De perto e de longe

(publicado em O Estado de São Paulo, 8 de janeiro de 2021)

O início de 2021 traz a esperança das vacinas, mas também a frustração por não sabermos se terão efeito duradouro e quanto conseguirão efetivamente controlar ou reduzir o impacto da epidemia. O isolamento social, que antes parecia um sacrifício inevitável, mas passageiro, agora parece ter-se tornado parte da vida, seja porque continuará sendo necessário, seja porque a enorme expansão do uso das novas tecnologias de informação e comunicação mostrou muitas possibilidades de convivência, educação e trabalho à distância que poucos conheciam e podem ter chegado para ficar. Além da extraordinária expansão e aceleração da pesquisa médica destes últimos meses, tivemos também um grande esforço de pesquisadores nas ciências sociais tratando de entender o que significa viver à distância, comparado com as formas tradicionais de convivência física, e seu possível impacto. 

O relacionamento pessoal, lembra-nos o sociólogo Randall Collins, é a base sobre a qual a vida social se constrói. Esse relacionamento, que ele chama de “ritual de interação”, tem quatro componentes: a copresença, em que as pessoas estão fisicamente próximas e podem ver, ouvir e sentir o que as outras estão fazendo; um foco de atenção comum, em que os participantes lidam com as mesmas coisas, desenvolvendo um sentimento de intersubjetividade; um sentimento ou emoção compartilhada, de alegria, tristeza, medo ou outra; e uma sintonia rítmica, que inclui o tom de voz, a atitude corporal e atividades conjuntas como dançar, cantar, bater palmas, torcer por um clube, rezar e outras. 

Esses componentes, quando combinados, trazem vários resultados importantes: solidariedade social, em que as pessoas se sentem como fazendo parte de um mesmo grupo ou comunidade; energia emocional, em que as pessoas se mobilizam para desenvolver alguma atividade comum, como nos esportes, atuando com confiança e entusiasmo; a criação e o fortalecimento de símbolos coletivos – palavras, maneiras de vestir, ideias – que permitem identificar quem faz parte do grupo e quem não faz, e fazem reviver as experiências compartilhadas; e moralidade, regras sobre o que é certo e errado, também compartilhadas pelos participantes. 

É pela linguagem, em suas diversas formas, que os símbolos dessas microexperiências de relacionamento se cristalizam, se difundem e criam o que os sociólogos chamam de capital social, o sentido de pertencimento a uma cultura e sociedade em que as pessoas confiam umas nas outras e nas instituições. 

A tese principal de Collins é que para que a sociedade se mantenha viva é necessário que esses rituais compartilhados se repitam e se renovem, sob pena de a cultura, os conhecimentos, os valores e a própria linguagem se tornarem demasiado distantes, abstratos, e se esvaziarem. A grande esperança dos sociólogos clássicos, como o francês Émile Durkheim, era que fosse possível fazer uso da educação e dos símbolos nacionais para manter a coesão social de sociedades complexas. O que vemos hoje é que, na busca da renovação desses rituais, as pessoas muitas vezes acabam desenvolvendo culturas, identidades, valores e mesmo linguagens diferentes e conflitantes. 

Mas o que acontece quando esses rituais não se podem dar, ou são substituídos por interações à distância? Isso depende de três fatores: a idade das pessoas envolvidas, a complexidade das atividades que elas devem desenvolver e a qualidade e acessibilidade das tecnologias disponíveis. Quanto mais jovens as pessoas, mais elas necessitam dos rituais de interação entre iguais, para desenvolverem sua identidade, e com adultos, para identificarem os modelos de pessoas que gostariam de ser – os role models, como dizem os sociólogos. Claro que as necessidades de uma criança aprendendo a ler são diferentes das de um adolescente ou de um jovem adulto, mas para todos é fundamental o ritual quotidiano de se reconhecer e conhecer o mundo por meio do compartilhamento de interações pessoa a pessoa, olho a olho, corpo a corpo. 

Para adultos que já têm seu círculo de relações formado e sua identidade bem constituída é mais fácil trabalhar e estudar à distância, ainda que, isolados, a capacidade de criar e a produtividade tendam a cair. Na educação, os recursos tecnológicos podem trazer uma grande contribuição ao tornar disponíveis bons materiais pedagógicos e sistemas inteligentes de capacitação e avaliação individualizados, mas não substituem o contato do aluno com o professor, a vida social de um colégio ou universidade, ou, na pesquisa, o desenvolvimento de conhecimentos, valores e atitudes tácitas que não se codificam em manuais nem em algoritmos sofisticados. 

Boas tecnologias, que facilitam a comunicação e simulam a interação do mundo real, podem ajudar muito, mas ainda estão longe de poder substituir a necessidade da realimentação da vida e dos sentidos que trazem as relações pessoais. Ao contrário, quando mais condições tivermos de trabalhar sozinhos e encontrar nossos próprios caminhos, mais necessidade teremos de estar próximos de outras pessoas e compartilhar o que aprendemos e quem somos.

O “normal” da Educação

(Versão ampliada de artigo publicado em O Estado de Sao Paulo, 10 de julho de 2020)

Fonte: PNAD contínua 2018

Com as escolas fechadas, o ensino à distância tentando salvar um ano praticamente perdido, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica expirando, o ENEM adiado para 2021 e o governo federal sem rumo, todos se perguntam quando, finalmente, poderemos voltar ao normal. Mas que “normal” é esse, será que tem volta, e queremos voltar a ele?

O fato é que, antes da epidemia, estávamos muito longe do que se poderia chamar de minimamente “normal”. Nos anos da bonança das exportações, que coincidiu com os governos do PT, os gastos com educação aumentaram, o acesso ao ensino médio e superior cresceu, mas, com as boas exceções de sempre, a qualidade do que é ensinado e aprendido continuou muito ruim.  Com a crise econômica iniciada em 2015, os recursos públicos para a educação começaram a escassear, e foram dedicados cada vez mais a pagar os salários dos professores das redes públicas, sobrando muito pouco para outras coisas. No ensino superior público, as matrículas aumentaram, mas os investimentos foram interrompidos, e o grande subsídio ao setor privado, na forma de isenções fiscais e um gigantesco sistema de crédito educativo sem garantias, se tornou inviável.  

Hoje as crianças têm escolas para onde ir, mas começam a abandonar na adolescência, a grande maioria sem adquirir o mínimo de competências entender o mundo e se colocar no mercado de trabalho. Em 2019, 70% dos jovens de 25 anos de idade havia conseguido completar o ensino médio, com os outros 30% ficando pelo caminho.  Comparados com a geração anterior, hoje com 50 anos, são muito mais escolarizados, mas ainda muito longe do desejável, porque 30% ficam pelo caminho e a maioria completa o ensino médio sem dominar bem a leitura e o raciocínio numérico; e o acesso ao ensino superior aumentou muito pouco. Dos que terminam o ensino médio, menos da metade consegue entrar em um curso superior, com os outros ficando sem nenhuma qualificação profissional. Para entrar no ensino superior, é preciso passar pela corrida de obstáculos do ENEM, em que 5 a 6 milhões de pessoas disputam a cada ano menos de 400 mil vagas para as universidades federais. Para os demais resta a alternativa de pagar uma faculdade privada ou conseguir um crédito educativo ou uma bolsa de estudos, cada vez mais escassos. E continua. Nas universidades federais, 30% dos que entram abandonam os estudos entre o primeiro e o terceiro ano; nas grandes redes privadas, 60%. Nem para os que chegam ao final o sucesso está garantido: cerca de metade das pessoas com educação superior no Brasil trabalha em atividades que só requerem competências de nível médio.

É para este “normal” que queremos voltar? Na tentativa de não perder totalmente o ano, muitas escolas e faculdades adotaram a educação à distância.  Muita gente foi contra, argumentando que com isso a desigualdade aumentaria, como se a solução fosse nivelar por baixo. Até recentemente, as antigas previsões de que as novas tecnologias iriam revolucionar a educação haviam em grande parte fracassado. Pode ser que, com a experiência forçada de agora, os recursos disponíveis possam ser mais bem utilizados, mas não será nenhuma bala de prata.

A falta de dinheiro afetará muito mais a educação superior do que a básica. O estado do Ceará provou que se pode fazer muito mais com pouco dinheiro no primeiro ciclo da educação inicial, mas ninguém ainda achou um caminho para o segundo ciclo, quando as crianças são largadas à própria sorte, entregues a professores que não conversam entre si e submetidos a um currículo que remonta aos anos 40.  Há uma reforma do ensino médio em andamento, mas ele continua sufocado pelo enciclopedismo do ENEM, e pouco ou nada tem sido feito para oferecer alternativas de formação para a grande maioria que não irá além do ensino médio. 

O ensino superior privado já vinha se adaptando à perda dos subsídios públicos expandindo a educação à distância, e por isto está sofrendo menos com o isolamento, mas tem tido perdas enormes de receita e dificilmente sobreviverá intacto. Ele atende a uma população mais velha que precisa trabalhar durante o dia, para qual a universidade presencial nunca foi uma realidade, e é possível que suas faculdades acabem tendo o destino das antigas gravadoras e lojas de discos, substituídas por um sistema muito mais aberto e diferenciado de um amplo mercado de ofertas de formação e sistemas de certificação de competências. No setor público, que hoje não é mais do que um nicho de 25% das matrículas, algumas universidades, como a de Campinas, terão condições de enfrentar a perda de recursos diferenciando as modalidades de oferta de cursos, de contratação de professores, e buscando financiamentos adicionais por convênios e financiamento de pesquisas em ciência e tecnologia. Para a maioria das universidades federais e estaduais, porém, a rigidez das regras do serviço público e a inércia poderão levar a um processo de lenta decadência, abrindo espaço para instituições privadas de prestígio e qualidade, como o INPER e a Fundação Getúlio Vargas, e perdendo seus melhores professores e alunos.

Os problemas são enormes, e vão se agravar. Tem muita gente boa buscando alternativas em todos os setores, e é possível que novos caminhos sejam encontrados, se o governo federal e a burocracia não atrapalharem.

Prenúncios no Chile

(Versão ampliada do texto publicado em O Estado de São Paulo, 8 de novembro de 2019)

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Em Santiago recentemente, me surpreendi quando me disseram que a situação do país estava péssima, prenunciando as manifestações que viriam logo depois.  Visto por um brasileiro, o Chile é nosso sonho de consumo: a economia crescendo a 3% ao ano, a melhor educação e os menores índices de violência da região, pouca corrupção, uma redução dramática nos níveis de pobreza, e a cidade moderna e vibrante que é Santiago, integrada por um excelente sistema de metrô. O Chile é uma democracia estável desde a saída de Pinochet em 1989, e a Concertación de centro-esquerda que governou o país até 2010 investiu fortemente na área social, ao mesmo tempo em que manteve grande parte da economia de mercado instituída pelos “Chicago boys” dos anos anteriores. 

Claro que nem tudo são sonhos. O Chile ainda depende muito do preço internacional do cobre, e o PIB em 2019 não deve crescer muito. A desigualdade é grande, embora menor do que a brasileira. Os custos dos serviços de saúde e medicamentos são altos, e o sistema de capitalização das aposentadorias sem garantia de piso não deu certo, deixando a população mais velha, em grande parte, desamparada. O desemprego, ao redor dos 7%, não é alto, mas a informalidade e a precarização crescem. 

Mas os que mais protestam não são os mais velhos ou os mais pobres, mas, sobretudo, jovens estudantes das classes médias, conectados nas redes, inseguros quanto ao futuro e buscando um protagonismo que não conseguem ter. Na Faculdade de Educação aonde fui, o tema do momento eram as ocupações dos prédios feitas por movimentos feministas radicais exigindo o atendimento imediato a demandas que vão desde questões ligadas à igualdade de gênero, o fim do patriarcalismo e do assédio sexual, até temas mais gerais como o direito à habitação digna para todos e o fim da economia extrativista. E continua viva, na memória dos chilenos, a “revolta dos pinguins” de 2006 e 2011, estudantes secundários que iam às ruas em manifestações extremamente violentas contra governos de esquerda e de direita, Bachelet e Piñera, não somente contra a educação privada, mas contra a economia de mercado e o regime político como um todo. 

Minha apresentação no Chile foi sobre as quatro grandes funções que a educação deveria desempenhar como contribuição para o progresso social, como proposto pelo International Panel for Social Progress: o desenvolvimento da pessoa humana, o fortalecimento da cidadania, o desenvolvimento econômico e a equidade social. Os dois últimos temas têm monopolizado a atenção de governantes e pesquisadores, mas os dois primeiros parecem ter caído no esquecimento. Agora que o foco na educação são as competências, que sentido tem ainda dizer que as escolas devem “formar” as pessoas, mens sana in corpore sano, como nos velhos tempos?  Quando os modernos estados nacionais foram criados, nos séculos 18 e 19, a educação pública foi vista como o mecanismo para desenvolver, nos cidadãos, o sentido de pertencimento à nação, o domínio de uma língua comum e os conhecimentos necessários para viver em uma sociedade complexa. Agora que todas as informações estão na Internet, a vida social e os valores dos estudantes se estruturam a partir das redes sociais, da música popular e da cultura de juventude, ainda se pode esperar que as escolas desempenhem estes papéis?

Talvez devessem, mas não estão conseguindo, e talvez estejamos esperando da educação mais do que ela possa dar. Christian Cox, educador chileno que tem se dedicado ao tema, mostra como os currículos escolares em quase toda parte estão deixando de lado os temas clássicos de cidadania e coesão social,  substituídos por temas locais ou identitários, mas a grande questão é se estes conteúdos, mais tradicionais ou não, de fato são incorporados. No Chile, os importantes avanços na educação medidos pelos testes do PISA não levaram a um maior consenso, entre os estudantes, sobre o valor da democracia e as virtudes do modelo econômico e social estabelecido pelos governos desde o fim da ditadura, questões que, aliás, o PISA não avalia.

Uma das críticas que se faz à educação no Chile é que a introdução de um amplo sistema de financiamento público à educação privada, através de vouchers, que hoje atende a mais da metade da matrícula, junto com a cobrança de anuidades das universidades públicas, teriam tornado o acesso à educação mais desigual. A evidência parece mostrar que escolas privadas subsidiadas têm resultados melhores do que as públicas, mas em grande parte porque são mais seletivas, e os resultados escolares continuam dependendo fortemente da condição social das famílias. Com os vouchers, as famílias podem escolher aonde mandar os filhos, e a grande preferência é pelas escolas privadas, deixando as escolas públicas municipais com os alunos em piores condições, e com muitas dificuldades para melhorar. No ensino superior, um amplo sistema de bolsas, créditos educativos e a política mais recente de garantir gratuidade em qualquer instituição a alunos provenientes de famílias mais pobres, tem reduzido o problema da desigualdade de acesso por razões financeiras, e a combinação de financiamentos públicos e privados tem dado às universidades um dinamismo difícil de encontrar em outros países da região.

Há muita semelhança entre as manifestações chilenas de 2019, que começaram contra o aumento do metrô, e as manifestações paulistas de 2013, que começaram contra o aumento dos ônibus: demandas simples que vão se ampliando e dando vazão aos sentimentos de frustração e impotência das pessoas ante uma sociedade e economia que proporcionam muito menos do que gostariam. Algumas das demandas podem ser atendidas, mas nunca o suficiente para recuperar completamente a legitimidade recebida pelos governantes nas últimas eleições que disputaram. No Chile, ainda há que se aguardar para ver quais serão as consequências, mas um claro risco é o rompimento do grande consenso construído entre o centro-esquerda e o centro-direita nos últimos 20 anos que parecia estar levando o país a um patamar de desenvolvimento inédito na região. Se assim for, a democracia sofre, perde legitimidade, e o futuro não se afigura promissor.

A Âncora da Educação

(Publicado no O Estado de São Paulo, 11 de outubro de 2019)

No México, o novo governo de López Obrador cancelou a reforma da educação do governo anterior, acusado de ter instituído um sistema punitivo de avaliação de mérito dos professores, e decidiu universalizar a educação superior, prometendo a criação de cem novas universidades. Ao mesmo tempo, corta os recursos e cria dificuldades para o funcionamento dos centros de pesquisa mais avançados. A educação pública mexicana é tão ruim quanto a brasileira, e o poder dos sindicatos era tal que os professores das escolas públicas eram donos de seus cargos, podendo passá-los para os filhos. A Universidad Nacional Autónoma de México, com mais de 300 mil estudantes, sempre teve uma política de acesso livre e gratuito, gerando graves ineficiências que os governos anteriores tentaram mitigar.

É um exemplo extremo de políticas populistas que dão prioridade absoluta às demandas da população por credenciais ou títulos universitários e aos interesses corporativos dos professores, deixando de lado as preocupações com qualidade e relevância. A consequência é a inflação dos diplomas, tornando necessários títulos cada vez mais altos para fazer as mesmas coisas, a um custo crescente para a sociedade.

O Brasil nunca chegou a este extremo, mas o que aconteceu com a educação teve muito desta filosofia, e não é muito diferente do ocorrido em áreas como Saúde e Previdência: um grande esforço de recuperar séculos de atraso e compensar as desigualdades expandindo de qualquer maneira a educação, resultando em um sistema inchado, custoso, de má qualidade e extremamente difícil de reformar. Hoje, cinquenta milhões de brasileiros estão matriculados em algum tipo de escola, 60% da população até 30 anos, atendidos por um exército de mais de 6 milhões de pessoas, entre professores, dirigentes escolares, funcionários e outros profissionais. A estimativa mais recente é que o Brasil gasta perto de 8% do PIB em educação, incluindo os gastos privados, proporcionalmente mais do que todos os demais da América Latina e muitos países desenvolvidos.

Uma justificativa para este grande esforço é que a educação seria a principal alavanca para sair da armadilha da renda média em que estamos atolados. De fato, as pessoas mais educadas ganham mais, supostamente porque têm competências que o mercado de trabalho valoriza, e países em que a população é mais educada são mais desenvolvidos. No entanto, no Brasil, a produtividade se manteve estagnada ao longo das últimas décadas. Uma das razões é que a educação cresceu priorizando as demandas por credenciais – diplomas – e as reinvindicações corporativas do setor, em detrimento da ênfase no mérito e nas competências. Como vários estudos recentes tem demonstrado, não basta aumentar a escolaridade para que a produtividade aumente. É preciso que a educação seja de qualidade, o que não tem ocorrido de forma satisfatória.

A outra justificativa é que a educação aumenta a mobilidade e reduz a desigualdade social. Mas nem sempre mais educação leva a estes resultados. Em quase todo o mundo, ao longo do século 20, houve um grande crescimento das cidades, da economia e do setor público. A expansão da educação, que acompanhou estes processos, fez com que as elites tradicionais se modernizassem e que pessoas mais pobres, imigrantes e de minorias, se beneficiassem das novas oportunidades que foram sendo criadas. A insistência no mérito, como critério para acesso às novas oportunidades de estudo e avanço nas carreiras, foi fundamental para garantir que as melhores posições não fossem monopolizadas pelas elites tradicionais. Mas não foi uma vitória absoluta. Existe uma forte relação, difícil de ser superada, entre desempenho escolar e origem social; e, além disto, a educação é um bem “posicional”, ou seja, os benefícios de cada um dependem em grande parte da posição relativa que ele tenha em relação aos demais. Como no futebol, só há lugar para poucos na primeira divisão.

Quando o processo de urbanização se esgota, os custos do sistema de bem-estar social chegam a seu limite e a economia para de crescer, como no Brasil de hoje, a expansão da educação deixa de ser um jogo em que todos ganham, ainda que desigualmente, e se aproxima de um jogo de soma zero, em que os que ganham o fazem às custas dos ficam para trás.
Isto leva a conflitos intensos pelas credenciais acadêmicas, em uma combinação perversa de reservas de mercado profissional para os mais educados e políticas populistas de estímulo ao acesso livre ou facilitado ao ensino superior. Por um lado, o acesso ao ensino superior passa a ser visto como direito de todos, os requisitos mais tradicionais de desempenho no acesso e nos estudos passam a ser substituídos por critérios sociais, e a conquista dos diplomas passa a ter precedência sobre o desenvolvimento de competências. Por outro, cada vez mais, é preciso uma pós-graduação ou passar em um concurso público extenuante para conseguir um bom emprego, e milhares de formados em direito nunca passarão o exame da OAB. Milhões se inscrevem no ENEM tentando chegar ao ensino superior e não conseguem, muitos dos que entram abandonam antes de terminar, e grande parte dos formados acaba trabalhando em atividades de nível médio (mais detalhes sobre as dimensões credencialistas na educação superior brasileira estão disponíveis em A Educação Brasileira como Bem Público)

A solução não é voltar o relógio do tempo, restringindo o acesso ao ensino superior e controlando mais rigidamente o exercício das profissões universitárias, mas, ao contrário, é criar mais alternativas de formação de nível médio e superior, para atender a pessoas de diferentes perfis, reduzindo a pressão sobre os títulos acadêmicos, e quebrar os monopólios profissionais que excluem arbitrariamente pessoas com níveis de formação diferenciados do mercado de trabalho.

A âncora da educação devem ser as competências, e não os diplomas que possam aparecer nos currículos.

Francisco Soares: Enem Digital

O Exame Nacional do Ensino Médio – Enem – precisa de mudanças. Esse exame baseia-se na estranha premissa de que todos os estudantes brasileiros, ao fim do Ensino Médio, devem saber exatamente o mesmo sobre todas as disciplinas. Por essa razão, engessa o currículo dessa etapa da Educação Básica, o que, por sua vez, explica a percepção de irrelevância do ensino médio por muitos estudantes, que o abandonam em grandes números. Assim sendo, é boa notícia saber que o Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais do Ministério da Educação –  Inep – optou por começar as mudanças introduzindo a tecnologia digital para a oferta do exame. 

O anúncio feito na semana passada não foi seguido, entretanto, da divulgação de um documento com a descrição técnica das decisões tomadas. Isso é essencial para se formar um entendimento mais completo das escolhas feitas pelo corpo técnico do MEC-Inep e para subsidiar o debate público. O Enem afeta a vida de milhões de brasileiros: estudantes, famílias, professores e diretores das escolas. Além disso, a preparação para o exame é um setor que movimenta recursos financeiros substanciais. Todos esses atores sociais devem ser ouvidos, bem como os especialistas que têm conhecimento técnico relevante. 

O principal produto do Enem é um escore usado para definir a ordem de acesso dos candidatos a vagas em instituições de Ensino Superior. Uma boa posição no exame garante acesso a cursos que abrem portas para bons empregos e renda alta. Isso explica a enorme competição nesses cursos e a importância do Enem para os estudantes. Portanto, se o exame vai ser oferecido em dois formatos, é fundamental garantir que a nota final dos estudantes não é influenciada pela participação em uma ou outra versão. Se as notas dos que fizeram os dois formatos não forem comparáveis, fica criada uma fragilidade no exame, com claras consequências legais.  Pelas declarações e comentários publicados na imprensa, nota-se que esse ponto ainda não foi completamente considerado. Assume-se ou que isso não é um problema ou que pode ser resolvido com o uso da Teoria de Resposta ao Item. Ambas hipóteses são falsas, se não houver um planejamento adequado. 

Há itens de teste que, por suas características substantivas, têm comportamento diferente quando respondidos em papel ou no computador. Diferenças de comportamento dos itens podem também ser consequência de características sociais e escolares dos estudantes.  Escores baseados em itens com comportamento diferente nos dois formatos não são equivalentes, independentemente da metodologia estatística usada. 

Há várias soluções para esse problema, cujas viabilidades precisam ser discutidas. As duas mais óbvias são fazer um pré-teste com os dois formatos e/ou cuidar que a composição dos grupos de estudantes que usarem cada um deles permita, no momento da análise, considerar os impactos específicos de cada um.  

Como se anunciou que já no próximo ano os dois formatos serão oferecidos, fica a pergunta: existem itens pré-testados em papel e no computador em número suficiente para compor os testes? Se os estudantes alocados ao formato on-line forem comparáveis aos estudantes que fizerem o exame com lápis e papel em termos sociodemográficos e escolares seria possível desenhar um processo de análise que garantisse a comparabilidade dos escores. Isso exigiria, no entanto, que o edital especificasse, pelo menos em linhas gerais, as etapas do processo de análise – o que constitui uma tarefa complexa. 

Outro ponto que merece escrutínio público é a forma de contratação das empresas. O Enem usa um consórcio cuja contratação tem sido feita por dispensa de licitação. Em princípio, a mudança do formato coloca outros competidores em condições de participar. Na realidade, como nenhuma empresa no mercado tem hoje experiência de aplicação de exame on-line com o número de estudantes do Enem, a empresa escolhida terá também de desenvolver tecnologia e terá, com isso, uma fantástica vantagem competitiva futura. Assim a forma de seleção dos fornecedores deve garantir que uma saudável concorrência ocorra. Também, seria prudente que os órgãos de controle se manifestassem previamente. 

Finalmente, deve-se considerar as experiências similares existentes no mundo:  o Scholastic Aptitude Test americano  – SAT – e o exame de admissão chinês,  GaoKao, realizados em países com amplo acesso a tecnologias que ainda não abandonaram completamente o formato de aplicação em papel. 

Todas essas considerações devem ser enfrentadas considerando, no entanto, que usar o computador para aplicar o Enem cria um leque enorme de possibilidades e, assim sendo, deve-se buscar a concretização dessa mudança. 

Uma consequência especialmente importante do uso de computador no exame seria aposentar o formato de múltipla escolha, que não permite a verificação da aprendizagem das habilidades que exigem processos cognitivos mais complexos, exatamente as mais necessárias para a vida. O teste de múltipla escolha foi desenvolvido para facilitar processos de seleção, não para orientar o ensino.

A maioria das questões de um exame pode ser respondida por um pequeno texto. Avanços muito recentes na área de Natural Language Processing tornam possível a comparação dos textos das respostas dos estudantes com os textos dos gabaritos. Essa mudança tornaria o exame um indutor – em vez de inibidor – de aprendizagens significativas.  

Há uma ausência séria em relação ao exame que está sendo ignorada. Trata-se da matriz do Enem. A reforma do ensino médio especifica que os estudantes farão o Enem em dois dias. Em princípio, o teste do segundo dia estaria concentrado nas disciplinas mais próximas da carreira universitária escolhida pelo estudante. No entanto, os detalhes ainda não foram estabelecidos, e os que entrarem no ensino médio no próximo ano farão o exame com essa nova matriz. Assim, é urgente que essa matriz seja divulgada. Comentei em artigo recente como decisões em relação a esta questão podem ajudar a tornar o exame mais barato. A mudança de tecnologia é um avanço, mas tem dificuldades de implementação e deve ser usada para tornar o exame um indutor de aprendizagens significativas. Se for utilizada apenas para turbinar o velho formato ou para diminuir custos, o país continuará a usar muitos recursos em atividade com pouco impacto educacional.

Consenso e Dissenso em Educação

(artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, 14 de junho de 2019)

Seis ex-ministros da educação, em recente nota, falam do grande consenso que teria sido construído no Brasil sobre o setor, que o atual governo estaria desconsiderando. De fato, existe um forte consenso sobre a prioridade que a educação deve ter,  e o governo até agora não mostrou uma política para o setor que vá além de cortes orçamentários e posturas ideológicas, diferentemente do que ocorre na economia e na segurança, aonde, concordando-se ou não, existem propostas claras formuladas com o apoio de fortes contingentes de economistas, juízes, promotores e funcionários públicos qualificados.

Mas o consenso é ilusório. Tal como na economia, a educação brasileira, depois de um período de crescimento  descontrolado, chegou a um impasse, com milhões de jovens concluindo a educação fundamental semianalfabetos, o ensino médio estagnado e com altíssimas taxas de abandono, um ensino superior público caro, desigual e que não consegue atender a mais do que 25% das matrículas, e um sistema de pós-graduação e pesquisa em grande parte voltado para si mesmo, que cresceu em quantidade mas não em impacto e relevância científica e econômico-social, com as boas exceções de sempre. 

O ponto mais alto deste consenso, segundo os ex-ministros, teria sido o Plano Nacional de Educação, aprovado por unanimidade pelo Congresso Nacional em 2014, com planos filhotes para cada estado e município, e que se desdobrava em 10 diretrizes e vinte grandes metas, divididas em 244 estratégias específicas, a serem financiadas com 10% do PIB. Para acompanhar tudo isto, contava-se com uma grande parafernália de comissões tripartites estabelecidas com as associações de secretários de educação estaduais e municipais e fóruns permanentes de negociação. Foi um consenso construído à custa de botar no papel todas as demandas de todos os interessados, e, como escrevemos na época com alguns colegas, não havia chance de dar certo, mesmo sem a crise econômica que veio depois. O PNE é um zumbi que se recusa a morrer, e, até que seja devidamente enterrado e substituído por um conjunto pequeno de objetivos realistas e bem definidos, não há como a educação brasileira avançar.

Dois exemplos recentes do suposto consenso foram a elaboração da base nacional curricular comum e a reforma do ensino médio.  A ideia de que todos os estudantes, até determinado nível, precisam compartir um conjunto mínimo de conhecimentos, sobretudo no domínio da linguagem, do raciocínio matemático e de familiaridade com as ciências naturais e sociais, é hoje reconhecida em todas partes. Mas nenhum país, que eu sabia, tem um documento semelhante à BNCC brasileira, com suas 600 páginas e centenas de habilidades e competências que os estudantes deveriam adquirir. É um texto recheado de linguagem empolada, incompreensível ou meramente retórica, como na introdução, aonde se diz o que o objetivo é  levar à  “educação integral” a partir de uma “visão plural, singular e integral da criança, do adolescente, do jovem e do adulto – considerando-os como sujeitos de aprendizagem – e promover uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades”. Compare-se com o Socle Commun francês de 30 páginas, ou o currículo da Nova Zelândia resumido em 8 quadros, em linguagem direta e sem adjetivos. A grande lista de assessores, especialistas, colaboradores, pesquisadores, comissões de discussão e leitores críticos listados ao final mostra o esforço do MEC de construir um consenso a favor do documento. Só não foram consideradas as críticas mais profundas que chamavam a atenção para a necessidade de se chegar a um documento sintético, compreensível e compatível com o estado da arte internacional sobre os processos de aprendizagem.

O outro exemplo foi a reforma do ensino médio, que começou com uma tentativa de quebrar o consenso do currículo único tradicional e propor a implantação de trajetórias escolares diversificadas a combinadas com um núcleo comum.  À medida em que o projeto ia sendo discutido, o tamanho deste núcleo comum aumentava, atendendo às demandas dos professores das diversas disciplinas, até se transformar em uma versão reduzida do currículo tradicional, deixando as trajetórias curriculares em segundo plano, e diluindo a proposta inicial. O ENEM, que deveria ser reformulado para corresponder ao novo formato, continua como está. O novo ensino médio entra em vigor em 2020, e as escolas não sabem o que fazer.

É preciso construir um novo consenso, baseado na ideia de que deve ser possível fazer muito mais com os 5% do PIB que o Brasil já gasta em educação. Com a queda da natalidade, serão menos estudantes, e será possível ter menos professores e pagar mais. A profissão docente precisa ser reformada, com melhores cursos de formação, carreiras associadas ao desempenho, e facilitando o acesso ao ensino de pessoas com outros perfis. A educação infantil deve deixar de ser meramente assistencialista, e ser tratada como etapa essencial de formação.A tolerância com o analfabetismo funcional deve acabar, com o uso de métodos comprovados de alfabetização e acompanhamento de resultados. O segundo ciclo do ensino fundamental precisa ser repensado, e a reforma do ensino médio precisa ser efetivamente implementada, inclusive pela ampliação e fortalecimento da educação técnica.  O formato do ensino superior precisa ser revisto, criando mais alternativas de formação em diferentes níveis, e a pós-graduação e a pesquisa precisam se tornar menos acadêmicas e mais vinculadas às necessidades do país. E, em todos os níveis, os papéis do setor público e privado precisam ser revistos, para que se tornem complementares e livres do predomínio do corporativismo e do mercantilismo. 

O Gigantismo do MEC

(publicado no jornal O Estado de São Paulo , 12/04/2019)

A preocupações ideológicas que marcaram a curta gestão de Velez Rodrigues e que aparentemente continuarão na agenda do novo Ministro nem de longe refletem as questões que o Ministério da Educação, com um orçamento de 123 bilhões de reais e 450 mil funcionários em 2018, precisa enfrentar. Além de administrar uma rede própria com mais de cem instituições e 1.3 milhões de estudantes, o Ministério é responsável por autorizar, avaliar e cuidar do desempenho dos estudantes e de todas as instituições de ensino superior federais e privadas, desenvolver os parâmetros curriculares de todos cursos de todos os níveis, manter em dia as estatísticas educacionais, administrar o crédito educativo e uma longa lista de programas como Proinfância, Dinheiro Direto nas Escolas, Livro Didático, Brasil Profissionalizado, Transporte Escolar e tantos outros, sem falar em grandes “missões” que surgem de repente como o Ciência Sem Fronteiras e o Pronatec, do período Dilma. Temas associados a valores e costumes algumas vezes surgem em alguns exames ou currículos propostos para determinadas áreas de estudo, são questionados e repercutem na imprensa. Existem também controvérsias importantes sobre métodos de ensino, usos de novas tecnologias, e modelos de organização do sistema escolar. São discussões que têm seu lugar, mas não deveriam nos distrair da questão fundamental: o Brasil está gastando bem os 6% do PIB que hoje destina à educação? As pessoas estão aprendendo a ler, escrever e contar como deveriam? Sabemos que não, o que leva à segunda pergunta: o Ministério da Educação, com seu atual formato e estrutura, é o melhor instrumento para mudar a situação, bastando, para isto, encontrar um bom Ministro e uma equipe certa? Ou será que é necessário repensar de maneira profunda e ousada o papel do Ministério, e buscar outras alternativas?

O governo federal só contribui com 30% dos gastos públicos em educação, concentrados no financiamento de suas universidades, ficando o restante por conta dos estados e municípios, sobretudo para a educação infantil e fundamental, sem falar nos grandes investimentos das famílias na educação privada. No ensino superior, o governo federal só atende a 15% da matrícula, ficando 75% com o setor privado, e os demais com os Estados. No ensino fundamental, a participação federal é irrisória – menos de cem mil matrículas, ficando 85% com os Estados e Municípios e 15% com o setor privado. No papel, o governo federal, sobretudo através do Conselho Nacional de Educação, tem autoridade regulatória sobre todo o sistema, e a Constituição diz que o e ensino nos três níveis deve ser organizado em “regime de colaboração”. Mas, na prática, existe muita controvérsia sobre como esta colaboração deve funcionar, e a dificuldade de o Ministério da Educação chegar ao “chão da escola” com suas orientações curriculares, avaliações e programas de apoio acaba resultando em interminável proliferação de portarias, instruções normativas, notas técnicas, resoluções, decretos e mudanças na legislação de efeitos desconhecidos, porque não existem procedimentos adequados para avaliar sua eficácia.

Uma das razões desta combinação de gigantismo com ineficácia a que chegamos foi a tentativa do Ministério, ao longo dos anos, de cooptar todos os grupos de interesse da área de educação, da UNE às multinacionais do ensino privado, passando pelos sindicatos de professores, instituições filantrópicas, associações científicas e corporações profissionais. O resultado mais evidente deste processo nos governos do PT foi o Plano Nacional de Educação aprovado unanimemente pelo Congresso Nacional em 2014, e ainda em vigor, com uma longa lista de objetivos irrealizáveis e desconexos a serem pagos com pelo menos 10% do PIB a cada ano. O exemplo mais recente é a reforma do ensino médio, uma ideia importante que parece estar sendo perdida pelo cipoal normativo que acabou gerando. Políticas educacionais não podem ser implementadas sem competência técnica, autoridade e legitimidade, mantidas através do diálogo ativo e respeitoso com as comunidades profissionais a adoção das melhores práticas internacionais. Isto é muito diferente de simplesmente atender aos interesses corporativos dos que falam mais alto, ou impelir a ideologia do momento.

A solução liberal extremada para tudo isto é simples: fechar o Ministério e as secretarias de educação, privatizar as universidades e escolas, e deixar que as forças do mercado cuidem de tudo. Mas isto não funciona em nenhum lugar do mundo; os países que conseguem melhorar sua educação são aqueles em que o setor público funciona com autoridade, competência e investimento significativo de recursos públicos. Existem formas muito diferentes de fazer isto, mais centralizadas, como na França, ou mais abertas e plurais, como nos Estados Unidos. Apesar da influência francesa no passado, o Brasil é mais próximo da desorganização americana, com um governo central relativamente débil, alguns governos regionais e locais fortes, e um forte setor privado.

Os dois modelos sugerem o caminho a seguir. Ao invés de uma administração de comando, de cima para baixo, políticas mais indutivas, abrindo espaços e valorizando a diversidade e as experiências locais. Ao invés de fortalecer a burocracia federal, decentralizar não só a execução, mas inclusive a avaliação dos resultados da educação, envolvendo governos, entidades profissionais e associações voluntárias de credenciamento e certificação, na medida de suas competências efetivas. Ao invés de normas e determinações minuciosas e detalhadas impostas de cima para baixo, mais respeito às iniciativas locais. Sem abdicar da responsabilidade de garantir a qualidade e reduzir a inequidade, valorizar e estimular a iniciativa particular e introduzir nas universidades públicas formas de gerenciamento e incentivos mais típicos do setor privado, como a administração por objetivos e contratos de gestão; e não permitir que programas governamentais continuem existindo sem mecanismos claros de avaliação de resultados e justificação de seus custos.

Não chega a ser o mapa da mina, mas pode ser um roteiro.

Ensino à distância – não há milagre

(Texto publicado na Revista Veja, de 24 de outubro de 2018, p. 60-61)

Entre 2014 e 2017, a percentagem de matriculados em cursos superiores à distância no Brasil passou de 17.2% a 21.3%, concentrados sobretudo nas instituições com fins lucrativos, onde, hoje, um terço dos estudantes estudam nesta modalidade. São na maioria pessoas mais velhas, que precisam trabalhar, têm dificuldade ter boa classificação no ENEM para ingressar nas universidades públicas, e não podem pagar matrículas muito caras. Para eles, a educação à distância, se bem feita, faz muito sentido. Isto dito, é preciso entender que o ensino à distância, assim como o presencial, pode ser dado de formas muito diferentes, com qualidade muito variada, e não são igualmente aplicáveis para todos os conteúdos e em todos os níveis.

Uma das vantagens do ensino à distância é que é possível preparar aulas excelentes com os melhores professores, acompanhadas de materiais de estudo, sistemas de avaliação, etc., tudo isto em grande escala. Existem boas experiências de ensino à distância em todo o mundo, a começar pela famosa Open University inglesa. Cursos na modalidade semipresencial, em que os estudante se encontram periodicamente para trabalhar com os professores e têm possibilidade de interagir com professores e colegas através da internet, podem ser melhores do que os cursos noturnos que proliferam no Brasil. Um dos problemas com os cursos à distância é que, trabalhando sozinhos, o número de pessoas que abandona o curso antes de terminar é muito alto, mas é bom lembrar que o abandono nos cursos presenciais no Brasil, mesmo nas universidades públicas, é próximo de 50%. Outro problema é que não é nada barato criar um sistema em que os alunos possam efetivamente interagir com seus professores à distância, e, sem isto, a qualidade dos cursos fica muito comprometida.

Quando se trata da educação dos jovens, e sobretudo de crianças, a situação é muito diferente. O processo educativo não consiste somente na transmissão de conhecimentos que podem ser gravados em aulas e codificados em sistemas de ensino, mas em um conjunto muito mais amplo de atitudes, valores e maneiras de pensar e trabalhar que só se transmitem na interação direta entre quem ensina e quem aprende, e na convivência diárias entre colegas. Em parte, são as chamadas “competências não cognitivas”, ou características de personalidade, como persistência, capacidade de trabalhar em equipe, estabilidade emocional, motivação, e outras, de importância cada vez mais reconhecida na educação e no trabalho, que se desenvolvem na experiência escolar no dia a dia, quando bem conduzida. Mas também os chamados “conhecimentos tácitos” como a maneira de desenvolver um argumento, a apreciação de um texto literário ou uma obra de arte, o significado de uma demonstração científica, a prática de lidar com materiais e tantas coisas mais que as pessoas só aprendem através do contato com outras que já têm estes conhecimentos e práticas. E incluem também valores, que se transmitem sobretudo pelo exemplo. Na escola, quem pode transmitir tudo isto são os professores. Eles são insubstituíveis, e toda a evidência internacional é que a qualidade dos sistemas escolares, e da educação de um país, é dada pela qualidade de seus professores.

De novo, é importante distinguir aqui o ensino fundamental do ensino médio. No ensino fundamental, o uso de recursos pedagógicos à distância só faz sentido de forma complementar, sob orientação e acompanhamento dos professores. Existe muito espaço para usar recursos à distância para apoiar os professores, com planos de aula, materiais de demonstração, experiências de colaboração com crianças de outras escolas, e outros, além dos trabalhos de educação continuada dos próprios professores.

A recente reforma do ensino médio que o Ministério da Educação está tratando de implementar traz duas ideias aparentemente contraditórias, a preferência pelo ensino médio de tempo integral e a abertura para o ensino médio à distância. Parece uma contradição, mas só para quem esquece da grande variedade dos estudantes e das redes escolares do país. O ensino de tempo integral, como o dos institutos federais e das escolas militares, pode ser bom, mas é caro, seletivo (os alunos passam por “vestibulinhos)”, e não há como ampliá-lo de forma significativa nas redes estaduais, Metade dos alunos do ensino médio no Brasil hoje tem 18 anos ou mais, um quarto estuda à noite, muitos precisam trabalhar, a maioria não vai para uma universidade, e todos precisam adquirir competências profissionais que sejam úteis e valorizadas no mercado de trabalho. Para estes, uma combinação entre cursos presenciais concentrados nas matérias básicas, e cursos mais práticos em diferentes modalidades, inclusive de intermediação tecnológica, em que os conteúdos são produzidos e transmitidos centralmente, mas os alunos assistem em salas de aula acompanhados pelos professores, podem fazer mais sentido, dependendo de onde vivem, dos recursos locais disponíveis e das áreas de capacitação.

Para o ensino superior, uma questão importante é saber se faz sentido para o governo estimular o desenvolvimento do ensino à distância, seja nas instituições públicas ou no financiamento das instituições privadas, como substituto para o ensino presencial. Uma justificativa seria a necessidade de ampliar o acesso ao ensino superior, que hoje ainda é limitado. Mas o principal obstáculo à ampliação do ensino superior no Brasil não é a falta de vagas ou cursos superiores, mas o número ainda pequeno de pessoas que terminam o ensino médio com qualificações adequadas para estudos mais avançados. Milhões se candidatam todos os anos para o ENEM, poucos se classificam, metade dos que entram em universidades públicas ou privadas nunca terminam seus cursos, e muitos dos que se formam acabam trabalhando em atividades de nível médio.

Para os que ficam pelo caminho, a educação universitária é uma grande fábrica de ilusões que custa dinheiro e tempo que poderiam ser usados para uma educação mais prática e acessível. Multiplicar vagas de ensino à distância, aonde as taxas de abandono são muito mais altas, é agravar ainda mais este quadro.

O ensino à distância, em suas diferentes modalidades, quando bem feito e aplicado aos conteúdos, níveis e tipos de alunos adequados, principalmente na educação continuada de adultos, é um excelente recurso, mas não é um substituto para boas escolas e bons professores, sobretudo nos anos iniciais de formação. Os problemas da educação brasileira não se resolverão com novas tecnologias nem com educação à distância, mas com bons professores, currículos adequados e altos padrões de exigência de desempenho de estudantes, professores e instituições.

Chico Soares: qual desempenho é adequado nos testes da Prova Brasil?

Escreve José Francisco Soares, do Conselho Nacional de Educação:

O governo federal, ao divulgar, na semana passada, os resultados da Prova Brasil,  dividiu  as notas  dos estudantes em três níveis referidos como: Insuficiente, Básico e Adequado.  Ao usar adjetivos com claras interpretações pedagógicas, busca facilitar o uso dos dados para o planejamento pedagógico das escolas e das redes de ensino, assim como a comunicação com a sociedade. 

No entanto, as escolhas de pontos de corte que definiram os níveis  produziram  uma mudança drástica no  diagnóstico da realidade educacional brasileira. Experiencias consideradas exemplares até 2017 se tornaram fracassos com a nova metodologia. Por exemplo,  a cidade de Sobral, que era considerada exemplo nacional, passou a ter apenas 13,4% dos alunos com  aprendizado adequado em língua portuguesa, ao invés de 79,8 % em 2015. 

Na realidade não ocorreu nenhum desastre educacional nos últimos dois anos, mas apenas a introdução de uma forma  equivocada de sintetizar os dados da Prova Brasil. 

A classificação das notas dos estudantes em níveis exige basicamente a definição de pontos de corte na escala usada para expressar as notas. Para estas escolhas, a técnica usada internacionalmente consiste, primeiramente, em  ordenar por nível de dificuldade os itens usados no teste. A seguir um painel de professores, depois de informados sobre quantos níveis serão criados e a função  pedagógica esperada de cada um,  escolhem  os pontos de cortes, primeiramente, de forma individual e depois em grupos. Várias rodadas de discussão são usualmente necessárias para a criação de um  consenso.

Infelizmente, a pesquisa necessária para o uso desta métrica ainda não foi feita de forma definitiva no Brasil, apesar de grandes avanços recentes. Diante disso, a definição de valores de referência para a escala do SAEB tem sido feita de forma comparativa. Tanto na definição de metas para o IDEB, como as metas do movimento “Todos pela Educação”, quanto para a criação de níveis nos sistemas de avaliação estaduais,  utilizou-se a experiência brasileira no  PISA. Basicamente, mediu-se  o aumento  necessário  no desempenho obtido pelos estudantes brasileiros no PISA para que  as notas do conjunto de estudantes brasileiros tivessem a mesma distribuição estatística que a dos estudantes de um país típico da OECD.  Este aumento, transformado em desvios-padrão, é utilizado para criar a distribuição de referência na escala do SAEB. Nesta distribuição escolheu-se,  por consenso pedagógico,  o ponto de 70% para definir o ponto de corte do nível adequado. Dois outros pontos de corte  adicionais foram escolhidos, definindo-se quatro níveis: abaixo do básico, básico, adequado e avançado. Os níveis assim obtidos vêm sendo usados há anos em artigos, por muitos sistemas de ensino, em plataformas de acesso aos dados e por setores da sociedade civil. No entanto, é importante registrar que outras escolhas poderiam ser feitas.

Para a divulgação dos dados referentes à Prova Brasil de 2017, o  governo federal optou por trabalhar com uma divisão estatística de níveis feita  sem comparação externa. Em seguida, arbitrou, sem nenhuma  justificativa, valores para os pontos de corte muito maiores do que os que tem sido praticados.  Como consequência, a nova síntese sugere que os resultados em Língua Portuguesa são melhores do que os resultados em Matemática, em completo desacordo com o que vem sido aceito, que é que os resultados de aprendizagem de todos estudantes brasileiros estão em níveis catastróficos. 

Usar evidências empíricas em relação aos resultados educacionais: acesso, permanência na escola e aprendizado, assim como indicadores das condições das escolas, é fundamental para a melhoria da educação. Mas isso exige a criação de consensos baseados em análises compartilhadas dos dados.  O trabalho que vem sendo feito nessa direção mostra que o sistema educacional tem sérios problemas no aprendizado de seus estudantes, assim como de condições de funcionamento. Mas uma mudança abrupta de metodologia não ajuda no debate.

O governo federal deveria  usar a oportunidade para não só corrigir o diagnóstico apresentado  como também  para iniciar um processo, baseado na literatura internacional e conduzido por especialistas e professores,  que defina e interprete níveis de referência oficiais para a análise dos dados de aprendizado obtidos pela  Prova Brasil.

João Batista Araujo e Oliveira: Os Presidenciáveis e a Educação

 

Reproduzo abaixo o artigo publicado hoje no O Estado de São Paulo.

Os Presidenciáveis e a Educação

João Batista Araujo e Oliveira (*)

A educação nunca foi e possivelmente tampouco será tema importante ou decisivo na próxima campanha presidencial. Mas essa pode ser uma oportunidade para se iniciar um debate qualificado sobre o tema.

Há três grandes conjuntos de questões que devem ser considerados na pauta dos candidatos. O primeiro refere-se ao paradoxo da enorme expansão da oferta de vagas nas escolas – e do aumento da taxa de escolaridade da população nos últimos 30 anos – e seu efeito nulo na produtividade. Mas não bastará reconhecer que a educação não está contribuindo para aumentar a produtividade do País. Os candidatos, independentemente de seus partidos, precisam reconhecer que as políticas educacionais dos últimos 30 anos – e o fato de os recursos per capita terem mais que dobrado no período – pouco ou nada contribuíram para melhorar esse impacto.

Essa discussão poderia ter duas importantes derivadas. A primeira vai além da educação e permitiria entender por que a produtividade não aumenta no Brasil. Os mesmos fatores que impedem o aumento da produtividade, em especial o protecionismo e a falta de competição, também impedem a melhoria da qualidade da educação. A segunda seria o exame do tipo de escola e de currículo de que um país precisa para impulsionar sua economia e, de modo particular, o papel do ensino médio técnico e a participação do setor produtivo, especialmente do Sistema S. Isso exporia as fragilidades da Base Nacional Curricular Comum e da atropelada lei do ensino médio, que carecem de profundos ajustes.

Se os candidatos reconhecerem esses dois grandes problemas, já terão dado um grande passo para elevar o nível do debate. Deve-se decidir se a educação continuará sendo tratada como gasto, como “política social” de caráter tipicamente compensatório e cunho populista, ou como parte central da política econômica focada na formação do capital humano. A educação continuará a ser tratada em foros corporativistas, dominados por grupos ideológicos, ou será tratada em foros legítimos, qualificados e adequados, juntamente com outros temas cruciais para o desenvolvimento do País, como ciência, tecnologia e inovação? A posição dos candidatos sobre esses temas poderá dar aos eleitores uma ideia concreta do seu nível de seriedade e compromisso com o futuro do País.

O segundo conjunto de questões refere-se ao equilíbrio fiscal do País e suas consequências para o financiamento da educação. O setor público, em especial Estados e municípios, estão à beira da falência. Na área da educação, os gastos vêm aumentando acentuadamente, apesar da redução demográfica. O aumento de gastos é provocado, em grande parte, por políticas capitaneadas pelo governo federal, notadamente com a instituição de mecanismos como o Plano Nacional de Educação e a Lei do Piso Salarial. A situação é agravada pelo entendimento – ou falta dele pelo Ministério Público – de que é insano obrigar Estados e municípios a efetivar mais professores em tempos de vertiginosa redução demográfica. Essa discussão levará inevitavelmente a questões relacionadas ao pacto federativo e vai determinar se o candidato está preparado para mudar os rumos da educação ou vai manter a retórica de que “nunca faltarão recursos para boas ideias e bons projetos”.

Já o terceiro conjunto de questões diz respeito ao modelo fácil da expansão: mais escolas, mais vagas, mais bolsas, mais professores, mais salários, mais investimentos. Nada disso resultou em qualidade e eficiência. Felizmente, não há mais dinheiro para continuar essa gastança ineficaz. Os futuros governantes vão fazer mais do mesmo? Darão continuidade a políticas que comprovadamente não têm funcionado há décadas? Continuarão a ignorar as evidências científicas e as melhores práticas, cultivando extensas plantações de jabuticaba na paisagem educacional? Vão criar novos e inócuos programas, sempre lançados com pompa e circunstância? Vão promover ridículos “choques de gestão”? Afinal, o que os candidatos sabem sobre os reais problemas da educação? O que pretendem fazer para mudar o vetor atual? Ou, ao menos, por onde pretendem começar?

As propostas de cada candidato devem ser calibradas por uma análise do seu potencial impacto na qualidade, eficiência e equidade da educação. Aqui entram também as propostas para lidar com as questões da pobreza – principal determinante do sucesso escolar. Tudo isso é importante, mas a conta precisa fechar.

Nas últimas décadas houve importantes avanços tanto no campo da economia quanto no da educação. Hoje há conhecimentos e instrumentos que permitem lidar com gigantescas crises financeiras, como a que resultou da “nova matriz econômica”. Na área da educação, também existem conhecimentos científicos e experiências comprovadas que nos permitiriam dar saltos qualitativos em tempo relativamente reduzido. Das dezenas de reformas educativas de vulto empreendidas nos últimos 20 anos em todo o mundo, pelo menos uma boa dúzia levaram a modelos e ensinamentos que, conduzidos competente e adequadamente, poderiam melhorar a qualidade do nosso sistema educacional.

Programas de partidos políticos raramente serviram de critério para orientar votos e tanto no plano federal quanto no estadual e municipal é impossível identificar uma identidade partidária nas políticas educacionais. Ao contrário, o que se nota é um forte consenso em torno de equivocadas mesmices que, apesar da grandiloquência dos discursos e dos aplausos da plateia, não produziram frutos nem contribuíram sequer para dar início ao estabelecimento das bases de um sistema educativo de qualidade. O início da mudança começa com o debate, mas este precisa situar-se num patamar que só estadistas, estimulados por debatedores competentes, incisivos e bem preparados, conseguirão promover e sustentar.


(*) Presidente do Instituto Alfa e Beto

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