Desigualdades sociais, testagem e indicadores prevalência de COVID-19 no Brasil

Luisa Farah Schwartzman, Flavia Cristina Drumond Andrade e Nekehia Quashie

Desde que a COVID-19 se espalhou pelo mundo, as pessoas se acostumaram a olhar para as taxas de mortalidade, hospitalizações, e a proporção de pessoas que testam positivo. Todas essas medidas têm vantagens e limitações. A estatísticas de mortes e hospitalizações são importantes para saber o impacto mais grave da doença, tanto na vida das pessoas quanto na capacidade dos sistemas de saúde e, em geral, são consideradas mais fáceis de medir. Mas a terceira medida, baseada em testes positivos, é importante para se entender como a doença se distribui de forma mais geral na população, sendo que destes alguns serão casos menos graves e outros que também aparecem nas estatísticas de hospitalização ou de mortalidade. Mas estatísticas baseadas em testes positivos tem um problema: elas não captam as pessoas que não testaram. Se a distribuição de testes na população for desigual, isso afetará o nosso entendimento sobre a distribuição da doença na população. 

            É importante pensar se a COVID-19 está afetando a população como um todo da mesma maneira, ou se as desigualdades sociais estão gerando uma distribuição também desigual da doença, e da capacidade das pessoas doentes de serem diagnosticadas e tratadas pelos serviços de saúde. Com a vinda das vacinas, essa questão fica ainda mais importante, se essas vacinas não forem distribuídas igualmente pela população. 

            Para entender essas questões melhor, nós analisamos dados da PNAD-COVID, uma pesquisa amostral domiciliar coletada pelo IBGE em 2020 em todo o Brasil (nossa análise ainda está em fase preliminar, mas decidimos compartilhar aqui algumas observações iniciais). Essa amostra da PNAD é longitudinal: pessoas do mesmo domicílio foram entrevistadas, uma vez por mês, desde maio de 2020. O questionário incluía, entre outras coisas, perguntas sobre se a pessoal teve sintomas geralmente associados ao COVID-19 na semana anterior. A partir de junho de 2020 a pesquisa também perguntou se as pessoas tinham feito o teste de COVID-19, e se o resultado foi positivo ou negativo. A nossa equipe agregou os dados da PNAD de julho a novembro para construir os indicadores de testagem e de sintomas, representados abaixo.  

O indicador de sintomas mostra a proporção de pessoas que responderam ter perdido o olfato, e que também responderam ter um dos seguintes sintomas: dor de garganta, febre, tosse, nariz escorrendo ou entupido, dificuldade de respirar, ou dores no peito. Se a pessoa respondeu ter esses sintomas em qualquer dos meses entre julho e novembro de 2020, ela foi contada no gráfico como tendo sintomas. Os indicadores de testes medem se a pessoa respondeu que testou, e se o resultado deu positivo. Testamos como esses indicadores variam a partir de várias características sociais e de vida das pessoas, como classe social, raça/cor, gênero e local de residência. Em geral, os indicadores de sintomas e de testes apontam na mesma direção: houve, no período analisado, uma maior prevalência da doença em populações de meia-idade, entre populações urbanas, entre mulheres, e entre indígenas. Nós também fizemos uma análise de regressão, considerando todas essas variáveis em conjunto, e ficou confirmado que essas correlações são estatisticamente significativas e independentes umas das outras. 

No entanto, há uma exceção importante: se utilizarmos o número de testes positivos como indicador de prevalência de COVID-19, parece que as famílias de renda mais alta estão mais expostas à doença. Mas se usarmos os sintomas como indicador, não parece haver diferenças por renda familiar. As pessoas em domicílios de renda mais alta testam mais em geral, e também, entre as pessoas que têm sintomas, uma maior proporção testa mais entre pessoas de renda domiciliar mais alta. 

Ou seja, por causa da desigualdade no acesso a serviços de saúde (e em particular aos testes de COVID-19), os resultados dos testes são bons indicadores da prevalência da doença para as classes sociais mais privilegiadas, mas tendem a subestimar a prevalência entre os mais pobres.  Claramente os mais ricos tiveram mais acesso aos testes e foram mais bem diagnosticados que as pessoas de menor renda. 

Fernando Gabeira: sobre a escassez de médicos

Crédito: fotosdahora

Escreve Fernando Gabeira, a propósito do texto de Jorge Jatobá sobre a escassez de médicos:

Estou preparando uma reportagem sobre o tema e acabo de voltar do sul do Maranhão e do Amapá examinando quais as dificuldades dos médicos no interior, que estrategias de sobrevivencia, curandeiros, parteiras, farmaceuticos) são usadas e o artigo me foi muito útil. Para você ter ideia descobri que a escassez de médicos para alguns tipos de paciente não é o mais importante mas  a falta de equipamentos. Falei com alguns pacientes que vivem um dia com a familia e outro na estrada poeirenta para fazer diálise no único centro regional. Descobri que a cidade que proporcionalmente tem menos médicos, dois para 23 mil habitantes, tem poucos problemas de saúde. Seu maior problema como em quase todos lugares que visitei é a falta de educação no trânsito. O número de motocicletas é muito alto, familias inteiras viajam numa só máquina e todos sem capacete. A média é de cinco lesionados, na maioria crianças, por mês e dois mortos. E as escassas UTIs e os raros neurociurgiões são ocupadas majoritairiamente por motociclistas acidentados.

E descobri também que nem a magia dispensa os médicos: em Buriti Bravo o curandeiro se examina regularmente com o médico da cidade.

André Medici: O Indice de Desenvolvimento do SUS

André Medici publica em seu seu blog, Monitor de Saude, uma análise detalhada do recém publicado Índice de Desenvolvimento do SUS – IDSUS, cujo  texto completo está disponível aqui. Ele elogia o esforço de desenvolver indicadores de qualidade dos serviços de saúde no país, mas diz tambem que, em geral, o índice não estava suficientemente maduro para ser utilizado e divulgado como foi, e que, no caso particular d Rio de Janeiro, ele não reflete os esforços de melhoria ocorridos nos últimos anos. Ele se diz em princípio favorável à elaboração de índices sintéticos deste tipo, que juntam em um só número dferentes indicadores com pesos diferentes; eu tendo a achar que, mesmo nos melhores casos, estes indicadores sintéticos são de difícil interpretação, e escondem mais do que revelam.

Sobre o índice, diz Médici:

“Não sou contra a existência de indicadores sintéticos e acho que os mesmos podem e devem ser utilizados para alinhar objetivos, medir resultados, estabelecer incentivos ou distribuir recursos. Mas para tal, o processo de construção destes indicadores sintéticos deve passar por um ciclo longo de testes, pilotos de implementação, substituição e teste de novas variáves e, assim mesmo, marcando as diferenças entre a tipologia de contextos de saúde existentes no interior do país, até que se prove (ou não) sua viabilidade e adequação técnica. Em muitos contextos, indicadores sintéticos não são a melhor opção.

Portanto, numa primeira fase, ao invés de ter como ponto de partida um indicador sintético, se poderia implementar ao nivel do governo um processo de avaliação dos municípios do tipo painél de controle (dashboard), onde: (a) se consideraria um conjunto até maior de indicadores que seriam testados e adequados aos contextos sócio econômicos, demográficos e epidemiológicos de cada município; (b) se fariam rankings independentes de variáveis como forma de priorizar problemas específicos para serem incorporados nos planos e estratégias de saúde dos municípios, se possível com o apoio técnico das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde; (c) se procuraria alinhar os indicadores às prioridades de saúde em cada contexto municipal; (d) se fariam rondas de discussão técnica e consenso permanente entre o Ministério da Saúde, a comunidade acadêmica, o CONASS e o CONASEMS em relação a estes indicadores, e; (e) se fariam agregações tentativas que poderiam criar, no futuro, indicadores sintéticos para cada conjunto de municípios, mantidas suas especificidades. Dois outros pontos deveriam ser mencionados. Dados os problemas acima mencionados, o Ministério da Saúde deveria ser muito cauteloso ao divulgar este indicador em um ano eleitoral, dado que poderá levar a interpretações equivocadas sobre o desempenho e esforço empreendido pelos secretários de saúde e prefeitos na melhoria dos seus indicadores de saúde. O segundo ponto se refere ao uso do indicador para premiar ou punir municípios na alocação e distribuição dos recursos de financiamento repassados pelo SUS. Este processo deverá um dia ser feito, mas não com a configuração atual do IDSUS. O ideal seria utilizar os dados do IDSUS para permitir a programação de políticas, intervenções e incentivos que devem ser dados para adequar investimentos, processos, capacitação técnica, coordenação inter-setorial e o enfoque para resultados dos programas do SUS ao nível local.”

Sobre o Rio de Janeiro:

“Na análise dos dados do IDSUS no Rio de Janeiro, o Estado obteve a terceira pior posição na classificação nacional e o Município do Rio de Janeiro, a pior situação entre os municípios das capitais. Esta realidade deve ser interpretada do ponto de vista das condições históricas do Estado e do Município. Este último, abrangendo 50% da população do Estado, apresentava uma forte participação de cobertura de planos de saúde entre sua população (mais de 50%) e uma baixa taxa de cobertura dos programas de atenção básica (em torno de 6% ao redor de 2008), o que o levava a uma situação bastante peculiar. Sem a existência de serviços de média complexidade de 24 horas de atenção, a população era obrigada a formar imensas filas nas emergências dos hospitais municipais, estaduais e federais que não tinham condições de atender adequadamente a demanda. Os serviços de saúde não se estabeleciam nas favelas, dado os problemas de segurança que impediam, não apenas os profissionais de saúde a frequentarem ou se estabelecerem perto das mesmas, como também a população de descer ao asfalto para procurar o serviços de saúde. Nos últimos anos o Município passou a enfrentar esta situação de uma forma bastante eficiente e expedita. A Secretaria Municipal de Saúde criou um modelo arrojado de Clínicas de Família, que potencializa a atenção do Programa de Saúde da Família (PSF), elevando a cobertura da atenção básica para algo ao redor de 27% da população em dezembro de 2011. Complementou esta estratégia com a criação de diversas Unidades de Pronto Atendimento 24 horas (UPAS) em diversas localidades pobres do Município, facilitando o acesso aos serviços de emergência e média complexidade e ao mesmo tempo racionalizando a porta de entrada para a alta complexidade.”

Depois de citar outros desenvolvimentos recentes no Rio, conclui dizendo que “Estes fatos, dado que ocorreram nos últimos dois anos, não se refletem nos indicadores do IDSUS que retratam a situação existente em 2008. Portanto, em que pese que os indicadores do Estado e do Município ainda podem ser melhorados, o esforço empreendido pelos governos do Estado e Município não está diretamente refletido no indicador.”

André Medici: a pobreza dos serviços de saúde


Obrigado por mais esta postagem. A impressão que tenho é que a nova linha de pobreza adotada pelo país não é tão nova. O valor de R$70 per capita, ao que me consta, já estava vigente no ano passado. Concordo contigo sobre a idéia de que o Brasil, dada sua diversidade em espaços regionais e as distintas dimensões urbanas e rurais, não deveria ter uma linha oficial de pobreza.
No entanto, o que também concordo contigo e que devemos explorar mais, é que parte substancial da pobreza ainda é dada pela falta de acesso aos serviços básicos. Por exemplo, pelo menos 35% da população brasileira com renda inferior a um quarto de salário mínimo per-capita não tinha acesso ao Programa de Saúde da Família do Ministério da Saúde segundo os dados da última PNAD. As condicionalidades de saúde do Bolsa Família, por exemplo são aplicadas a uma população beneficiária que é menor do que as que seguem as condicionalidades de educação.
Na semana passada (29 de abril) fui convidado para apresentar no Seminário New Strategies for Health Promotion na Universidade de Harvard, uma breve avaliação dos impactos das condicionalidades de saúde do Bolsa Família no Brasil. Estou anexando o Programa do Seminário e minha apresentação.
As principais conclusões que podemos tirar são que:
(a) O impacto das condicionalidades em saúde nos programas de transferências condicionadas tem sido pequeno, especialmente em países de maior desenvolvimento como o Brasil e o México. Além do mais, uma avaliação de 11 programas dessa natureza, baseada em meta-análises, conclui que existem efeitos perversos e não acompanhados pelos sistemas de saúde destes programas, tais como o aumento da obesidade (inclusive entre crianças) e o aumento da incidência de tabaco nos grupos mais pobres, dada a relativa inelasticidade do consumo de tabaco em relação à renda para a população não-informada e sem acompanhamento do setor saúde. A maioria dos cash-transfer programs tem sido acompanhada no setor saúde por condicionalidades associadas aos temas materno-infantis. No entanto, os fatores de risco associados a doenças crônicas – que são os grandes males que afetam as condições de saúde nos países em desenvolvimento num contexto de finalização da transição demográfica – não tem sido acompanhados. Tais fatores de risco – alcool, tabaco, obesidade – deveriam ser acompanhados e fazer parte das condicionalidades de saúde dos programas de transferência condicionada de renda. Mas isto não tem sido feito, nem no Bolsa Família, nem em outros programas.
(b) Com relação ao Bolsa-Familia, se pode notar que tem aumentado o número de famílias que são acompanhadas pelas condicionalidades de saúde (ver slide número 12). No entanto, tem diminuido o número absoluto de crianças com as condicionalidades de saúde cumpridas (slide 13), o que não ocorre com as gestantes acompanhadas pelo programa (slide 14).
(c) As últimas avaliações de impacto do Bolsa Familia realizadas pelo Ministério do Desenvolvimento Social em 2010 mostram (diferentemente da avaliação de 2005) que o Programa começa a ter impactos em relação ao grupo de controle em áreas como vacinação, amamentação e nutrição (slide 17). No entanto, a real melhoria dos resultados do Bolsa Familia em saúde se encontra estritamente associada ao Programa de Saúde da Familia (PSF) o qual, apesar de seu impacto positivo, tem sua expansão limitada pela falta de serviços e profissionais de saúde nas áreas onde vivem as populações de menor renda.

Os mutirões e as APAES

No debate dos candidatos à presidência, Serra criticou o governo por ter interrompido os mutirões de saúde, e por abandonar e cortar os recursos das Associações de Paes e Amigos dos Excepcionais – APAES. Dilma respondeu que os mutirões não podiam ser políticas estruturantes, e que o governo atual não tem nada contra as APAES, e acha muito importante a inclusão dos expecionais nas escolas.

No caso da saúde, Dilma tem certamente razão ao dizer que a saúde pública não pode depender de mutirões, mas Serra também tem razão ao dizer que, na falta de um sistema de saúde que  funcione bem, as pessoas acabam ficando sem atendimento.  A questão de fundo, que nenhum dos dois levantou, é como fazer com que o sistema de saude funcione melhor, dados os custos crescentes do atendimento, as limitações de recursos e o princípio do SUS de que todos têm direito a atendimento médico gratuito da melhor qualidade. É claro que esta conta não fecha, com ou sem CPMF, e é preciso por isto estabelecer prioridades e regular de forma correta o papel do setor público e do setor privado nesta área.  Eu gostaria de ver esta discussão entre os candidatos.

No caso das APAE, não conheço os detalhes, mas me parece que pelo menos parte do problema reside na “política de inclusão” do atual governo, pela qual as crianças excepcionais deveriam estudar nas escolas regulares. A intenção é nobre, mas os resultados na prática podem ser desastrosos, porque a maioria das escolas públicas não tem estrutura nem competência para lidar com situações mais graves de crianças excepcionais, que acabam ficando desassistidas pela falta de apoio às instituições comunitárias voltadas especificamente para seu atendimento, como são as APAES.

Uma situação que eu tenho acompanhado um pouco é a dos surdo-mudos. Os especialistas sustentam que eles se beneficiam muito mais de escolas especializadas aonde a Libras – Língua Brasileira de Sinais – é a primeira língua, e tendem a ficar marginalizados se são incluidos de maneira forçada em escolas regulares, que é a política que tem sdo adotada pelo governo.

A mesma diferença de abordagem surgiu na questão da educação. Serra, sem discutir as questões mais gerais – como a total falência do ensino médio – preferiu anunciar as milhões de matrículas do ensino profissional que vai abrir, criando uma versão tecnológica do Prouni,  o Protec.  Dilma falou das questões gerais – da importancia da educação infantil, da qualidade, etc., e, para não ficar atrás, também anunciou que vai criar não sei quantas mais escolas técnicas e creches (serão creches federais?).  Mas também não disse nada de concreto sobre como fazer uma educação infantil de qualidade, como lidar com a crise do ensino médio ou como fazer com que as universidades e centros tecnológicos federais que o governo atual está criando realmente funcionem e justifiquem o dinheiro que custam.

As políticas que Dilma sustenta são baseadas em idéias gerais aparentemente bem intencionadas, mas que não funcionam na prática, enquanto que Serra prefere insistir em ações específicas que mostram resultados, evitando no entanto, pelo menos até agora, discutir as questões de fundo, como a reorganização do SUS ou quais seriam as políticas corretas não só para a educação  e inclusão dos excepcionais, mas para a educação pública como um todo.

Ainda sobre o Sistema Unificado de Saúde

Mauro Osório, comentando minha nota anterior sobre a CPMF e o SUS, diz que “estranhei não ver em sua análise uma avaliação dos benefícios que o secretário Osmar Terra aponta como o SUS já tendo gerado. Ou ele não é tão ruim como você deduz na sua análise, ou os dados do Osmar estariam errados.”

Na verdade, nem uma coisa nem outra. As estatísticas de mortalidade infantil e expectativa de vida tem melhorado no Brasil, mas não por causa do SUS. O que explica esta melhoria são coisas como o acesso a água tratada nas cidades, o uso do soro caseiro no controle da diarréia infantil e as grandes campanhas de vacinação. Tradicionalmente, estas coisas, próprias da medicina preventiva, eram feitas pelo Ministério da Saúde, enquanto que a medicina curativa, muito mais cara, era proporcionada pelo Ministério da Previdência. Não era somente uma divisão burocrática: o Ministério da Saúde dependia do orçamento geral, enquanto que o atendimento médico era financiado com as contribuições de empregados e patrões dentro do sistema previdenciário. O que ocorreu foi que, ao mesmo tempo em que a Constituição de 1988 decretava o direito universal ao atendimento médico pelo sistema unificado, os serviços médicos deixaram de ser financiados com os recursos da previdência, que já não davam conta de cobrir os gastos de aposentadoria e pensões. A crise financeira da saúde faz parte da crise da previdência, e não é possível equacionar uma sem equacionar também a outra.

Mauro Osório nos dá um bom exemplo de gestão do sistema previdenciário, que infelizmente não teve continuidade, e todos os dias ouvimos histórias de horror de hospitais sem recursos mínimos, filas intermináveis, contaminações hospitalares, ambulâncias que despejam doentes do interior na porta dos hospitais das capitais, médicos que não comparecem ou cobram por fora…. O que significa que uma boa administração pode fazer diferença, mas não existe nenhum sistema de informações que indique qual é o desempenho dos serviços médicos proporcionados diretamente pelo SUS ou contratados do setor privado, e nenhum mecanismo que estimule premie o bom uso dos recursos públicos, e desestimule ou puna seu uso incompetente, ainda que honesto e bem intencionado.

O que fazer com o SUS? Existem muitas propostas, várias delas bem interessantes, disponíveis por exemplo em documento recente do IPEA, Uma Agenda para o Crescimento Econômico e a Redução da Pobreza, organizado por Paulo Mansur Levy e Renato Villela, de novembro de 2006, que recomendo. Meu propósito aqui é somente insistir em que o SUS não pode ser considerado mais uma jabuticaba, que é excelente e só existe no Brasil. É um sistema com graves problemas de concepção e gestão, de custos crescentes e aparentemente incontroláveis, e que não pode ser discutido unicamente em termos de seu financiamento, que, por mais CPMFs que hajam, nunca será suficiente.

O fim da CPMF e o melhor sistema de saúde pública do mundo

Nas discussões sobre a CPMF, falou-se muito da necessidade de garantir os recursos para o financiamento do Sistema Unificado de Saúde, o SUS, que, na opinião de Osmar Terra, Secretário de Saúde do Rio Grande do Sul, em artigo no O Globo de 1/1/2008, é “a proposta mais avançada de política pública de saúde existente no mundo”. Pena que não tem dinheiro e funciona tão mal, mesmo quando o dinheiro existe. Esta idéia da maravilha que é o SUS é muito comum entre os que trabalham na área, mas não passa de um mito, igualzinho ao de que o Brasil teria o sistema previdenciário mais avançado do mundo, que se dizia antes, mas que hoje ninguém mais fala. A crise de financiamento trazida pelo fim da CPMF deveria ser uma boa oportunidade para começar a desmontar este mito, e encarar de frente os graves problemas de saúde pública do Brasil.

O principal problema com o “avanço” do sistema de saúde, assim como o da previdência, é que eles prometem uma cobertura universal e generosa para a qual não há nem haverá recursos. Na Constituição de 1988, estava previsto que o sistema de saúde seria coberto com 30% dos recursos federais do sistema da previdência social, os dois financiados pelas contribuições dos trabalhadores, empresas e governo. Quando o sistema previdenciário começou a ficar insolúvel, cessou a transferência de recursos para a saúde, que saiu da previdência e se socorreu na CPMF para continuar funcionando, embora de forma precária. Na medida em que a população envelhece e a medicina avança, os custos do atendimento médico tendem a crescer, com medicamentos e equipamentos cada vez mais complexos, tempos prolongados de internação, e profissionais de saúde que querem ser remunerados de acordo com seus esforços e sua capacidade. Mesmo os paises ricos que tem sistemas universais de saúde pública, como a Inglaterra ou a França, embora gastem cerca de 10% do PIB em saúde, encontram dificuldades crescentes para manter os sistemas funcionando. Nos Estados Unidos, que gasta cerca de 15% do PIB com saúde, as dificuldades são ainda maiores. O Brasil gasta menos de 4%. Quanto a sociedade estaria disposta a gastar? Tirando de onde? Não há solução fácil para isto, mas um bom sistema de saúde, da mesma forma que um bom sistema de previdência social, seria aquele que focalizasse os poucos recursos públicos disponíveis nas populações mais carentes e nos atendimentos mais críticos, e estimulasse a que a maior parte possível da população fosse coberta por sistemas de seguro financiados pelos contribuintes ou seus empregadores.

Além disto, a organização do sistema SUS é inviável. O princípio é que seria um sistema descentralizado, controlado pelos governos locais e conselhos comunitários, que deveriam zelar pelo bom atendimento dos serviços, mas não pela administração de recursos, que fica basicamente com o governo federal. Um sistema em que um lado só gasta, e outro paga a conta, não tem como dar certo, já que não há interesse por parte dos que gastam em usar eficientemente os recursos disponíveis. A idéia por trás deste sistema é que os recursos públicos para a saúde seriam infinitos, e apareceriam na medida em que a sociedade, através dos conselhos e administrações locais consiga se mobilizar e aumentar sua demanda.

Existem muitos outros problemas com o sistema SUS, entre os quais o do relacionamento do sistema público com o setor privado de saúde, que não há como discutir aqui. O ponto principal é que estes problemas, distorções e mal funcionamento não são acidentes de percurso e perturbações menores de um sistema que seria “o mais avançado do mundo”, e sim conseqüências inevitáveis de um sistema ambicioso e mal concebido, que precisa ser urgentemente revisto.

O melhor sistema de saúde pública do mundo: médicos na cadeia

O Globo de hoje, 11/06/2007, noticia que a Dra. Yolanda Cyranka, chefe de equipe do Hospital Miguel Couto no Rio de Janeiro, foi presa por desrespeitar ordem do Tribunal de Justiça do Rio para transferir um paciente para um hospital particular, porque a UTI do hospital público não tinha vaga.

No dia 15 de maio passado, o secretário estadual de Saúde e o gerente estadual de Gerência Farmacêutica do Espírito Santo foram presos pela Polícia Federal por descumprirem uma determinação de um juiz federal de Colatina, no interior do Estado. Segundo a Justiça, a Secretaria da Saúde deveria ter fornecido o medicamento Avastin à família de uma criança de cinco anos, que está com tumor cerebral e se encontra em estado grave. Conforme noticiou o jornal A Tarde, uma dose do remédio custa mais de R$ 5 mil. “O secretário alega que a encomenda já havia sido feita, mas o laboratório não pôde cumprir o prazo determinado e a justiça já havia sido informada.”

É muito comum ouvir a afirmação de que nosso Sistema Unificado de Saúde, o SUS, implantado a partir da Constituição de 1988, é o melhor do mundo (veja por exemplo o artigo de Juliano Carvalho Lima, Mestre em Saúde Pública pelo Instituto Oswaldo Cruz, ou o documento da CUT no mesmo sentido).

A qualidade do sistema consistiria no princípio de que o atendimento à saúde é direito de todos e dever do Estado, além de sua gestão comunitária, de forma descentralizada e autônoma. Quando um doente precisa de um tratamento, e as autoridades da área de saúde não o atendem, então a justiça intervém, ordenando que o atendimento seja feito, e mandando prender os que não cumprem a ordem judicial.

Falta só um pequeno detalhe, que é o dinheiro para criar toda a infra-estrutura de atendimento, comprar todos os remédios e fazer todos os exames que sejam necessários. Na área da saúde, mais do que em outras, os custos dos equipamentos, remédios e da atenção profissional são crescentes, e, como o valor da vida é incomensurável, sempre se pode gastar mais para atender a quem necessita; mas os recursos, por mais que cresçam, serão sempre insuficientes. Todos os serviços de saúde do mundo, mesmo nos países mais ricos, têm que enfrentar este problema, através de prioridades, participação dos pacientes nos custos dos serviços (não só para arrecadar algum dinheiro, mas para desestimular a demanda por atendimentos menos prioritários) e o estabelecimento de padrões autorizados de tratamento, entre outras medidas.

O ativismo judiciário no sistema de saúde, com juizes obrigando as autoridades médicas a dar prioridade aos casos que chegam às suas mãos, só agrava as enormes dificuldades que o setor enfrenta, tendo que escolher, todos os dias, como usar melhor os parcos recursos de que dispõe.

Está na hora de dizer que o Sistema Unificado de Saúde não só não é o melhor do mundo, mas, muito pelo contrário, tem vícios de concepção e organização insanáveis, que têm como resultado o péssimo atendimento à população que depende dele, e que precisam ser profundamente revistos.

A crise da saude no Rio de Janeiro

Sem ser um especialista no assunto, tenho tratado de acompanhar e entender a crise da saúde no Rio. Eis algumas idéias, como hipóteses a serem pesquisadas.

O que mais aparece é o aspecto político. O governo federal diz que o prefeito abandonou a saúde, e o prefeito diz que o governo federal não deu o dinheiro que prometeu. O governo estadual, que teria muito que ver com isto, nao diz nada, nem aparece. Neste nível, o grande vitorioso é o governo federal, através do Ministério da Saúde, e o grande perdedor é o Prefeito. De um um lado, aparece um Ministério preocupado com os problemas da população, mobilizando médicos, convocando o Exército para abrir hospitais de campanha, trazendo medicamentos de avião, descobrindo materiais e equipamentos abandonados. De outro, um prefeito aparentemente insensível, com um Secretário de Saúde com suas camisas e gravatas impecáveis, sem explicar direito à população o que está ocorrendo, dizendo que o governo federal agiu bem em chamar o problema para si, e levantando firulas legais e administrativas que podem ser até justas, mas que a população não entende. É dificil pensar em um exemplo melhor de tiro no pé, justamente quando o Prefeito ensaia seus primeiros passos para ir além da política municipal, aparecendo na TV para falar de sua competência administrativa e dos jogos panamericanos. Alguém acredita?

Existem dois problemas de fundo que ninguém está discutindo, um gerencial, outro financeiro. Será que o modelo de organização da saúde pública brasileira, o Sistema Unificado de Saúde, o SUS, é realmente o mais adequado? A idéia consiste em fazer com que a saúde seja gerida localmente, com a participação da população, e fazendo uso dos recursos municipais, estaduais e federais. Este sistema costuma ser elogiado como o melhor do mundo, mas existem suspeitas de que ele não passe de uma jaboticaba. Pelo menos no caso do Rio, a brigalhada mostra que ele não funcionou. Talvez o problema seja que é muito dificil, se não impossível, gerenciar um sistema de saúde complexo quando o gestor não tem controle sobre o conjunto, não sabe que recursos que vai receber, e tem que passar todo o tempo costurando consensos. Em um artigo recente, Bresser Pereira diz que o problema é que os hospitais no Rio são repartições públicas, quando o melhor seria se eles estivessem estruturados como organizações sociais de direito privado, como ocorre em São Paulo, onde este tipo de problema não ocorre. Pode ser. Não creio, em todo caso, que isto tenha a ver diretamente com o sistema do SUS, que seria compatível com ambos os formatos. No caso do Rio de Janeiro, seria interessante saber como será a organização, a gerência e o financiamento da saúde pública da cidade, depois de passado este momento de mobilização, em que os recursos parecem ser infinitos.

Por detrás dos problemas organizacionais está a questão dos custos. A legislação brasileira, que o SUS deve implementar, parte do princípio de que todos têm direito ao atendimento médico gratuito, a ser pago com recursos públicos. Ocorre que esta conta não fecha, e tende a ficar cada vez mais desequilibrada. Na medida em que a medicina avança e a população vive mais, os custos do atendimento à saúde aumentam. O resultado é que a pressão sobre os serviços públicos aumenta cada vez mais, estourando em crises como a do Rio de Janeiro, e afastando os que conseguem pagar, que buscam a medicina privada.

Não se trata, simplesmente, de uma oposição entre medicina privada e medicina pública, nem entre medicina preventiva e medicina curativa. Hospitais públicos também precisam de equipamentos caros, manutenção dispendiosa, pesssoal médico e administrativo com salarios decentes, e o direito de prescrever tratamentos e medicamentos caros. Não existem soluções fáceis para isto, mas algumas coisas podem ser feitas. Uma delas seria inverter o princípio atual de que todo o atendimento médico é gratuito, e estabelecer que todo o atendimento deve ser pago, com alguma participação, ainda que pequena, dos pacientes, abrindo exceção para quem não pode pagar. Isto traria mais recursos, e, sobretudo, inibiria o uso abusivo dos serviços públicos, fazendo com que os pacientes sejam co-responsáveis. Um outro caminho é limitar o atendimento público a pessoas de determinado nível de renda, ou para problemas e doenças que o setor privado não consegue atender, inclusive enfermidades catastróficas do ponto de vista econômico.

Enfim, há muitíssimo a fazer: mudar o sistema de gerenciamento dos hospitais e outros serviços de saúde, racionalizar o uso dos recursos, direcioná-los a quem mais os necessite, e avaliar o que de fato tem ocorrido com o modelo SUS, que parece que funciona bem em algumas partes, mas não em outras. Seria ótimo se, no lugar as trocas de acusações entre as autoridades, pudéssemos ter uma discussão mais aprofundada destas questões, com os dados correspondentes.

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