Ascensão e queda dos Chicago Boys

(publicado em O Estado de São Paulo, 8 de dezembro de 2023)

Entre 1980 e 2019, a economia chilena foi a que mais cresceu na América Latina, enquanto a proporção de pessoas vivendo em situação de pobreza baixou de 53 para 6%. Esta história de sucesso se explica pelas políticas que Sebastian Edwards, em livro recente, chama de “neoliberais”, entendidas não somente como a aposta nos benefícios da economia de livre mercado, mas também pela convicção de que as regras competitivas devem valer para outras áreas como as da educação, saúde, habitação e previdência social (The Chile Project: the story of the Chicago Boys and the downfall of neoliberalism, Princeton, 2023). Estas políticas foram introduzidas nos anos da ditadura militar de Augusto Pinochet,  entre 1973 e 1990, e continuadas nos 20 anos seguintes em que o Chile foi governado democraticamente pela “concertación” de socialistas e democratas cristãos.  Além de manter a economia de mercado, estes governos passaram também a investir nas áreas de saúde pública e educação, e foi a partir daí que a economia mais cresceu,  a pobreza mais se reduziu, e a qualidade da educação melhorou.

E no entanto, a partir de 2016 a política chilena se polarizou cada vez mais, com os governos de esquerda e direita de Michelle Bachelet e Sebastian Piñera se alternando.  Em 2019 o país foi sacudido por violentas manifestações populares que resultaram em um novo e jovem presidente,  Gabriel Boric, oriundo dos movimentos de protesto.  Com ele foi eleita uma assembléia constituinte que elaborou  uma nova constituição que prometia pôr fim ao neoliberalismo e implantar uma nova sociedade baseada na garantia dos direitos sociais,  economia social de mercado e estado plurinacional, com o reconhecimento da autonomia das populações indígenas.  O texto, no entanto, foi rechaçado pela maioria da população em um plebiscito, e agora uma outra constituição, muito mais conservadora, está sendo preparada,  com a chance de ser também desaprovada em um plebiscito no próximo dia 17 de dezembro.

A preocupação de Edwards, com este livro, foi entender por que uma história inicial de sucesso redundou no aparente consenso de que havia sido um fracasso, e o que se pode esperar para o futuro não somente para o Chile, mas para todos os países da região que, nos últimos tempos, têm alternado entre governos de direita e esquerda, liberais (ou neoliberais) e estatistas, sem que mostrem resultados consistentes. As políticas pró-mercado dos Chicago Boys tiveram o pecado original de terem sido implantadas à sombra de uma ditadura sangrenta, mas a manutenção de muitas destas políticas pelos governos democráticos nos anos posteriores indicava que devia ser possível separar uma coisa da outra.

Parte do problema foi que, ao lado dos indicadores de sucesso, estas políticas tiveram pelo menos dois resultados negativos: a desigualdade, que continuou alta,  e o sistema previdenciário de capitalização, em que as aposentadorias dependem dos rendimentos de investimentos privados de cada um ao longo da vida.  Edwards mostra que os que apoiavam estas políticas não acreditavam que a desigualdade seria um problema, desde que a pobreza diminuísse, e não consideravam os profundos efeitos negativos de uma sociedade econômica e socialmente dividida. E o fracasso do sistema previdenciário, em que as pessoas chegavam à aposentadoria sem o mínimo de condições para se manter, colocou a classe média, que aparentemente se beneficiava do crescimento da economia,  em situação de grande insegurança.

São problemas que poderiam, em princípio, ser administrados com políticas mais adequadas de saúde, educação e proteção social, que os diversos governos democráticos buscaram implantar.  Mas Edwards crê que o problema era mais profundo, e tinha a ver com as grandes desigualdades sociais e com a arrogância dos políticos e economistas que não atentaram para os problemas e tensões que vinham se acumulando. Ele não acredita, como eu também não, que economias fortemente estatizadas e apoiadas em movimentos sociais, como tentado por Salvador Allende no passado  e por outros governos de esquerda mais recentemente, consigam produzir melhores resultados. Mas não é fácil chegar a um equilíbrio adequado entre incentivos de mercado e políticas sociais, e os economistas não têm instrumentos para entender e lidar com as desigualdades que ele chama de “horizontais”, de natureza social e cultural, que vão muito além das diferenças de renda e dividem tão profundamente a sociedade  chilena e de outros países da região. Em última análise, diz ele,  os defensores da economia de mercado se acomodaram com seu sucesso e perderam a batalha das ideias, incapazes que foram defender seus resultados e lidar com os temas emergentes da perda de  identidade,  insegurança e ressentimento que muitas vezes são a outra cara do desenvolvimento capitalista. Edwards não cita, mas seu livro faz lembrar um livro clássico, A Grande Transformação, de Karl Polanyi, de 1944, que fala sobre a fratura entre sociedade e economia trazida pelo capitalismo selvagem, à qual ele atribui as guerras grandes que destroçaram a Europa.  Vale a pena reler

Acendendo uma vela

Capa da revista Mosaico, do Diretório Central dos Estudantes da UFMG, 1961. (Ilustração de Amaury Guimarães de Souza).

A pedido da International Review of Educational Development, escrevi um pequeno ensaio refletindo sobre minha experiência de participação em estudos e elaboração de propostas de políticas públicas nas áreas de ciência, tecnologia e educação. Como é para um público internacional, achei que deveria também descrever o contexto destas experiências, desde meus tempos de faculdade em Minas Gerais na década de 60. O artigo se chama “Lighting a candle” – acendendo uma vela – e o texto, em inglês, está disponível aqui.

Eu concluo dizendo que não tenho certeza de ter tido sempre razão nas políticas que propus e nas ideias que defendi ao longo destes anos. O certo é que minhas proposições quase sempre ficavam em minoria. Minha explicação é que a escolha e implementação de políticas públicas é determinada sobretudo por uma combinação de inércia e preservação de interesses estabelecidos, e não pelo mérito das propostas, força dos argumentos ou qualidade das evidências. Pelas decisões feitas e não feitas, o Brasil tem um sistema educativo caro, inchado, ineficiente e muito resistente a buscar alternativas que poderiam levar a bons resultados se fossem postas em prática. Tomara que as coisas melhorem no futuro, o que compensaria ter passado tantos anos segurando uma vela acesa e algumas vezes queimando meus dedos

“A China não é um bom exemplo para o IBGE”

O jornal O Estado de São Paulo publicou hoje, 23/11/2023, uma entrevista minha sobre as questões de confiabilidade e divulgação dos dados do IBGE. O texto espelha razoavelmente bem a conversa telefônica que tive com o jornalista, com duas pequenas correções. Primeiro, não sou filho do jornalista Salomão Schwartzman, que era xará de meu pai. Segundo, que eu saiba, a ex-presidente do IBGE Suzana Cordeiro Guerra não foi indicada por Jair Bolsonaro, mas pelo Ministro da Economia Paulo Guedes, que no entanto não lhe deu o apoio que deveria.

Um estudo detalhado sobre a qualidade dos sistemas nacionais de estatística, publicado pelo Banco Mundial em 2019, mostra que os países mais desenvolvidos em relação a isto são a Noruega, Italia, Polônia, Austria, Eslovênia e Estados Unidos, todos com perto de 90 pontos em uma escala de 100. Nesta escala, o Brasil tem 76,8 pontos, a Índia 70,4 e a China 58,2, o que significa que nem China nem India são modelos para nós. O que a Índia tem de notável foi o grande avanço na implantação do governo digital. A China seguramente não está atrás no uso de informações digitais pelo governo, mas não é o melhor exemplo de transparência.

Transcrevo abaixo o texto da entrevista, tal como publicado:

“A China não é um bom exemplo para o IBGE, diz o ex-presidente do instituto. Simon Schwartzman considera um equívoco o atual gestor, Marcio Pochmann, buscar no país asiático ideias para aplicar no Brasil, quando a Índia seria a melhor referência em digitalização.

O Estado de São Paulo. Por Carlos Eduardo Valim, 23/11/2023 | 14h30

O sociólogo Simon Schwartzman, filho do jornalista Salomão Schwartzman, presidiu o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre 1994 e 1998, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Na época, já defendia uma modernização da estrutura da instituição para proteger o corpo técnico da interferência política, algo que voltou a preocupar economistas e quem trabalha com dados populacionais.

A gestão do instituto está sob os holofotes desde o apagão de dados no meio do governo de Jair Bolsonaro, com o adiamento do último Censo, e agora com a escolha do economista Marcio Pochmann, filiado ao PT, para liderar o órgão.

Este último chamou atenção após, em uma palestra para funcionários do IBGE realizada no fim de outubro, defender “modernizar” a forma de divulgação dos dados da instituição e comentou que buscou exemplos de como trabalhar com pesquisas na China. Schwartzman contesta que a possibilidade de país asiático ser uma referência para o Brasil, e que o exemplo precisaria ser buscado na Índia, que digitalizou a coleta de dados de forma inovadora.

Em entrevista ao Estadão, ele também defende que o IBGE deveria receber uma autonomia operacional e administrativa similar à do Banco Central, além ter um conselho técnico que aferisse e cobrasse da instituição a adoção de padrões internacionais.

As declarações e os posicionamentos políticos de Pochmann trazem preocupação sobre a credibilidade do IBGE?

Eu não vi o texto da conferência dele, mas estou acompanhando as notícias de jornais. Claro que existe uma preocupação de algum tempo de que o IBGE precisa garantir que produz dados confiáveis. Uma coisa muito importante da estatística é que ela precisa ser reconhecida como um dado válido. E isso acontece ao se adotar padrões internacionais, como os usados pela ONU (Organização das Nações Unidas), com a mesma qualidade dos principais centros de estatística do mundo. Também é preciso ter gente com reputação técnica adequada coordenando esse processo. Isso tudo é necessário porque a sociedade não tem como aferir o detalhe técnico e se o trabalho foi feito corretamente. Então, é preciso um mecanismo que traga a garantia de aplicação das melhores práticas internacionais, o que traz confiança para investidores e para a população, e dá segurança para que se possa utilizar os dados para fazer políticas públicas.

Historicamente, os dados do IBGE não costumam ser contestados. Ele não tem este arcabouço confiável?

O IBGE sempre buscou fazer um esforço neste sentido, mas não tem uma estrutura suficientemente sólida para garantir isso. Não tem conselho técnico e um mecanismo para garantir que as melhores práticas estão sendo aplicadas. Então, ele depende muito de quem está na presidência, que é um cargo demissível. Não é uma posição protegida. Deveria ser um cargo mais técnico. O problema da credibilidade é que, quando uma pessoa vem com uma marca ideológica muito forte, já se cria um clima de desconfiança que causa muito impacto. A credibilidade é muito fundamental.

Durante sua gestão nos anos 1990, houve esforços para se adotar uma governança modernizada e a falta de apoio para isso teria sido o motivo de sua saída?

Na minha presidência, eu insisti para evoluir nisso e não consegui. Eu tentei, mas não consegui na época implementar as modificações necessárias. Continuo insistindo que é necessária essa estrutura. Nenhum governo posterior levou isso para frente.

Sem isso, a instituição ficou muito exposta a pressões políticas?

Houve situações em que o instituto ficou à mercê de pessoas com posições de ideologias muito marcadas, sem compromisso com a precisão.

O Pochmann disse que se espelhava na coleta de dados digitalizada feita pela China. Esse é um bom exemplo?

O país notável do terceiro mundo é a Índia. E todos os países da Europa Ocidental também fazem isso. A China não é um bom exemplo para o IBGE. Ela é muito fechada. A Índia é mais interessante na digitalização, e tem hoje uma população maior até do que a China. É um desafio altíssimo coletar dados lá na Índia, mas todo mundo tem identidade digital, todo mundo usa comunicação digital. Eles avançaram muitíssimo nisso.

O IBGE está muito atrás? O Pochmann também causou polêmica ao defender que a divulgação pela imprensa não seria mais tão importante se é possível divulgar mais as pesquisas pela internet. Isso faz sentido?

O IBGE já avançou muito na informação disponível na internet. Todos os sistemas são digitais, todos podem acessar. Mas a divulgação pela imprensa é importantíssima, para traduzir os dados mais importantes para a população. Não entendo qual seria a novidade que ele gostaria de trazer em relação a isso.

De todos os presidentes entre 2003 e 2019, só em 10 meses entre 2016 e 2017 não teve alguém que não era funcionário de carreira. Seria importante voltar a isso?

Eu não sei se é fundamental. Eu como presidente vim de fora. Chegar à direção vindo do corpo técnico não é essencial. A questão é que as pessoas escolhidas sejam reconhecidas na área, que entendam do tema, de estatísticas. É até bom vir alguém de fora, com uma perspectiva diferente. O problema atual não é esse. Precisaria haver um mandato e a autonomia do presidente do IBGE, como é no Banco Central. Ou, então, o gestor fica sob influência do ministro ou dependente da indicação do presidente.

Quando a gestão do IBGE perdeu a confiabilidade? A primeira indicada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, a Susana Cordeiro Guerra, vinha de fora da instituição, mas tinha boas credenciais. Por que isso não teve sequência?

Ela foi indicada pelo Bolsonaro e não recebeu apoio do Ministério da Economia quando se resolveu cortar a verba do Censo. Ela ficou entre dois fogos e não conseguiu permanecer. Ela tinha uma agenda importante de se passar a usar mais informações administrativas, geradas por outras áreas do governo, como a área fiscal e a de dados econômicos. Assim, o Brasil poderia depender menos da pesquisa de opinião e usar mais os dados administrativos de qualidade gerados. Até por causa da pandemia isso ficou mais agudo ainda. Ela queria adotar critérios para os integrar os dados administrativos aos produzidos pelo IBGE, e fez um trabalho neste sentido.

Quem produz dados administrativos relevantes?

Os ministérios da Saúde, da Educação, do Desenvolvimento Social e a Receita Federal, por exemplo. É parte do trabalho de várias áreas produzir essas informações. É preciso, então, desenvolver um processo mais organizado, para usar o que eles produzem como dados oficiais para efeito estatístico. O IBGE ainda tem um formato muito antigo, com agências localizadas em cidades do País, uma coisa dos anos 1930 e 1940, para coletar declarações das pessoas. Hoje não faz mais muito sentido, com os equipamentos de última geração e software modernos.

As guerras de cada um

(Publicado em O Estado de São Paulo, 10 de novembro de 2023)

Existiram um dia a Ucrânia, Palestina, Israel, e têm direito de continuar existindo? Como?  São perguntas que afloram ao ler “A Ucrânia de cada um”, livro organizado por Flávio Limoncic e Mônica Grin na emoção da guerra fraticida da Ucrânia, publicado agora à sombra da também fraticida batalha de Gaza. Não é um livro propriamente sobre a Ucrânia, nem sobre as guerras, mas um conjunto de relatos e testemunhos de descendentes de judeus do leste Europeu que sobreviveram ao holocausto e reconstruíram suas vidas no Brasil e outros países das Américas. São memórias pouco conhecidas, porque a velha geração preferia poupar os filhos das histórias de sofrimento e horror por que passaram. E estes, estimulados a construir suas vidas no novo mundo, olhavam para frente, nem sempre com tempo e espaço interno para os relatos de seus pais.

Agora, as décadas de relativa paz que sucederam à guerra parecem estar se esgotando, os fantasmas voltam a assombrar, e é preciso lembrar de onde viemos.  Os velhos se foram, os filhos e netos amadureceram, e buscam nos fragmentos de memória, em velhos papéis e fotografias, em registros e nas redes de Internet, as histórias de seus pais e o sentido de suas origens. Para alguns, os documentos e as histórias familiares foram mais preservados. Mas para a maioria o que resta são pouco mais que referências desencarnadas de localidades e pessoas que mudaram de nomes ao sabor das migrações, das diferentes línguas e dos poderes que se alternavam no domínio de cada uma das antiga cidades e regiões – Vilna, Minsk, Volhynia, Podolia, Lublin, Galicia, Edinet, Kischinev – quase todas hoje partes da Ucrânia, Moldova e Polônia.

As histórias familiares fazem parte da identidade de cada um, mas não determinam seu destino. Dado o que passou, é inevitável que os relatos de perseguições, guerras e estratégias de sobrevivência sejam o que mais aparece. Mas existem outras histórias importantes a ser contadas. A da persistência de uma forte cultura local, baseada em uma língua comum e instituições comunitárias, de cunho religioso ou não, que estruturavam a vida no dia a dia nas pequenas localidades da Europa oriental; uma cultura do cotidiano que encontrou expressão em uma importante tradição literária que acompanhou as levas de imigrantes que partiram para as Américas, e que aos poucos vem desaparecendo com a perda de lugar do ídiche como a língua franca destes povos. A do judaísmo renovado, seja pela volta à tradição do messianismo religioso do “hassidismo”, seja no sionismo secular em suas diferentes vertentes. Ou finalmente pela busca de identidades novas: participar da cultura cosmopolita, profissional, universitária, científica e empresarial que se desenvolvia na Europa e nas Américas, ou se filiar aos movimentos políticos e sociais de esquerda que se formavam, pela militância nos sindicatos e partidos socialistas e comunistas locais. Não fosse o nacionalismo e o nazismo, a integração de parte dos judeus na sociedade e cultura de países europeus como a Alemanha, Áustria e Polônia teria sido tão bem-sucedida quanto  o foi nos Estados Unidos e Europa Ocidental

A Ucrânia foi por muito tempo lugar de coexistência de russos, ucranianos e judeus de diferentes identidades, da mesma forma que a antiga Palestina tem sido, por séculos, lugar de coexistência de árabes cristãos, judeus e muçulmanos. Nem sempre foi uma coexistência pacífica, mas os historiadores falam mais dos momentos dramáticos de guerras e conflitos do que dos longos tempos de paz, que também existiram e precisam ser reconhecidos e apreciados.

Meu tataravô materno, no século 19, fazia parte da próspera comunidade judaica de Varsóvia e decidiu, por razões religiosas, terminar sua vida  em Sfat, a cidade sagrada da Cabala. Era na antiga Palestina, parte do Império Turco, para onde haviam ido muitos dos sábios judeus expulsos pela inquisição espanhola,  onde nasceu minha mãe.  Meu pai se dizia romeno, nascido em uma das pequenas aldeias da Bessarábia, hoje parte da Moldova, e recentemente soube que minha avó paterna pode ter nascido em Vinnytsia, na Ucrânia. Os avós de minha mulher eram árabes cristãos, sírios e libaneses, que mandavam as moças da família a uma escola católica em Haifa, hoje parte de Israel, e nossos filhos são cidadãos do mundo.

Nada disto nos dá uma solução simples para as guerras de hoje, mas fica, pelo menos, um princípio moral que nos ajuda a pensar. Na apresentação do livro, Flávio e Mônica citam a  Bashevis Singer dizendo que, na língua ídiche, não havia palavras para designar armas, munições, exercícios militares ou táticas de guerra. Hoje são estas as palavras que mais se ouvem nos conflitos do Oriente Médio. Não parece que haja outro caminho para a região senão a plena implementação dos acordos de Oslo, com a constituição de um estado palestino autônomo e viável. Pode ser que nunca se chegue lá, da mesma forma que o nacionalismo e o racismo destruíram as esperanças de paz depois da primeira grande guerra. Mas não podemos perder a lucidez que adquirimos ao reencontrar as origens e possibilidades de cada um de nós.

A nova educação profissional

(publicado em O Estado de São Paulo, 13 de outubro de 2023)

Sem que quase ninguém visse, o Congresso aprovou, em agosto passado, por iniciativa da notável e incansável deputada Tábata Amaral, a Lei 14.645 que dispõe que o Brasil estabeleça, no prazo de dois anos, uma nova política nacional de educação profissional e tecnológica. É um texto curto, bastante genérico, mas que inova em pelo menos três pontos importantes, o da articulação do sistema escolar com o sistema de aprendizagem, o da organização dos itinerários formativos e o da avaliação desta modalidade de ensino.

O que se chama de “sistema de aprendizagem” é a educação que se desenvolve de forma articulada com o trabalho. Nela, o estudante está vinculado a uma empresa, ganha por isto, e ao mesmo tempo faz cursos em que adquire de forma mais sistemática os conhecimentos que pratica. Quando se forma, ele já tem, quase sempre, uma boa formação técnica e um lugar no mercado de trabalho. Este sistema se desenvolveu sobretudo na Alemanha, Suíça e outros países europeus, é responsável pela alta qualificação da mão de obra destes países, e considerado superior ao sistema de educação profissional em escolas separadas.  A principal condição para que o sistema funcione é que o setor produtivo se envolva ativamente na qualificação dos aprendizes, e se articule com as entidades responsáveis pelos cursos que os alunos devem seguir. No Brasil, a legislação de aprendizagem acabou se transformando em uma obrigação legal para que empresas contratem jovens carentes, com limitações que dificultam que a aprendizagem ocorra pela prática profissional.   A nova lei sobre ensino profissional avança no sentido de que as instituições de ensino reconheçam e validem os conhecimentos adquiridos no trabalho e que se criem estímulos para o envolvimento do setor produtivo com a formação profissional, mas ainda há que se desenvolver uma proposta mais articulada de como desenvolver um sistema de aprendizagem que possa ser uma alternativa valorizada à educação formal, e não, simplesmente, assistencial.  

A ideia principal por trás dos “itinerários formativos” é que os cursos profissionais não se transformem em becos sem saída que impeçam que o estudante que opte por esta via continue estudando e se qualificando em níveis mais altos. Assim, uma pessoa poderia começar como eletricista, e evoluir até ter uma qualificação de engenheiro, tendo seus conhecimentos e experiência prévios reconhecidos e validados.  Uma ideia importante, mas que depende, sobretudo, de que as instituições de educação superior se abram para um novo tipo de aluno com um perfil mais prático.

Finalmente, na avaliação, a novidade é que ela tome em conta, explicitamente, a eficiência das instituições em formar seus alunos e o lugar que eles ocupam depois de formados no mercado de trabalho, muito diferente da avaliação obsoleta que temos hoje no ensino superior, baseada em provas de conhecimentos e indicadores como a titulação formal dos professores.

O elefante na sala do ensino profissional brasileiro, que ninguém menciona, é que ele pretende fazer duas coisas opostas ao mesmo tempo, proporcionar uma alternativa prática de qualificação profissional para o jovem que chega ao ensino médio com grandes dificuldades de seguir os currículos tradicionais, e formar pessoas capazes de lidar com os novos requisitos de um mercado de trabalho cada vez mais exigente em termos das qualificações técnicas e socioemocionais requeridas. O Ministério da Educação, ao dar para trás com a reforma do ensino médio, insistir no ENEM unificado e no modelo elitista dos institutos federais para o ensino profissional, se nega a reconhecer que o problema existe, não cria alternativas de formação e reforça as desigualdades, que nenhuma política de cotas pode compensar. E isso sem dizer que temos pela frente uma profunda transformação no mercado de trabalho trazida pela automação e inteligência artificial, que coloca em questão toda a estrutura do sistema de educação regular e profissional que temos até aqui, criando a necessidade de micro credenciais, certificações, sistemas de educação continuada e de reciclagem profissional que não desenvolvemos.  

É difícil saber em que esta nova legislação vai resultar, porque vários de seus dispositivos são pouco mais do que expressões de desejo, em ações como “fomento à expansão da oferta de educação profissional e tecnológica em instituições públicas e privadas”  ou o “fomento à capacitação digital na educação profissional e tecnológica, de forma a promover a especialização em tecnologias e aplicações digitais”; e outros que seguramente não vão funcionar, como a “instituição de instância tripartite de governança da política e de suas ações, com representação paritária dos gestores da educação, das instituições formadoras e do setor produtivo”, e a articulação desta política com o futuro e incerto  plano nacional de educação.  Mas ela ajuda a recolocar o tema da educação profissional na ordem do dia, e, por isto, é uma contribuição importante.

Pesquisa, inovação, pós-graduação e ensino superior no Brasil

Estou compartilhando, para críticas e comentários, a versão preliminar de um trabalho sobre o tema acima, disponível aqui.

Este trabalho teve por objetivo obter uma visão abrangente das áreas de pesquisa, inovação, educação superior e pós-graduação no Brasil, com ênfase em uma análise mais detalhada dos conteúdos das teses e dissertações de doutorado e mestrado. O uso do termo “sistema” para descrever este conjunto pode dar a impressão equivocada de que ele obedece a uma lógica racional e coerente, que teria por objetivo desenvolver os recursos humanos do país em suas diversas dimensões. O que se observa, no entanto, é que cada um destes componentes se desenvolveu e funciona segundo uma lógica própria e não necessariamente coincidente. A pesquisa mais significativa está concentrada em um segmento do sistema universitário e em alguns institutos isolados, as despesas públicas em ciência, tecnologia e inovação não estão associadas, maioritariamente, à pesquisa e inovação enquanto tais, e a formação de doutores e mestres só em parte converge com a formação de pesquisadores.  Embora não seja uma conclusão surpreendente, ela traz implicações de políticas públicas importantes que deixam de existir quando se desconsidera a pluralidade de funções de cada um destes setores.

Este artigo é produto do projeto “Pesquisa em Pesquisa e Inovação: indicadores, métodos e evidências de impacto”, realizado pelo Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo  – FAPESP (Processo FAPESP 2021/15091-8).

O novo plano vem aí

(publicado em O Estado de São Paulo, 8 de setembro, 2023)

Em 2024 termina o Plano Nacional de Educação aprovado pelo Congresso em 2014, que ficou praticamente todo sem se cumprir, e já se veem movimentos para elaborar um novo que deveria entrar em vigor em 2025, com o risco de ter o mesmo destino. O fracasso do PNE de 2014 não foi nenhuma surpresa. Em 2011, quando ainda estava em gestação, escrevi com alguns colegas um artigo em que dizíamos que o plano não passava de uma “lista de Papai Noel”, que colocava no papel objetivos inalcançáveis e deixava de lado reformas fundamentais como a da formação de professores, diferenciação do ensino médio, fortalecimento da educação professional, alinhamento dos currículos com sistemas de avaliação, e outros.

Se a inteligência natural não nos ajudou a elaborar políticas educacionais efetivas no passado, quem sabe que, agora, a inteligência artificial nos ajuda? Pedi ao ChatGTP que me indicasse quais países tinham planos nacionais de educação, e ele listou Brasil, Portugal, Mexico, Chile, Colômbia e Índia.  Perguntei que países haviam obtido os melhores resultados educacionais nos últimos anos, e ele listou Finlândia, Singapura, Coreia do Sul, Canadá, Japão. Ou seja, uma coisa parece excluir a outra.  Acacianamente, o ChatGTP me fez lembrar que “o sucesso na educação não pode ser atribuído apenas a um plano nacional, mas sim a uma combinação de políticas, práticas e investimentos ao longo do tempo”.  Chile e Portugal são dois países que melhoraram a qualidade de sua educação nos últimos anos, medida pelos resultados nas provas internacionais do PISA, mas isto não se explica por seus planos, e sim por reformas específicas na formação de professores, aperfeiçoamento dos currículos, sistemas adequados de acompanhamento de resultados, e outros, além do aumento de investimentos.

Além da educação básica, o PNE tinha metas específicas para o ensino superior, e existiu um plano nacional de pós-graduação para o período de 2011 a 2020, que agora está se tentando ressuscitar. Para a educação superior, o PNE tinha três metas principais: aumentar o total de matrículas, aumentar proporção de jovens no ensino superior, e aumentar a proporção de matrículas no setor público. Das três, a única que se cumpriu foi a primeira, mas ela se deu sobretudo pela expansão do setor privado, que hoje cobre 75% da matrícula, e o aumento da proporção de estudantes mais velhos. Nos últimos anos, os temas que têm predominado nas discussões sobre o ensino superior são a ampliação do acesso, incluindo as políticas de cotas, e as dificuldades de financiamento do ensino superior público. Na realidade, o acesso ao ensino superior no Brasil aumentou muito entre 2000 e 2015, antes portanto do plano, passando de pouco menos de três para 8 milhões de matrículas, graças sobretudo ao subsídio descontrolado dos governos do PT ao setor privado, na forma de isenções fiscais e crédito estudantil garantido pelo governo federal.  Foi a ampliação do setor privado, e não as políticas de cotas para as universidades públicas, que fez com que aumentasse o acesso de pessoas de condição social mais precária ao ensino superior. Mas isto se fez a um alto custo não só em dinheiro público e privado, mas em termos da frustração de milhões que não passam no filtro do ENEM, de mais da metade dos estudantes que abandonam os cursos superiores antes de terminar, e da metade, entre os que terminam com um diploma, que só consegue trabalhar em atividades de nível médio.  Os problemas de financiamento das instituições públicas, que são graves, estão associados aos custos crescentes de pessoal e à inexistência de um sistema adequado que vincule investimentos a resultados, e não, simplesmente, à existência ou não de “vontade política” deste ou aquele governante a favor do ensino superior, embora isso não possa ser desprezado.

Na pós-graduação, as duas metas principais, de aumentar o número de mestres e doutores nos cursos estrito senso, para 60 e 20 mil por ano, respectivamente, foram cumpridas, mas sem considerar o número muito maior de pessoas que fazem cursos de pós-graduação e especialização não regulados, nem um entendimento mais aprofundado do quem são e o que fazem efetivamente estes pós-graduados. A justificativa para o subsídio generalizado aos mestrados e doutorados é que a pós-graduação seria o espaço de formação de nossos pesquisadores, mas há indicações de que os vínculos entre a pós-graduação e pesquisa tendem ser mais a exceção do que a regra.

O ensino à distância, novas tecnologias como as da inteligência artificial, as mudanças profundas que estão ocorrendo nas profissões e no mercado de trabalho, as crescentes desigualdades de resultados de aprendizagem e oportunidades de trabalho para os formados nas diferentes carreiras, tipos e modalidades de instituições, os custos crescentes de financiamento, a precariedade das instituições de pesquisa, tudo isto mostra que precisamos de políticas inovadoras e audaciosas para a educação como um todo, muito além dos temas tradicionais de acesso, inclusão e financiamento e de planos ambiciosos que ficam no papel.

José Murilo de Carvalho

Triste a perda de José Murilo hoje. Fomos colegas do curso de sociologia e política da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, completamos os estudos de doutorado na mesma época, convivemos por anos como professores do IUPERJ no Rio de Janeiro, com ele se vai mais um pedaço importante de nossa história. De um jeito tímido, calado, Murilo olhava com desconfiança as pretensões e devaneios teóricos e filosóficos dos colegas, e se aferrava ao chão firme dos fatos. Sua tese de doutorado, na Universidade de Stanford, foi uma pesquisa histórica sobre a formação das elites imperiais brasileiras, e a partir daí foi se desenvolvendo com um dos principais historiadores do país. Quando, nos anos 70, eu coordenava uma pesquisa sobre a história da ciência no Brasil, lhe pedi que fizesse um trabalho sobre a Escola de Minas de Ouro Preto, e o resultado foi, como tudo que fazia, uma joia de documentação e interpretação histórica.

Murilo escreveu muito sobre a República brasileira, que sempre via com olhar crítico, e admirava os grandes estadistas do Brasil imperial, dos quais falava como se os tivesse conhecido pessoalmente. Escreveu um livro dedicado ao Imperador D. Pedro II, de cujos méritos (do Imperador, não do livro) nunca chegou a me convencer. Quando, em 1993, houve o plebiscito para que o país escolhesse entre parlamentarismo e presidencialismo, ele foi um dos poucos que defenderam a monarquia. Perguntei a ele, na época, por que a defendia, e resposta foi que, afinal, alguém precisava fazer isso.

O monarquismo de Murilo não passava, nem de longe, pela defesa da escravidão, nem era uma crença tola das virtudes do regime imperial. O que ele buscava destacar, nestes como em outros escritos, era o valor do espírito público e a admiração pelas pessoas que trabalhavam sem concessões pelas ideias e causas que julgavam justas. Como ele.

Que descanse em paz, Zé.

Meia Volta, Volver!

(publicado em O Estado de São Paulo, 11 de agosto de 2023)

O Ministério da Educação acaba de divulgar os resultados da consulta pública sobre a reforma do ensino médio, e a proposta principal é voltar à década de 60, em que os poucos que chegavam a este nível optavam pelo curso científico, para fazer depois engenharia ou medicina, ou clássico, para os que queriam fazer direito ou literatura. Agora se fala em percursos de “linguagens, matemática e ciências da natureza” e “linguagens, matemáticas e ciências humanas e sociais”, o que é mais um menos a mesma coisa, fora a matemática. Além destes se admite agora um terceiro percurso, “formação técnica e profissional”.

A ideia central da reforma era que hoje, com a universalização do acesso, o ensino médio não poderia continuar sendo somente um filtro para os poucos que fossem para as universidades, mas um sistema amplo e diferenciado para jovens que poderiam seguir diferentes trilhas de formação. O dilema era entre oferecer quase o mesmo para todos, como no currículo tradicional, eliminando os que ficassem para trás, ou oferecer alternativas que que dessem a todos oportunidades de estudar e se desenvolver, ainda que por caminhos distintos. Por trás deste dilema havia, e ainda há, a realidade de que a maioria dos estudantes brasileiros chega ao ensino médio com formação precária, mais velhos e precisando trabalhar. Submeter todos ao mesmo regime e a um exame nacional comum, como o ENEM, significa reforçar a discriminação em nome da igualdade.

A reforma de 2017 procurou avançar, mas com muitos defeitos e resistências. Na proposta inicial, em vez de quatro diárias horas de aula, haveria pelo menos cinco, perfazendo três mil horas de curso em três anos. No lugar de um currículo único recheado de matérias fragmentadas, 800 horas seriam dedicas o desenvolvimento de competências gerais, sobretudo de linguagens e matemática, dadas de forma integrada, e as demais ao aprofundamento dos conteúdos em diferentes trajetórias. Quando a lei foi aprovada, esta parte comum passou a ser de 1800 horas, e agora pretende-se que passe para 2.100 ou 2.400 horas, ficando somente 600 a 900 horas para os percursos diferenciados, invertendo a ideia inicial. Seriam mais horas, naturalmente, nas escolas de tempo integral, em que o tempo se dividiria meio a meio entre a formação geral e os percursos.

Um dos erros da lei da reforma de 2017 foi que ela destinava recursos para o ensino de tempo integral, mas ignorava totalmente a questão do ensino noturno. Agora, o tempo integral continua sendo apresentado como a grande panaceia para a educação brasileira. Os dados do Censo Escolar de 2020 mostram que naquele ano havia 9.5 milhões de estudantes no ensino médio, dos quais 2.7 milhões em cursos noturnos. Existem duas razões para tantos alunos estudando à noite. A primeira é que muitas vezes não existem escolas separadas para o ensino médio, os cursos são dados à noite nas instalações do ensino fundamental. A segunda é que muitos estudantes são mais velhos, precisam trabalhar, e não podem passar o dia na escola. Quatro horas de aula por dia, em cursos noturnos, é insuficiente, mas 8 horas diárias, em que o estudante chega cedo e volta para casa no fim do dia de barriga cheia e banho tomado, pode ser o ideal para crianças em determinadas áreas, mas não necessariamente para jovens adultos.  Para o ensino médio regular, regimes de 5 ou 6 horas diárias, se bem empregadas, são mais do que suficientes. E o ensino técnico deve ser dado, de preferência, no regime de aprendizagem, em que o trabalho, a renda e a qualificação profissional andem juntos. O tempo integral não é o caminho para o ensino técnico, como se pode ver nos poucos estudantes que conseguem ser admitidos nos Institutos federais e aproveitam para se preparar para tirar boas notas no ENEM. 

O outro erro da reforma de 2017 foi a grande confusão criada pela adoção de uma classificação esdrúxula das áreas de conhecimento que ignorava a prática quase universal de distinguir quatro grandes áreas de formação – ciências físicas e engenharia (STEM), ciências biológicas e de saúde, ciências e profissões sociais, e letras, artes e humanidades. Uma maneira simples de implementar o novo currículo seria oferecer em todas as escolas estas quatro áreas, permitindo que os alunos escolhessem uma como “major” e seguissem as demais de forma complementar. Mas a proposta que vem da consulta, e que o MEC está endossando, é ampliar ainda mais a parte de formação comum, com um pot-pourri de matérias tradicionais como geografia, química e filosofia, mas excluindo temas essenciais como estatística, economia e direito, e voltar à divisão arcaica entre “ciências” e “humanidades” dos anos 60.

Finalmente, o ENEM. Em última análise, o que determina o que as escolas vão ensinar e os alunos estudar é o que é exigido na avaliação. Sistemas diferenciados requerem múltiplas provas e certificações que os alunos podem escolher. Manter um exame final único, como o ENEM, é garantir que todos os esforços de oferecer alternativas cairão no vazio.

Dois passos atrás

De ontem para hoje, tenho sido perguntando sobre o que penso da iniciativa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior – ANDIFES – de substituir o sistema de listas tríplices para a escolha de reitores das universidades federais pela indicação de um nome único a ser enviado ao governo para nomeação, e também sobre a indicação do presidente do Instituto Lula, Márcio Pochmann, para a presidência do IBGE. Me parece que são dois passos atrás.

As universidades públicas não são repúblicas autônomas, governadas internamente por suas corporações, mas instituições de interesse público, financiadas e de responsabilidade do governo federal. O governo que as financia tem responsabilidade pela definição e acompanhamento de seus resultados, e por isto precisa participar de sua direção. Ao mesmo tempo, as universidades precisam da colaboração ativa de seus professores, e em menor grau de alunos e funcionários, na identificação, produção e avaliação dos seus resultados.

O sistema tradicional de listas tríplices foi uma tentativa de combinar estas duas coisas – os candidatos são selecionados entre pessoas com legitimidade dentro das instituições, e o governo escolhe, entre eles, aquele que lhe parece mais adequado para implementar as políticas públicas para o setor. O reitor não deve ser somente um representante eleito da comunidade universitária, mas também um representante do governo e da sociedade dentro da universidade, responsável por fazer com que ela cumpra os objetivos para os quais é financiada pelos contribuintes.  Na maioria dos países em que as universidades funcionam bem, os reitores são escolhidos por comissões de busca com a participação de representantes do governo e da comunidade acadêmica, e muito frequentemente vêm de outras instituições, justamente para contrabalançar o peso do corporativismo interno.  O ideal seria evoluir para um mecanismo como este, e não oficializar o controle corporativista das instituições.

Em relação ao novo presidente do IBGE, o que mais me chama a atenção foi a forma em que foi feita a indicação, atropelando a Ministra Simone Tebet, cujos esforços de modernizar a economia e a máquina estatal, junto com o Ministro Fernando Haddad, têm sido objeto de grande oposição e resistência por parte dos setores mais retrógados do Partido dos Trabalhadores, dos quais o novo presidente faz parte. Seria leviano afirmar que esta nomeação fará com que os dados do IBGE venham a ser manipulados, inclusive pela tradicional solidez e profissionalismo do quadro técnico do Instituto. Mas seria muito melhor que a instituição fosse presidida por pessoa reconhecida por sua reputação técnica e profissional, e não por seu alinhamento partidário.

Ainda sobre o IBGE, duas questões têm sido mencionadas pela imprensa como problemas que a nova direção do Instituto deveria enfrentar, que precisariam ser mais bem esclarecidas.  A primeira é que o IBGE teria um grave problema de falta de pessoal, já que contaria hoje com cerca de 3 mil funcionários, comparado com cerca de 10 mil décadas atrás. Pode ser que de fato falte pessoal técnico qualificado em determinados setores, mas os milhares de funcionários do passado, em sua grande maioria de nível médio, eram de uma época em que se supunha que o instituto deveria ter uma agência em cada município do país, sem os recursos gerenciais, computacionais e de comunicação de que dispomos hoje. O Instituto, como a maioria das repartições públicas brasileiras, certamente se beneficiaria de uma reforma administrativa de qualidade, mas não para reconstruir o sistema obsoleto do passado.

A segunda é que haveria uma divergência entre os responsáveis pelo recenseamento, que estimaram que a população brasileira seria de 203 milhões, e a “área de pesquisa”, para qual o que valeria seriam as projeções anteriores de 212 ou 207 milhões.  É certo que os números finais do censo são o resultado de estimativas estatísticas que buscam corrigir a falta de cobertura que teria sido da ordem de 5% na média, chegando a 10% ou mais em determinadas áreas. Mas estas estimativas são feitas pelos técnicos do Instituto pelo uso de procedimentos estatísticos estabelecidos e referendadas por um conselho consultivo externo formado por especialistas altamente qualificados. É certo também que, sempre que o IBGE publica seus dados, muitos municípios protestam e dizem que as informações estão erradas, já que o dinheiro que recebem do Fundo de Participação dos Municípios depende do tamanho de sua população, e pressionam politicamente o Instituto para que mude seus dados.

Nos dois casos, questões aparentemente administrativas e técnicas podem estar refletindo conflitos de interesse que, se não forem administrados com competência, seriedade e sem politização, podem comprometer seriamente o funcionamento e a credibilidade do Instituto e, com isto, das informações estatísticas públicas do país.

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