formativos no ensino médio tendem a ser agrupados em áreas que se aproximam mais das grandes áreas de formação profissional, como STEM (ciência, tecnologia, matemática e engenharia), ciências biológicas e da saúde, ciências econômicas e sociais, artes performáticas, língua e literatura. A matemática não é um itinerário formativo por si mesma, a não ser para os poucos que pretendam ser matemáticos, mas um componente central de formação para os diversos itinerários. Este problema tem sido amplamente discutido desde o momento em que a proposta da nova lei do ensino médio foi levada ao Congresso na forma de Medida Provisória em 2016, mas, por razões difíceis de entender, nunca foi solucionado.

As diretrizes abrem uma janela para sair desta camisa de força, ao prever, o item 10 do artigo 17, que

“Formas diversificadas de itinerários formativos podem ser organizadas, desde que articuladas as dimensões do trabalho, da ciência, da tecnologia e da cultura, e definidas pela proposta pedagógica, atendendo necessidades, anseios e aspirações dos estudantes e a realidade da escola e do seu meio”.

Isto possivelmente significa, na prática, que os sistemas de ensino podem organizar os itinerários como acharem melhor. No entanto, o desejável seria que, a cada itinerário formativo, correspondesse um exame nacional opcional, como parte do ENEM. Assim, haveria um exame para STEM, outro para ciências biológicas e de saúde, outro para ciências econômicas e sociais, outro para artes e literatura, por exemplo, o que o formato atual não permite.

As partes inúteis das diretrizes são as grandes formulações verbais que, ou são genéricas demais, ou são ininteligíveis, ou são simplesmente equivocadas. Esta versão das diretrizes está mais enxuta, em relação a isto, do que outros documentos similares, mas ainda poderia ser mais leve. Fala-se muito de “contextualização” e “interdisciplinaridade” e “transdisciplinaridade”, cujo significado na prática não se sabe qual é. No artigo 6º há um esforço frustrado de definir filosoficamente o que é trabalho, ciência, tecnologia e cultura que não resiste ao menor escrutínio, e que não se sabe exatamente porque está aí.

Existem outras questões importantes que foram levantadas em diversos momentos nas discussões sobre a nova lei do ensino médio, inclusive sobre a parte comum, que terminou sendo uma espécie de versão resumida do antigo currículo tradicional, ao invés de se concentrar nas competências mais gerais de linguagem e raciocínio matemático, deixando os conteúdos mais específicos como “minors” opcionais ou “majors” para os diferentes itinerários formativos.

A nova lei do ensino médio foi um avanço, mas ela evidentemente tem limitações importantes, que se refletem nas diretrizes curriculares aprovadas pelo CNE. Mas é importante identificar o que há de positivo, e seguir adiante. A lei precisa ser colocada em prática, avaliada, e, no futuro não muito remoto, precisará ser reescrita.

As propostas dos presenciáveis para a educação

O Instituto IEDE (Interdisciplinaridade e Evidência no Debate Educacional) publicou uma análise detalhada das propostas dos presenciáveis para a educação. Os textos estão disponíveis aqui. Coube a mim comentar as propostas de Fernando Haddad para o ensino médio. Em outro texto, publicado na revista Veja e também neste blog, comentei a questão do ensino à distância, que parece central na proposta de Jair Bolsonaro. 

A proposta de Haddad para o ensino médio 

Pelo que tem sido difundido, os dois pontos principais da proposta de Fernando Haddad para o ensino médio são revogar a lei de reforma aprovada em 2017 e a criação de um programa federal de ensino médio, baseado no modelo dos cursos integrados dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. É uma proposta inviável, pelos custos que representaria, e elitista, significando uma volta atrás no esforço que tem sido feito nos últimos anos para criar um ensino médio diferenciado e apropriado para a grande maioria dos jovens brasileiros.

A proposta é inviável porque a federalização do ensino médio teria um custo totalmente incompatível com a realidade orçamentária do país. Hoje, existem 370 mil alunos de nível médio em instituições federais, e 8.2 milhões nas redes estaduais. No sistema federal, são 13 alunos por professor; nas redes estaduais, 32. O custo por aluno nas redes estaduais é de cerca de 6 mil reais ao ano. Não há dados disponíveis sobre o custo por aluno de ensino médio no sistema federal, mas deve ser próximo dos alunos de nível superior, cerca de 22 mil reais ao ano. O custo de atender aos alunos das redes estaduais com o mesmo nível de gastos do sistema federal seria de 173 bilhões de reais, mais do que todo o orçamento atual do Ministério da Educação. Isto sem falar do pesadelo que seria trazer os atuais 250 mil professores de ensino médio para o sistema federal, que mal consegue administrar os quase 300 mil de suas universidades e institutos (estes números são aproximados, mas dão uma boa ideia das grandezas envolvidas).

Os Institutos federais, além de caros, são seletivos, e os poucos estudantes que passam em seus “vestibulinhos” aproveitam a oportunidade de estudar de graça em tempo integral para se preparar para o ENEM e entrar nas boas universidades federais ou estaduais. Bom para eles, mas não ajuda nada à grande maioria que não tem acesso e nunca vai conseguir seguir uma carreira universitária com um mínimo de qualidade. São os estados que vão continuar responsáveis pelo ensino médio, os recursos não cairão do céu, e o papel do governo federal deve ser apoiar e facilitar o trabalho dos estados, e não tomar o seu lugar.

A lei de reforma do ensino médio aprovada no inicio de 2017 é uma tentativa de criar um ensino médio diversificado, que não coloque todos os estudantes no mesmo funil dos cursos tradicionais e do ENEM, e que crie diferentes modalidades de formação, mais acadêmica ou mais profissional, para que todos possam aproveitar do ensino médio conforme seus interesses e condições. A reforma ainda não foi implementada, e existem muitas dúvidas sobre a base curricular comum proposta pelo Ministério da Educação, os conteúdos da chamada parte de formação comum, os diferentes itinerários formativos, como o ENEM será adaptado ao novo modelo, etc. Mas as três críticas principais que tem sido feitas a esta lei pelos que propõem sua revogação é que ela aumentaria a desigualdade entre os estudantes, que ela eliminaria os conteúdos de ciências sociais no ensino médio, e que seria uma lei “do Temer”, aprovada sem discussão por medida provisória, e que por isto deveria ser revogada. Nenhuma destas críticas é válida.

O ensino médio brasileiro já muito desigual por várias razões, que incluem as diferenças que os alunos já trazem da educação fundamental, dos diferentes recursos investidos nos diferentes sistemas estaduais e federais, e tudo isto é acentuado por um currículo único antiquado que poucos conseguem seguir e por um ENEM no qual entram 6 milhões de candidatos para disputar menos de 300 mil vagas das universidades federais. Neste sistema, o ensino técnico não é uma alternativa de formação, como no resto do mundo, a ser usada preferencialmente para quem não vai diretamente para o ensino superior, mas uma atividade complementar ao currículo tradicional. No novo formato, os alunos poderão se concentrar em suas áreas de interesse, sem precisar estudar só para passar nas provas, e se abre a possibilidade de uma formação mais prática e aplicada para quem quiser e precisar de se integrar mais rapidamente ao mercado de trabalho. Ao reconhecer as diferenças e abrir alternativas de formação, o modelo diferenciado permite reduzir, e não aumentar as desigualdades.

Quanto ao conteúdo, pouca gente acredita que o atual currículo de 14 ou mais matérias obrigatórias dadas em aulas tradicionais forma de fato os estudantes. Faz muito mais sentido concentrar o estudo em uma parte menor, básica, e permitir opções de formação e a aprofundamento diferentes para cada estudante. Uma crítica que se faz à reforma é que ela teria acabado com o ensino obrigatório de sociologia e filosofia. Na verdade, o que ela fez foi colocar os conteúdos de sociologia e filosofia na parte de formação geral, que precisa ter também matérias de grande importância na área social, como economia, ciência política e direito, que não fazem parte do currículo tradicional; e procurou passar do modelo tradicional das aulas expositivas por disciplinas para a educação por competências, o que não é nada fácil, mas é um caminho que deve ser buscado.

Quanto à maneira pela qual a reforma foi aprovada, se o uso de Medida Provisória desqualificasse uma legislação, então a bolsa família e tantas outras medidas aprovadas pelos governos passados também deveriam ser revogadas. Na verdade, a reforma do ensino médio vinha sendo discutida há anos pela Comissão de Educação da Câmara de Deputados e pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação, CONSED, e a medida provisória encaminhada pelo Ministro Mendonça Filho foi discutida durante meses a alterada pelo Congresso no processo de votação. O que precisa ser feito é avançar no que a proposta tem de bom e corrigir suas imperfeições, e não voltar atrás.

Ensino médio sem aberração, e a base fraturada

 

Ensino médio sem aberração

(Publicado no jornal  O Globo, 12/8/2018)

A poucos meses das eleições, antes que o governo termine, o Ministério da Educação se mobiliza para organizar o novo ensino médio, reformado pela lei 13.415 de fevereiro de 2017. Há pouca clareza, no entanto, sobre como isto será feito, e muitas críticas baseadas muitas vezes em pouca informação sobre o problema e possíveis encaminhamentos.

A necessidade da reforma é clara: dos jovens que têm hoje 25 anos, 13% completaram o ensino superior, 15% ainda estão estudando neste nível, 41% só completaram o ensino médio, e 31% não chegaram lá. Todas as escolas preparam para um exame único, o ENEM, que obriga a todos a estudar um monte de matérias que serão esquecidas no dia seguinte, e só beneficia um pequeno número que consegue entrar nas universidades públicas ou ganhar uma das bolsas do PROUNI. Dos que entram em uma universidade, pública ou privada, metade abandona antes de terminar. Entre 2004 e 2014, o Brasil triplicou os investimentos por aluno no ensino médio, mas a qualidade permanece estagnada: a grande maioria termina sem saber um mínimo de matemática e de linguagem, e fica com um título que lhe serve de muito pouco na vida.

A lei da reforma tentou juntar propostas que já vinham sendo elaboradas pela Comissão de Educação da Câmara de Deputados, liderada pelo Deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) e pelo Conselho de Secretários Estaduais de Educação, e acomodar diferentes pontos de vista que foram se manifestando nos debates da proposta inicial, apresentada como Medida Provisória. Ficou meio tosca, mas algumas coisas importantes foram aprovadas:

– Ao invés de obrigar todo mundo a estudar tudo, os estudantes passam a se aprofundar em determinadas áreas (os “itinerários formativos”), a partir de um conjunto mínimo de áreas comuns de formação.

– O ensino técnico de nível médio, que até hoje tem sido uma área adicional ao currículo tradicional, passa a ficar dentro, como um dos itinerários possíveis

– Ao invés de organizar o currículo por matérias e aulas tradicionais, os conteúdos passam a ser estabelecidos por grandes temas e competências.

– O tempo de aula, que hoje é de quatro ou até menos horas por dia, passa a cinco horas, e, na medida do possível, para tempo integral.

Com isto, o ensino médio no Brasil deixa de ser uma aberração e se torna mais parecido com o que ocorre no resto do mundo. Para que isto funcione, existem muitas coisas que precisam ser feitas. Primeiro, definir com clareza qual é a parte comum e quais as principais trajetórias, ou itinerários formativos, que os alunos podem seguir. O documento da Base Nacional Curricular Comum do Ensino Médio publicado meses atrás pelo MEC tentou fazer parte disso, mas não ficou bom. Segundo, substituir o atual ENEM unificado por um conjunto de provas distintas a ser feitas pelos alunos conforme suas trajetórias e expectativas de estudo. Terceiro, fortalecer o ensino técnico e profissional de nível médio, que pode ser a melhor opção para muitos, mas não pode ser um beco sem saída para quem queira continuar estudando. Quarto, acabar efetivamente com o ensino médio noturno, que não funciona na prática e ainda é a realidade de 25% dos alunos.

Mais complicado do que tudo isto será mudar a cultura das escolas e a prática tradicional de nossos professores, de que a educação se reduz a horas de aula com os professores falando e os alunos repetindo. No novo ensino médio, devem preponderar o aprofundamento dos temas, o desenvolvimento de projetos, os altos padrões de exigência e, ao mesmo tempo, o reconhecimento de que nem todos podem fazer de tudo, mas cada um deve poder fazer o melhor dentro de suas escolhas e suas possibilidades.

O MEC e o Conselho Nacional de Educação fazem bem em querer terminar este ano com pelo menos as linhas mestras do novo sistema já esboçados. Mas é importante entender que este é só o começo de um longo processo que precisa ser acompanhado de outras reformas, não menos importantes, na educação pré-escolar, fundamental e superior.


Fraturas na Base

Para quem quiser se aprofundar sobre os problemas da Base Nacional Curricular Comum elaborada pelo Ministério da Educação, o Instituto Alfaebeto acaba de publicar um  livro que pode ser baixado gratuitamente, Fraturas na Base: Fragilidades estruturais da BNCC,  editado por João Batista Araujo e Oliveira, que critica tanto o conteúdo do texto quanto o processo pelo qual ele foi preparado.

Segundo o editor, “o produto peca por diversas razões. O nome do documento já suscita problemas. Na maioria dos países o nome usado para o documento nacional de orientação da atividade escolar é programa de ensino ou currículo. Esse documento indica, com clareza, o que deve ser ensinado nas diferentes etapas de ensino. O que varia nos diversos países é o grau de detalhamento. Já a nossa base ficou no meio do caminho – ninguém sabe ao certo se falta algo ou o que ainda será preciso fazer nos estados e municípios. E o documento não prima pela clareza”.

“Um segundo problema decorre do primeiro: por não se definir como currículo a BNCC não leva em consideração os pilares básicos de um currículo – estrutura e sequência. Praticamente só a Matemática recebe um tratamento adequado. Também – como ficará claro da leitura dos vários capítulos deste livro – a BNCC não passa no teste dos três critérios fundamentais para avaliar a qualidade de um currículo, foco, rigor e consistência. Mas, dirão os seus proponentes – afinal a BNCC não é currículo, portanto…. não precisa ter essas características… Mas então, afinal o que é essa BNCC? E quais seriam critérios adequados para sua formulação e sua avaliação?”

Boa leitura!

WP Twitter Auto Publish Powered By : XYZScripts.com
Wordpress Social Share Plugin powered by Ultimatelysocial