Dois passos atrás

De ontem para hoje, tenho sido perguntando sobre o que penso da iniciativa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior – ANDIFES – de substituir o sistema de listas tríplices para a escolha de reitores das universidades federais pela indicação de um nome único a ser enviado ao governo para nomeação, e também sobre a indicação do presidente do Instituto Lula, Márcio Pochmann, para a presidência do IBGE. Me parece que são dois passos atrás.

As universidades públicas não são repúblicas autônomas, governadas internamente por suas corporações, mas instituições de interesse público, financiadas e de responsabilidade do governo federal. O governo que as financia tem responsabilidade pela definição e acompanhamento de seus resultados, e por isto precisa participar de sua direção. Ao mesmo tempo, as universidades precisam da colaboração ativa de seus professores, e em menor grau de alunos e funcionários, na identificação, produção e avaliação dos seus resultados.

O sistema tradicional de listas tríplices foi uma tentativa de combinar estas duas coisas – os candidatos são selecionados entre pessoas com legitimidade dentro das instituições, e o governo escolhe, entre eles, aquele que lhe parece mais adequado para implementar as políticas públicas para o setor. O reitor não deve ser somente um representante eleito da comunidade universitária, mas também um representante do governo e da sociedade dentro da universidade, responsável por fazer com que ela cumpra os objetivos para os quais é financiada pelos contribuintes.  Na maioria dos países em que as universidades funcionam bem, os reitores são escolhidos por comissões de busca com a participação de representantes do governo e da comunidade acadêmica, e muito frequentemente vêm de outras instituições, justamente para contrabalançar o peso do corporativismo interno.  O ideal seria evoluir para um mecanismo como este, e não oficializar o controle corporativista das instituições.

Em relação ao novo presidente do IBGE, o que mais me chama a atenção foi a forma em que foi feita a indicação, atropelando a Ministra Simone Tebet, cujos esforços de modernizar a economia e a máquina estatal, junto com o Ministro Fernando Haddad, têm sido objeto de grande oposição e resistência por parte dos setores mais retrógados do Partido dos Trabalhadores, dos quais o novo presidente faz parte. Seria leviano afirmar que esta nomeação fará com que os dados do IBGE venham a ser manipulados, inclusive pela tradicional solidez e profissionalismo do quadro técnico do Instituto. Mas seria muito melhor que a instituição fosse presidida por pessoa reconhecida por sua reputação técnica e profissional, e não por seu alinhamento partidário.

Ainda sobre o IBGE, duas questões têm sido mencionadas pela imprensa como problemas que a nova direção do Instituto deveria enfrentar, que precisariam ser mais bem esclarecidas.  A primeira é que o IBGE teria um grave problema de falta de pessoal, já que contaria hoje com cerca de 3 mil funcionários, comparado com cerca de 10 mil décadas atrás. Pode ser que de fato falte pessoal técnico qualificado em determinados setores, mas os milhares de funcionários do passado, em sua grande maioria de nível médio, eram de uma época em que se supunha que o instituto deveria ter uma agência em cada município do país, sem os recursos gerenciais, computacionais e de comunicação de que dispomos hoje. O Instituto, como a maioria das repartições públicas brasileiras, certamente se beneficiaria de uma reforma administrativa de qualidade, mas não para reconstruir o sistema obsoleto do passado.

A segunda é que haveria uma divergência entre os responsáveis pelo recenseamento, que estimaram que a população brasileira seria de 203 milhões, e a “área de pesquisa”, para qual o que valeria seriam as projeções anteriores de 212 ou 207 milhões.  É certo que os números finais do censo são o resultado de estimativas estatísticas que buscam corrigir a falta de cobertura que teria sido da ordem de 5% na média, chegando a 10% ou mais em determinadas áreas. Mas estas estimativas são feitas pelos técnicos do Instituto pelo uso de procedimentos estatísticos estabelecidos e referendadas por um conselho consultivo externo formado por especialistas altamente qualificados. É certo também que, sempre que o IBGE publica seus dados, muitos municípios protestam e dizem que as informações estão erradas, já que o dinheiro que recebem do Fundo de Participação dos Municípios depende do tamanho de sua população, e pressionam politicamente o Instituto para que mude seus dados.

Nos dois casos, questões aparentemente administrativas e técnicas podem estar refletindo conflitos de interesse que, se não forem administrados com competência, seriedade e sem politização, podem comprometer seriamente o funcionamento e a credibilidade do Instituto e, com isto, das informações estatísticas públicas do país.

A arte da política econômica

(publicado em O Estado de São Paulo, 14 de julho de 2023)

Talvez não seja só coincidência que, pouco antes da aprovação da reforma tributária pelo Congresso, o Instituto de Estudos de Política Econômica – Casa das Garças – tenha publicado A Arte da Política Econômica (Selo Real / Intrínseca, 2023), livro com depoimentos de 30 pessoas, quase todos economistas que, sobretudo a partir do Plano Real, contribuíram para o esforço de organizar a economia, criar instituições sólidas e implementar políticas públicas mais efetivas no Brasil, nem todas bem sucedidas. Os depoimentos estão agrupados em cinco temas, começando pela estabilidade econômica (incluindo os de Edmar Bacha e Pérsio Arida), gestão de crises (Pedro Parente e outros), reformas microeconômicas (Marcos Lisboa e outros), experiências estaduais (Paulo Hartung e outros) e reformas inconclusas, entre as quais a reforma tributária, com Bernardo Appy.

Lendo o depoimento de Appy, fica claro que, para uma reforma desta monta seja aprovada, é preciso pelo menos três condições: competência técnica na análise do problema e formulação de alternativas; entendimento claro dos interesses que a reforma pode contrariar, negociando e criando mecanismos para reduzir as resistências: e decisão política para que elas sejam efetivadas.  Ao final do governo Bolsonaro, a proposta estava pronta, o trabalho de costura política com o Congresso bem avançado, e só faltava que o governo desse apoio. Appy conclui seu depoimento de 2022 dizendo que, “se a reforma tributária não for aprovada neste governo, está pronta para ser aprovada no próximo”, como de fato está ocorrendo.

Uma ideia que aparentemente permeia os depoimentos é a de que, para cada uma das questões, existiria sempre uma solução técnico-científica, que só dependeria da arte da política para ser colocada em prática. No prefácio, Edmar Bacha associa a entrada progressiva de economistas em postos de comando da política econômica à evolução das ciências econômicas no Brasil, iniciada com os primeiros programas de pós-graduação nos anos 60 e a ida de centenas de jovens para estudos avançados no exterior, que voltaram depois para trabalhar em instituições como o IPEA e o BNDES, no Ministério de Fazenda, na área financeira e nos novos programas de pós-graduação e pesquisa que foram se consolidando.

De fato, comparada com as demais ciências sociais, como a sociologia, a ciência política e a educação, a economia é hoje uma área de estudo e pesquisa bem mais consolidada. Mas não é uma ciência exata, estando sujeita a contestações e controvérsias não só entre economistas que compartilham as teorias centrais e métodos de trabalho dominantes nas principais instituições universitárias do mundo, mas também por parte de correntes heterodoxas que defendem abordagens radicalmente diferentes. A diferença é que, no primeiro caso, as controvérsias podem ser dirimidas ou pelo menos se expressar em uma linguagem compartilhada, enquanto a divisão entre economistas ortodoxos e heterodoxos é marcada, ainda que não de forma absoluta, por diferentes filiações partidárias e ideológicas, sobretudo em relação ao papel do Estado e dos mercados na economia e temas correlatos como política monetária, industrial, fiscal, comercial, papel do Banco Central e outros. Nas controvérsias relativas a políticas públicas, nem sempre se pode distinguir com clareza o que são divergências técnicas, ideológicas ou políticas. Mas é fácil ver quando determinadas políticas são implementadas com um forte embasamento técnico profissional ou por concepções e preferências ideológicas ou de poder.

Com o novo governo Lula, havia a expectativa que as correntes ditas “estruturalistas”, próximas ao PT, voltassem a comandar a política econômica, mas isto não ocorreu. São visíveis, dentro do governo, as resistências às políticas econômicas conduzidas por Fernando Haddad e Simone Tebet, mas é notável que a proposta de reforma fiscal proposta por Bernard Appy tivesse sido apoiada por um manifesto assinado por economistas de todas as tendências.  Não há dúvida que o fracasso das políticas econômicas de Lula II e Dilma Rousseff, que jogaram o país em profunda depressão econômica e política, contribuiu para o desprestígio das correntes que ainda as defendem. Mas não há dúvida também que a arte da política econômica requer não somente fazer a ponte entre o mundo da técnica e o da política, mas também construir um consenso dentro do campo dos especialistas, pelo menos com os seus setores mais representativos.

É interessante comparar o relativo sucesso das políticas econômicas com as dificuldades da área da educação. Nesta, ainda não temos uma comunidade profissional que trabalhe dentro de um paradigma consensual, e as fronteiras entre a ciência e a política são muito mais fluidas. Ao invés de buscar decisões baseadas em critérios técnicos, e depois costurar apoios, o que vemos são tentativas de construir consensos entre interesses e ideologias contraditórias, de baixo para cima, transformando cacofonias em concertos. Não há como dar certo.

Um novo papel para as forças armadas

A revista Interesse Nacional, em seu número 61, traz um artigo meu e de Edmar Bacha que busca ampliar a discussão sobre o novo papel que as forças armadas poderiam ou deveriam ter na sociedade brasileira.

Iniciamos o artigo dizendo que a recente militarização do governo federal estimulada por Jair Bolsonaro, a tentativa de envolver as formas armadas em um golpe militar e a passividade, senão conivência, de muitos de seus setores com estes movimentos, trouxeram novamente para a ordem do dia a necessidade de discutir em mais profundidade o seu papel na sociedade brasileira. Não se trata somente da questão mais imediata da ameaça que houve à democracia, mas dos temas mais amplos, de médio e longo prazo, do relacionamento entre o setor militar e a sociedade civil, e do papel das forças armadas brasileiras no mundo atual para um país como o Brasil.

Uma questão central, nos parece, é a necessidade de repensar a noção de que sua principal função é a defesa do país de ameaças externas, e a questão correlata de quanto o Brasil, enquanto potência regional de renda média, precisa e tem condições de manter uma força armada convencional. Parece claro que não faz sentido manter indefinidamente um contingente militar de grande porte, com equipamento ultrapassado e pouca capacidade de mobilização. Isto leva à necessidade pensar o papel das forças armadas brasileiras em pelo menos três níveis, global, regional e local.

O nível global é o do relacionamento e confronto entre as grandes potências militares e econômicas. O Brasil não tem interesse nem condições de participar destas disputas em termos militares, mas deveria ter uma presença ativa em instituições e alianças internacionais comprometidas com os valores da democracia e do direito e cooperação internacional nas questões econômicas, ambientais e de manutenção da paz, o que requer uma capacitação militar limitada e específica.

No nível regional, não existem ameaças previsíveis de conflitos armados, mas o país precisa de uma força militar com credibilidade suficiente para intervir e enfrentar eventuais perturbações mais graves no relacionamento com seus vizinhos. Além do mais, existem questões relacionadas ao controle de fronteiras, proteção das costas, tráfico de drogas, tráfico de armas, contrabando e questões migratórias que podem preocupar. A Região Amazônica, por suas dimensões, dificuldade de acesso, e necessidade de preservar a natureza e proteger as populações originárias, necessita de uma atenção especial.

Todas estas questões têm desdobramentos internos que, em princípio, seriam de responsabilidade de instituições civis especializadas.  Mas, dada a existência de um contingente militar disponível, faz todo o sentido que ele seja capacitado e destinado a lidar com essas questões, seja na forma de missões delimitadas, seja na forma de atividades permanentes, o que exigiria  um trabalho de preparação e qualificação de seu pessoal.

Uma outra questão é o papel das forças armadas como promotoras de atividades de pesquisa e desenvolvimento que possam ter impacto no desenvolvimento da ciência, tecnologia e indústria nacionais. É conhecido, nos Estados Unidos sobretudo, o forte relacionamento entre a pesquisa militar e as tecnologias civis, muitas das quais foram desenvolvidas inicialmente para fins bélicos. O primeiro movimento do governo Lula, para tentar superar as dificuldades de seu relacionamento com o setor militar, foi oferecer mais recursos para os diferentes projetos tecnológicos das respectivas armas, e acenar para a duvidosa proposta de desenvolver um complexo industrial-militar no país, com uma indústria nacional de armamentos semelhante à tentada nos anos 1970 pelos governos militares.

O risco, aqui, é que estes investimentos se transformem em elefantes brancos de alto custo, pouco impacto na economia e de relevância duvidosa do ponto de vista militar. As forças armadas brasileiras precisam, sim, ter acesso às novas tecnologias de interesse militar, sobretudo na área computacional e cibernética, pela importância que têm e os riscos potenciais que podem representar. Mas isto, sobretudo, através de parcerias e formação técnica de seu pessoal, e não pela pretensão de atuar como indutoras do desenvolvimento econômico do país, que depende sobretudo do ordenamento fiscal e legal e da maior abertura da economia à competição internacional.

O artigo amplia um pouco a discussão destes pontos, que precisaria ser aprofundada até que se possa chegar a um entendimento mais claro sobre o papéis possíveis e necessários para as forças armadas em um país como o nosso.

A volta do orçamento participativo

(Publicado em O Estado de São Paulo, 10 de março de 2023

Segundo matéria de Guilherme Balza no O Globo de 2 de março, o Ministério do Planejamento, de Simone Tebet, estaria se preparando para fazer ressurgir das cinzas os mecanismos de orçamento participativo. Adotado pela prefeitura do PT de Olívio Dutra em Porto Alegre nos anos 90, o sistema ficou famoso no início, até ser abandonado tempos depois. Pelo projeto, ao invés de ser simplesmente revisto e aprovado pelo legislativo, a partir de proposta formulada pelo executivo, o orçamento federal seria formulado a partir de uma sucessão de fóruns nacionais e regionais formados por representantes de organizações da sociedade civil, consultas a uma plataforma digital on-line, e reuniões plenárias por todo o país. Para Simone Tebet, que quase desapareceu do cenário político depois que foi nomeada para o Ministério do Planejamento, seria a oportunidade para percorrer o país, ganhar visibilidade e se fortalecer politicamente.

O que tornou famosa a experiência de Porto Alegre, que percorreu o mundo, foi que ela parecia colocar na prática o ideal da democracia direta, em que, como na Grécia antiga, os cidadãos tomavam suas decisões em praça pública, diferente da democracia representativa, em que são os eleitos, e não os eleitores, que resolvem como gastar os recursos públicos. Temas como habitação, transportes, educação, saúde, e outros, eram discutidos pela população, que se informava e tornavam explícitas suas demandas e prioridades, que o governo depois deveria implementar.  O outro lado da valorização da mobilização e deliberação popular, que inspirou este sistema, foram as notórias limitações das instituições representativas, em que vereadores e deputados, uma vez eleitos, atuam em benefício próprio ou de determinados grupos de interesse, e não da população como um todo.

A experiência de Porto Alegre acabou se esgotando por uma série de razões. Só uma parte pequena dos orçamentos pode ser objeto de deliberação popular, já que os gastos de pessoal, infraestrutura e muitos outros são fixos. Na prática, não é o “povo” que participa destas deliberações, mas os militantes mais ativos da “sociedade organizada”, que nem sempre representam fielmente os interesses e valores da população mais silenciosa. As demandas são sempre muitas, mas os recursos são sempre limitados, há que estabelecer prioridades e atender a necessidades técnicas e de planejamento de médio e longo prazo que exigem elaboração complexa e não podem ser resolvidos em assembleias populares.

O orçamento participativo pode, no máximo, ser experimentado nas prefeituras, para decisões locais, mas dificilmente em nível regional ou nacional, pelo grande número de pessoas envolvidas e a complexidade dos temas. A experiência de Porto Alegre já estava se esgotando quando Lula foi eleito em 2002, e os governos do PT nunca tentaram replicá-la no governo federal.  Em seu lugar, foi estimulada a criação de conselhos e fóruns nacionais como os de educação, saúde, segurança pública e muitos outros que, em princípio, deveriam funcionar como pontes de ligação entre a sociedade civil e o governo em suas diferentes instâncias.  Na educação, o fórum teve um papel central na elaboração das diferentes versões do Plano Nacional para o setor, e existe hoje, no Congresso, a proposta de institucionalização de um sistema nacional de educação cujo foco é criação de inúmeras “instâncias de negociação” para administrar as relações entre os governos nacional, estaduais e municipais nesta área. O PNE nunca serviu efetivamente para melhorar a educação do país, embora tivesse contribuído para aumentar seus custos, e nada faz crer que o tal “sistema nacional” de educação que está em vias de ser aprovado possa produzir melhores resultados.

Por mais interessantes e educativas que possam ser estas experiências de participação e deliberação direta, elas não substituem a necessidade de um executivo tecnicamente competente, capaz de usar os orçamentos como instrumentos de política pública de médio e longo prazo, e nem de um legislativo capaz de colocar as prioridades da sociedade, e não os interesses privados ou corporativos de cada deputado, em primeiro lugar.  A Câmara de Deputados, com representantes eleitos por um sistema eleitoral defeituoso e notória pelos escândalos que começam com os “anões do orçamento” dos anos 80 e culminam no orçamento secreto de 2022, não inspira confiança, e contamina o executivo ao vender caro seu apoio. Assim, é forte a tentação de deixar o sistema representativo de lado e substitui-lo pela suposta democracia direta, ignorando suas óbvias limitações e o risco totalitário que ela comporta. 

Nas eleições de 2022, Simone Tebet representou uma tentativa de resistir ao populismo, abrindo espaço para um sistema político representativo renovado. Sabemos que não conseguiu ir muito longe, ficando a esperança de que, em um governo de coalizão, ela contribuísse para a renovação e aperfeiçoamento do sistema político, dando ao processo orçamentário a importância politica e a qualidade técnica que ele precisa ter.  Ressuscitar o velho orçamento participativo não parece ser o melhor caminho para isso.

As três agendas da transição

(Publicado em O Estado de São Paulo, 9 de dezembro de 2022)

Vendo as primeiras propostas dos grupos de trabalho da equipe de transição do governo Lula, é possível notar três agendas principais. A primeira, indispensável, é a de desfazer as ações de terra arrasada do bolsonarismo na saúde, educação, política ambiental, cultura, ciência, tecnologia e no estímulo ao ódio, ao armamentismo e à violência política. A segunda, preocupante, são as tentativas de fazer o relógio andar para trás, e retomar aos modos de trabalho e políticas desastrosas, econômicas e sociais, que levaram ao país à maior recessão de sua história, desencadeando uma crise política que resultou no desastre do bolsonarismo. E a terceira, que seria a mais importante, mas que até agora quase não aparece, é a de iniciar políticas públicas inovadoras, capazes de lidar de forma efetiva com as condições de pobreza e precariedade da população brasileira e fazer o país retomar um ritmo saudável de desenvolvimento econômico e social.

A boa notícia é que, nas últimas décadas, houve um esforço muito significativo de estudiosos e pesquisadores de diversas tendências para entender por que tantas políticas públicas bem-intencionadas redundaram em fracasso, e propor alternativas. Em 2011, antes que a crise que se armava se tornasse mais visível, ajudei a organizar, com Edmar Bacha, uma série de seminários sobre os temas de saúde pública, previdência, políticas de renda, educação e segurança pública, com a participação de cerca de 20 especialistas, publicados depois em um livro sobre Nova Agenda Social [1]que o Brasil deveria seguir. Não por acaso, o livro buscava retomar as questões do documento sobre Agenda Perdida de 2002[2], em que um grupo notável de economistas, entre os quais José Scheinkman, Marcos Lisboa, André Urani  e Ricardo Paes e Barros mapearam as políticas econômicas e sociais que poderiam permitir ao país retomar o crescimento e reduzir a desigualdade social. Mais recentemente, outro grupo de economistas preparou um projeto detalhado de um amplo Programa de Responsabilidade Social[3] para implementar políticas integradas de renda mínima, poupança e seguro familiar, reunindo os diversos programas sociais que hoje se superpõem. E, em um livro recente, Marcos Mendes reuniu 30 autores que descreveram em detalhe 25 políticas econômicas e sociais equivocadas dos últimos anos que contribuíram para empobrecer o Brasil[4]. Existem muitas outras boas propostas, nas áreas de energia, legislação trabalhista, administração pública, meio ambiente, etc. 

Na educação, ciência e tecnologia, áreas que conheço mais de perto, existe o paradoxo de que o Brasil, até Bolsonaro, multiplicou várias vezes os gastos públicos em todos os setores, sem que a produtividade melhorasse, ou os estudantes aprendessem mais, ou que a desigualdade de resultados diminuísse, ou que nosso sistema de pesquisa e inovação tornasse a economia mais competitiva. É preciso salvar a educação brasileira da asfixia, mas não será pela simples retomada dos gastos que ela vai melhorar. É necessário rever a fundo o que deu errado até aqui, encarar os fatos e tomar as decisões. Sabemos que nenhum sistema de educação pública é melhor do que a qualidade de seus professores, mas nunca tivemos uma política organizada e sistemática de seleção, formação e qualificação de nosso professorado. Estamos vivendo uma transição demográfica que faz com que tenhamos cada vez menos alunos, podendo pagar melhor a professores mais qualificados, e é preciso não perder esta oportunidade. No ensino superior, continuamos falando das maravilhas das políticas de cotas, ignorando que temos um sistema público elitista e disfuncional, cuja última reforma data de sessenta anos atrás. Ele só consegue atender a 25% dos estudantes, e funciona como uma grande peneira que atrai milhões para um exame nacional que seleciona menos de 300 mil estudantes por ano, dos quais a metade nunca completa seus estudos, deixando a grande maioria sem qualificação e à mercê de um mercado selvagem de credenciais de valor desconhecido.

O que explica a pouca presença destas propostas inovadoras na agenda política do novo governo é o modo de trabalho do Partido dos Trabalhadores, que, ao invés de 50 profissionais qualificados para administrar a transição, preferiu reunir centenas de representantes dos mais diversos setores que sejam simpáticos ao PT e tenham força e habilidade para se fazer presentes.  Organizar assembleias, criar direitos e distribuir benefícios são excelentes formas de obter apoio, mas não são o melhor caminho para implementar políticas corajosas que rompam com a rotina e contrariem grupos de interesse organizados.  Uma vez eleitos, governos devem identificar com clareza seus objetivos, buscar os melhores diagnósticos e as melhores pessoas e tomar decisões que atendam ao interesse geral da sociedade, ainda que contrariem determinados setores. A transição até aqui parece ainda fazer parte da campanha eleitoral. A partir de janeiro, vai ser preciso governar.


[1] Bacha, Edmar e Simon Schwartzman. 2011. Brasil: A Nova Agenda Social. Rio de Janeiro: Editora LTC, 2011.

[2] Lisboa, Marcos B, Aloísio Pessoa Araújo, Ricardo Paes de Barros, José Márcio Camargo, Leandro Piquet Carneiro, Reynaldo Fernandes, Pedro Cavalcanti Ferreira, Naércio Aquino Menezes-Filho, Pedro Olinto, Affonso Celso Pastore, Samuel de Abreu Pessoa, Armando Castelar Pinheiro, Maria Cristina Pinoti, José Alexandre Scheinkman, Rozane Bezerra Siqueira, Maria Cristina Trindade eAndré Urani. A  Agenda Perdida: Diagnósticos E Propostas Para a Retomada Do Crescimento Com Maior Justiça Social. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade – IETS, 2002.

[3] Botelho, Vinícius, Fernando Veloso, Marcos Mendes, Anaely Machado e Ana Paula Berçot, Programa de Responsabilidade Social –  Diagnóstico e Proposta,  São Paulo, Centro de Debate de Políticas Públicas, 2020 

[4] Mendes, Marcos, ed. 2022. Para não esquecer: Políticas Públicas que Empobrecem o Brasil. Rio de Janeiro: Autografia Edição e Comunicação Ltda.

Para não esquecer

(publicado em O Estado de São Paulo, 10 de junho de 2022)

O Brasil não é atrasado por acaso. Em um livro de quase 800 páginas, Marcos Mendes e 32 colaboradores fazem uma autópsia minuciosa de 24 políticas econômicas e sociais que, nos últimos 20 anos, levaram à insolvência do Estado, à estagnação econômica e à persistência da pobreza. O livro foi publicado pelo Insper, Fundação Brava e Editora Autografia, e está disponível em diversos formatos, sem custos, neste link. O lançamento do livro ocorreu no dia 30 de maio, com a participação de Samuel Pessoa, Edmar Bacha, Laura Karpuska e minha, e pode ser visto aqui.

Os temas são os incentivos fiscais, créditos direcionados, protecionismo econômico, empresas estatais, previdência social e educação, entre outros. A corrupção é mencionada, mas o que mais preocupa são políticas que, mesmo quando bem-intencionadas, resultam de concepções erradas sobre a capacidade do setor público em intervir e comandar a economia; não se baseiam em análises adequadas dos problemas que se tenta resolver; e faltam mecanismos de acompanhamento de resultados e correção de erros. Em comum, elas compartem a ideia de que são os gastos públicos, não a produtividade, que criam  riqueza; que os recursos públicos são infinitos; atendem a grupos ou setores mais articulados, cujos interesses acabam prevalecendo sobre os da grande maioria que não consegue se organizar; e, uma vez implantadas, tendem a persistir, mesmo quando sua ineficiência e efeitos negativos se tornam evidentes.

Minha contribuição para o livro foi o capítulo sobre as políticas de expansão da educação superior, cujas matrículas passaram de 2,7 para 8 milhões entre 2000 e 2015.  Não é que a expansão não fosse necessária: o número de pessoas com formação superior no Brasil é ainda pequeno; há uma busca crescente, da população, pelos empregos e o reconhecimento social trazidos pelos títulos superiores; e o país precisa de profissionais mais competentes. Mas pretender dar “universidade para todos” é simplesmente vender ilusões, a alto preço.

Nos países desenvolvidos, a proporção de pessoas com diploma superior dificilmente passa de 40%, e isto graças a uma combinação de universidades tradicionais, grande oferta de cursos profissionais curtos e a existência de um amplo sistema de educação superior básica, como os community colleges de 2 ou 4 anos nos Estados Unidos e o ciclo inicial de 3 anos do “Modelo de Bologna” na Europa.

No Brasil, as escolas técnicas federais, que poderiam ter sido o embrião de um amplo sistema público de formação profissional, foram transformadas em institutos semelhantes às universidades federais, concebidas como instituições elitistas nos anos 60, que custam cada vez mais e mal conseguem atender a 20% das matrículas. O setor privado, que cresceu por atender como seja à demanda da sociedade por mais educação, passou a ser subsidiado por isenções fiscais e um sistema de crédito educativo garantido pelo governo que cresceu exponencialmente até explodir. Tudo isto em cima de um ensino médio precário, em que metade ou mais dos alunos terminam sem um mínimo de competências em leitura, matemática e ciências.

O resultado foi um sistema inchado, em que milhões se candidatam todos os anos às 300 mil vagas do sistema federal, os que não passam desistem ou se matriculam no sistema privado, cerca de metade abandona antes de terminar, e mais da metade dos que ser formam acabam trabalhando em atividades de nível médio.

Outros capítulos tratam do sistema de financiamento da educação básica, o FUNDEB; do piso nacional dos professores; e do Pronatec, o programa de apoio à educação técnica e profissional. Em todos, existia uma boa intenção inicial, que acabou sendo desvirtuada em todo ou parte pela falta de objetivos claros, de análise adequada e acompanhamento de resultados e pela captura dos recursos disponíveis por determinados setores em detrimento do interesse geral. Ficou faltando ainda, nesta lista, o programa “Ciência Sem Fronteiras”, em que cerca de 10 bilhões de reais foram desperdiçados em poucos anos em bolsa no exterior sem maior benefício para o país.

Em toda parte, políticas públicas são objeto de grupos de interesse, e as pressões de cada dia dificultam o planejamento e as políticas públicas de longo prazo. Mas, nos países que conseguem se desenvolver, a capacidade técnica do poder executivo de elaborar políticas públicas de qualidade e acompanhar seus resultados é protegida do vai-e-vem dos lobbies e da política do dia a dia por um sistema adequado de negociação, equilíbrio e separação entre os poderes. Nestes países, também, a intervenção do estado na economia tende a ser limitada, e o sistema legal garante a estabilidade e previsibilidade da iniciativa privada. 

Vários setores da administração pública brasileira possuem hoje capacidade técnica semelhante à dos países desenvolvidos, mas grande parte da máquina pública é ainda capturada por grupos de interesse. A fragmentação do sistema partidário impede que o executivo tenha sustentação para políticas de longo prazo, e a incerteza jurídica, financeira e tributária fazem com que grande parte do setor privado dependa de favores e privilégios dos governos, mais do que de sua produtividade, para sobreviver. É na reforma política e institucional, em última análise, que devemos buscar o caminho para não persistir nos erros de sempre. 

A importância do Censo

(Publicado na revista Época, 23 de abril de 2021, p. 29)

No apagar das luzes, a Comissão Mista de Orçamento decidiu cortar os dois bilhões de reais que estavam destinados ao IBGE para fazer o Censo Demográfico de 2020, que tinha sido adiado por causa da pandemia. Não foi por falta de recursos, como se viu pelo aumento dos gastos militares e do dinheiro que foi destinado a obras públicas do governo federal e às emendas parlamentares, de interesse dos deputados e senadores. Nem o Congresso, nem o Ministério da Economia, nem o governo federal deram nenhuma explicação. Mas, afinal, para que serve o Censo?

A resposta mais simples é que o Censo é a única maneira de saber quem e quantos somos, não só no país como um todo, mas em cada localidade. Além de contar as pessoas, o Censo traz informações sobre características das famílias, migrações, religião, saúde, características étnicas e raciais, deficiências físicas, natalidade, renda, trabalho, condições de moradia e deslocamento das pessoas para estudar ou trabalhar.. Entre os censos, a principal fonte de informações sobre educação, pobreza e condições de vida da população é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE (PNAD) que se realiza ao longo do ano, entrevistando cerca de 400 mil pessoas. É uma amostra excelente, mas os resultados dependem das informações sobre a população como um todo (do “universo”, como dizem os estatísticos) e a última vez que coletamos esta informação foi em 2010. De lá para cá, muitas pessoas nasceram, morreram, tiveram filhos, se casaram, divorciaram, mudaram de uma cidade para outra, ficaram mais educadas, trocaram de emprego. O IBGE estima, cada ano, como a população cresceu e se multiplicou, mas, à medida que o tempo passa, esta informação vai ficando menos confiável. Além disto, a amostra da PNAD dá informações sobre estados e áreas metropolitanas, mas não sobre cada uma das localidades do país, o que só Censo faz.

É a partir dos dados do Censo que o governo federal distribui os recursos dos Fundos de Participação de Estados e Municípios (161 bilhões de reais em 2020), e o Supremo Tribunal Eleitoral determina quantos deputados cada Estado deve ter. É a partir destes dados que se pode estimar o número de pessoas que dependem do bolsa família em cada localidade, e quanto os Estados e municípios precisam investir em saúde, educação, transporte e obras sanitárias. É a partir dos dados do Censo que as se fazem as pesquisas de mercado, de opinião pública e eleitoral, e são eles que permitem que uma empresa decida onde vai abrir uma loja ou instalar uma fábrica, conforme o número de pessoas, suas idades e níveis de renda da população local. Sem o Censo, a confiabilidade destas informações é cada vez menor, e a imagem que temos de nós mesmos se torna cada vez mais embaçada. Finalmente, ter ou não um Censo atualizado afeta diretamente a credibilidade do país, o que influencia a decisão de investidores de trazer  ou não seus recursos para cá.

Daria para fazer o Censo em 2021, com a epidemia ainda nos assolando? A expectativa do IBGE era que seria possível, contanto que ela tivesse mais contida em agosto ou setembro, como se espera, utilizando uma combinação de coleta direta e indireta de informações, pela Internet, e protocolos sanitários rigorosos para os entrevistadores. Em 2021, apesar da epidemia, o IBGE foi capaz de manter todas suas entrevistas em dia, usando métodos de coleta à distância, e estava se preparando para usar o que aprendeu no Censo populacional. 

Finalmente, vai ser possível realizar o Censo em 2022? Sim, se o governo federal der os recursos a tempo e o Congresso aprovar. Mas 2022 é também um ano eleitoral, o calendário do Censo não pode se misturar com o calendário político, e a situação financeira do país pode estar ainda pior do que está hoje. Sem o Censo, o Brasil passará a integrar o pequeno grupo de países desgovernados ou em guerra como o Afeganistão, Líbano, Líbia, Somália, El Salvador e Sudão, sobre os quais pouco se sabe, além da tragédia permanente em que vivem.

As guerras de hoje e de amanhã

(Publicado em O Estado de São Paulo, 14 de agosto de 2020)

Dizem que a França desmoronou ante os alemães em 1940 porque havia se preparado para repetir a Primeira, e não para enfrentar a Segunda Guerra Mundial. A última guerra em que o Brasil participou foi a do Paraguai (não contando a Força Expedicionária nos anos 40). Desde então mantemos uma força militar que hoje custa 113 bilhões de reais ao ano, e estamos sendo derrotados pela invasão do Coronavirus.  Claro que a pandemia não é um problema militar, mas o conceito de segurança nacional, pelo qual o país deveria estrar preparado para enfrentar crises e ameaças internas e externas, deve ser muito mais amplo do que o da preparação para uma eventual, e cada vez mais improvável, guerra convencional.

Isto coloca pelo menos três questões que precisarão ser aprofundadas na discussão sobre a política nacional de defesa que o Congresso deve considerar proximamente, que prevê a vinculação de 2% do PIB em gastos federais com a área militar, 50 bilhões a mais. 

Primeiro, pensar a estratégia militar como parte de uma política mais ampla de segurança nacional, que deve incluir também as áreas de saúde pública, educação, ciência e tecnologia, proteção ambiental, defesa civil e segurança interna. O setor público precisa se capacitar para enfrentar eventuais crises sanitárias, ambientais e sociais com propostas de estratégia e de políticas públicas equivalentes às que o Ministério da Defesa preparou para o setor militar. Os custos de equipar as forças armadas, assim como os custos de um sistema adequado de saúde pública e proteção ambiental, são potencialmente infinitos, é sempre possível querer mais. É preciso trabalhar dentro das restrições orçamentárias que se tornarão extremante fortes nos próximos anos, combinando recursos federais com os estaduais, do setor privado e da cooperação internacional. 

Segundo, há que avaliar se as atividades regulares da área militar deveriam se manter restritas ou se ampliar para outras áreas onde os recursos e a capacidade de mobilização das forças armadas poderiam dar uma contribuição mais regular e direta. Não queremos voltar aos anos 60 e 70, quando um conceito extremamente ampliado de segurança nacional serviu para justificar o controle, pelos militares, de todo o Estado e da economia do país. Mas não faz sentido manter toda esta estrutura de pessoal e equipamento indefinidamente isolada nos quartéis, na expectativa do exercício de sua “função precípua”, uma guerra convencional que dificilmente virá, quando poderiam estar sendo utilizados de muitas maneiras diferentes.  

A área militar tem uma longa tradição de ações no âmbito civil, da construção de estradas ao relacionamento com as populações indígenas, dos tempos do Marechal Rondon, até o controle do tráfego aéreo civil pela Aeronáutica, sem falar no uso cada vez mais frequente de tropas em questões de segurança local e de fronteiras. Deve ser possível pensar em um modelo híbrido, em que as forças armadas cumpram funções regulares na área civil, sem perder sua capacidade de mobilização militar quando necessário. Ao contrário de uma sociedade militarizada, o que precisamos é de um setor militar muito mais próximo do mundo civil.

Terceiro, há que perguntar se a atual estrutura e propostas de modernização das forças armadas são as mais adequadas para os recursos disponíveis e os dias de hoje. É inútil manter uma ampla força armada da qual só uma pequena parte é de fato operacional, faz muito mais sentido concentrar recursos em menos unidades com flexibilidade e alta tecnologia. Ainda temos um serviço militar universal obrigatório só para homens que mal consegue incorporar cerca de 90 mil dos 1.6 milhões de rapazes que chegam aos 18 anos. Por outro lado, o acesso ao oficialato continua restrito a pessoas que passam pelas academias militares. Não seria o caso de profissionalizar o serviço militar, acabar com a discriminação contra as mulheres e abrir as carreiras militares para pessoas formadas por universidades civis? E não se poderia avançar muito mais na criação de uma reserva militar efetiva, formada por civis devidamente capacitados e não necessariamente ex-militares aposentados, que possam ser mobilizados quando necessário, reduzindo assim o número de efetivos?  

Finalmente, é preciso ter mais clareza sobre as três prioridades estratégicas propostas pelo Ministério da Defesa, a nuclear, a espacial e a cibernética. Para quê mesmo precisamos de um submarino nuclear? Quais benefícios civis e militares podemos esperar do programa espacial?  Dos três, talvez o mais importante, e menos desenvolvido, é o cibernético – sem uma proteção contra possíveis ataques eletrônicos, todos os demais equipamentos militares correm o risco de não sair do lugar. Tanto as tecnologias espaciais quanto as cibernéticas têm grande interesse civil, e são impensáveis fora de uma forte cooperação com empresas e centros de pesquisa universitários, e dentro de uma estratégia bem concebida de cooperação internacional.

Os documentos de política e estratégia preparados pelo Ministério da Defesa precisam ser lidos e discutidos em profundidade, pensando na melhor maneira de  militares contribuírem para enfrentar as guerras de hoje e de amanhã.

A qualidade da educação superior brasileira

A Organização Para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OECD) publicou ontem um estudo sobre o sistema brasileiro de avaliação da educação superior, Rethinking Quality Assurance for Higher Education in Brazil, cujo resumo executivo em português, preparado pelo Ministério da Educação, está disponível aqui. O Jornal O Estado de São Paulo publica hoje, 22/12/2018, uma matéria sobre o documento, por Isabela Palhares, sobretudo sobre a parte referida ao Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE), assim como uma versão resumida deste texto meu.

Os dados da Prova Brasil elaborados pelo Ministério da Educação confirmam que a educação fundamental no país vai bastante mal, apesar do aumento de cerca de quase cinco vezes nos investimentos por estudante nas redes públicas entre 2004 e 2014 (valores nominais, dados do INEP). Na educação superior, os gastos do governo federal passaram de 32 para 75 bilhões de reais entre 2008 e 2017 (dados da Secretaria do Tesouro). E nossa educação superior como anda, está bem, está melhorando?

Não sabemos. Não existe, para a educação superior, um instrumento de medida de qualidade semelhante à Prova Brasil. Nos anos 90 o governo criou o Provão, que foi uma tentativa de medir a qualidade dos diferentes cursos de nível superior, transformado depois no ENADE, que é uma prova feita a cada três anos. Os resultados do ENADE são combinados com uma série de outras informações para chegar a um número que é o “Conceito Preliminar dos Cursos”; e os conceitos dos cursos de cada instituição, mais os dados da avaliação dos cursos de pós-graduação da CAPES, são combinados no “Índice Geral de Cursos”, todos eles variando entre 1 e 5. Para as instituições com menos de 3, o MEC envia avaliadores munidos de questionários detalhados que produzem informações sobre se as instituições e cursos podem ou não ser autorizados a funcionar. Tudo isto a um grande custo de pessoal, viagens, reuniões de especialistas, banco de dados e preparação de provas, administrados pelo INEP e pela Secretaria de Regulação e Supervisão do MEC (SERES).

O que toda esta parafernália nos diz sobre a educação superior no Brasil? Ela está melhorando? Em que áreas está mais forte, e mais fraca? Os gastos públicos com a educação superior nas universidades federais e nos subsídios e créditos às instituições privadas estão tendo bons resultados? Os currículos são atualizados, e atendem às novas demandas do mercado de trabalho? Um bom sistema de avaliação deveria ser capaz de informar aos estudantes e suas famílias sobre a qualidade dos cursos em que estão entrando, incluindo a possibilidade de conseguir um bom emprego; deveria informar aos empregadores sobre a qualidade dos profissionais que estão saindo dos cursos; deveria informar aos governos sobre a eficiência e eficácia de seus investimentos em educação superior; e deveria dar elementos para que as próprias instituições sejam estimuladas e possam melhorar seu desempenho. Será que estes procedimentos implementados pelo INEP e pela SERES, apoiados em um emaranhado de decretos, portarias e atos ministeriais, estão cumprindo estes objetivos? Esta é a melhor maneira de avaliar a educação superior? O que dizem as experiências de outros países?

Para responder a estas perguntas, o Ministério da Educação contratou em 2017 a OECD para fazer uma avaliação externa deste sistema. Em março de 2018 a OECD enviou uma missão ao Brasil que entrevistou representantes o governo e de diferentes setores das universidades públicas e privadas, e agora o trabalho foi finalmente publicado.

As conclusões sobre o ENADE e os indicadores de qualidade utilizados pelo INEP e SERES são bem críticas. As provas do ENADE não são padronizadas, não permitem comparar os resultados de um ano a outro, não permitem comparar a qualidade de diferentes carreiras. O único que fazem é comparar entre si os cursos de bacharelado, licenciatura e de tecnólogos em cerca de 80 áreas diferentes, sem ter critérios para dizer o que é bom, ruim ou excelente. Como os resultados da prova não afetam os alunos, muitos deles não se interessam em responder, ainda que sejam obrigados a participar quando lhes toca. E os índices combinando dados do ENADE com outros sobre titulação de professores, infraestrutura, notas do ENEM e avaliação dos cursos pelos alunos não têm justificação clara, misturam coisas diferentes, e tendem a desfavorecer os cursos de formação profissional, em geral privados, que têm menos professores doutores em tempo integral. Além do mais, não existem indicadores sobre taxas de abandono dos cursos, nem sobre o mercado de trabalho. A OECD recomenda que se faça uma avaliação dos custos e benefícios deste sistema, e inclusive que se considere se vale a pena continuar com o ENADE, um tipo de avaliação que não existe em nenhuma outra parte do mundo, justamente pelas dificuldades que a experiência brasileira mostra. Ela também recomenda que, ao invés de indicadores sintéticos, sejam dadas informações sobre os diferentes aspectos de cada curso e instituição, de forma simples e acessível ao grande público.

Um outro ponto importante das conclusões da OECD é que o sistema brasileiro coloca muita ênfase na avaliação dos cursos, e menos na avaliação das instituições. Com 35 mil cursos superiores no país em cerca de 2.500 instituições, isto torna todo o processo extremamente complexo e burocrático. Em 2017, mais de 10 mil cursos foram avaliados pela SERES. As recomendações da OECD vão no sentido de colocar mais foco na avaliação qualitativa das instituições, que, uma vez bem avaliadas, teriam mais liberdade e autonomia para administrar seus cursos. E todo este complicado sistema de credenciamento, recredenciamento, autorização e reconhecimento de cursos só se aplica na prática ao setor privado, porque as instituições públicas não precisam de credenciamento para funcionar, e quase sempre se saem bem nas avaliações porque têm mais professores doutores em tempo integral e, geralmente, melhores instalações.

Sobre a avaliação dos cursos de pós-graduação realizada pela CAPES, o que mais chamou a atenção da OECD foi a grande ênfase posta na produtividade acadêmica de docentes dos cursos, e menos preocupação com o desempenho dos estudantes, assim como com a relevância das diferentes áreas de formação para o Brasil. Não existe preocupação com o destino profissional dos estudantes, e nem sobre a natureza específica dos programas de mestrado, que são tratados no Brasil como programas acadêmicos menores, enquanto que no resto do mundo são cursos de formação profissional.

Ao final, a OECD se pergunta se o atual arranjo institucional para a avaliação da educação superior no Brasil é o mais adequado. O que mais chama a atenção é que existe um conflito de interesse entre as responsabilidades do Ministério da Educação de, por um lado, manter e administrar a rede federal de universidades e regular o setor privado, e, por outro avaliar os dois sistemas. O órgão que deveria coordenar todo o sistema de avaliação, a Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (CONAES) não tem estrutura nem condições de realizar este trabalho. A sugestão é que se crie uma agência autônoma de avaliação fora do Ministério, e que o CONAES seja reformulado para poder exercer de fato a função de supervisão normativa do sistema, como está na lei.

Já existe um projeto de lei no Congresso de criação de um Instituto Nacional de Avaliação da Educação Superior que combinaria as atuais funções de avaliação da SERES e do INEP, criando centenas de novos cargos e toda uma nova estrutura burocrática associada ao MEC. O que se precisa, claramente, não é de mais uma burocracia, mas de uma instância normativa e de regulação efetivamente autônoma, que possa transformar o atual sistema de avaliação em um processo muito mais leve, que dê mais autonomia às instituições bem avaliadas, que informe melhor aos estudantes e à sociedade sobre o que está ocorrendo com o ensino superior brasileiro em seus diversos setores, e indique os melhores caminhos.

A expectativa é que, uma vez estudado em profundidade o trabalho da OECD , que contém uma análise muito mais detalhada dos aspectos mais críticos e recomendações de reforma do sistema brasileiro de avaliação a educação superior do que este sumário, o próximo governo se proponha a rever a experiência obtida até aqui, com seus aspectos positivos e negativos, e indique novos caminhos.

Francisco Gaetani: a governabilidade da administração em jogo

 

Reproduzo o importante artigo de Francisco Gaetani, diretor da Escola Nacional de Administração Pública, publicado no Valor Econômico de 20/4/2018,, sobre a importância da  PL 7748/2017, coordenada pelo Senador Antônio Anastasia, e que vem sido mal interpretada pela imprensa:

A governabilidade da administração em jogo

Francisco Gaetani (*)

Se os candidatos à Presidência e aos governos estaduais soubessem o que os aguarda em janeiro de 2019 pensariam duas vezes antes de se apresentar nas eleições. Os eleitos precisarão construir maiorias políticas no Legislativo para governar. Disso todos sabem. O que não sabem é que não encontrarão na sociedade e no serviço público pessoas dispostas a assumir os riscos associados ao exercício das atividades executivas. O motivo é simples: a percepção dominante é a de que não vale a pena. Uma eleição não tem poder de reparar essa situação.

O medo comanda hoje a administração pública. Até 2014, discutia-se a judicialização das políticas públicas. Um exemplo era a importação de remédios caros por decisão judicial. Evoluiu-se rapidamente para a criminalização da administração, como o inacabado e controverso debate em torno da política fiscal demonstrou. Finalmente, chegamos à paralisia. Afinal… “é o meu CPF que está em jogo”. Ninguém quer ficar sujeito a interpretações de órgãos de controle que, em muitos casos, não dominam plenamente as complexidades do assunto e partem do princípio de que o funcionário é suspeito: in dubio pro societate.

Inúmeros funcionários hoje respondem a processos decorrentes de acórdãos do TCU. Dirigentes de estatais já negociam “seguros” para ocupar suas funções. Pulamos de um extremo de descontrole e leniência para outro de regramentos e controles sem necessária vinculação com a natureza da atividade da organização – seja ela um banco público, um hospital universitário ou uma empresa de energia.

O setor privado encontra-se acuado, assustado e intimidado por burocracias opacas com poder de influenciar decisivamente seus negócios. Estão todos sob suspeita de práticas ilícitas cuja dosimetria nesta altura já não importa mais, independentemente das previsões legais. Conflitos tributários, arranjos regulatórios imperfeitos, práticas de governança corporativa, gestão de riscos reputacionais e novas realidades associadas ao combate à corrupção foram incorporados ao cálculo empresarial.

Ironicamente, o mundo jurídico tornou-se a principal fonte de insegurança jurídica e responsável por custos de transação imprevisíveis e incalculáveis. Nas esferas pública e privada o debate sobre eficiência e qualidade do gasto desapareceu. A temática do combate à corrupção eclipsou todos as demais. É como se o país precisasse parar para resolver o problema da corrupção de uma vez por todas.

Focar na paralisia da administração, sem observar as distorções que o excesso do controle tem gerado, tornou-se um lugar comum. Dados de uma pesquisa realizada pela Enap mostram que os gestores usam suas capacidades não para prover informações e evidências sobre a política em que trabalham, mas para responder a órgãos de controle e demandas de auditoria.

Há um problema de assimetria de capacidades decorrente de um sequenciamento desbalanceado. A profissionalização do MPF e do TCU vem ocorrendo consistentemente desde a redemocratização. A organização da CGU acelerou-se após 2003. Os ministérios das áreas econômica e jurídica vêm se estruturando desde a estabilização macroeconômica. Os ministérios associados ao gasto, à legalidade e ao controle possuem quadros técnicos recrutados por concursos públicos, carreiras estruturadas e salários competitivos. Áreas como Saúde, Educação, Transportes e Minas e Energia enfrentam graves déficits de capacidade, em especial de pessoal.

O corporativismo dos estamentos burocráticos mostrou as imperfeições da nossa democracia. Não possuímos um regime de “checks and balances”. O Judiciário, o TCU e o MPF são irresponsabilizáveis, salvo por seus pares, e, mesmo assim, as evidências recentes atestam a dificuldade de atuação do CNJ e CNMP.

O TCU tem demonstrado capacidade de exercer o controle externo de forma construtiva e efetiva, como tem ocorrido nas esferas de infraestrutura, governança e desenvolvimento regional. A atuação do MPF no combate à corrupção nos anos recentes vem dando impulso decisivo à moralização da Administração Pública. Estes avanços não podem ser comprometidos por excessos e distorções que comprometam o funcionamento do Estado. A presunção de culpa não se coaduna com o regime democrático e não pode se transformar em uma indústria que se auto-alimenta.

O PL nº 7448/2017, aprovado pelo Congresso e aguardando a sanção presidencial, dá um passo importante para recuperar o equilíbrio. A proposta busca trazer racionalidade às decisões administrativas, judiciais e de órgãos de controle, assegurando que as consequências práticas das decisões sejam levadas em conta, e que medidas para a mitigação de prejuízos à sociedade sejam implementadas sempre que necessário. A aplicação do direito não pode ocorrer de forma descolada da realidade: precisa levar em consideração os diversos impactos gerados pelas decisões, considerando o bem-estar da sociedade e assegurando uma previsibilidade mínima aos gestores públicos.

A governabilidade administrativa não depende apenas do Executivo. Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Tribunal de Contas são sócios da governabilidade do país. A guerra de facções corporativas, a disputa por recursos e a concorrência pelo poder precisam ser contidas pelas instituições do país. O corporativismo, o voluntarismo, o messianismo e o punitivismo precisam ser enfrentados para o país caminhar na direção de uma nova normalidade, aderente às práticas do regime democrático, sem prejuízo do combate à corrupção e da modernização da gestão pública.

Os problemas estruturais do país – integração na economia global, redução das desigualdades, aumento da produtividade e da competitividade, mudança climática e desenvolvimento regional, dentre outros – estão se agravando. O PL nº 7.448/2017 é um avanço na contenção de excessos e preservação da capacidade de gestão. Esta iniciativa é vital para o país sair do encurralamento paralisante.


(*) Francisco Gaetani é presidente da Escola Nacional de Administração Pública e ex-Secretário-Executivo dos Ministérios do Planejamento e do Meio Ambiente. É doutor pela London School of Economics e professor da EBAPE/FGV

 

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