(Publicado em O Estado de São Paulo. 12 de julho de 2024)
Meio de penetra, também participo da festa dos 30 anos do Real, como responsável que fui, na presidência do IBGE, por cuidar da credibilidade dos índices de preços da nova moeda. Apesar das turbulência desde então, os resultados principais do Real ainda persistem, como o controle da inflação, o fortalecimento das instituições financeiras e a abertura da economia. Duas explicações principais têm sido oferecidas para seu sucesso: a qualidade técnica dos economistas responsáveis e a liderança política de Fernando Henrique Cardoso, que fez com que o Congresso aprovasse as reformas necessárias para que o projeto ficasse de pé. Contribuiu também o sentimento de urgência criado pela inflação galopante, que facilitou sua aprovação.
De lá para cá, muitos outros planos foram instituídos por lei, como os de educação, cultura, mudança do clima, saneamento básico, segurança alimentar, igualdade racial, juventude, política de mulheres, direitos humanos, defesa e combate à corrupção e ciência, tecnologia e inovação. Nenhum deles apresentou resultados de magnitude semelhante ao do Plano Real e alguns só ficaram no papel, com destaque para o fracassado Plano Nacional de Educação de 2014, que agora se pretende reeditar. A pergunta que fica é porque o Plano Real deu tão certo e os demais nem tanto.
Parte da resposta é que o Real, na verdade, nunca foi um plano. A Medida Provisória que criou o Real, de 1994, falava de “programa de estabilização econômica”. Na de junho de 1995, convertida na lei 9.069, a expressão “Plano Real” aparecia na ementa, mas não no texto da lei, que trata da reorganização do sistema monetário, tributação, dívida pública e correção monetária. Não é, apenas, uma questão de palavras. O Real não foi um plano como se entende usualmente, com metas detalhadas a serem cumpridas em determinados prazos, mas um projeto de reforma institucional, alterando as regras de funcionamento de uma série de mecanismos básicos da economia. Era um projeto de inspiração social-democrata, que buscava organizar o espaço para uma economia aberta, competitiva e mais igualitária, colocando limites ao uso abusivo do poder do Estado e de setores privilegiados na apropriação dos recursos da sociedade, através do endividamento e emissão de moedas sem limites. Para isto, era necessário equilibrar as contas públicas, fechar ou privatizar empresas estatais ineficientes e corrigir distorções tributárias. Não era um projeto de estado mínimo, já que não se questionava a importância de investimentos públicos em áreas como educação, saúde, proteção social, segurança pública, infraestrutura e modernização econômica. Mas o principal benefício que se esperava de imediato era a melhoria da renda da população através do fim do imposto inflacionário, como de fato ocorreu.
A estabilidade da economia era condição para as outras políticas públicas, mas não suficiente. Esgotados os benefícios iniciais do Real, as agendas sociais impulsionadas pelo Partido dos Trabalhadores e diferentes movimentos sociais foram ganhando força, resultando no sucesso inicial dos governos do PT, mas também em sua frustração com a crise que culmina em 2015, da qual ainda não saímos. Parte desta crise se explica, certamente, pelo fim do boom das commodities e a desorganização da economia provocada pela “nova matriz econômica”; mas também pela proliferação de planos que consistiam, sobretudo, em metas físicas que resultavam, quase sempre, em crescimento da burocracia, engessamento dos gastos e corrupção, sem benefícios mensuráveis para a sociedade.
São três, pelo menos, as diferenças entre a maioria destes planos e o Real. A primeira é o contraste entre reformas institucionais, que alteram as regras do jogo e o comportamento de diferentes setores da sociedade, e o planejamento de tipo “soviético”, baseado em metas rígidas. A segunda é a existência de equipes técnicas competentes e amadurecidas, capazes de encaminhar soluções baseadas no estado da arte em suas áreas de atuação; e a terceira é a presença de liderança política capaz de negociar com diferentes setores da sociedade, incluindo o legislativo, as condições para que a equipe técnica possa trabalhar. Muitas dos planos instituídos desde o Real ficaram pelo caminho porque estavam baseados em diagnósticos equivocados, ou foram propostos e administrados por grupos de interesse ou seus “representantes” em que predominam, geralmente, os setores mais organizados e seus parceiros na burocracia pública (os “anéis burocráticos” descritos por Fernando Henrique Cardoso em um livro de 1975), ou não contavam com o apoio de uma liderança política convencida de sua importância e com legitimidade para defendê-los.
Políticas públicas, tanto quanto as políticas econômicas, precisam, para resultar, de especialistas competentes que não errem em seu diagnóstico e formulação, assim como apoio, legitimidade e engenhosidade política para serem implementadas. São as mudanças institucionais e de cultura, e não planos com metas ou orçamentos detalhados, que, a longo prazo, podem fazer a diferença. Esta me parece ser a grande lição do Plano Real.
Simon Schwartzman é sociólogo e autor de Falso Mineiro: memórias da política, ciência, educação e sociedade (Intrínseca / Selo Real, 2021)