Educação Técnica e Profissional: agora vai?

(Publicado em O Estado de São Paulo, 10 de outubro de 2025)

À esquerda e direita, todos parecem se preocupar com o tema da educação técnica e profissional. Em 1971 o governo militar concluiu que as escolas brasileiras só formavam bacharéis, e decidiu que todos os estudantes de nível médio teriam que ter uma qualificação profissional.  Depois tivemos o Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador – PLANFOR (Governo Fernando Henrique,1995), Plano Nacional de Qualificação – PNQ (Lula, 2003) e Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – PRONATEC (Dilma , 2011). Nada funcionou direito. Em 2017 tivemos a reforma do ensino médio, com um novo itinerário técnico de nível médio (Governo Temer), reformulada em 2024 antes de entrar em vigor, e agora temos o Programa de Expansão da Educação Nacional de Qualidade – PROPAG, que permite que os Estados destinem parte dos recursos de suas dívidas com a União para  ensino técnico, com valores que podem chegar a 12 bilhões de reais. Será que agora vai?

É fácil se perder em meio a tantas regras e programas que se sucedem, com cada Estado e redes escolares tomando iniciativas apontando para diferentes lados. Um pouco de luz pode surgir se olharmos  os dados, mas é preciso primeiro esclarecer do que estamos falando. Não se trata de formação nas áreas de ciências exatas, naturais e engenharias (STEM) em contraste com a formação em ciências sociais e humanidades. Isto é importante, mas é outro assunto. No Brasil, “educação técnica” é o nome que se dá aos cursos que levam a um diploma profissional de nível médio. Ter um diploma deste não impede que a pessoa continue estudando em nível universitário, mas, tipicamente, ele é destinado a pessoas que precisam entrar logo no mercado de trabalho. Quantas pessoas procuram este diploma, e quanto valem?

Pelos dados da PNAD contínua, em 2024, 26% da população jovem de 18 a 29 anos de idade tinha educação superior  e 46.8% educação média, cerca de 18.2 milhões. Destes, 1.4 milhões tinham concluído um curso técnico.  Outros 1.1 milhão tinham completado  um curso técnico e entrado no nível superior. A renda média mensal de quem tinha educação superior era de 3.880 reais; a de quem só tinha nível médio, 1.810 reais; e de quem só tinha  concluído um curso técnico, 2.105 reais.  Então, ter um diploma universitário aumentava a renda de quem só tinha nível médio em 114%; e ter um diploma técnico, em 11%. Um ganho ainda significativo, mas ilusório, porque há muito mais pessoas com diplomas técnicos do Sudeste, onde os rendimentos médios são mais altos. Em São Paulo, por exemplo, a renda média de quem tem nível médio era de 2.200 reais, sem diferença entre os que tinham ou não tinham diplomas técnicos. Outro dado significativo é que ter ou não ter diploma técnico não faz diferença em termos de conseguir emprego e trabalho formal ou informal, nestes tempos de pleno emprego.

Estas médias podem esconder diferenças importantes, e o curso técnico pode ser vantajoso por diferentes razões, se por, por exemplo, for mais acessível do que um curso médio regular, ou a pessoa precisar começar a trabalhar mais cedo, ou se preparar melhor para entrar em uma universidade. Um dos objetivos da lei de reforma do ensino médio de 2017 foi reduzir a carga de matérias obrigatórias, abrindo mais espaço para diferentes itinerários de formação, entre os quais técnicos, mas isto foi revertido pela reforma da reforma de 2024.

Apesar de todas a incertezas, as matrículas em cursos técnicos   aumentaram significativamente no Brasil desde então, passando de 1.7 para 2.3 milhões entre 2017 e 2024. Destes, um terço estão em escolas estaduais, e outro terço em escolas privadas. O terceiro terço é dividido em proporções parecidas entre os Institutos Federais, o Sistema S (SENAI, SESI) e o Centro Paula Souza, do Estado de São Paulo. Olhando para as áreas de formação, se nota que 60% dos alunos estão em cursos de Gestão e Negócios,  Ambiente e Saúde, e Informação e Comunicação, e mais 11% na área de produção industrial, que tem mais importância para o sistema S e institutos federais.

Uma possível explicação para o crescimento recente do ensino técnico é a expansão do tempo integral, que hoje cobre cerca de 20% das matrículas de nível médio nas redes estaduais. A maior parte do dia é dedicada às matérias obrigatórias, mas agora sobra espaço para itinerários técnicos e cursos não tradicionais de diferentes tipos, sobretudo em áreas que não requerem equipamentos especializados nem experiência efetiva de trabalho  supervisionado no setor produtivo, mais típicos de instituições especializadas como as do sistema S. Com os recursos que devem chegar pelo PROPAG, a oferta de cursos técnicos de todo tipo deve aumentar.

A dúvida é se isto trará os efeitos que se espera, tornando o ensino técnico mais difundido, acessível, de mais qualidade e mais relevante para quem o procura. Olhando no mundo em volta, o que observamos é uma prioridade crescente dada aos sistemas de aprendizagem em parceria com o setor produtivo, em detrimento da formação  técnica escolarizada; a ênfase em competências básicas digitais e tecnológicas ao lado de competências socioemocionais; maior integração entre a formação média e superior; itinerários flexíveis e individualizados; e sistemas especializados de certificação. Sem estas coisas, as matrículas podem inchar, sem produzir, no entanto, os resultados que se espera.

Associação Brasileira de Avaliação Educacional – ABAVE

Foi uma grande honra ter sido um dos homenageados da XIII Reunião da ABAVE – Associação Brasileira de Avaliação Educacional, no dia 8 de setembro de 2025, na FIESP em São Paulo, que constou de uma saudação do professor Robert Verhine, da Universidade Federal da Bahia, e minha resposta. Para quem tiver interesse, o vídeo e a transcrição editada das apresentações estão disponíveis neste link.

As duas Américas

(Publicado em O Estado de São Paulo, 12 de setembro de 2025)

No Brasil é comum olhar para os Estados Unidos como um exemplo que deveríamos seguir, ainda que sabendo muito bem de seus problemas. Além de desenvolvido, é – ou era, até Donald Trump – um lugar onde imperavam as leis, as instituições eram respeitadas, a economia era dinâmica, a ciência e a educação eram estimuladas, existiam políticas para lidar com os problemas de desigualdade e pobreza, e, na política internacional, procurava combinar o interesse próprio com políticas de cooperação e apoio a valores como a democracia e os direitos humanos. Destes valores, o único que parece ainda valer para Trump é o do dinheiro, cada vez mais concentrado. Em seu livro  recente sobre a história das relações entre os Estados Unidos e América Latina  (America, América – A New History of the New World, Penguin, 2025), o historiador Greg Grandin procura mostrar que, longe de ser uma anomalia, as políticas de Trump  dão continuidade a uma longa história de violência interna e imperialismo. A única exceção teria sido o período que vai do início do New Deal de Franklin Roosevelt, em 1933, até o fim da Segunda Guerra, quando os Estados Unidos, graças à influência da América Latina, desenvolve políticas internas em favor da população mais necessitada e apoia a criação  de uma nova ordem internacional com as Nações Unidas.

Para Grandin, ao invés de olharmos para o Norte como modelo, eles é que deveriam aprender conosco. Tanto os países da América do Sul quanto do Norte foram formados através de um terrível processo de escravização ou extermínio das populações locais, mas os latinos teriam tido uma vantagem moral, que era o reconhecimento, por parte de religiosos como  Bartolomé de Las Casas, que os indígenas eram seres humanos com direitos a serem respeitados, o que os ingleses não aceitavam. Graças a isto, os latinos teriam organizado sociedades complexas e inclusivas, ainda que fortemente hierarquizadas, enquanto os Estados Unidos levavam ao extremo as políticas de genocídio da população nativa e discriminação racial.  

Mais tarde, nos anos da independência, Simon Bolívar defendeu o direito  das novas nações à autonomia e, cada vez mais, à convivência pacífica de acordo com um novo direito internacional, noções que acabaram sendo incorporadas, em parte, na carta das Nações Unidas (a doutrina de Monroe de 1823, interpretada muitas vezes como o embrião de um sistema de cooperação internacional, teria sido na verdade uma manifestação da pretensão de domínio norte-americano sobre a região, em oposição às potências europeias). Teria sido na América Latina, também, e sobretudo com a revolução mexicana, que surgiram e se desenvolveram as ideias dos direitos e políticas sociais na região, incluindo o da reforma agrária, muitas das quais aceitas e incorporadas às políticas americanas do New Deal.

Quando, com a guerra fria, os Estados Unidos decidem investir pesadamente na reconstrução da Europa através do Plano Marshall, eles deixam para trás a “política de boa vizinhança” de cooperação com os países da região, apesar dos protestos de empresários como o brasileiro Roberto Simonsen. Reduzidos à condição de exportadores de matérias primas,  os países latino americanos ficam condenados ao subdesenvolvimento, como teria sido  demostrado pelos trabalhos de Raul Prebisch,  da CEPAL no Chile, e dos outros autores que desenvolveram a chamada “teoria da dependência”.

Há muito o que aprender nas quase 800 páginas deste livro, mas me parece que a ênfase nas doutrinas e nas relações internacionais acaba levando a um entendimento distorcido tanto da realidade da América Latina quanto à dos Estados Unidos. É na maneira pela qual as sociedades se constituem e funcionam internamente, mais do que nas relações que mantêm com o exterior ou as doutrinas de alguns de seus políticos e intelectuais, que devem ser buscadas as explicações de seus sucessos e fracassos. Não é que o imperialismo norte-americano não tenha existido e que muitos países, na América Latina e outras partes, não tenham sofrido com suas manifestações mais truculentas. Mas os Estados Unidos sempre foram um país voltado sobretudo para seu interior, receptivo aos imigrantes, parecido, neste aspecto, com o Brasil, que aliás aparece pouco no livro.  O processo de ocupação da América Latina, através de plantations e grandes empreendimentos comerciais associados aos impérios português e espanhol, com grande concentração de riqueza nas mãos de poucos, foi muito diferente do norte-americano, baseado em colonos que se instalavam e se organizavam com autonomia. 

Mas o passado não é destino, e alguns países e regiões, mais do que outros, conseguiram se constituir em sociedades mais democráticas e capazes de gerir seu próprio destino, enquanto outras mal conseguem sair do círculo vicioso do autoritarismo e da estagnação. Apesar dos exageros, não há como não concordar com Grandin quanto à importância de valores como igualdade, direitos sociais e respeito à autonomia dos países em administrar seus próprios interesses, sem falar na valorização dos princípios e procedimentos legais.  Felizmente, estes valores existem e persistem nas duas Américas, com boa chance de voltarem a prevalecer.

O ensino superior privado no Brasil

O Brasil tem hoje quase 80% dos estudantes de ensino superior no setor privado, em sua maioria em cursos a distância oferecidos por grandes grupos empresariais. Um texto ainda preliminar, em inglês, historiando sua evolução, descrevendo os diferentes tipos de instituições privadas e comparando as do setor privado com o público está disponível neste link do site do Instituto de Estudos de Política Econômica. Comentários, críticas e sugestões de melhoria são muito bem-vindas.

A expansão do setor privado começou após a reforma universitária de 1968, ganhou força nos anos 1990, quando o governo liberou instituições com fins lucrativos, e explodiu nos anos 2000, graças aos programas como PROUNI e FIES.

O resultado foi um sistema massivo, diverso e desigual. Há universidades confessionais e comunitárias, faculdades de elite em cursos seletivos e instituições de massa, focadas em diplomas rápidos e baratos. Desde 2015, a crise econômica reduziu os financiamentos públicos e acelerou a migração para o ensino a distância, que já responde por quase três quartos das novas matrículas.

Mas os desafios são enormes. Altas taxas de evasão, qualidade irregular, baixa eficiência e desigualdade entre carreiras colocam em xeque o modelo atual. Cursos de Medicina privados se multiplicam, a formação de professores está dominada pelo ensino remoto e a maioria dos estudantes se concentra em áreas de baixo retorno no mercado de trabalho.

Em 2025, novas regras do MEC limitaram fortemente o ensino a distância — proibindo, por exemplo, que Medicina e Direito sejam oferecidos online. Isso deve reduzir milhões de matrículas e encarecer o acesso, afetando sobretudo os mais pobres.

O estudo conclui que estamos chegando ao fim de um ciclo de expansão. O futuro dependerá de como equilibrar qualidade, acesso e sustentabilidade — num mundo em que a inteligência artificial, a automação e a queda do valor dos diplomas exigem formatos mais flexíveis, como microcredenciais, aprendizagem contínua e parcerias com empresas.

👉 O desafio é claro: garantir que o ensino superior não seja só um grande negócio, mas um caminho real de mobilidade social e formação de competências para o século XXI.

O Cisne Vermelho

(Publicado em O Estado de São Paulo, 8 de agosto de 2025)

Cisnes negros, na imagem criada por Nassim Taleb (The Black Swan: The Impact of the Highly Improbable. Random House, 2007), são fenômenos inesperados, como uma crise financeira ou a pandemia do Covid, que forçam pessoas, empresas e instituições a buscar novos caminhos. Cisnes vermelhos são previsíveis, mas afetam de maneira tão profunda os hábitos e as rotinas que as pessoas preferem fingir que não existem, até que seja tarde demais.  É esta a imagem que os irmãos Silvio e Luciano Meira usam para descrever o impacto da inteligência artificial na educação brasileira, em um conciso e importante documento cujo título já diz tudo  (Inteligência Artificial na Educação: Ruptura Paradigmática em um Sistema em Crise Crônica, Recife, tds.company, 2025).

“Ruptura Paradigmática” é um termo complicado para descrever uma situação em que, daqui por diante, tudo será diferente. Os sistemas educacionais, com suas escolas e universidades, foram criados como instituições destinadas a transmitir conhecimentos, de forma semelhante aos sistemas fabris inventados séculos atrás, em que as pessoas são agrupadas em turmas homogêneas e trabalham para incorporar pacotes de conhecimento organizados por especialidade e nível de dificuldade. O que a inteligência artificial faz é tornar todos estes conteúdos misturados e facilmente acessíveis, de forma quase imediata e a um custo mínimo para o usuário.

Em certo sentido, os sistemas de IA são como os antigos dicionários, enciclopédias e manuais, que colocavam os conhecimentos à disposição de quem sabia pesquisá-los.  Um advogado, por exemplo, não precisa memorizar todas as leis e jurisprudência em sua área de especialidade, mas deve ter uma mapa mental dos principais textos legais e dos princípios que inspiraram sua construção, de tal forma que ele saiba buscar, em cada situação, as leis que se aplicam, os recursos que pode dispor, e como organizar os argumentos, conhecimentos e informações para cada situação. Com os modelos de linguagem da inteligência artificial, ele pode perguntar que leis se aplicam a cada caso, quais os princípios gerais ou filosofias jurídicas que embasam estas leis, se existem controvérsias na jurisprudência, quais as melhores linhas de defesa para seus clientes, pedir que tudo isto seja condensado na forma de uma petição ou arrazoado legal, e ter a resposta detalhada e pronta em alguns segundos. Isso vale para uma engenheira que precisa projetar uma ponte, ou uma decoradora que precisa mobiliar uma casa: basta saber pedir e o projeto já vem pronto, ou quase.  E nem precisa fazer a pergunta por escrito:  é só dizer o que se quer, em qualquer língua, que o modelo transcreve, redige de forma correta, e traduz da língua que for. No limite, nem saber escrever é necessário. Será preciso ainda  ser um advogado, engenheiro ou decorador formado em cinco anos para fazer estas coisas, já que o conhecimento agora é uma “commodity” barata e acessível a qualquer um?   

Uma resposta frequente, mas equivocada, é dizer que a educação deve se preocupar agora com as competências, e não mais com o conteúdo dos conhecimentos. Ocorre que não existem competências sem conteúdos.  Quando nossos avós decoravam poesias ou repetiam exercícios de matemática, eles adquiriam ao mesmo tempo as competências e os conhecimentos de literatura, linguagem e sistemas numéricos.  Um possível caminho, indicado no livro dos irmãos Meira, é o aprendizado baseado em problemas e projetos, em que as pessoas aprendem a fazer perguntas importantes e avaliar as respostas dadas pelos sistemas de Inteligência artificial, que muitas vezes podem se perder em alucinações.

Mas ainda não sabemos bem como fazer isto, e não há consenso sobre o impacto que a inteligência artificial terá. Nossas escolas e universidades, que mal conseguem fazer o feijão com arroz da formação básica, já precisam dar meia volta e procurar novos caminhos para formar para um sistema de profissões e um mercado de trabalho que ninguém sabe como será. Silvio e Luciano Meira, em seu texto, propõem o que denominam de uma “estratégia proativa e soberana”  para enfrentar o desafio, ao longo de  quatro grandes eixos:  1) requalificação e empoderamento docente no uso das novas tecnologias; 2) reforma curricular e avaliativa radical, com ênfase em competências; 3) criação de uma infraestrutura pública de IA para a educação; e 4) governança ética e fomento à pesquisa.  São propostas importantes, com desdobramentos que merecem ser vistos no detalhe. No entanto, não dá para ser muito otimista, com tantos cisnes de tantas cores que temos pela frente, e o fracasso de tantos planos nacionais e estratégias de longo prazo. O mais realista parece ser aprender com os erros da política nacional de informática de meio século atrás e dar prioridade desde logo ao aprendizado no uso dos novos recursos tecnológicos que estão surgindo, por quem tiver condições de tomar a iniciativa e servir de exemplo para os demais.  De baixo para cima, sem barreiras e sem esperar que a grande estratégia nacional e soberana se materialize.

O ataque às universidades

(Publicado em O Estado de São Paulo, 11 de julho de 2025)

As universidades de pesquisa dos Estados Unidos estão entre  as melhores do mundo, segundo as diversas avaliações internacionais, graças à qualidade da pesquisa, à formação que dão a seus estudantes e seu impacto da economia e na sociedade.  Só as universidades de Harvard, Chicago e Berkeley têm cada uma mais de cem  ganhadores de Prêmio Nobel, entre professores e ex-alunos. Graças às parcerias que estabelecem com empresas e governos, são corresponsáveis pelas principais inovações científicas nas áreas de saúde, engenharia e computação, e seus departamentos de economia, ciências sociais e literatura são fontes permanentes de novas ideias e intepretações sobre a sociedade e a cultura.  Não é à toa que tantos países tratam de copiar seu modelo, com suas escolas de pós-graduação, parcerias com o setor produtivo e formas modernas de gestão, e que estudantes de todo o mundo compitam para  estudar lá. E, no entanto, elas estão sendo violentamente atacadas pelo governo de Donald Trump, que as acusa de discriminar contra os que não concordam com as doutrinas que propagam; discriminar contra americanos brancos, em detrimento de estrangeiros e membros de supostas minorias; e de antissemitismo, por permitirem que professores e alunos se mobilizem contra as políticas do governo de Israel em Gaza. Além disto, são acusadas de gastar mal o dinheiro que recebem e não pagar os impostos que deveriam.

O ataque de Trump às universidades é claramente parte de uma ideologia populista, anti-intelectual e anticientífica que não é muito diferente das acusações que o governo Bolsonaro fazia às universidades brasileiras. O sociólogo Jonathan F. Cole, professor e ex-reitor da Universidade de Columbia, escreveu um artigo recente no New York Times denunciando as ações de Trump como um ataque fundamental aos valores e funcionamento do sistema universitário, e criticando Columbia por ter cedido às exigências do governo. Em contraste, a recusa de Harvard em se submeter tem sido amplamente elogiada como a única atitude possível contra esta interferência desmedida.

Não basta, no entanto, criticar a extrema direita, é necessário também olhar para dentro e se perguntar em que medida as universidades também não têm alguma responsabilidade pelos ataques que estão sofrendo. O próprio Cole, em um livro de 2019, The Great American University, falava sobre a necessidade de lidar com as dificuldades das universidades que ele tanto admirava. Uma delas era enorme concentração de recursos, prestígio e poder nas instituições de elite, criando uma grande frustração entre os milhões de estudantes  que disputavam todos os anos suas poucas vagas, e milhares de professores e pesquisadores talentosos que se candidatavam inutilmente para seus postos acadêmicos.  Outro problema era a grande dependência das universidades em relação dos financiamentos que recebiam dos governos e empresas, fazendo com que se tornassem suscetíveis a interferências em sua autonomia. E criticava ainda o halo de invencibilidade em que viviam as universidades, fazendo com que não respondessem de forma adequada às críticas que recebiam.

Os problemas de elitismo e ameaças à autonomia não têm solução simples, porque se referem a dilemas fundamentais das universidades em qualquer parte do mundo. Universidades são, por natureza, instituições meritocráticas, voltadas para valorizar o desempenho de seus alunos e professores, e  ciosas da superioridade do conhecimento técnico e científico que produzem e transmitem.  O mérito, no entanto, nunca depende somente da inteligência e empenho das pessoas, mas vem também associado às origens e condições de vida de cada um, e o conhecimento acadêmico não é absoluto e tem sido contestado de diferentes maneiras. Para grande parte da população em qualquer país, há a sensação de que as grandes universidades não são para elas, e que as pessoas que elas formam, e as ideias que elas difundem, incluindo a ciência que produzem, não merecem o crédito e o reconhecimento clamam ter.

O dilema da autonomia tem a ver com  o fato de que, por um lado, as universidades são instituições que atuam na fronteira do conhecimento, e por isto mesmo não podem ser cerceadas, naquilo que fazem, por interesses ou motivações externas de outra natureza. Mas ao mesmo tempo, quanto melhores são, mais dependem de financiamentos externos para se manter, e mais suscetíveis se tornam a que estes interesses tentem determinar como elas devem funcionar.  

Com razão, o que mais incomoda as universidades não são as críticas que recebem, que podem até ser cabíveis em alguns casos, mas a forma pela qual o governo  vem buscando intervir e retirar delas a responsabilidade por resolver seus próprios problemas. O grande desafio das universidades é aprender a lidar com estes dilemas. Se renunciarem a seus valores centrais do mérito e autonomia, elas perdem a razão de ser.  Se não aprenderem a lidar com seus problemas, dilemas e limitações, correm o risco de ser atropeladas.

O novo ensino à distância

(Publicado em O Estado de São Paulo, 23 de junho de 2025)

Depois de muita expectativa o Ministério da Educação divulgou as novas regras para o ensino superior à distância, que proliferou enormemente desde 2015, chegando a quase metade das matrículas.  São cursos baratos, apropriados para quem mora em lugar distante e precisa trabalhar. Mas havia a sensação de que muitos se graduavam sem de fato aprender, sem falar nos que desistem pelo caminho.

As novas regras definem três modalidades de ensino: (1) presencial, com professores e alunos no mesmo lugar; (2) “presencial síncrona mediada”, à distância, mas com os alunos podendo interagir com professores ou tutores; e ( 3) à distância propriamente dita, em que as aulas podem estar gravadas e acessadas a qualquer momento. E define também três tipos de curso, pela combinação destas modalidades: presencial, com pelo menos 70% de aulas presenciais; semipresenciais, com pelo menos 30% de aulas presenciais e mais 20% de aulas síncronas mediadas; e à distância, com pelo menos 10% de aulas presenciais e 10% de aulas síncronas mediadas. Além disto, elas exigem que cinco cursos – direito, medicina, odontologia, psicologia e enfermagem – sejam obrigatoriamente presenciais, e que  os demais cursos na área de saúde e de  formação de professores não sejam à distância (podem ser presenciais ou semipresenciais). Além disto, existem novas regras sobre requisitos e qualificações do corpo docente,  funcionamento das sedes  e polos de educação à distância, formas de avaliação dos alunos e parcerias.

O impacto mais direto destas novas regras será a redução drástica do número de alunos em cursos à distância, sobretudo no setor privado: de 4,9 milhões em 2023 para 2.8 milhões pelas novas regras, com 217 mil indo para cursos presenciais e 1.9 milhões para a nova modalidade semipresencial.  O gráfico acima compara a situação atual, com os dados mais recentes do censo do ensino superior de 2023, com com a que seria pelas novas regras, previstas para quando o novo sistema estiver em vigor, em 2026

Mas os custos desta mudança, somado aos das novas exigências, serão muito altos, e farão com que muitos cursos se tornem inviáveis tanto para alunos quanto para as instituições. Isto se refletirá, certamente, em uma queda significativa no número de estudantes matriculados no ensino superior, afetando sobretudo os mais pobres. Mas pode ser um preço a pagar se o resultado for um sistema de educação superior de melhor qualidade.

A dúvida é se esta nova regulação produzirá, de fato, este resultado desejável. O Ministério da Educação estabeleceu um período de dois anos de transição para as novas regras e um sistema complexo de credenciamento ou recredenciamento dos cursos através de inspeções locais, para verificar se os novos requisitos estão sendo cumpridos, a ser realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (INEP) a serviço da  Secretaria de Regulação do Ensino Superior (SERES). A experiência destas agencias com este tipo de supervisão não tem sido boa, com queixas repetidas sobre a morosidade, burocratização e falta de coerência no uso dos critérios adotados, e não há nenhuma indicação de que elas farão um trabalho melhor desta vez.   

Mas existe um problema de fundo mais geral, que é a ideia de que a qualidade da educação possa ser assegurada pelos seus processos, e não pelos resultados. No Brasil sempre prevaleceu a ideia de que, se o governo aprovar a forma em que os cursos são dados, especificando tempos, características dos professores, instalações e currículos detalhados, os diplomas que as instituições dão aos alunos estarão automaticamente garantidos. Isto pode ter funcionado em certa medida no passado, mas hoje é claro que o importante é que os estudantes sejam certificados individualmente por agências indendentes, sobretudo para o exercício de profissões de impacto na vida ou patrimônio das pessoas, como no Direito e nas profissões médicas. No Direito, aliás, esta certificação já existe com o Exame da OAB, e não fica clara a razão pela qual o Ministério resolveu que estes cursos precisam ser necessariamente presenciais.

Como na frase famosa de Deng Xiaoping, não interessa a cor do gato, desde que ele coma o rato.  Parece razoável a presunção de que mais contato direto de professores com alunos é melhor do que menos, mas as novas tecnologias podem ser muito mais eficazes na transmissão de conhecimento e acompanhamento individualizado da aprendizagem do que aulas convencionais, sobretudo em cursos noturnos que foram em grande parte substituídos pelo ensino à distância. Problemas de qualidade ocorrem em qualquer modalidade de ensino, e têm mais a ver com a má formação com que os alunos entram na universidade, currículos inadequados e deficiências dos professores do que com questões formais. Por mais que o Ministério da Educação tenha avançado na identificação de boas práticas de ensino à distância, este é um campo que vem se transformando a cada dia, e uma norma que possa parecer razoável hoje, como o máximo de 70 alunos para cursos mediados à distância, pode se tornar obsoleta amanhã, se já não o é.

Não se trata de abandonar completamente a regulação da oferta, mas de colocar cada vez mais ênfase na avaliação dos resultados, que, uma vez conhecidos, vão afetar necessariamente a forma em que os cursos são oferecidos, sem que a burocracia tenha que estar sempre correndo atrás das mudanças que ocorrem no mundo real.

O Futuro da universidade

(Publicado em O Estado de São Paulo, 9 de maio de 2025)

Não deve ter sido por acaso que,  na mesma semana, fui convidado para dois seminários sobre o mesmo tema, o futuro da universidade. A primeira coisa que digo sobre isto é que “a universidade” não existe, o que existe são milhares de instituições diferentes, desde grandes universidades com pesquisa, cursos de pós-graduação e milhares de estudantes, geralmente públicas, até gigantescas empresas com centenas de milhares de estudantes em cursos à distância, passando por um sem-número de pequenas faculdades isoladas com cursos noturnos em educação, administração ou saúde. Existem as públicas, gratuitas e financiadas pelo governo federal e alguns estados, e as privadas, algumas religiosas ou de orientação comunitária, e a grande maioria com fins de lucro.  Estamos falando de que?

Mas existe também, na cabeça das pessoas, uma ideia difusa de “universidade” como um lugar para onde os jovens vão no início da vida adulta, aprofundam seus conhecimentos, vivem a cultura da juventude,  criam redes de relacionamento que vão levar para toda a vida, e adquirem uma profissão que vai lhes dar um lugar seguro e muito mais rentável do que o de seus pais, se de famílias mais pobres, ou semelhante aos deles, se de famílias mais ricas e educadas. Quando milhões de jovens, todo ano, se inscrevem no ENEM, é esta ideia que estão perseguindo, embora saibam que poucos conseguirão a nota necessária para entrar em uma carreira de prestígio em uma boa universidade. Quando, depois, muitos dos que sobraram se inscrevem em cursos  baratos à distância, onde é mais fácil conseguir um diploma, é ainda a ilusão das carreiras universitárias que perseguem, embora  a maioria acabe abandonando os cursos ou só consiga um trabalho precário e mal pago.

A incerteza sobre o futuro da universidade é a incerteza  crescente sobre esta ideia difusa, que reflete a incerteza sobre o futuro do país. Apesar das imensas desigualdades, predominava no Brasil até recentemente a sensação de que as coisas iam melhorar para todos, que amanhã seria melhor do que hoje, que a vida de nossos filhos seria melhor do que a nossa.  Esta sensação vinha da grande mobilidade econômica que social durou, com altos e baixos, até dez anos atrás, e que se interrompeu com a crise econômica e a desilusão com  governos, partidos políticos e instituições. Investir a longo prazo em uma carreira, esquentar a cadeira aprofundando conhecimentos, construir uma reputação profissional pelo trabalho sério e responsável, tudo isto perde sentido quando comparado com a fascinação do estrelismo prometido pelos meios de comunicação, o enriquecimento pela tacada de um grande negócio ou os números corretos na Mega Sena, e as certezas simples de entender disseminadas pelos influenciadores da Internet.

O que mais se ouve, conversando com professores universitários, é como os estudantes de hoje são apáticos, mal cumprem as obrigações escolares, e são muito mais ligados a suas redes de Internet do que ao que dizem seus professores. Pesquisas mostram que um terço dos jovens, no Brasil, gostariam de mudar para outro  país. Existem hoje mais de 4 milhões de brasileiros no exterior, comparado com 3 milhões dez anos atrás e menos de um milhão no ano 2000.

A incerteza, no entanto, vai além da estagnação do país e da apatia da juventude. A ideia de que as universidades, primeiro as públicas, depois as privadas, se aproximariam ao modelo tradicional, e que seriam acessíveis a todos, está cada vez mais distante, com 80% das matrículas em instituições privadas e mais da metade em cursos à distância.  Instituições públicas mal conseguem recursos para pagar salários a seus professores e manter os prédios que ocupam.  Poucas conseguem manter pesquisa e programas de pós-graduação de qualidade, e a distância entre a pesquisa brasileira e a dos países de ponta só aumenta. No setor privado, o espaço das instituições comunitárias e religiosas, criadas com a intenção de influenciar a sociedade com seus valores, vem diminuindo, na concorrência com os grandes conglomerados de ensino que dificilmente vão além de cursos empacotados nas profissões sociais mais simples e baratas de ministrar. E, com os novíssimos recursos da inteligência artificial, ninguém sabe mais o que, como e para quê ensinar.

As instituições de ensino superior, em suas diversas formas e com todas as suas dificuldades, não vão desaparecer, porque o mundo depende cada vez mais de conhecimentos e competências, e a capacitação intelectual e profissional continuará sendo a grande porta de entrada para a vida dos países, instituições e pessoas. Elas precisam, no entanto, se reinventar. Esta reinvenção passa por novos tipos e cursos e carreiras, novas formas de ensinar, novas maneiras de buscar recursos, e novos e mais relevantes temas para pesquisar. Para isto, elas contam com um recurso precioso, que é o capital intelectual de seus professores e a tradição de autonomia e audácia intelectual que muitas vezes acabaram perdendo, pelo peso da rotina, da burocracia ou dos resultados de curto prazo. É por aí que passa o futuro, se ele não trouxer mais desilusões.

O CONAES e os rankings bizarros do INEP

Você sabia que as três melhores instituições de educação superior do Brasil são a Universidade de Campinas, a Universidade de Brasília e a Faculdade FIA de Administração e Negócios de São Paulo, segundo o INEP? Hein?!

Por três anos, entre 2017 e 2019, participei da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior do Ministério da Educação (CONAES), instituída pela lei de 2004 que criou o Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior que o INEP tem a responsabilidade de implementar. Pela lei, o CONAES deveria ser o responsável por definir diretrizes e critérios para a avaliação do ensino superior no país. Em julho de 2019 o CONAES aprovou uma resolução, a partir de um parecer que preparei, pela qual o INEP deveria deixar de publicar o “Conceito Preliminar” e o “Índice Geral de Cursos” que usa para fazer estes rankings, que não fazem nenhum sentido, por misturarem de forma arbitrária dados incompatíveis. Para quem se interessar pelos detalhes, o parecer está disponível aqui.

Em seu lugar, o INEP poderia continuar divulgando de forma separada os diversos indicadores que usa para estes cálculos, enquanto não se estabelecesse uma alternativa ao obsoleto SINAES. O INEP, simplesmente, ignorou a resolução do CONAES, como continua fazendo, deixando evidente que o Conselho havia perdido totalmente sua função original.

Para uma revisão mais profunda do SINAIS, o Ministério da Educação concordou em pedir a colaboração da OECD para proceder a uma avaliação externa, a partir das boas práticas internacionais, e propor alternativas. Para subsidiar a OECD, foi feita uma análise minuciosa sobre o sistema existente, que foi aprovada pelo MEC e está disponível aqui. Além do documento que preparamos, o trabalho da OECD deveria se basear em um ciclo de visitas e entrevistas com diferentes setores ligados ao ensino superior no Brasil, que foram feitas, e um seminário para apresentação de uma versão preliminar no relatório, abrindo espaço para uma ampla participação no processo de revisão do SINAES. Este seminário deveria ser promovido pelo INEP, que, no entanto, preferiu reduzi-lo ao mínimo.

O relatório final da OECD foi publicado nos últimos dias do governo de Michel Temer, e está também disponível aqui. Na época o INEP publicou uma nota crítica se queixando de ter-lhe sido negada a possibilidade de avaliar o relatório e contribuir para sua elaboração, embora tenha recebido a tempo a versão preliminar e tenha tido a responsabilidade de organizar o seminário de discussão do documento. A nota do INEP, com suas críticas, pode ser vista aqui.

Nos quatro anos do governo Bolsonaro o tema da avaliação do ensino superior brasileiro foi abandonado, e agora o “Conceito Preliminar” e o “Indice Geral dos Cursos”, como zombis, voltam a nos assombrar. Até quando?

O novo Sputnik

(Publicado em O Estado de São Paulo, 11 de abril de 2025)

Em 1957, os Estados Unidos tomaram um susto quando souberam que a União Soviética havia lançado o primeiro satélite ao espaço, indicando que o sistema de ciência e tecnologia soviético poderia ter superado o americano.  A superioridade americana que havia se consolidado depois da Segunda Guerra se apoiava em pelo menos três pilares. Primeiro, na big science, a capacidade de investir e coordenar conhecimentos, recursos humanos e materiais em grande escala, no projeto da bomba atômica e, mais amplamente, na tecnologia militar. Segundo, na política apoio às ciências em todos os seus aspectos, estabelecida no documento liderado por Vanenevar Bush que ficou conhecido como Science, the Endless Frontier, que incluía desde o apoio à pesquisa básica nas ciências naturais, sociais e humanidades, sem objetivos imediatos, com destaque para a pesquisa universitária e instituições como a National Science Foundation, até a ciência aplicada na área da saúde e outras. E terceiro, no fortalecimento da cooperação entre universidades, governo e indústria, que consolidou os Estados Unidos como o país mais avançado na pesquisa, na produtividade econômica e na educação superior, atraindo talentos de todo o mundo.

Como explicar que a União Soviética tivesse passado à frente? O que os russos fizeram foi levar ao extremo um modelo extremamente concentrado e centralizado de investimento de recursos e talentos em seus projetos militares de big science, provavelmente em escala semelhante à americana, mas sem seus dois outros componentes, um sistema universitário aberto e vigoroso e um setor produtivo independente capaz de absorver e multiplicar as inovações tecnológicas que surgiam. O fracasso da pesquisa agrícola, sufocada pela recusa ideológica em aceitar os avanços da pesquisa genética mendeliana, deixou claro seus limites.  A reação americana ao choque do Sputnik foi reforçar a política de ciência sem limites, e em pouco tempo o país havia não somente superado a União Soviética na corrida espacial, como consolidado sua liderança nos outros dois componentes, como uma sociedade aberta e plural.

O novo Sputnik surgiu aos poucos, com o inesperado sucesso da indústria japonesa nos anos 70, e depois da  Coreia do Sul, até a década de 90. De repente, os americanos perceberam não só que as fábricas japonesas e coreanas de eletrônicos e depois automóveis eram mais eficientes, como que seus produtos eram melhores, e a custos muito mais baixos. Diferente dos Estados Unidos, os novos “tigres asiáticos” investiam quase nada em ciência básica, e suas universidades se dedicavam sobretudo à formação de técnicos especializados. Ao invés de grandes projetos estatais, desenvolviam forte parceria entre o governo e conglomerados de empresas privadas no desenvolvimento de indústrias de bens de consumo para o mercado internacional. No início, os americanos tentaram copiar os métodos dos asiáticos, como por exemplo na adoção de sistemas de produção just-in-time e círculos de qualidade, mas aos poucos foram entendendo que a melhor alternativa era estabelecer parcerias comerciais e industriais com estas economias em ascensão.

Mas é com a China, a partir da década de 2000, que o novo Sputnik mostra sua força. Igual à antiga União Soviética e os Estados Unidos, ela desenvolve uma ciência estatal de grande porte na área militar, espacial e de infraestrutura. Igual aos tigres asiáticos, abre espaço para um setor empresarial privado que se beneficia de parcerias e apoio governamental para produzir em grande escala para o mercado internacional,  com produtividade  e qualidade crescentes. E, igual aos Estados Unidos do pós-guerra, expande seus investimentos em educação superior e pesquisa básica em quantidade e qualidade. No início, como com a União Soviética no passado, os Estados Unidos imaginaram que o sucesso da China se devia à espionagem e pirataria da tecnologia americana. Hoje é obvio que, ainda que isto possa ter existido, e que os Estados Unidos ainda mantenham a liderança em muitas áreas de alta tecnologia, a China já é a potência dominante em produção industrial e em muitas áreas de tecnologia aplicada, sem falar em sua consolidação como potência militar.

Desta vez, no entanto, ao invés reforçar suas qualidades e procurar se integrar a um novo cenário internacional mais competitivo, o  que vemos por parte dos governos americanos é uma dupla reação negativa. Por um lado, fechar sua economia e tentar reprimir a expansão da China, negando acesso a tecnologias avançadas e impondo barreiras a seus produtos. Por outro, internamente, concentrando poder político e econômico em alguns segmentos do setor privado, às custas tanto do sistema nacional de pesquisa e desenvolvimento quanto das universidades, que perdem sua autonomia intelectual, gerencial e financeira. Do antigo e imbatível tripé de governo, universidade e empresas, parece que só restará parte destas últimas. Ao invés de uma sociedade aberta e plural, o totalitarismo ideológico. É difícil imaginar que com isto seja possível fazer a América grande de novo.

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