A marcha sobre Brasília

(publicado em O Estado de São Paulo, 10 de setembro de 2021, com modificações)

Se a expectativa dos Maquiavéis que planejam a estratégia de Bolsonaro se inspirando em Mussolini era replicar,  no 7 de setembro, a “marcha sobre Roma” de 1922, não deu certo. Em 1922, Il Duce ganhou forças para subjugar o parlamento, o judiciário e as forças armadas, e ficou no poder até ser assassinado em 1945, depois de ter levado seu país à ruina. Aqui, as manifestações foram pacíficas, nenhum palácio foi invadido, e o que restou foi a promessa do Presidente de deixar de cumprir as decisões do Ministro Alexandre de Morais.  Escrevendo na manhã do dia 8, me parecia difícil saber o que viria depois, se finalmente o impeachment, uma tentativa de golpe de estado, ou algum tipo de administração arrastada da crise, como vem acontecendo até aqui. Todos os analistas políticos estavam se fazendo esta pergunta, sou menos capaz do que eles de prever, mas minha impressão era que as coisas iam continuar como estão, para ver (ou não) como é que ficam. Com a carta de arrependimento publicada logo depois pelas mãos de Michel Temer, minha previsão se confirmou, pelo menos por enquanto.

Seja como for, o que fica de mais marcante deste 7 de setembro é a grande presença de pessoas nas ruas atendendo à retórica inflamada e vazia de Bolsonaro, mesmo depois de dois anos de desgoverno, de manejo incompetente da epidemia, dos escândalos das rachadinhas e da compra das vacinas, do abandono das pautas de combate à corrupção e de reorganização da economia, da depredação do meio ambiente, da inflação saindo do controle, e de ter entregado o governo a seus antigos inimigos do Centrão, do qual agora se diz membro desde criancinha.  Não se pode, simplesmente, dizer que  os foram para as ruas são todos ignorantes, ou reacionários, ou vítimas de manipulações das redes sociais. Bem o mal, eles refletem o grande fracasso de nossas instituições políticas, incluindo o Judiciário e o Congresso, em responder de forma adequada à grande crise moral, econômica, social e política que eclodiu em 2015 e que vem se agravando desde então. O Judiciário e o Congresso são hoje, e com razão, os grandes defensores da democracia e do império da lei contra um Presidente sem escrúpulos, mas tudo seria mais fácil se eles não tivessem abdicado de suas principais responsabilidades.

No caso do judiciário, o principal problema foi ter participado do grande conluio para enterrar a Lava Jato, que uniu empresários e a classe política da esquerda, centro e direita. Podemos discutir até que ponto os promotores e juízes da Lava Jato infringiram ou não determinadas normas de comportamento ou estavam politicamente motivados, mas os crimes de corrupção foram reais, afetaram de forma profunda o funcionamento do governo, escancararam o comportamento predatório de parte importante da classe política brasileira, e não poderiam ter sido simplesmente postos de lado em nome dos formalismos de um “garantismo” suspeito e extremado. Ao invés de atuar como uma corte constitucional, como são os supremos tribunais de todas as democracias, o STF se transformou em uma grande casa de varejo, gastando quase toda sua energia em responder de forma muitas vezes casuística às demandas de quem tem recursos para pagar os advogados mais caros. Nada disto justifica o ataque dos bolsonaristas ao STF, buscando destruir aquilo que ele tem mais importante, que é, apesar dos pesares, a defesa da ordem legal, da democracia e do Estado de Direito.

Do Congresso, seria enorme a lista de coisas que deveria ou poderia fazer e não fez, e das coisas que fez erradas. Mas o que mais mais chama atenção é a forma despudorada em que ele se transformou em um grande balcão de negócios, em que votos são comprados e vendidos de forma escancarada a troco de cargos, verbas e apoio de corporações e grupos de interesse de todo tipo. Em todo o mundo, parlamentares são eleitos como representantes de determinados interesses, e é natural que defendam estes interesses em sua atuação no Congresso. Mas, em democracias que funcionam, os interesses individuais se acomodam dentro de um rumo e uma orientação geral dados pelas lideranças partidárias, de acordo com as prioridades dos respectivos programas e doutrinas partidárias. No parlamento brasileiro, algumas destas lideranças ainda persistem, mas são permanentemente atropeladas e ignoradas pela fome insaciável de seus liderados.

Ruim com eles, pior sem eles. Assim como o governo Bolsonaro hostiliza o judiciário pelo que tem de bom, também hostiliza ou tenta comprar o Parlamento pela capacidade que ainda tem de colocar limite a seus arroubos autoritários, e pelo poder constitucional de abrir e conduzir um processo de impeachment contra o Presidente. O Judiciário e o Legislativo, assim como setores importantes  e competentes do executivo, na área da saúde, economia, educação, cultura e meio ambiente, que este governo vem depredando sistematicamente, precisam se defender e ser defendidos contra os ataques de nosso candidato a Mussolini. Estaríamos em situação muito melhor se eles estivessem estado à altura dos papeis que precisam desempenhar.

A doença da cleptocracia

(Publicado em O Estado de São Paulo, 9 de abril de 2021)

Um tema importante, mas pouco estudado nas ciências sociais, é o das causas e efeitos da cleptocracia, termo de origem grega que significa, literalmente, “governo de ladrões”. Em todos os regimes políticos, democráticos ou autoritários, os governantes e seus apoiadores se beneficiam de seus cargos. Mas o que marca a cleptocracia é a pilhagem sistemática dos recursos públicos em benefício dos governantes e seus familiares, atropelando as instituições ou manipulando-as a seu favor. Os cleptocratas têm muito pouco apoio na sociedade, e, no entanto, conseguem se manter por longo tempo no poder. Como isto é possível?

Cerca de 20 atrás, Daron Acemoglu, economista de origem turca que ficou famoso por combinar a análise econômica com a história e as ciências políticas, tratou de responder a esta pergunta, que é mais atual do que nunca, sobretudo no Brasil . Ele tomou como exemplo os casos extremos do Congo, com Joseph Mobuto, e da República Dominicana, com Rafael Trujillo, que governaram por décadas e arruinaram seus países, mas o modelo que desenvolveu é de aplicação muito mais ampla.

O que permite que a cleptocracia se estabeleça e se mantenha, diz Acemoglu, é a debilidade das instituições de um país. “Quando as instituições são fortes”, diz ele, “os cidadãos punem os políticos retirando-os do poder; quando as instituições são fracas, os políticos punem os cidadãos que não os apoiam. Quando as instituições são fortes, os políticos competem pelo apoio e endosso de grupos de interesse; quando as instituições são fracas, os políticos criam e controlam os grupos de interesse. Quando as instituições são fortes, os cidadãos exigem direitos; quando as instituições são fracas, os cidadãos imploram por favores”.

Na cleptocracia, todos perdem, exceto os cleptocratas, mas os diferentes setores da sociedade não conseguem se organizar para tirá-los do poder porque eles usam a conhecida tática de dividir para reinar. Pensemos em dois partidos que poderiam se unir para derrotar os cleptocratas na próxima eleição. Antes que se juntem, o governo chama a um deles, oferece vantagens e benefícios, e ameaça punir a quem ficar contra. Entre o medo e a ganância, o apoio é dado, e governo se mantém. No dia a dia, a técnica funciona trocando constantemente ministros e altos funcionários, gerando insegurança e fazendo com que as autoridades sejam leais aos governantes, e não às responsabilidades e fins das instituições em que trabalham.

Existem algumas condições para que este jogo de dividir para reinar tenha sucesso. O primeiro é quando os setores mais organizados da sociedade só conseguem pensar no curto prazo, porque não acreditam na estabilidade das instituições políticas e econômicas. Entre o ganho imediato de um privilégio concedido ou bom negócio feito hoje com o governo e um ganho futuro de uma eventual vitória eleitoral e a economia prosperando, apostam no ganho imediato. O segundo é quando os governantes conseguem concentrar recursos significativos em suas mãos, seja porque recebem ajuda internacional, ou porque se beneficiam dos lucros da exportação de alguns produtos grande valor, ou porque podem canalizar para si o dinheiro de impostos ou emitir dinheiro novo. O terceiro é quando a economia é pouco produtiva, o que faz com que os benefícios vindos dos favores do governo sejam muito mais vantajosos do que os da atividade econômica e profissional independente. O último é quando os diferentes grupos de interesse na sociedade são igualmente débeis em sua capacidade de se organizar e mobilizar recursos, o que faz com que nenhum deles seja capaz, sozinho, de desafiar e ganhar em uma disputa com os cleptocratas.

Outros dois fatores contribuem para a permanência das cleptocracias. Um é quando o poder político está concentrado em uma pessoa, mais do que em um cargo ou uma instituição. Com isto, em um eventual conflito entre os interesses do governante e as regras institucionais, prevalecem os primeiros. O outro é quando a sociedade é muito desigual, permitindo que um pequeno grupo mantenha seus privilégios, cooptando parte dos setores mais pobres distribuindo migalhas.

Para os que conseguem acompanhar, Acemoglu e seus colaboradores apresentam um modelo matemático que mostra de forma precisa como a cleptocracia funciona e se mantém. Aqui, basta dizer que uma consequência grave da cleptocracia é o ataque permanente às instituições existentes, não só do executivo, mas também do judiciário e do legislativo, que acabam por perder legitimidade e autonomia. O resultado é a desorganização da economia, o empobrecimento da sociedade e o aumento da insegurança, fatores que, por sua vez, facilitam a permanência dos cleptocratas no poder. Mobuto, Trujillo, Stroessner e tantos outros mostram que, quando a cleptocracia domina, é muito difícil se livrar dela. Mas ela pode ser entendida também como uma doença que vai crescendo aos poucos, e precisa ser debelada antes que seja tarde demais.

A legitimidade das instituições

(Publicado em O Estado de São Paulo, 12/03/2021)

As decisões dos Ministros do Supremo Tribunal Federal de anular os processos da Lava Jato por erros formais de jurisdição ou eventuais comportamentos impróprios de juízes e promotores podem estar sendo tomadas com convicção, mas nem por isto deixam de contribuir para a desmoralização crescente de nossos tribunais, que já vinha se acentuando com as sucessivas decisões de juízes “garantistas”, que, aos olhos da opinião pública, não passam de chicanas a favor dos processados por corrupção.

A noção de que, sem procedimentos adequados, não se pode condenar as pessoas, tem como uma de suas inspirações a famosa decisão de “Miranda contra Arizona” da Corte Suprema dos Estados Unidos de 1966, quando um criminoso confesso teve sua sentença anulada porque seu direito à defesa não havia sido devidamente respeitado.  Esta decisão foi importantíssima para colocar limites ao comportamento muitas vezes preconceituoso, arbitrário e violento da polícia nos Estados Unidos que, da mesma forma que no Brasil, tende a afetar sobretudo às minorias e às pessoas mais pobres. Comparado com seus benefícios, o fato de que alguns criminosos fiquem impunes é um pequeno preço a pagar.

O outro lado da moeda é que, para que ela continue valendo, a grande maioria dos criminosos precisam ser condenados. É a efetividade do sistema judiciário, e não o formalismo de suas decisões, que faz com que a sociedade respeite e considere legítima sua autoridade. Para ser respeitado, o judiciário precisa atuar com bom senso e equilíbrio, garantindo as formalidades e punindo os criminosos, sem deixar que um lado predomine sobre o outro. No Brasil, por falta de uma política clara de defesa dos direitos civis, muitas pessoas sem recursos são presas e condenadas por supostos delitos, quando não mortas pela polícia, enquanto criminosos com mais recursos conseguem escapar pelas brechas formais da lei. O judiciário é temido, mas pouco respeitado, e isto serve de caldo de cultura para os movimentos de extrema direita contra os direitos humanos e pela impunidade da violência policial.

O “mensalão”, primeiro, e a Lava Jato, depois, trouxeram grande notoriedade e legitimidade à cúpula do judiciário brasileiro, que se mostrou capaz, pela primeira vez na história, de julgar e condenar políticos e empresários poderosos, o deu também ao Supremo Tribunal legitimidade para administrar as crises institucionais que se tornaram cada vez mais frequentes desde o impeachment de Dilma Rousseff. Esta legitimidade, no entanto, vem sendo corroída pela percepção cada vez mais clara de que, desde a decisão do STF sobre o fim das condenações em segunda instância, são os conluios pela impunidade da classe política, da extrema esquerda à extrema direita, passando pelo notório “centrão”, e não a defesa da legalidade dos procedimentos, que têm predominado nas cortes superiores.

É a legitimidade das instituições que distingue os estados efetivos dos estados falidos.  Os estados efetivos precisam ter o poder de usar a força para fazer cumprir as leis, mas só em último caso, e para isto é necessário que a autoridade dos governantes seja reconhecida e aceita como legítima. Instituições são muito mais que um conjunto de cargos, estatutos e a posse de determinados recursos, como armas, dinheiro ou conhecimentos. Para funcionar, elas precisam atuar como organismos vivos, em que cada participante se sinta e atue como parte de um todo mais amplo; e dependem também de um ambiente externo receptivo, em que suas práticas sejam reconhecidas como benéficas, e não predatórias. Isto vale tanto para o judiciário quanto para os demais poderes, assim como para empresas, igrejas, sistemas de pesquisa, ensino, redes de saúde, sindicatos e organizações profissionais. 

Instituições efetivas podem também existir em estados autoritários à custa de maior coerção, mas a democracia não pode subsistir sem instituições vigorosas. O grande desafio das sociedades democráticas é que elas precisam preservar e fortalecer suas instituições reduzindo ao mínimo o uso da força, incluindo o máximo de pessoas, respeitando as diferenças e garantindo as liberdades. Isto requer um consenso básico e o trabalho constante de pessoas influentes de diferentes setores – a chamada elite – a favor de seus valores centrais. Não é uma tarefa fácil, e, quando ela fracassa, abre espaço para o populismo, cujo principal é resultado, é, justamente, o desmonte das instituições – o judiciário se transforma em instrumento de poder ou de impunidade, os cargos executivos são apropriados por famílias e grupos poderosos, as empresas se transformam em quadrilhas, a educação se transforma em ideologia, o conhecimento científico e técnico é substituído pela superstição e as fake news. É uma rampa inclinada na qual é muito fácil cair, e muito difícil se levantar.

Lançamento de “Falso mineiro: memórias da política, educação e sociedade”

História em Construção

Texto de João Luiz Sampaio publicado em O Estado de São Paulo, 12 de março de 2021

Em novo livro, Simon Schwartzman articula memórias pessoais e a busca por novos caminhos para o Brasil

Uma mensagem levou Simon Schwartzman até a Polônia. A remetente, Vera Ejlenberg, realizava pesquisas sobre o rabino Chaim Radzyner, e buscava informações. Schwartzman reconheceu o nome do bisavô de sua mãe. E, em meados de 2019, partiu para a Europa, onde participou de um encontro por conta dos 75 anos da destruição do gueto da cidade de Lodz.

“Eu tinha poucas informações sobre a história da família de minha mãe. Ela dizia que todos haviam morrido durante a guerra. A viagem me colocou em contato com outros lados dessa história. E com um lado que não é o meu único, mas que com certeza é importante na minha trajetória”, conta o sociólogo e cientista político.

Não apenas isso. “Estar ali reviveu a presença da guerra, do Holocausto, da resistência. Não era nada que eu não soubesse, mas foi uma experiência forte, de impacto muito grande.” E, de volta ao Brasil, Schwartzman começou a trabalhar em um livro de memórias, Falso Mineiro: Memórias da Política, Ciência, Educação e Sociedade, que será lançado na quarta-feira, dia 17, com uma live que vai reunir, além do autor, Pedro Malan e Helena Bomeny, com mediação de Roberto Feith, editor do selo História Real, da Editora Intrínseca.

É com o relato da viagem a Lodz que Schwartzman, colunista do Estadão, abre sua narrativa. Mas a lembrança pessoal convive no livro com a preocupação em discutir temas da história brasileira. “O objetivo foi ir além das memórias pessoais, ou seja, utilizar a trajetória pessoal para discutir questões atuais”, explica o autor, que as define no início da obra: política e autoritarismo; modernidade e democracia; conhecimento, ciência e tecnologia; ciência e ideologia; educação e diversidade; sociedade e economia.

São temas presentes desde cedo em sua trajetória profissional. Formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, Schwartzman fez seu mestrado na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, no Chile. E, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, o doutorado. Deu aulas em instituições como a USP e na Universidade de Columbia, entre muitas outras.

Ele se envolveu em diversos episódios da história brasileira. Foi preso e interrogado durante 40 dias em 1964 pela ditadura militar, que não sabia bem que acusações impor contra ele – e resolveu exilar-se na Noruega, seguindo depois para a Argentina. A carreira pedagógica e voltada à pesquisa, a certa altura, o levou também a ocupar posições como a de presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade. E, ao longo de todo esse tempo, produziu obras fundamentais para a compreensão do País, a começar por Bases do Autoritarismo Brasileiro, livro que nasce de sua tese de doutorado.


Nele, como o próprio Schwartzman explica, buscava mostrar como “o sistema político não era mero instrumento dos interesses dos ricos e poderosos, tendo uma dinâmica própria que precisava ser mais bem entendida”. “A espinha dorsal de meu livro era a de que no Brasil coexistiam duas formas de dominação: uma de tipo patrimonial, herdada da Coroa portuguesa e que nunca dependeu de poderes feudais para existir, consolidando-se na capital do País, o Rio de Janeiro; e outra, de tipo mais contratual, originada da parte mais dinâmica e autônoma da economia, baseada sobretudo em São Paulo. Daí o fato de uma das teses mais controvertidas e questionadas do livro ser a de que, no Brasil, o centro do poder econômico sempre teve uma posição relativamente subordinada, e por isso conflituosa, com o centro político.”


Não é pouco mérito o fato de que, em Falso Mineiro, a memória dos trabalhos acadêmicos e pesquisas realizadas e a lembrança de episódios pessoais sejam narradas com a mesma clareza e sabor. “Eu aprendi com o tempo que, se você não entende algo ao ler, a culpa é de quem escreveu. Há temas complexos, sem dúvida, e textos de caráter mais técnico, mas se você não tem clareza normalmente é porque as ideias não estão claras”, diz. E o livro, nessa combinação de narrativas, torna-se não apenas o registro de uma memória individual, mas da tentativa de criação de uma ideia de país.


A live de lançamento do livro terá como tema “Populismo vs. Ciência: o desafio da construção de políticas públicas eficazes”. É um assunto do qual ela trata bastante ao longo de Falso Mineiro. Por exemplo, ao definir a importância da separação entre atividade científica e atividade política. “Na faculdade, em Belo Horizonte, nossa preocupação era como sair do atraso, buscar caminhos distintos foi uma motivação de toda a minha geração que, claro, seguiu orientações diferentes. No ambiente estudantil, conhecimento e militância eram a mesma coisa. Mas, com o tempo, aprendi que a política condiciona e limita a capacidade de atuar de forma independente.”

Para ele, não se trata de falta de engajamento, mas de outra definição para o termo. “Eu me engajei muito, briguei pelos temas que acreditava serem importantes, eu me envolvi com eles. Mas sempre mantendo uma independência, sem servir a conveniências políticas.”


Reflexões como essa se tornam importantes em especial no momento em que vivemos. “É uma situação anômala, de um governo anti-intelectual. Há um ataque contra a educação, a cultura, a democracia, e isso dificulta a discussão nessas áreas. Porque elas precisam ser discutidas, são problemáticas. Não concordo com a ideia de que antes tudo funcionava bem. Mas a discussão sempre girou em torno de como melhorar esses aspectos e não em torno do próprio questionamento de sua existência.”


Para Schwartzman, há uma nova geração interessante na ciência brasileira. Mas é preciso pensar em novos caminhos, em especial no que diz respeito à “fuga de cérebros”. “Houve um período de expansão na ciência acadêmica. As universidades públicas cresceram e, com isso, muitas posições e cargos foram criados. Um jovem brasileiro, após ir para o exterior, com bolsas como Capes e CNPq, voltava e encontrava posições. Mas a ciência acabou ficando muito fechada no mundo acadêmico e, depois de o sistema crescer, já não consegue absorver todos os profissionais. A questão hoje é pensar sobre como fazer ciência de maior qualidade e mais efetiva, menos voltada para si mesma. E como vincular a ela questões mais práticas, algo que envolve tanto a iniciativa privada quanto o governo”, explica.

A eleição de Biden e o futuro da extrema direita

(Publicado em O Estado de São Paulo, 12 de fevereiro de 2021)

Com a vitória de Biden nas eleições americanas, a grande pergunta para os Estados Unidos, que que interessa também ao Brasil e a muitos outros países, é se o radicalismo de extrema direita de Trump, Bolsonaro e semelhantes é um fenômeno passageiro, que começa a se esvair, ou se, ao contrário, é o novo governo democrata que é passageiro. Foi este o tema de um recente seminário organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso com a jornalista e escritora Anne Applebaum, autora de O Crepúsculo da Democracia, que deve ser publicado no Brasil proximamente

O que caracteriza o radicalismo de extrema direita, assim como o de extrema esquerda, não são os valores e preferências de seus proponentes – mais ou menos a favor do mercado, de políticas sociais, dos direitos e os costumes que defendem – mas o ataque que fazem às normas e às instituições do estado de direito, que regulam os processos de disputa eleitoral, colocam limites no poder dos governantes e garantem as liberdades individuais.  É o respeito a estas normas e instituições, e não o eventual apoio popular, que distingue os regimes democráticos dos autoritários em suas diferentes versões. Hitler e Mussolini, passando por Perón, Hugo Chaves, Tayyip Erdogan e Viktor Orbán, são exemplos de governantes que chegaram ao governo com apoio popular, e abusaram do poder para destruir as instituições que os elegeram. Foi este o caminho buscado por Trump ao negar a validade das eleições que perdeu e jogar seus militantes contra o Congresso, e tem sido este também o caminho buscado por Bolsonaro ao tentar jogar as forças armadas contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso, quando eles anda pareciam independentes, e ameaçar desde já a não reconhecer os resultados de uma futura eleição da qual saia derrotado.

Impressiona, ao ver esta lista de governantes autoritários, a facilidade com que conseguem, uma vez eleitos, destruir as instituições democráticas e permanecer no poder, graças não só ao apoio popular, mas também ao beneplácito de muitos intelectuais e líderes políticos, empresariais e institucionais que não têm problema em jogar seus escrúpulos às favas, em nome de seus interesses práticos mais imediatos.   É um cinismo generalizado que percorre de cima a baixo da sociedade, e que afeta não só os valores mais abstratos do estado de direito e da democracia, mas coisas muito mais concretas como a tolerância à corrupção, à discriminação social e à violência. Isto talvez se explique pela noção, dada como óbvia pelos economistas, de que o ser humano vive e atua em função não de princípios, mas de seus interesses egoístas, ou, como diria Thomas Hobbes, um dos fundadores da ciência política, de que, deixado à solta, o homem é o lobo do homem. 

Se isto é assim, o fenômeno anormal que precisa ser explicado não é o surgimento e permanência dos regimes autoritários, mas a existência e a persistência de regimes democráticos. Não basta dizer que os regimes democráticos são moralmente superiores aos autoritários, quando, para muitos, esta superioridade é demasiado abstrata e distante de seus interesses do dia a dia. É preciso também ver se, e em que medida, o estado de direito e os regimes democráticos também podem trazer benefícios práticos para a população, que os tornem mais interessantes do que os autoritários.

Com raras exceções, basta comparar as sociedades democráticas com as autoritárias para ver como são muito mais vantajosas. Nelas, as pessoas vivem sem medo de dizer o que pensam e de ser oprimidas e achacadas pelos governantes; com a liberdade de se organizar e empreender e a confiança nas regras de funcionamento dos mercados, a economia floresce, e é distribuída de forma mais igualitária; as instituições são preservadas, as políticas públicas de saúde, educação e meio ambiente são conduzidas pelas pessoas mais competentes, e os conflitos de interesse, ao invés de serem disputados de forma sangrenta e sem limites, se resolvem de forma civilizada segundo “regras do jogo” que todo mundo respeita. 

Mas as democracias são imperfeitas, nem sempre conseguem cumprir o que prometem, e padecem da “tragédia dos comuns”, que ocorre sempre que os interesses individuais de curto prazo prevalecem sobre os interesses gerais de longo prazo. Por isto, elas não ocorrem de forma natural, mas precisam ser construídas por elites capazes de pensar a longo prazo, obter apoio para suas ideias e mostrar resultados práticos de curto prazo, que possam fazer a ponte entre os interesses individuais e o interesse coletivo. Se Biden for capaz de, ao mesmo tempo, restabelecer as normas básicas da democracia americana e lidar com os problemas de curto prazo da epidemia e da recessão econômica, há uma boa chance de que o radicalismo se direita americano volte para os rincões de onde nunca deveria ter saído. Da mesma forma, no Brasil, o futuro depende da capacidade da parte sã que ainda resta de nosso sistema político, econômico e institucional de apontar para uma alternativa ética também construtiva ao bolsonarismo.

Dançando por Biden

(Publicado em O Estado de São Paulo, 13 de novembro de 2020)

Vendo as imagens do povo dançando nas praças festejando a derrota de Donald Trump, mais do que a vitória de Joe Biden, é inevitável comparar com 12 anos atrás, quando da eleição de Barack Obama. Tal como agora, Obama derrotou um presidente medíocre e inescrupuloso, que jogou o país em uma guerra insensata no Iraque e deixou a economia afundar. Havia a sensação de que algo realmente novo e importante estava ocorrendo nos Estados Unidos, com impacto em todo o mundo. Obama era negro, mas foi eleito com a bandeira de uma sociedade pós-racial. Era um intelectual com fortes valores humanistas, que projetava uma política internacional de respeito e consideração para diferentes culturas. No ano seguinte ganhou o Prêmio Nobel da Paz, não pelo que já tinha feito, mas pelo que prometia.  Sua eleição parecia indicar que os Estados Unidos, finalmente, havia rompido as barreira do racismo, do isolacionismo e do descaso com as políticas sociais.Oito anos depois, sem ter conseguido fazer tudo que prometia, era normal que Obama não conseguisse fazer seu sucessor.  Mas a eleição de Trump não foi uma simples alternância de poder, mas uma indicação de que a nova era anunciada pela eleição de Obama era, em grande parte, uma ilusão, e que coisas piores estavam por vir. Ao tomar de assalto o Partido Republicano, Trump capitalizou uma forte corrente de preconceitos raciais, anti-intelectuais e de xenofobia que pareciam ter sido postos à margem da sociedade americana, e que subitamente mostraram suas garras.  Com ele, a mentira sistemática das fake news, a prevalência descarada dos interesses comerciais privados sobre o interesse público, o desmonte das instituições governamentais e sua ocupação por bajuladores, o racismo, a xenofobia e todos os preconceitos que antes não se manifestavam, agora se tornaram “normais”. O passo seguinte, inevitável, foi o ataque às instituições mais centrais do sistema democrático, culminando, agora, com o próprio sistema eleitoral.  

A vitória de Biden mostra que nem tudo está perdido, mas deixa um gosto amargo, porque a “onda azul” foi menor do que se esperava, e Biden provavelmente terá ainda menos condições de cumprir o que promete do que Obama, tanto pela oposição sistemática que receberá como por um contexto internacional menos favorável, com a ascensão inevitável da China. A democracia americana sobreviverá, mas longe do vigor que a era de Obama parecia prenunciar. A história americana recente é semelhante à de muitos outros países, inclusive o Brasil, de surgimento de lideranças radicais que conseguem forte apoio popular e partem para o assalto às instituições democráticas, e a dificuldade dos partidos moderados de prevalecer. O que explica a força destes movimentos antidemocráticos, e a fragilidade das democracias?

A pergunta, na verdade, deve ser posta ao contrário, porque a democracia é uma flor frágil, e é quase um milagre que tenha sobrevivido em tantos lugares até aqui. Em um livro recente, “O ocaso da democracia” a jornalista americana Anne Applebaum, casada com Radosław Sikorski, também jornalista e político de destaque dos governos democráticos da Polônia, conta a história da conversão à extrema direita de muitos de seus amigos e colegas que, como os dois, haviam se engajado na oposição ao estalinismo e na esperança de uma nova era democrática para a Europa Oriental e Estados Unidos, e viram em seu lugar surgir os regimes de Jarosław Kaczyński na Polônia, Viktor Orbán na Hungria e Donald Trump nos Estados Unidos. Cada história é diferente, combinando em diversas doses oportunismo, ambição e impaciência com a lentidão dos regimes democráticos em produzir os resultados esperados.  Mas existem problemas mais gerais. A ideia de que a democracia, combinada com a valorização do mérito e da economia aberta e competitiva, é a melhor forma de governo, perde força quando ela se torna disfuncional, com muitas pessoas se sentindo excluídas de seus benefícios. E a democracia não consegue dar respostas aos anseios das pessoas por identidade pessoal, comunitária ou nacional. Ao se opor ao surgimento da extrema direita, a oposição liberal, nos Estados Unidos e outras partes, ao invés de tentar reconstruir o consenso nacional ao redor dos valores democráticos e do interesse comum, muitas vezes dá prioridade às políticas dos direitos e de identidade de grupos minoritários e setores marginalizados e discriminados, reduzindo ainda mais o espaço para a democracia consensual.

A democracia, para sobreviver, precisa de lideranças capazes de interpretar o interesse geral, de instituições capazes de resistir aos assaltos dos tiranos de plantão, e de uma população capaz de entender que a política é mais do que a expressão de suas ansiedades e frustrações. Na eleição americana, o dado mais esperançoso é a grande rejeição de Trump pelos eleitores mais jovens. Anne Applebaum também termina seu livro falando de uma nova geração que busca novos caminhos, além das políticas exauridas da democracia complacente e da extrema direita enlouquecida. O futuro é incerto, mas há esperança.

Democracia em Crise

(publicado em O Estado de São Paulo, 9 de outubro de 2020)

A democracia está em crise. O fato de termos um presidente que não acredita nela aumenta o problema, mas é mais uma consequência do que sua causa. A crise da democracia tem origens mais profundas. Primeiro, pelo número crescente de grupos e setores capazes de se organizar e pressionar por seus interesses. Segundo, pela explosão das comunicações que tornou impossível manter a distância que protegia as ações da administração pública da vigilância da opinião pública. Antes, o que se decidia era feito, ainda que nem sempre de forma acertada. Agora, as agências têm medo e dificuldade em decidir, e as divergências que surgem a todo o momento se transformam em problemas políticos que o governo tem que resolver. Antigamente, se acreditava que o poder dos governos era tanto maior quanto mais decisões ele poderia tomar, mas o que se observa é que, quanto mais são as coisas que o governo precisa resolver, menos capacidade ele tem de resolvê-las. As dificuldades se tornam ainda mais graves porque a lógica eleitoral, que leva os governantes ao poder, requer juntar o máximo possível de apoiadores, todos com expectativas de terem seus interesses atendidos, enquanto a lógica de governar requer prioridades que com frequência contrariam os interesses de muitos. O resultado são governos paralisados, que não conseguem tomar decisões, e uma sociedade civil irresponsável, formada por grupos organizados que não conseguem separar a defesa de seus interesses particulares dos interesses comuns da sociedade.

Esta análise pessimista da crise da democracia não é de hoje, mas de 50 anos atrás, do sociólogo francês Michel Crozier, e não foi feita pensando no Brasil, mas na Europa Ocidental, sobretudo a França. Mas, se ele estava certo, como explicar que as democracias europeias tenham durado tanto tempo, e o que dizer de outras democracias muito mais precárias, como a brasileira? E será que, agora, finalmente, a crise prenunciada está chegando?

Parte da explicação da resiliência das democracias até aqui é que o governo é só uma parte, e nem sempre a mais importante, do que acontece com a economia e a sociedade em um sistema político aberto. O exemplo mais gritante talvez seja o da Itália, conhecida pela inoperância e corrupção de seus governos, mas com uma sociedade brilhante alimentada por fortes culturas locais, milhões de pequenos e grandes empreendedores e de turistas que chegam de todo o mundo. A outra explicação é que, graças à alta produtividade da economia, foi possível a muitos países atender à demanda crescente por serviços sociais e investimentos públicos e postergar decisões políticas custosas. Com a estabilidade, estes países desenvolveram sistemas públicos profissionais e de boa qualidade, capazes de ir tocando a administração quotidiana de justiça, serviços de saúde, transportes, segurança pública etc. mesmo quando os governantes se confundem ou não sabem o que fazer.  Com o dia a dia funcionando, a população perde interesse pela política, não se informa, e, se puder, fica em casa nos dias de eleição, o que reduz a pressão sobre os governos, e facilita seu trabalho. 

Todo este arranjo começa sofrer quando a economia se torna incapaz de sustentar o padrão de vida da população e o funcionamento da máquina pública, com os gastos públicos saindo do controle, a economia rateando por excesso de subsídios e protecionismo, e os países são afetados por crises geopolíticas e naturais, como as catástrofes climáticas e as grandes epidemias.  A receita chamada “neoliberal” para esta situação é reduzir o tamanho do Estado, limitar os gastos e desregular a economia, na esperança que ela possa retomar seu dinamismo. Mas o custo político deste tipo de reforma pode ser muito alto, e muitas vezes isto só é possível em regimes ditatoriais, como ocorreu no Chile de Pinochet e, com menor gravidade, nas reformas dos primeiros anos do governo militar brasileiro. E, segundo, não há nenhuma garantia de que, reduzidos os custos e controles do setor público, a economia vai florescer espontaneamente, como se viu na Rússia, e muito menos que consiga lidar melhor com as crises externas ou naturais. A receita alternativa é partir para regimes populistas autoritários, que aumentam enormemente o risco de aventuras de consequências imprevisíveis, como na Venezuela e em outras partes.

No Brasil o governo federal, depois de flertar com a ruptura autoritária, acabou se acomodando a um nível extremamente baixo de “normalidade”, com grande dificuldade de tomar decisões, a um custo preocupante para a economia, a sociedade, a saúde pública e o meio ambiente. 

A democracia tem um antídoto para isto, que é renovar o pacto entre governo e sociedade, com a  eleição de governantes com competência, legitimidade e autoridade suficientes para tomar as decisões que sejam necessárias, sem se submeter ao varejo do dia a dia, tornando a economia previsível e implementando políticas sociais de qualidade.  Nem sempre funciona, e as próximas eleições vão nos dizer se teremos chances de seguir este caminho, ou se continuaremos afundando.

A tentação de Goebbels

(versão ampliada de artigo publicado no O Estado de São Paulo, 14 de fevereiro de 2020

Em 1934 o jovem Luis Simões Lopes, chefe de gabinete de Getúlio Vargas, e mais tarde criador do DASP e da Fundação Getúlio Vargas, vai a Berlim, fica fascinado com o Ministério de Propaganda de Goebbels, e manda uma carta entusiasmada para o Presidente, dizendo que o Brasil precisava de algo parecido: “tão interessante me pareceu sua organização que fiquei seis dias, coligindo notas e, principalmente, cópia da moderna legislação alemã sobre trabalho, propaganda, etc., após o advento do governo nacional-socialista, senhor absoluto da Alemanha”.  “O que mais me impressionou em Berlim”, prossegue, “foi a propaganda sistemática, metodizada do governo e do sistema de governo nacional socialista. Não há em toda a Alemanha uma só pessoa que não sinta diretamente o contato do Nazismo ou de Hitler, seja pela fotografia, pelo rádio, pelo cinema, através da imprensa alemã, pelos líderes nazis, pelas organizações do partido…” (o texto completo da carta está disponível aqui)

A carta expressa dúvida sobre a obsessão nazista com a grande conspiração dos judeus para dominar o universo, que diz que não entende (“parece-me que através do capitalismo seria mais fácil”), mas é só um detalhe, o que importa mesmo é a eficiência: “A organização do Ministério da Propaganda fascina tanto que eu me permito sugerir a criação de uma miniatura dele no Brasil. Evidentemente, não temos recursos para manter um órgão igual ao alemão (. . .) mas podemos adaptar a organização alemã dotando o país de um instrumento de progresso moral e material formidável. A Alemanha, além de outras todas, leva-nos a vantagem de ter um governo praticamente ditatorial”.  “Com todos os tropeços que se nos deparam, devemos ensaiar a adoção dos métodos modernos de administração, de órgãos de ação pronta e eficaz, experimentados em outros países”.  

Depois de detalhar as áreas de atividade do Ministério, da cultura física à contrapropaganda no exterior, utilizando verbas secretas e total liberdade para contratar e demitir pessoas, a carta continua dizendo que “a antiga nobreza é contra Hitler, que acabou na Alemanha com as castas”, e que “a democratização é um fato. Os ‘dancings’, cinemas etc., que eram frequentados pela elite estão hoje repletos de povo, que vive satisfeito e distraído, esquecido da política”. Em um apêndice, há um resumo das principais áreas de atuação do Ministério da Propaganda: são 10 itens, começando com questões gerais da vida social  e política, combatendo os adversários dentro e fora do país e controlando todos os meios de propaganda e publicação, da arte e de cultura, e culminando com a organização de manifestações oficiais, festas nacionais, feriados e o hino nacional.

Estávamos em 1934, ano em que uma nova Constituição foi promulgada, reestabecendo o regime democrático e elegendo Getúlio como presidente, com a promessa de marcar uma nova eleição em 1938. Dois anos antes São Paulo havia se insurgido contra o governo central, e a nova Constituição foi sobretudo uma manobra de conciliação com as elites paulistas, que durou até a implantação da ditadura em 1937.

Não é por acaso que esta carta tenha sido repassada por Getúlio para Gustavo Capanema, Ministro da Educação, em cujo arquivo a encontrei quando pesquisava a história do Ministério naqueles anos. Na visão de Getúlio, e do próprio Capanema, caberia a este Ministério, em aliança com a Igreja conservadora de Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção,  administrar o uso do rádio, do cinema,  das artes, dos currículos escolares  e de grandes eventos cívicos, como os grandes desfiles e o canto orfeônico coordenado por Villa Lobos, mobilizando a população a favor da Nação, tal como entendida pelo governo. Ao longo dos anos, de fato o Ministério fez o que podia para cumprir este papel, ao mesmo tempo em que acenava para os intelectuais com a proteção ao patrimônio histórico e a convivência com os modernistas, Em 1939, desistindo do Ministério da Educação, que chegou a ser prometido a Plínio Salgado, Getúlio finalmente segue a sugestão de Simões Lopes e cria o Departamento de Imprensa e Propaganda, a versão cabocla do Ministério de Goebbels. Basta ler os objetivos do DIP no seu decreto de criação para ver que foram praticamente copiados do resumo feito cinco anos antes por Simões Lopes.

Luis Simões Lopes e Getúlio eram realistas, não tinham ideologia de esquerda ou direita, mas compartilhavam a ideia de que a democracia representativa era um modelo político fracassado, que precisava ser substituído por regimes que fizessem uso de todos os meios para modernizar a sociedade e instaurar a verdadeira democracia, que para eles significava deixar o povo “satisfeito e distraído”. O que diferenciava o regime de Vargas dos fascismos europeus era que ele via a mobilização ideológica como ameaça, e por isto mesmo se desfez de seus aliados integralistas logo após o golpe de 1937. Coisas como antissemitismo, nacionalismo, religião, normas constitucionais, direitos humanos, arte, literatura, todo este mundo de valores e princípios, certos ou errados, eram meras conveniências que podiam ou não ser usadas conforme fossem úteis para conseguir o que importava: a administração “moderna”, a capacidade de ação “pronta e eficaz”, e o esperado progresso “moral e material”.

É possível que hoje,  como no Brasil nos anos 30, a grande tentação de imitar Goebbels não seja a ideologia grotesca do Nazismo, com o antissemitismo assassino, o nacionalismo doentio, o anti-intelectualismo e o culto macabro da morte e da violência, mas a indiferença ética e moral dos que colocam seus objetivos políticos, com boas ou más intenções, acima de tudo, e não se importam com os meios para chegar a seus fins. É isto que nos deve preocupar mais.

Prenúncios no Chile

(Versão ampliada do texto publicado em O Estado de São Paulo, 8 de novembro de 2019)

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Em Santiago recentemente, me surpreendi quando me disseram que a situação do país estava péssima, prenunciando as manifestações que viriam logo depois.  Visto por um brasileiro, o Chile é nosso sonho de consumo: a economia crescendo a 3% ao ano, a melhor educação e os menores índices de violência da região, pouca corrupção, uma redução dramática nos níveis de pobreza, e a cidade moderna e vibrante que é Santiago, integrada por um excelente sistema de metrô. O Chile é uma democracia estável desde a saída de Pinochet em 1989, e a Concertación de centro-esquerda que governou o país até 2010 investiu fortemente na área social, ao mesmo tempo em que manteve grande parte da economia de mercado instituída pelos “Chicago boys” dos anos anteriores. 

Claro que nem tudo são sonhos. O Chile ainda depende muito do preço internacional do cobre, e o PIB em 2019 não deve crescer muito. A desigualdade é grande, embora menor do que a brasileira. Os custos dos serviços de saúde e medicamentos são altos, e o sistema de capitalização das aposentadorias sem garantia de piso não deu certo, deixando a população mais velha, em grande parte, desamparada. O desemprego, ao redor dos 7%, não é alto, mas a informalidade e a precarização crescem. 

Mas os que mais protestam não são os mais velhos ou os mais pobres, mas, sobretudo, jovens estudantes das classes médias, conectados nas redes, inseguros quanto ao futuro e buscando um protagonismo que não conseguem ter. Na Faculdade de Educação aonde fui, o tema do momento eram as ocupações dos prédios feitas por movimentos feministas radicais exigindo o atendimento imediato a demandas que vão desde questões ligadas à igualdade de gênero, o fim do patriarcalismo e do assédio sexual, até temas mais gerais como o direito à habitação digna para todos e o fim da economia extrativista. E continua viva, na memória dos chilenos, a “revolta dos pinguins” de 2006 e 2011, estudantes secundários que iam às ruas em manifestações extremamente violentas contra governos de esquerda e de direita, Bachelet e Piñera, não somente contra a educação privada, mas contra a economia de mercado e o regime político como um todo. 

Minha apresentação no Chile foi sobre as quatro grandes funções que a educação deveria desempenhar como contribuição para o progresso social, como proposto pelo International Panel for Social Progress: o desenvolvimento da pessoa humana, o fortalecimento da cidadania, o desenvolvimento econômico e a equidade social. Os dois últimos temas têm monopolizado a atenção de governantes e pesquisadores, mas os dois primeiros parecem ter caído no esquecimento. Agora que o foco na educação são as competências, que sentido tem ainda dizer que as escolas devem “formar” as pessoas, mens sana in corpore sano, como nos velhos tempos?  Quando os modernos estados nacionais foram criados, nos séculos 18 e 19, a educação pública foi vista como o mecanismo para desenvolver, nos cidadãos, o sentido de pertencimento à nação, o domínio de uma língua comum e os conhecimentos necessários para viver em uma sociedade complexa. Agora que todas as informações estão na Internet, a vida social e os valores dos estudantes se estruturam a partir das redes sociais, da música popular e da cultura de juventude, ainda se pode esperar que as escolas desempenhem estes papéis?

Talvez devessem, mas não estão conseguindo, e talvez estejamos esperando da educação mais do que ela possa dar. Christian Cox, educador chileno que tem se dedicado ao tema, mostra como os currículos escolares em quase toda parte estão deixando de lado os temas clássicos de cidadania e coesão social,  substituídos por temas locais ou identitários, mas a grande questão é se estes conteúdos, mais tradicionais ou não, de fato são incorporados. No Chile, os importantes avanços na educação medidos pelos testes do PISA não levaram a um maior consenso, entre os estudantes, sobre o valor da democracia e as virtudes do modelo econômico e social estabelecido pelos governos desde o fim da ditadura, questões que, aliás, o PISA não avalia.

Uma das críticas que se faz à educação no Chile é que a introdução de um amplo sistema de financiamento público à educação privada, através de vouchers, que hoje atende a mais da metade da matrícula, junto com a cobrança de anuidades das universidades públicas, teriam tornado o acesso à educação mais desigual. A evidência parece mostrar que escolas privadas subsidiadas têm resultados melhores do que as públicas, mas em grande parte porque são mais seletivas, e os resultados escolares continuam dependendo fortemente da condição social das famílias. Com os vouchers, as famílias podem escolher aonde mandar os filhos, e a grande preferência é pelas escolas privadas, deixando as escolas públicas municipais com os alunos em piores condições, e com muitas dificuldades para melhorar. No ensino superior, um amplo sistema de bolsas, créditos educativos e a política mais recente de garantir gratuidade em qualquer instituição a alunos provenientes de famílias mais pobres, tem reduzido o problema da desigualdade de acesso por razões financeiras, e a combinação de financiamentos públicos e privados tem dado às universidades um dinamismo difícil de encontrar em outros países da região.

Há muita semelhança entre as manifestações chilenas de 2019, que começaram contra o aumento do metrô, e as manifestações paulistas de 2013, que começaram contra o aumento dos ônibus: demandas simples que vão se ampliando e dando vazão aos sentimentos de frustração e impotência das pessoas ante uma sociedade e economia que proporcionam muito menos do que gostariam. Algumas das demandas podem ser atendidas, mas nunca o suficiente para recuperar completamente a legitimidade recebida pelos governantes nas últimas eleições que disputaram. No Chile, ainda há que se aguardar para ver quais serão as consequências, mas um claro risco é o rompimento do grande consenso construído entre o centro-esquerda e o centro-direita nos últimos 20 anos que parecia estar levando o país a um patamar de desenvolvimento inédito na região. Se assim for, a democracia sofre, perde legitimidade, e o futuro não se afigura promissor.

Crônicas da Crise: livros disponíveis na Amazon


Volume 1: Política, governo, sociedade e pobreza: Edição Kindle  / Livro impresso

Volume 2: Educação geral, média e profissional:  Edição Kindle / Livro impresso

Volume 3 – Educação Superior, ações afirmativas, pós-graduação, ciência e tecnologia:  Edição Kindle / Livro Impresso

Estes três livros, disponíveis em formato eletrônico e em papel na Amazon,  reúnem pequenos textos publicados na Internet ou em jornais e revistas entre 2004, quando as políticas sociais e educacionais do governo Lula começam a ganhar forma, e 2017, em meio a uma crise política, social e econômica profunda, em que todos se indagam, ou deveriam se indagar, sobre o que deu errado na experiência desse período, e que alternativas temos pela frente.  O crescimento da economia, a expansão dos gastos sociais, o vigor dos debates e das campanhas eleitorais, tudo isto criou a esperança, para muitos, de que o país finalmente estaria mudando de patamar, deixando de ser um país subdesenvolvido marcado pela pobreza, baixa produtividade econômica e instabilidade política, e se transformando em uma moderna democracia menos desigual e com uma população cada vez mais educada e produtiva.  A educação, crescendo em todos os níveis e envolvendo recursos cada vez maiores, seria o grande instrumento para este salto de qualidade.

Eu também compartia a esperança de que isto seria possível, mas, desde o início, vi com muitas reservas as políticas sociais e educacionais que foram adotadas pelos sucessivos governos de Lula e Dilma, não só pelos equívocos que procurava identificar, mas sobretudo pelo contexto político mais amplo em que estas políticas se davam, e que não permitiam que elas fossem diferentes do que foram. Participei, nesses anos, de diversos debates públicos sobre bolsa família, reforma universitária, política de cotas e a reforma do ensino médio, entre outros, sempre com a sensação de que, independentemente da qualidade dos argumentos, que não eram só meus, as decisões seguiam uma outra lógica na qual a pertinência das ideias não tinha muito lugar. Pode ser que a crise atual crie a oportunidade para construir uma nova lógica de implementação de políticas públicas, onde a evidência dos dados, o acúmulo de conhecimentos da literatura especializada e a força dos argumentos tenham mais espaço.

Ao longo destes anos, editei e publiquei vários livros e artigos, quase todos disponíveis no Internet Archive, aonde procuro tratar destes diferentes temas com mais detalhe e profundidade, mas que, pela sua natureza, não têm como transmitir o calor do debate destes textos menores. Para facilitar a leitura, dividi os textos em artigos em três volumes, o primeiro lidando com questões de política, governo, sociedade e pobreza; o segundo com questões de educação geral, média e profissional; e o terceiro com questões de educação superior, ações afirmativas, pós-graduação e ciência e tecnologia. Dentro de cada um, os textos estão agrupados por temas semelhantes, sem respeitar muito a ordem cronológica em que foram escritos.

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