Recordistas mundiais

(Publicado em O Estado de São Paulo, 11 de novembro de 2024)

O Censo da Educação Superior de 2023, publicado recentemente, confirma que somos recordistas mundiais em pelo menos duas coisas, a proporção de estudantes em instituições privadas, 80%, e em cursos à distância, metade. No setor público, somente 10% dos alunos estão em cursos à distância; no setor privado, 60%.  São ao todo cerca de 10 milhões de estudantes: 27% em cursos de negócios, administração e direito; 22% na área de saúde e bem-estar; e 17% na área de educação. Nas engenharias são 9%, na computação 7%, e, nas ciências naturais, 1.3%.

O Brasil não difere muito da maioria dos países, mas exagera. Em quase todo o mundo, também, são três as áreas com mais estudantes: administração (incluído economia, negócios e direito) saúde (incluindo medicina) e educação. A principal diferença do Brasil é o tamanho diminuto das áreas de ciências naturais e engenharias. Nos últimos anos, em quase toda parte, a educação superior privada cresceu, assim como a educação à distância. O setor privado cresceu porque o setor público não dá conta de atender toda a demanda, e a venda de serviços de  ensino se transformou em um bom negócio. Além disto, o setor privado conta geralmente com mais autonomia e capacidade empresarial para ir atrás de sua clientela.  O alunos das instituições públicas são em geral  jovens de origem social média ou alta que completam o ensino médio de qualidade e conseguem passar com boas notas nos processos seletivos. Para os mais velhos, geralmente mais pobres, que terminam o ensino médio com dificuldade e precisam trabalhar, a alternativa eram os cursos noturnos em instituições privadas. A pandemia mostrou que era possível dar estes mesmos conteúdos à distância a um menor custo, e isto se tornou irreversível. 

A principal explicação para nossos extremos é o elitismo do modelo adotado na reforma universitária de 1968, que perdura em suas linhas gerais. A reforma procurou trazer para o Brasil um modelo único de universidade de pesquisa vagamente inspirado na universidade alemã do início do século 19 e adotado por algumas universidades americanas, com professores doutores trabalhando em tempo integral, envolvidos em atividades de ensino e pesquisa e alunos bem qualificados e estudando também em tempo integral. É um modelo que custa caro e não tem como dar conta da crescente demanda por educação superior que só começaria no Brasil a partir da década 70, vinda de estudantes que chegam do ensino médio com formação menos rigorosa e precisando trabalhar. Os países que conseguiram lidar com esta transição foram o que os que mantiveram e até ampliaram a presença de suas instituições de elite, mas também investiram em outras modalidades de ensino profissional e técnico, já a partir do ensino médio. O Brasil insistiu em um modelo público único que se manteve imutável na forma, mas, ao se ampliar de maneira forçada, acabou se deteriorando em parte, criando grande desigualdade em seu interior e abrindo espaço para que o setor privado expandisse.

Por muitos anos, o governo federal tratou o setor privado como um problema, e não como parte da solução para sua incapacidade de ampliar e diversificar a oferta de educação. O sistema de avaliação criado em 2004 tinha como principal objetivo controlar o setor privado, o que nunca conseguiu. E os governos do PT,  supostamente contrários ao setor privado, ao se darem conta que só ele seria capaz de ampliar o acesso, passaram a subsidiá-lo através de dois mecanismos, as isenções fiscais do Prouni e o crédito estudantil garantido do FIES, fazendo com que ele se transformasse em um negócio cada vez mais vantajoso.

Os governos também fizeram um esforço de ampliar o setor público, através dos financiamentos do programa Reuni, e de democratizar o acesso através da política de cotas. Com a crise financeira a partir de 2015 e a rigidez burocrática e administrativa,  o setor público só conseguiu passar de 1.6 para 1.9 milhões de matrículas entre 2010 e 2020, enquanto o setor privado passava de 4,7 a 6,7 milhões. Com a política de cotas, a composição social do alunos no setor púbico se tornou mais equitativa, mas foi o setor privado que abriu mais oportunidades de estudo para pessoas vindas de condição social mais desfavorável.

E tem a questão, nunca enfrentada, da má qualidade e das altas taxas abandono. Entre todos que  entraram no ensino superior em 2019,  as taxas de desistência, em 2023, eram de 64% no ensino privado à distância, em um extremo, e 42% no presencial público no outro. Dos que se formam, metade não consegue trabalhar em atividades de nível superior. Cada vez há mais pessoas querendo estudar, cada vez mais os governos buscam subsidiar os estudos, mas não existe nenhum sistema que informe aos estudantes, aos futuros empregadores e aos próprios governos, em que instituições e áreas as pessoas têm mais chances de se qualificar a partir das condições trazem e fazer uso de seus conhecimentos. O sistema incha, mas fica do mesmo tamanho.

A radicalidade de Inez

(Publicado em O Estado de São Paulo, 13 de setembro de 2024)

“Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora, para as  pessoas, a raiz é a própria pessoa” (Karl Marx)

Neste mês me despeço de Inez Farah, companheira querida de meio século. Neta de imigrantes, carioca, professora, psicóloga, mãe, Inez faz parte da história das mulheres brasileiras e cariocas, radicalmente modernas, que ainda precisa ser mais bem contada, antes que a pós-modernidade as sepulte de vez.
No início do século 20, imigrantes de Portugal, Itália, Japão, mas também do Oriente Médio e Europa Central, vinham aos milhões para o Brasil, fugindo das guerras e perseguições, buscando um lugar em que pudessem viver em paz, trabalhar e formar suas famílias. Os avós de Inez, cristãos sírio-libaneses, tal como os meus, judeus, faziam parte destas levas, trabalhando no comércio, dando crédito quando as grandes lojas ainda não existiam, e investindo na educação dos filhos. Os homens iam à luta para ganhar dinheiro e as mulheres se casavam cedo, tinham um filho por ano e se refugiavam na religião. Não Inez. Uma de sete irmãos, não escapa da primeira comunhão, e é enviada cedo para o colégio interno Santos dos Anjos em Vassouras. Indisciplinada, aproveita as detenções de fim de semana para se tornar amiga das madres francesas e conversar sobre literatura e artes. Depois se muda do interior para a casa da avó na zona norte do Rio de Janeiro, onde se prepara para ingressar no Instituto de Educação.
Nos anos 50, no Brasil, poucos estudavam, e metade da população era analfabeta. Mas o país se modernizava, e as famílias tradicionais no Rio de Janeiro mandavam seus filhos para os colégios católicos, como o São Bento e Santo Inácio para os homens, e o Sacre Cœur de Marie para as moças. Para os filhos de imigrantes e das novas classe médias, as alternativas eram o Colégio Pedro II e o Instituto de Educação, públicos e gratuitos, que davam acesso às carreiras universitárias para os homens e ao magistério para as mulheres. Os exames de admissão eram difíceis, os professores os melhores que havia, e a educação, laica. Inez se encanta com a qualidade do ensino e das instalações do Instituto, participa do grêmio e do jornal dos estudantes. Em 1958, aos 19 anos, se forma como professora e já sai contratada pelo governo do Estado. Enquanto alfabetiza crianças na Zona Norte, se candidata para o novo curso de psicologia na Pontifícia Universidade Católica na Zona Sul. Se forma em 1962 e é promovida, no Estado, para trabalhar no “Serviço de “Ortofrenia e Psicologia”, do Instituto de Pesquisas Educacionais.
A palavra “ortofrenia” era um resquício das ideias eugenistas que imperavam na saúde pública brasileira até antes da guerra, e o trabalho incluía a seleção de diretores de escola e orientação psicológica para orientadores educacionais e professores. Mas o que interessava mesmo a Inez era o entendimento radical que a psicanálise havia trazido sobre o desenvolvimento da personalidade infantil, através de autores ingleses como Melaine Klein, D. Winnicott e W. R. Bion, cujos livros fazem parte de sua biblioteca daqueles anos. Independente e agora com dinheiro, compra um pequeno apartamento em Ipanema, frequenta as praias da Zona Sul e começa a trabalhar como psicóloga clínica. Não atua na política, mas tem lado: depois do golpe de 64, por mais de uma vez seu velho fusca serviu para transportar militantes procurados, e teve a casa invadida por militares armados em busca de um irmão.
A prática da psicanálise naqueles anos era controlada por médicos, quase todos homens, reunidos nas sociedades psicanalíticas. Inez contribui para quebrar o monopólio ao dar aulas e organizar um curso pioneiro de especialização em psicologia clínica na PUC, cujas alunas eram sobretudo mulheres. Logo depois surge outro monopólio, o dos graduados em mestrados e doutorados. Inez não vê sentido em fazer, só pelo título, uma pós-graduação em psicologia experimental, e acaba deixando a universidade. Aos poucos, os antigos monopólios são substituídos por novos modismos das diferentes correntes psicanalíticas, aos quais Inez, cética, se recusa a aderir. Na busca de novos caminhos, se especializa em terapia de família e promove a tradução, para o português, do livro de T. Berry Brazelton sobre crianças e mães, que nos ensina que cada criança é única, e precisa ser reconhecida e respeitada em suas diferenças pelos pais, ao mesmo tempo em que cada um, à sua maneira, pode sempre mais.
Profissional estabelecida, passados dos 30 anos, era chegada a hora de investir na própria família, ao mesmo tempo em que continua a marcar a vida de tantos em seu trabalho. Foi quando nos conhecemos, e passamos juntos décadas de muita alegria e perdas importantes, que ela vivia com força, animação e dor, muitas vezes ao mesmo tempo. Entre filhos, obras na casa, mousse de chocolate, orquídeas, viagens, pacientes e amigas fiéis de toda a vida, Inez foi sempre a grande companheira e cúmplice, minha, dos filhos e de tantos mais. Radical em seu compromisso com as pessoas, e moderna em aceitar as diferenças e apostar na possibilidade de cada um de construir seu próprio caminho, como ela mesma sempre fez.

Saúde e morte das democracias

(Publicado em O Estado de São Paulo, 9 de agosto de 2024)

Em Por que a democracia brasileira não morreu? (Companhia das Letras, 2024), Marcus André Melo e Carlos Pereira argumentam que ela é mais forte do que se pensa, graças à complexidade dos interesses diversos própria do chamado “presidencialismo de coalizão”.   Bolsonaro tentou, mas não teve força suficiente para contrariar os interesses consolidados no legislativo, judiciário, governos estaduais e na burocracia pública, incluindo parte importante das forças armadas. Em diversos momentos, setores ligados ao PT tentaram governar sozinhos, mas não conseguiram. A arte de governar consistiria em reconhecer como legítima e negociar com esta pluralidade de interesses setoriais e particulares, e assim obter apoio para políticas mais amplas que possam ser de interesse geral, como o controle da inflação, o crescimento da economia e a redução da violência.

Claro que estas políticas serão sempre menos perfeitas na democracia do que se fossem implementadas por um governo idealmente todo-poderoso, mas também menos sujeitas a grandes desastres. A democracia, na frase famosa de Churchill, é a menos ruim entre as diversas formas de governo e, bem ou mal, temos feito progresso. Se equivocariam, assim, os que acreditam que a democracia está em crise. Como Felipe Nunes e Thomas Traumann, que, em livro recente, dizem que, por causa da polarização, o Brasil como um todo, e não só o sistema político, entrou em um abismo (Biografia do abismo, Harper, 2023). Ou Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que, alguns anos antes, mostraram em detalhe como as democracias morrem por dentro (How democracies die, Crown, 2018).

O livro de Melo e Pereira ajuda muito a entender como funciona nosso sistema político, mas, ao afastar o medo da morte, corre o risco de fazermo-nos despreocupar com sua saúde. É sem dúvida importante reconhecer e dar legitimidade à pluralidade de interesses na sociedade, mas não é saudável que o sistema eleitoral funcione de maneira tal que os eleitores não sabem quem elegem para o Congresso, que parte crescente do orçamento federal seja destinado a emendas parlamentares de destinação desconhecida, que o aumento dos gastos seja sempre superior ao aumento dos impostos, e que os governos, em seus diferentes níveis, não consigam desenvolver políticas efetivas para lidar com a baixa produtividade, desigualdade econômica, educação, pobreza, violência pública e deterioro ambiental.  Assim como é não é normal que o judiciário sistematicamente livre os políticos de processos por corrupção, e que tantos interesses privados sejam protegidos por isenções fiscais e parcerias pouco claras com agências governamentais. Os autores reconhecem estes problemas, mas argumentam que eles não se devem a “patologias imaginárias” do sistema político, como as deformações do sistema de representação proporcional e do multipartidarismo, mas à falta de mecanismos efetivos de controle, que deveriam se fortalecer em função da disputa eleitoral a alternância no poder.  Não parece, no entanto, que o processo político brasileiro desde o fim do regime militar tenha tido este efeito.

São duas as principais doenças de nossa democracia de coalizão que deveriam nos preocupar.  São enfermidades crônicas, mas vêm se agravando, e não podem ser simplesmente ignoradas pelo “business as usual” da política. A primeira é quando o custo da conciliação e cooptação dos diversos interesses se torna alto demais em comparação com os benefícios que a estabilidade pode trazer. Aqui, é importante não confundir a repartição de benefícios e vantagens com formas descentralizadas de governo, que podem ser superiores à de um executivo todo-poderoso. A segunda é a perda de legitimidade do sistema político quando se torna claro que a lógica do toma-lá-dá-cá prevalece sobre o interesse geral da população. A primeira doença corrói a democracia por dentro, fazendo com que ela se torne cada vez mais disfuncional; a segunda doença a ameaça de fora, destruindo instituições e colocando o país nas mãos de demagogos.

O Brasil tem uma grande concentração de riqueza, e muitos setores, ricos e pobres, que vivem da apropriação das rendas geradas pelos setores mais produtivos. É fato que muitas destas desigualdades e privilégios estão hoje consagrados na Constituição, como se fossem direitos, mas é fato também que a Constituição está longe de ser imutável. A função da política não pode ser, simplesmente, a de manter os diferentes setores satisfeitos, como se fossem imutáveis, ao pêndulo da alternância de poder, e atender os interesses gerais da sociedade com os recursos que sobram, se é que sobram. Em uma democracia, a política é também uma disputa permanente para alterar a distribuição da riqueza e do poder. Isto se faz tanto através dos mecanismos regulares de participação política, as eleições, como também pela disputa de ideias, o trabalho de convencimento pelos meios de comunicação e diferentes formas de participação social e política, incluindo a atividade empresarial, os movimentos religiosos e as sociedades civis de diferentes tipos. A política vai muito além do jogo partidário e eleitoral, e é isto que a torna arriscada, mas também relevante e necessária.

Simon Schwartzman é sociólogo e autor de Falso Mineiro: memórias da política, ciência, educação e sociedade (Intrínseca /  Selo Real, 2021)

O Plano Real e outros planos

(Publicado em O Estado de São Paulo. 12 de julho de 2024)

Meio de penetra, também participo da festa dos 30 anos do Real,  como responsável que fui, na presidência do IBGE, por cuidar da credibilidade dos  índices de preços da nova moeda. Apesar das turbulência desde então, os resultados principais do Real ainda persistem, como o controle da inflação, o fortalecimento das instituições financeiras e a abertura da economia. Duas explicações principais têm sido oferecidas para seu sucesso: a qualidade técnica dos economistas responsáveis e a liderança política de Fernando Henrique Cardoso, que fez com que o Congresso aprovasse as reformas necessárias para que o projeto ficasse de pé. Contribuiu também o sentimento de urgência criado pela inflação galopante, que facilitou sua aprovação.

De lá para cá, muitos outros planos foram instituídos por lei, como os de educação, cultura, mudança do clima, saneamento básico, segurança alimentar, igualdade racial, juventude, política de mulheres, direitos humanos,  defesa e combate à corrupção e ciência, tecnologia e inovação. Nenhum deles apresentou resultados de magnitude semelhante ao do Plano Real e alguns só ficaram no papel, com destaque para o fracassado Plano Nacional de Educação de 2014,  que agora se pretende reeditar. A pergunta que fica é porque o Plano Real deu tão certo e os demais nem tanto.

Parte da resposta é que o Real, na verdade, nunca foi um plano. A Medida Provisória que criou o Real, de 1994, falava de “programa de estabilização econômica”. Na de junho de 1995, convertida na lei 9.069, a expressão “Plano Real” aparecia na ementa, mas não no texto da lei, que trata da reorganização do sistema monetário, tributação, dívida pública e correção monetária. Não é, apenas, uma questão de palavras. O Real não foi um plano como se entende usualmente, com metas detalhadas a serem cumpridas em determinados prazos, mas um projeto de reforma institucional, alterando as regras de funcionamento de uma série de mecanismos básicos da economia. Era um projeto  de inspiração social-democrata, que buscava organizar o espaço para uma economia aberta, competitiva e mais igualitária, colocando limites ao uso abusivo do poder do Estado e de setores privilegiados na apropriação dos recursos da sociedade,  através do endividamento e emissão de moedas sem limites. Para isto, era necessário equilibrar as contas públicas, fechar ou privatizar empresas estatais ineficientes e corrigir distorções tributárias. Não era um projeto de estado mínimo, já que não se questionava a importância de investimentos públicos em áreas como educação, saúde, proteção social,  segurança pública, infraestrutura e modernização econômica. Mas o principal benefício que se esperava de imediato era a melhoria da renda da população através do fim do imposto inflacionário, como de fato ocorreu.

A estabilidade da economia era condição para as outras políticas públicas, mas não suficiente. Esgotados os benefícios iniciais do Real, as agendas sociais impulsionadas pelo Partido dos Trabalhadores e diferentes movimentos sociais foram ganhando força, resultando no sucesso inicial dos governos do PT, mas também em sua frustração com a crise que culmina em 2015, da qual ainda não saímos.  Parte desta crise se explica, certamente, pelo fim do boom das commodities e a desorganização da economia provocada pela “nova matriz econômica”; mas também pela proliferação de planos que consistiam, sobretudo, em metas físicas que resultavam, quase sempre, em crescimento da burocracia, engessamento dos gastos e corrupção, sem benefícios mensuráveis para a sociedade.

São três, pelo menos, as diferenças entre a maioria destes planos e o Real. A primeira é o contraste entre reformas institucionais, que alteram as regras do jogo e o comportamento de diferentes setores da sociedade, e o planejamento de tipo “soviético”, baseado em metas rígidas. A segunda é a existência de equipes técnicas competentes e amadurecidas, capazes de encaminhar soluções baseadas no estado da arte em suas áreas de atuação; e a terceira é a presença de liderança política capaz de negociar com diferentes setores da sociedade, incluindo o legislativo, as condições para que a equipe técnica possa trabalhar. Muitas dos planos instituídos  desde o Real ficaram pelo caminho porque estavam baseados em diagnósticos equivocados, ou foram propostos e administrados por grupos de interesse ou seus “representantes” em que predominam, geralmente, os setores mais organizados e seus parceiros na burocracia pública (os “anéis burocráticos” descritos por Fernando Henrique Cardoso em um livro de 1975), ou não contavam com o apoio de uma liderança política convencida de sua importância e com legitimidade para defendê-los.

Políticas públicas, tanto quanto as políticas econômicas, precisam, para resultar, de especialistas competentes que não errem em seu diagnóstico e formulação,  assim como apoio, legitimidade e engenhosidade política para serem implementadas. São as mudanças institucionais e de cultura, e não planos com metas ou orçamentos detalhados, que, a longo prazo, podem fazer a diferença. Esta me parece ser a grande lição do Plano Real.

Simon Schwartzman é sociólogo e autor de Falso Mineiro: memórias da política, ciência, educação e sociedade (Intrínseca /  Selo Real, 2021)

O Plano Real e outros planos

(Publicado em O Estado de São Paulo, 12 de julho de 2024)

Meio de penetra, também participo da festa dos 30 anos do Real,  como responsável que fui, na presidência do IBGE, por cuidar da credibilidade dos  índices de preços da nova moeda. Apesar das turbulência desde então, os resultados principais do Real ainda persistem, como o controle da inflação, o fortalecimento das instituições financeiras e a abertura da economia. Duas explicações principais têm sido oferecidas para seu sucesso: a qualidade técnica dos economistas responsáveis e a liderança política de Fernando Henrique Cardoso, que fez com que o Congresso aprovasse as reformas necessárias para que o projeto ficasse de pé. Contribuiu também o sentimento de urgência criado pela inflação galopante, que facilitou sua aprovação.

De lá para cá, muitos outros planos foram instituídos por lei, como os de educação, cultura, mudança do clima, saneamento básico, segurança alimentar, igualdade racial, juventude, política de mulheres, direitos humanos,  defesa e combate à corrupção e ciência, tecnologia e inovação. Nenhum deles apresentou resultados de magnitude semelhante ao do Plano Real e alguns só ficaram no papel, com destaque para o fracassado Plano Nacional de Educação de 2014,  que agora se pretende reeditar. A pergunta que fica é porque o Plano Real deu tão certo e os demais nem tanto.

Parte da resposta é que o Real, na verdade, nunca foi um plano. A Medida Provisória que criou o Real, de 1994, falava de “programa de estabilização econômica”. Na de junho de 1995, convertida na lei 9.069, a expressão “Plano Real” aparecia na ementa, mas não no texto da lei, que trata da reorganização do sistema monetário, tributação, dívida pública e correção monetária. Não é, apenas, uma questão de palavras. O Real não foi um plano como se entende usualmente, com metas detalhadas a serem cumpridas em determinados prazos, mas um projeto de reforma institucional, alterando as regras de funcionamento de uma série de mecanismos básicos da economia. Era um projeto  de inspiração social-democrata, que buscava organizar o espaço para uma economia aberta, competitiva e mais igualitária, colocando limites ao uso abusivo do poder do Estado e de setores privilegiados na apropriação dos recursos da sociedade,  através do endividamento e emissão de moedas sem limites. Para isto, era necessário equilibrar as contas públicas, fechar ou privatizar empresas estatais ineficientes e corrigir distorções tributárias. Não era um projeto de estado mínimo, já que não se questionava a importância de investimentos públicos em áreas como educação, saúde, proteção social,  segurança pública, infraestrutura e modernização econômica. Mas o principal benefício que se esperava de imediato era a melhoria da renda da população através do fim do imposto inflacionário, como de fato ocorreu.

A estabilidade da economia era condição para as outras políticas públicas, mas não suficiente. Esgotados os benefícios iniciais do Real, as agendas sociais impulsionadas pelo Partido dos Trabalhadores e diferentes movimentos sociais foram ganhando força, resultando no sucesso inicial dos governos do PT, mas também em sua frustração com a crise que culmina em 2015, da qual ainda não saímos.  Parte desta crise se explica, certamente, pelo fim do boom das commodities e a desorganização da economia provocada pela “nova matriz econômica”; mas também pela proliferação de planos que consistiam, sobretudo, em metas físicas que resultavam, quase sempre, em crescimento da burocracia, engessamento dos gastos e corrupção, sem benefícios mensuráveis para a sociedade.

São três, pelo menos, as diferenças entre a maioria destes planos e o Real. A primeira é o contraste entre reformas institucionais, que alteram as regras do jogo e o comportamento de diferentes setores da sociedade, e o planejamento de tipo “soviético”, baseado em metas rígidas. A segunda é a existência de equipes técnicas competentes e amadurecidas, capazes de encaminhar soluções baseadas no estado da arte em suas áreas de atuação; e a terceira é a presença de liderança política capaz de negociar com diferentes setores da sociedade, incluindo o legislativo, as condições para que a equipe técnica possa trabalhar. Muitas dos planos instituídos  desde o Real ficaram pelo caminho porque estavam baseados em diagnósticos equivocados, ou foram propostos e administrados por grupos de interesse ou seus “representantes” em que predominam, geralmente, os setores mais organizados e seus parceiros na burocracia pública (os “anéis burocráticos” descritos por Fernando Henrique Cardoso em um livro de 1975), ou não contavam com o apoio de uma liderança política convencida de sua importância e com legitimidade para defendê-los.

Políticas públicas, tanto quanto as políticas econômicas, precisam, para resultar, de especialistas competentes que não errem em seu diagnóstico e formulação,  assim como apoio, legitimidade e engenhosidade política para serem implementadas. São as mudanças institucionais e de cultura, e não planos com metas ou orçamentos detalhados, que, a longo prazo, podem fazer a diferença. Esta me parece ser a grande lição do Plano Real.

Simon Schwartzman é sociólogo e autor de Falso Mineiro: memórias da política, ciência, educação e sociedade (Intrínseca /  Selo Real, 2021)

Cem novos institutos federais?

(Publicado em O Estado de São Paulo, 14 de junho de 2024)

No final de março, o Ministério da Educação anunciou a criação de cem novos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Alguns jornais saudaram a iniciativa, dizendo que, finalmente, o governo estava dando atenção à educação técnica e profissional. Fiquei sem entender: como é que o governo federal, que mal consegue manter suas universidades e institutos funcionando, vai criar mais cem? E será que, criando, vai fazer diferença?   

Estes institutos foram criados em 2008, a partir de uma rede de Centros Federais de Educação Técnica de nível médio que existiam em vários Estados. Seus professores e funcionários foram equiparados aos das universidades federais, novos cargos foram criados, e, além de cursos técnicos de nível médio, eles passaram também a poder dar cursos superiores e de pós-graduação.   Hoje, são 39 institutos e dois que continuam como CEFETs. É difícil saber exatamente o que fazem, os dados são escassos e confusos, mas, pelas estatísticas do INEP, eles têm cerca de 230 mil alunos em cursos de graduação e 320 mil na educação média, matriculados em cerca de 600 locais diferentes, a grande maioria em cursos integrados com o ensino profissional. Além disto, têm cerca de 4 mil estudantes em cursos de pós-graduação, quase todos de mestrado. O projeto do MEC não é, na verdade, de criar cem institutos, mas cem novos locais para os cursos de ensino médio, o que poderia significar cerca de 50 mil matrículas adicionais.

Para entrar nestes cursos médios, é preciso passar por um processo seletivo, e as vantagens para os que conseguem são grandes. Eles estudam em tempo integral e os colegas são mais qualificados, criando um ambiente mais estimulante. Os professores também são mais qualificados, ganham mais do que os das redes estaduais, o número de alunos por professor é menor, e as instalações são melhores.  E, quando fazem o ENEM, os formados entram nas cotas de estudantes das redes públicas, ficando nos primeiros lugares. Esses cursos têm sido propostos como o modelo ideal para o ensino técnico médio no Brasil, mas os alunos, por serem selecionados e estudarem em escolas de qualidade,  tratam de ingressar em universidades em vez de se profissionalizarem como técnicos.

Para os cursos superiores, seria de se esperar que os alunos estivessem sobretudo em cursos  aplicados de curta duração(o que no Brasil se chama de “cursos tecnológicos”).  Isto ocorre, mas bem menos do que seria de se esperar: 26% comparado com 30% em cursos de formação de professores (licenciaturas) e 44% em cursos tradicionais de bacharelado. Das áreas de estudo, um terço está em educação, 44% em cursos de engenharia e computação, e os demais dispersos em outras áreas.  Estes institutos sofrem com uma praga conhecida que afeta o ensino profissional em muitas partes, a pressão para se tornarem o mais parecido possível com universidades, à custa das missões originais para as quais teriam sido criados.

O caso dos institutos é semelhante ao das universidades federais.  Começa-se com um modelo idealizado, caro e em pequena escala, e depois não se consegue expandir, seja pelas limitações do modelo, que se desvirtua, seja pela falta de recursos. Os institutos federais são uma gota d’água: cerca de 2 a 3% das matrículas, tanto do ensino médio quanto do ensino superior e tecnológico.  Daria para aumentar? Os Institutos Federais custaram, em 2022, cerca de 18 bilhões de reais, comparado com os 56 bilhões das demais 80 instituições superiores federais. A quase totalidade destes custos vai para pessoal, sobrando quase nada para investimentos e custeio.

 Nos cursos de graduação, partiu-se com a ideia de uma universidade pública, universal, gratuita e fundada na pesquisa. Hoje, quase 80% das matrículas do ensino superior estão no setor privado, e poucas universidades públicas conseguem manter atividades de pesquisa mais significativa. A educação superior tecnológica vem se expandindo, mas sobretudo no setor privado. Na pós-graduação, criou-se um sistema controlado  e subsidiado para formar mestres e doutores, mas a maioria de seus estudantes não têm interesse em fazer carreira  em pesquisa, as matrículas estão caindo, e a pós-graduação lato senso é muito maior, desregulada e não se sabe bem o que faz.

A questão central é qual o papel adequado para o governo federal e dos estados quando os gastos públicos não têm mais como expandir e as demandas e necessidades da sociedade vão muito além do que os governos podem proporcionar. A criação de 10 novos campi universitários no modelo tradicional, anunciada esta semana, assim como a restrições recentes aos cursos de educação à distância, mostra que o governo federal ainda não entendeu o problema. Melhorar o papel regulatório, estimular boas práticas, concentrar os recursos existentes em atividades estratégicas de relevância, qualidade e equidade, e estimular estados e municípios e o setor privado a canalizar melhor suas energias, parece fazer mais sentido do que insistir em, simplesmente, fazer mais do mesmo.

Estadão: Os cortes na FAPESP

(Transcrevo abaixo o editorial do jornal O Estado de São Paulo, “Notas & Informações”, 12 de maio de 2024)

” O governo paulista ensaia medidas para realocar recursos das instituições de pesquisa e ensino superior. No projeto da Lei Orçamentária Anual de 2025, primeiro o governo previu redistribuir uma parcela de recursos da USP, Unicamp e Unesp para outras instituições. Logo depois recuou. Mas o projeto prevê a possibilidade de uma redução de até 30% do orçamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Esforços para racionalizar e otimizar a dotação de recursos são legítimos. Mas não é assim que se faz, com tesouradas abruptas, sem articulação com as partes interessadas nem um planejamento de longo prazo. Tanto mais numa área a um tempo tão estratégica e tão vulnerável quanto a formação e pesquisa universitárias.

Em comparação ao resto do mundo, o sistema paulista está longe de ser ótimo, mas no Brasil ele é, em geral, o melhor. Há décadas USP, Unicamp e Unesp são as universidades brasileiras mais bem posicionadas em rankings internacionais, e o apoio da Fapesp impulsiona o Estado na vanguarda das pesquisas nacionais.

É possível melhorar? Sem dúvida. O sociólogo Simon Schwartzman, um dos pesquisadores sobre educação mais qualificados do País, há anos apresenta diagnósticos e propostas de modernização com base nas melhores práticas internacionais.

Em artigo no Estadão, Schwartzman demonstra como o sistema atual é falho tanto do ponto de vista da cobertura e equidade quanto, na outra ponta, na manutenção e garantia de excelência. O ensino estadual público é o mais qualificado, mas só atende 11% dos alunos da graduação. As políticas de ações afirmativas introduzem um fragmento diminuto de alunos vulneráveis nesse sistema de elite. O resto é obrigado a pagar por uma formação de qualidade duvidosa em universidades privadas. Assim, a ideia de investir em outras instituições acessíveis e eficientes não é impertinente. Ao mesmo tempo, o modelo do funcionalismo público vigente nas universidades públicas perpetua uma burocracia rígida que dificulta alocação mais ágil de recursos e mecanismos meritocráticos de incentivo, necessários à formação e pesquisa de alto nível.

Schwartzman sugere três aspectos cruciais para se atingir um sistema a um tempo mais equitativo e excelente: um plano diretor prevendo parcerias com outros níveis de governo e o setor privado; um mecanismo de elaboração de orçamentos plurianuais que dê previsibilidade de recursos básicos, mas também preveja alocações condicionadas a metas de desempenho; e o fortalecimento da autonomia universitária, sobretudo na flexibilidade do uso de recursos e modelos de contratação e remuneração de professores.

São medidas que podem otimizar os recursos públicos aplicados no sistema universitário, gerar novas fontes de receita e eventualmente abrir espaço para realocar recursos em áreas mais vulneráveis, como o Ensino Básico. Mas o caminho para elevar esse sistema de bom para ótimo exige planejamento e reformas. Realocações e cortes abruptos podem até economizar dinheiro no curto prazo, mas têm tudo para causar graves prejuízos no longo prazo.”

Vinculação de recursos e autonomia universitária em São Paulo

(Publicado em O Estado de São Paulo, 10 de maio de 2024)

Desde 1989 que o Estado de São Paulo vincula 9.57% de sua arrecadação do ICMs para suas três universidades, em uma proporção fixa de 5,02% para a USP, 2,34% para a Unesp e 2,19% para a Unicamp. Este ano, o governo do Estado tentou incluir outras instituições estaduais nesta conta, mas voltou atrás depois dos protestos dos reitores. Esta vinculação tem sido defendida como garantia da autonomia financeira contra a instabilidade e as interferências de políticos que afetam, por contraste, as universidades federais.

Muitos dados têm sido apresentados como prova de que a autonomia tem funcionado, como o aumento da produção científica, as posições da USP e Unicamp nos rankings internacionais e a qualidade profissional dos formados pelas principais faculdades. Mas é difícil saber se estes bons resultados se devem à vinculação financeira ou a outros fatores como a disponibilidade de recursos e a maneira pela qual professores e alunos são selecionados, entre os mais qualificados do Estado mais rico do país. E ao lado dos bons resultados, existem outros,  preocupantes, que sugerem que o sistema público paulista não pode continuar acomodado.

O dado mais evidente, que mereceria maior atenção, é a cobertura extremamente reduzida do setor público estadual. No Brasil como um todo, em 2022, 78% da matrícula no ensino superior estava em instituições privadas. No Estado de São Paulo, esta proporção sobe para 84.3%. O setor estadual público só atende a 11% dos alunos de graduação, sendo 120 mil nas três universidades, para uma matrícula total de 2.5 milhões no Estado. O setor federal, menos de 3%. Isto é o resultado de uma política deliberada, de manter um sistema público pequeno e elitista, deixando o setor privado lidar com o resto? Não parece, dada a preocupação dos últimos anos com as políticas de ação afirmativa. Não seria mais justo, socialmente, investir mais dinheiro público em instituições de mais fácil acesso e mais eficientes e baratas, como as do sistema Paula Souza, a Universidade Virtual e em parcerias, proporcionando formação mais prática, gratuita e de boa qualidade para mais gente? E como combinar isto com a manutenção de qualidade da pesquisa e da formação de alto nível dos cursos mais tradicionais?

Se o sistema atual falha do ponto de vista da cobertura e equidade, ele também tem problemas na outra ponta, de manutenção e garantia da excelência. O processo de concursos públicos para escolha de professores é formal, burocrático e dificulta que as universidades recrutem professores com perfis adequados para suas necessidades. A rigidez e padronização das carreiras e salários faz com que muitas áreas não consigam mais competir com o setor privado e instituições internacionais pelo talento que seria indispensável  para dar continuidade às pesquisas de ponta e a formação de alto nível de que o país necessita.

Nestas questões, tenho ouvido o argumento de que o ótimo é inimigo do bom, e que é melhor manter a rigidez orçamentária conquistada 35 anos atrás do que abrir o vespeiro de sua revisão anual.  Mas seria lamentável se conformar com a ideia de que instituições com tantas qualidades não deveriam buscar novos caminhos. A reforma tributária, com o fim do ICMS, de qualquer maneira vai forçar uma revisão, e é melhor, para as universidades, sair à frente com novas propostas do que ser atropeladas.

Um novo modelo para o sistema estadual deveria contemplar pelo menos três aspectos.  O primeiro é elaborar um plano diretor que  tome em conta os objetivos  de médio e longo prazo que o setor público deve ter e as parcerias que precisa estabelecer com outros níveis de governo e o setor privado para aumentar a cobertura, a qualidade e as vocações das diferentes instituições na formação profissional, formação para o magistério, pesquisa e cultura. Deve ser um documento conciso, construído em diálogo com diferentes setores, que estabeleça um consenso básico sobre o que o Estado deve fazer. Há anos que o conhecido sistema da California, com seus community colleges, universidades estaduais de ensino e a pós-graduação e pesquisa concentrados na Universidade da Califórnia,  tem sido citado como um modelo que o Estado poderia adotar, e ainda pode servir de inspiração. O segundo é criar um mecanismo regular de elaboração de orçamentos plurianuais  com participantes e processos definidos que possa garantir estabilidade de recursos e espaço para aperfeiçoamentos e mudanças de rumos com metas  e indicadores de resultados conforme o plano diretor, e não, somente, das antigas vinculações. E terceiro, fortalecer ainda mais a autonomia universitária, sobretudo no que se refere à flexibilidade no uso de recursos, processos administrativos e  políticas de recrutamento, contratação e remuneração de professores, que não podem continuar a ser rígidos e idênticos para todas as instituições e áreas de atuação. 

Com isto, o sistema público paulista poderia de fato se tornar mais funcional e equitativo, e suas universidades poderiam finalmente entrar para o século 21, como todos desejamos.

A inflação de diplomas – 2

Meu artigo recente sobre o crescente descompasso entre a educação superior e o mercado de trabalho no Brasil provocou alguns comentários sobre aspectos importantes do problema que eu não teria como tratar nos limites de espaço de um artigo de jornal. Antônio Augusto Prates, meu colega sociólogo da UFMG, escreve que é o prestígio do diploma, mais do que a busca de qualificação profissional, que tem motivado tanto a procura por educação superior quanto as políticas públicas para o setor. Segundo ele,  “as pessoas estão dispostas a pagar pelas deficiências de formação profissional em troca do acesso à graus superiores na escala de prestígio social. Nesse caso é o mercado de bens simbólicos que afeta sobremaneira as decisões políticas sobre a expansão do ensino superior”.  Eduardo Oliveira Beltrame, cientista catarinense que hoje trabalha no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), menciona a referência que faço aos aspectos mais gerais da educação, como formação cultural, valores e capacidade de aprender, e  diz que,  ‘dada a aceleração das transformações pelas quais a sociedade e mundo passam nos últimos 150 anos, mas sobretudo nas últimas décadas (principalmente mudanças culturais, tecnológicas, ambientais, e os modos de vida decorrentes da nossa avassaladora urbanização), eu penso que estes outros aspectos da educação que transcendem a questão do mercado de trabalho são na verdade os mais importantes”.  E o sociólogo José Pastore, especialista em mercado de trabalho, em comentário enviado ao jornal O Estado de São Paulo,  chama a atenção para o fato de que, no Brasil, a grande maioria das ocupações não requer muita educação. “São ocupações simples, rudimentares, de baixos salários e muita rotatividade: balconistas, ajudantes, garçons, domésticas…”  A educação poderia ajudar mais se os empregos fossem de melhor qualidade, diz ele, mas “isso não mudará de repente porque é reflexo de nossa histórica estrutura de produção”.

Beltrame também pergunta por referências que tratam do tema da educação em sentido mais amplo, que vai além do mercado de trabalho. É importante, aqui, distinguir a educação básica, cujo objetivo é formação geral, da educação superior, em que o tema do mercado de trabalho é mais central, embora não seja o único. Participei alguns anos atrás de um grupo de trabalho de um projeto denominado “International Panel for Social Progress” que preparou um documento que apontava para quatro grandes funções da educação, a formação geral e humanística, a formação para a cidadania, a preparação para o mercado de trabalho e a busca de equidade. Existe uma tradução do texto para o português, e é uma tentativa de dar um panorama bem abrangente do tema, nos diferentes níveis e contextos (Spiel and Schwartzman 2018a; Spiel and Schwartzman 2018b). Sobre a educação superior e sua relação com o mercado de trabalho, recomendaria a visão comparativa proporcionada por Ulrich Teichler, o decano das pesquisas sobre educação superior, em artigo de 2018, entre outros ((Teichler 2018).

O texto de Teichler é importante pela visão comparativa que trás. É muito diferente falar de educação superior em países em que metade ou mais dos jovens chegam a este nível e em outros em que só uns poucos têm este privilégio; e é muito diferente falar em sistemas em que a educação superior está orientada para a formação geral, como nos “colleges”  ingleses, e outros em que ela está estruturada para proporcionar diplomas profissionais, como na tradição francesa que o Brasil herdou. Em todos eles existe sempre a dimensão  simbólica e de prestígio de que fala Prates, mas existe também a expectativa de que o “status” proporcionado pela educação superior traga outros benefícios, como empregos rentáveis e reconhecimento social.

O modelo de Bologna, adotado hoje pela maioria dos países da Europa Ocidental, consiste em levar a educação geral até os três primeiros anos da educação superior, e só a partir daí abrir o leque para a especialização profissional, através de mestrados e cursos mais avançados. O sistema de “colleges”, de educação geral, que o modelo de Bologna adota, tem como origem a experiência extremamente elitista das universidades inglesas e americanas de grande prestígio, como Oxford, Cambridge, Havard e Yale, adotado também pelos chamados “liberal arts colleges” como Amherst, Swarthmore e Wellesley nos Estados Unidos, e outros na Inglaterra como London, Birmingham etc.  São cursos para poucos, muito seletivos, e seus alunos têm acesso praticamente garantido a carreiras de alto prestígio e reconhecimento.  Mas não é nada claro que este modelo possa ser universalizado,  como pretende o processo de Bologna. Na Europa, ao lado das carreiras universitárias tradicionais, os países possuem também amplos sistemas de formação profissional, ou vocacional, que já começa no nível médio, e do qual participa a metade ou mais dos jovens. Nos Estados Unidos, boa parte dos jovens vai para os community colleges de dois anos, e não completam os quatro anos de formação geral. Os dados mais recentes, para a população americana entre 25 e 34 anos, mostram que 91% completam o ensino médio, mas só 38% completam o college de 4 anos, que é considerado como um título pré-universitário (“undergraduate”)[1]. Existam algumas tentativas de desenvolver cursos superiores de formação geral no Brasil, os chamados “bacharelados interdisciplinares”, mas são experiências limitadas e que ainda precisam ser melhor avaliadas.

Finalmente, o comentário de Pastore aponta para o fato, mencionado brevemente em meu artigo, de que a educação, sozinha, é incapaz de criar um mercado de trabalho de alta qualidade e produtividade, como supunha a teoria do “capital humano” desenvolvida pelos economistas da educação. Em muitos países, pessoas altamente qualificadas por universidades locais acabam imigrando para países em que o mercado de trabalho é mais atrativo, da mesma maneira que o capital gerado localmente acaba sendo investido no exterior.  A educação é importante, mas não é capaz de, sozinha, compensar pelas políticas econômicas, financeiras e institucionais inadequadas.

Tudo isto leva a questões importantes de como e quanto o país deve investir nos diferentes tipos e níveis educacionais.  Deveria ser claro que prioridade deveria ser o investimento na educação básica de qualidade, mas a pressão por investimentos em educação média e superior é sempre grande, e recentemente o governo anunciou a intenção de criar mais cem institutos federais de tecnologia, que, ao contrário do que se imagina, não formam pessoas com preparação adequada para o mercado de trabalho, e sim licenciados e bacharéis destinados em grande parte ao subemprego, como ocorre com grande parte dos formados no ensino superior tradicional.

Referências

Spiel, Christiane, and Simon Schwartzman. 2018a. “A contribuição da educação para o progresso social.” Ciência & Trópico 42(1):22-88.

—. 2018b. “The contribution of education to social progress.” Pp. 751-76 in Rethinking Society for the 21st Century, edited by International Panel for Social Progress: Cambridge University Press.

Teichler, Ulrich. 2018. “Higher education and graduate employment: Changing conditions and challenges.” International Centre for Higher Education Research: Kassel, Germany:7-33.


[1] https://data.census.gov/table/ACSST1Y2021.S1501?t=Educational+Attainment&g=010XX00US,$0400000&y=2021

Inflação de Diplomas

(Publicado em O Estado de São Paulo, 12 de abril de 2024)

Se há uma quase unanimidade no Brasil é que o país precisa de mais educação, e isto tem justificado um investimento cada vez maior no setor. Entre 2012 e 2023, a proporção de pessoas entre 18  e 40 anos com ensino médio completo ou mais passou de  53% para 71%, e com educação superior, de 11 para 19%. A estimativa é que, em 2018, o dado mais recente que consegui, o país tenha gasto 6.6% do PIB com os alunos da rede pública, dos quais 1.4% no ensino superior. E isto sem contar os gastos com aposentadorias e pensões de professores, bolsas de estudo, além do crédito educativo e Prouni, que beneficiam o ensino privado. É muito ou pouco? Afinal, ainda temos muita gente que não completou o ensino médio, e a educação superior deveria ser para todos. Vamos investir mais? Que tal gastar 10% do PIB, como aprovado, mas nunca cumprido, pelo Plano Nacional de Educação de 2014? Tirando de onde?

Antes de fazer isto, seria interessante refletir sobre um trabalho recente de pesquisadores do IPEA sobre a relação entre a educação e o mercado de trabalho no Brasil[1]. O que eles fizeram foi, com base na Classificação Brasileira de Ocupações, verificar qual o nível educacional requerido para cada uma delas – fundamental, média, superior – e depois, com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, verificar a proporção de pessoas que estão trabalhando em atividades abaixo, equivalente ou superior à sua formação, entre 2012 e 2022.

Os resultados são impressionantes. Nestes dez anos, a proporção de pessoas sobre-educadas, ou seja, com mais educação do que o requerido pelas ocupações que desempenham, passou de 26% para 37% do total, enquanto a de sub-educados, ou seja, pessoas trabalhando em atividades que requerem mais educação do que as que têm, caiu de 32 para 20%. É um caso claro de inflação educacional, em que se emitem cada vez mais títulos que o mercado de trabalho não tem como absorver. A maior parte dos sobre-ocupados são de nível médio, cerca 50%, mas a proporção entre os de nível superior também é alta,  pouco mais de 30%. Os dados mostram ainda que a grande maioria das ocupações existentes não requer muita educação.  Este quadro praticamente não se alterou nos últimos dez anos, exceto na indústria de transformação de alta tecnologia, em que há uma polarização, com mais trabalhadores de formação superior e de educação fundamental, e menos de educação média. Mas é um setor pequeno, com menos de 5% dos empregos.

Os autores não especulam muito sobre as razões deste quadro, exceto para dizer que ele deve ter sido afetado pelas crises no mercado de trabalho que vêm ocorrendo no Brasil desde 2015. Mas uma lição que podemos tirar é que não basta dar mais educação para que as pessoas se tornem mais produtivas.  Outra possível conclusão seria que se trata de um problema dos conteúdos da educação. Para obter um emprego compatível, não basta ter um diploma de nível médio ou superior, é necessário que este diploma esteja associado às competências que o mercado de trabalho requer. Mas, mesmo que esta associação exista, o mercado de trabalho tem uma lógica que depende de muitos fatores, dentre os quais a disponibilidade de recursos humanos qualificados é somente um – uma condição necessária, mas não suficiente.

A conclusão mais geral é que não faz sentido continuar aumentando os investimentos em educação de forma indiscriminada, isto só produz inflação de diplomas.  Além da grande frustração dos que não conseguem trabalhos condizentes com sua formação, existem os milhões que gastam tempo e dinheiro aprendendo coisas que nunca usam e  logo esquecem, os que abandonam seus cursos antes de terminar, e os que desistem e  saem cedo do mercado de trabalho, sobretudo mulheres.

 Claro que a educação tem outros objetivos além de preparar as pessoas para o trabalho –  formar pessoas mais cultas, mais solidárias, melhores cidadãos, com capacidade de aprender e lidar com uma sociedade em constante transformação. Mas, se as pessoas que se formam, sobretudo em nível superior, não conseguem trabalho compatível com seu nível de formação, e isso vem aumentando, algo está errado.  

Existe uma prioridade clara, que requer investimentos, que é a educação fundamental de qualidade, até os 15 anos de idade. É neste nível também que a questão das desigualdades deve ser enfrentada – não há política de ação afirmativa nem incentivo financeiro que consiga compensar as desigualdades de formação inicial. A partir daí, é necessário abrir espaço para caminhos alternativos, inovações e flexibilidade. A reforma do ensino médio, felizmente salva pelo Congresso em suas ideias centrais, pode contribuir para isto, se bem conduzida. E, no ensino superior e pós-graduação, é importante ser seletivo no uso de recursos públicos,  deixando de subsidiar sem maiores critérios as ilusões do diploma salvador, como se ele pudesse compensar pelas disfunções econômicas e institucionais que mantêm o país no atraso, e os jovens sem poder fazer uso de seu potencial.

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[1]Carvalho, Sandro Sacchet, e Maurício Cortez Reis. “Evolução da sobre-educação no mercado de trabalho no Brasil entre 2012 e 2022: primeiros resultados.” Boletim Mercado de Trabalho: Conjuntura e Análise. (IPEA), 2023.

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