José Francisco Soares: O olhar da qualidade e da equidade sobre os resultados educacionais

O artigo 205 da Constituição federal, ao estabelecer o direito à educação, introduz duas perspectivas pelas quais a definição de políticas públicas educacionais devem ser analisadas: o direto das pessoas e o dever do Estado.  Ao dizer que o objetivo da educação é o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, indica que a concretização do direito à educação se dá quando o cidadão desenvolveu os aprendizados que lhe permitem as inserções sociais listadas no texto constitucional. Por outro lado, o artigo define o Estado e a família como responsáveis pelo provimento da educação.

Para operacionalizar o dever do Estado na Educação, a lei estabelece que os diferentes entes federados devem organizar sistemas de ensino que têm responsabilidade direta de gerir os meios que vão garantir o direito e são compostos das escolas, secretarias de educação e Conselhos de Educação. Diante disso, é natural e esperado que a administração pública tenha processos de monitoramento e avaliação para verificar como os sistemas de ensino atendem às necessidades educacionais dos cidadãos de seu território de atuação.  Este texto considera apenas o monitoramento do atendimento do direito de cada estudante, não tratando do monitoramento do dever do Estado. Esta escolha é contextual e não deve ser interpretada como minimização ou subalternização do estudo e monitoramento desta dimensão. 

Na visão do jurista[1], tomada como princípio neste texto, “proteger direitos significa realizar direitos”. Portanto, é preciso definir quais são as evidências que devem ser aceitas para que se possa afirmar que um sistema ensino está garantindo adequadamente o direito à educação aos estudantes de seu território de atuação.  Para definir estas evidências existem várias desafios a serem superados.

O artigo constitucional, ao definir os objetivos da educação, especifica os aprendizados que caracterizam o direito. No entanto, esta especificação é muito genérica, fato reconhecido pelo próprio constituinte que incluiu o artigo 210, o qual estabelece que “serão fixados conteúdos básicos para o ensino fundamental […]”. Esta determinação ensejou a criação de expectativas de aprendizagem que orientam a formulação dos projetos pedagógicos dos sistemas. De posse destas orientações, os testes para medir o nível de aprendizado dos estudantes, elemento fundamental para a verificação do direito, podem ser organizados.

Embora reconhecendo a importância dos aprendizados, é preciso salientar que a permanência do estudante na escola é a condição essencial para que o aprendizado ocorra. Fixados, então, os resultados que concretizam o direito – os aprendizados e a permanência – é preciso definir como estes dois construtos devem ser medidos.  Os aprendizados são medidos pelos testes das avaliações externas. Ou seja, a evidência mais comum da garantia do direito é completamente dependente da métrica usada no SAEB. Há claras evidências de que essa métrica capta uma visão muito superficial dos aprendizados necessários para uma inserção completa do cidadão na vida da sociedade brasileira.  No entanto, o SAEB é um sistema bem implementado com uma longa história de aplicação e, minimamente, produz resultados confiáveis, principalmente quando indica baixos níveis de aprendizados. Na reformulação do SAEB, necessária para a organização do novo ciclo de metas, será importante revisitar as matrizes nos quais os testes do SAEB são baseados.  Isso exige estudos técnicos, mas também construção de consenso social e comparações com as soluções adotadas em diferentes sistemas nacionais e internacionais.  

Já a permanência pode ser representada pelos quatro níveis em que a medida de trajetória dos estudantes é classificada: (i) regular, (ii) com poucas intercorrências, (iii) com muitas intercorrências e (iv) com interrupção, sendo “intercorrências” episódios como o de reprovação, evasão e abandono. Esta informação pode ser obtida no painel do Censo Escolar com acesso via sala segura do INEP.

Para serem usadas no monitoramento e avaliação do direito, estes dois resultados devem ser transformados em indicadores de qualidade e de equidade que podem, posteriormente, compor um indicador sintético. A metodologia proposta para isso é introduzida, inicialmente, para o resultado de aprendizado.

A visão da qualidade, entendida como nível adequado do indicador, implica em escolher uma síntese numérica das proficiências dos estudantes que instrumentalize o debate educacional sobre esta questão.  A forma mais simples de fazer isso é usar uma média dos valores, com alguma padronização, como feito no IDEB.   No entanto, esta opção legitima a “substituição” de um estudante por outro, ou seja, um estudante com notas mais altas acaba “compensando” outro com notas mais baixas. Isso não é adequado para o monitoramento do direito, situação em que cada pessoa é sujeito de direitos e, portanto, criar um estudante médio fictício e fazer sínteses a partir desta abstração, não é metodologia adequada.  

O artigo 205, quando diz que a educação é para todos, estabelece a equidade como critério essencial.  As evidências para consideração da equidade exigem reconhecer que os estudantes pertencem a grupos sociais diferentes. Para além disso, o olhar da equidade implica em considerar a diferença dos valores dos resultados nos grupos sociais, ordenados por algum fator social, conhecido por dificultar que os estudantes pertencentes a um determinado grupo tenham valores mais altos na medida de resultado. Uma situação ideal de garantia do direito apresentaria a mesma distribuição estatística do resultado em todos os grupos, com uma concentração em valores compatíveis com as inserções sociais objetivadas pela educação. Ou seja, equidade é um construto que prevê igualdade entre a distribuição do resultado entre os grupos sociais.

A definição destes grupos é a primeira etapa para o cálculo da equidade. Recente pesquisa[2][3], usou a porcentagem de estudantes que, depois de nove anos, têm trajetória regular, para ordenar os grupos, criados pela interseção de três variáveis: sexo, raça/cor e nível socioeconômico. Este artigo mostra uma grande diferença – 58 pontos em 100 – entre os grupos constituídos de estudantes do sexo masculino, pretos e matriculados em escola de baixa NSE, e o grupo com estudantes do sexo feminino, brancas e matriculadas em escolas de alto NSE.

Para o cálculo do indicador de equidade, há uma dificuldade adicional. Vários grupos socialmente importantes são muito pequenos em muitos territórios. Por exemplo, em muitas cidades o número de indígenas é pequeno, não permitindo comparações estáveis com outros grupos.  A solução consiste em agregar os diferentes grupos usados para especificar qual equidade se quer medir e formar quintís, com o primeiro agregando os estudantes que estão nos grupos mais vulneráveis o quinto agregando os estudantes menos vulneráveis. 

Um indicador de equidade consistiria, então, na diferença do indicador usado para sintetizar as proficiências ou a permanência em um conjunto de estudantes, entre os estudantes dos dois quintis extremos, naturalmente, com uma padronização posterior.  A solução de agregação dos grupos em quintis garante um grupo na base da hierarquia e outro grupo no topo, aproximadamente de mesmo tamanho.  

O infográfico abaixo ilustra a metodologia. Os resultados individuais na primeira linha apresentam os valores do indicador, tomando-se os estudantes como unidade de análise. Na segunda linha, os mesmos valores são agregados nos grupos, definidos para o estudo da equidade. Note que os grupos possuem tamanhos distintos quando esta agregação é feita. Finalmente, na terceira linha, para efeito do cálculo do indicador de equidade, os grupos são agregados a fim de comporem quintis, contendo cada um ~20% dos estudantes.

Figura 1 – Criação dos grupos para medir a equidade

A criação dos quintis garante que é possível calcular o tamanho das desigualdades presentes nos dados em qualquer situação, mesmo nos territórios em que alguns grupos tenham muito poucas observações. Isso é especialmente importante se os grupos da segunda linha fossem, por exemplo, as escolas de um território. O custo desta potência é que a medida de equidade é uma síntese das desigualdades para o conjunto dos grupos criados, não outros grupos que poderiam ser criados com as mesmas variáveis.

Embora o infográfico acima ilustre a metodologia para uso com dados de desempenho, com pequenas nuances a mesma metodologia pode ser usada também se o resultado for a permanência, que deve também ser analisada com o olhar da qualidade e da equidade.  Criados os indicadores para os dois resultados, a produção de um indicador sintético pode ajudar no debate educacional.  O segundo infográfico mostra como este indicador seria obtido.

Figura 2: Esquema de cálculo do indicador sintético

A reflexão deste texto é feita como subsídio para as discussões necessárias para adequar o IDEB ao novo momento social, em que as desigualdades educacionais estão colocadas no centro do debate. No entanto, a definição final exige a consideração de várias nuances o que só pode ser feito institucionalmente. No momento, a lei estabelece que é o INEP o órgão com esta responsabilidade.

Hoje, as avaliações e os indicadores existentes são forte indutor de desigualdades, já que há um padrão de desempenho para os estudantes da escola pública, que é baixo, e outro mais alto praticado pelas escolas privadas. É preciso que o Brasil avance no sentido de ter instrumentos mais indutores de qualidade e equidade.

Por fim, uma consideração adicional que deve ser feita no debate é a presença de fatores que geram exclusão e não são ainda medidos. Dois grupos precisam ser considerados. Os estudantes da comunidade LGBTQIA+ são, com frequência, submetidos a assédios escolares que tornam sua permanência na escola mais desafiadora e, consequentemente, o aprendizado mais difícil. Também os estudantes filhos de família onde há violência doméstica têm dificuldades especiais.

Referências:


[1] DA SILVA, Virgílio Afonso. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. Página 77

[2] SOARES, José Francisco; ALVES, Maria Teresa Gonzaga; FONSECA, José Aguinaldo. Trajetórias educacionais como evidência da qualidade da educação básica brasileira. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 38, 2021.  https://www.scielo.br/j/rbepop/a/9ZRM8LBTqQMHMDQNJDwjQZQ/

[3] https://www.linkedin.com/pulse/equidade-ao-centro-do-debate-educacional-francisco-soares-fwagf?trackingId=WLVNMk%2FuRByqcnnWofrAng%3D%3D&lipi=urn%3Ali%3Apage%3Ad_flagship3_profile_view_base_recent_activity_content_view%3BRMnUMmsbQESwEvMera4Hkg%3D%3D

Francisco Soares: Duas inovações na avaliação da educação básica

No fim do ano passado, o MEC introduziu duas inovações no seu ecossistema de avaliação da educação básica. Lançou um portal com testes de Leitura e Matemática para todos os anos do ensino fundamental e aplicou, em uma amostra de escolas, o Estudo Internacional de Progresso em Leitura (PIRLS), um teste de compreensão leitora adequado para os estudantes no quarto ano de escolarização.

Como argumentei recentemente, as recomendações da BNCC são muito genéricas e passíveis de diferentes interpretações. Assim as avaliações, ao concretizar os aprendizados pretendidos em tarefas, têm grande potencial de apoiar ou perturbar o ensino, já que os estudantes aprendem o que fazem. Esses dois novos instrumentos mostram como o MEC interpreta os comandos normativos da BNCC e, por isso, merecem ser conhecidos e analisados por todos os atores do debate educacional. Este texto pretende contribuir para esse debate com uma análise centrada em princípios e tecnologias da área de avaliação educacional, que deve ser complementada com a contribuição de outras visões pedagógicas e educacionais.

Em relação ao PIRLS, o MEC divulgou apenas a tradução do documento conceitual desse estudo, não o teste aplicado nos estudantes brasileiros. No entanto, muitos países, incluindo Portugal, já aderiram a essa avaliação, e há, portanto, muitos documentos que podem ser usados para conhecer seu escopo, metodologia e resultados.

O modelo conceitual do PIRLS estabelece que só através do uso de textos autênticos é possível gerar evidências sólidas sobre o desenvolvimento da compreensão leitora dos estudantes. Por isso, seu teste usa apenas dois textos, cada um, tipicamente, com mais de 400 palavras. O PIRLS considera que a compreensão leitora está desenvolvida apenas quando o estudante é capaz de mobilizar as várias habilidades necessárias para o entendimento do texto, as quais organiza em quatro categorias: Localizar e Recuperar informações explícitas, Fazer inferências diretas, Interpretar e integrar ideias e informações, Avaliar e Criticar. Para cada texto são formuladas em torno de 15 questões para verificar essas categorias. Algumas questões são de múltipla escolha, outras abertas, essas essenciais para se verificar o domínio de habilidades de maior complexidade cognitiva.

O PIRLS verifica não apenas o domínio de habilidades isoladas, mas também e principalmente seu uso concomitante para a construção do sentido do texto. Na realidade, a resposta a um item isolado não gera evidência de domínio de uma habilidade específica. Esse fato é comprovado ao se constatar que há itens que se referem à mesma habilidade, situados em pontos diferentes na escala. Finalmente, o PIRLS reconhece a importância de textos multimodais, cujo uso é cada vez mais frequente na internet e, portanto, devem estar no ensino e na avaliação da compreensão leitora.

Estas formulações são particularmente importantes para o debate sobre a reformulação do SAEB. Originalmente, ele preconizava o mesmo que é praticado pelo PIRLS. Com o passar do tempo, isso se perdeu. Hoje, os testes do SAEB e seus similares contêm itens cujo suporte são recortes de textos, não textos autênticos e, portanto, quase nunca representam situações de comunicação relevantes. O uso apenas de itens de múltipla escolha e a ênfase em habilidades específicas não permitem aos testes do SAEB gerar evidências adequadas sobre o desenvolvimento da competência leitora, já que a ideia de mobilização de aprendizados, essencial no conceito, não impacta adequadamente o planejamento do teste.

A segunda inovação foi a disponibilização de testes semelhantes aos do SAEB para todos os anos escolares, preparados para uso imediato pelas escolas e redes. Essa iniciativa facilita a prática, já bastante frequente, de uso dos testes de avaliações externas na rotina das escolas. Ela cria a possibilidade os itens e as respectivas respostas dos estudantes serem usados na preparação de devolutivas. Isso caracterizaria o uso formativo da avaliação externa, iniciativa muito necessária para torná-las mais relevantes pedagogicamente.

No entanto, as potencialidades positivas da iniciativa desaparecem quando se analisam as questões dos testes publicados. Detenho-me aqui apenas no teste do terceiro ano, que deve ser feito por estudantes de oito anos de idade, os quais, pelo Plano Nacional de Educação, deveriam estar alfabetizados. Assim, esse teste pode ser visto como a expressão operacional, na visão do MEC, do que sabe e do que não sabe fazer um estudante que completou o ciclo do “aprender a ler” e supostamente está pronto para iniciar a etapa do “ler para aprender”.

O teste analisado é constituído de 22 questões, cujo percentual de acertos será usado como medida do desempenho de cada estudante. As instruções de aplicação indicam que os enunciados de várias questões devem ser lidos pelo aplicador. Esse formato de aplicação é completamente inadequado para se verificar os aprendizados de estudantes que estão no fim do processo de alfabetização e devem, portanto, ler autonomamente. Sete das 22 questões verificam o desenvolvimento de habilidades de alfabetização, como as relações fonema/letra, em situações de irregulares ortográficas simples. Essas habilidades deveriam ter sido construídas nos anos anteriores e, portanto, não é razoável que um quarto da evidência coletada pelo teste do terceiro ano venha desse tipo de item.

Os textos incluídos no teste, na realidade recortes de textos, são muito pequenos e não permitem a formulação de questões de interpretação de texto. Por isso, muitas das questões que têm os textos como suporte no teste captam a capacidade de o estudante reconhecer o gênero discursivo e seus elementos constitutivos. Esse tipo de habilidade, embora uma expressão da competência leitora, informa pouco na ausência de questões de interpretação. A baixa complexidade das habilidades contempladas no teste pode ser verificada pelos verbos das habilidades associadas aos itens do teste: localizar, identificar e reconhecer, todos indicando processos cognitivos da ordem mais baixa. O teste não verifica as habilidades com demandas cognitivas mais altas e não inclui questões que verifiquem as habilidades de escrita, essenciais na alfabetização, que estavam presentes no teste da ANA, Avaliação Nacional da Alfabetização, o padrão de desempenho usado anteriormente.

Ou seja, esse teste não gera informações sólidas sobre a compreensão leitora dos estudantes ao fim do ciclo de alfabetização. Além disso, tem um nível de demanda muito baixo e, portanto, as escolas terão resultados altos que, em vez de indicarem excelência, apenas legitimarão um nível de domínio superficial e insuficiente da compreensão leitora. Isso é particularmente grave educacionalmente, pois crianças que não aprendem a ler até o final do terceiro ano do ensino fundamental tendem a ter dificuldade de leitura pelo resto de suas vidas e, provavelmente, terão dificuldades de desenvolver outros conhecimentos, todos dependentes de proficiência na compreensão leitora.

Em síntese, o MEC envia mensagens contraditórias com suas duas recentes iniciativas. Por um lado, coloca um padrão muito baixo de aprendizado ao fim de ciclo de alfabetização. Por outro, divulga a definição de compreensão leitora latente nos melhores modelos conceituais existentes. Não seria o caso de o MEC e construir um sistema para subsidiar as avaliações formativas nas escolas, através de plataforma com interface bem-feita, como a criada para os testes divulgados usando entretanto, o modelo conceitual do PIRLS?

Francisco Soares: Duas inovações na avaliação da educação básica

No fim do ano passado, o MEC introduziu duas inovações no seu ecossistema de avaliação da educação básica. Lançou um portal com testes de Leitura e Matemática para todos os anos do ensino fundamental e aplicou, em uma amostra de escolas, o Estudo Internacional de Progresso em Leitura (PIRLS), um teste de compreensão leitora adequado para os estudantes no quarto ano de escolarização.

Como argumentei recentemente, as recomendações da BNCC são muito genéricas e passíveis de diferentes interpretações. Assim as avaliações, ao concretizar os aprendizados pretendidos em tarefas, têm grande potencial de apoiar ou perturbar o ensino, já que os estudantes aprendem o que fazem. Esses dois novos instrumentos mostram como o MEC interpreta os comandos normativos da BNCC e, por isso, merecem ser conhecidos e analisados por todos os atores do debate educacional. Este texto pretende contribuir para esse debate com uma análise centrada em princípios e tecnologias da área de avaliação educacional, que deve ser complementada com a contribuição de outras visões pedagógicas e educacionais.

Em relação ao PIRLS, o MEC divulgou apenas a tradução do documento conceitual desse estudo, não o teste aplicado nos estudantes brasileiros. No entanto, muitos países, incluindo Portugal, já aderiram a essa avaliação, e há, portanto, muitos documentos que podem ser usados para conhecer seu escopo, metodologia e resultados.

O modelo conceitual do PIRLS estabelece que só através do uso de textos autênticos é possível gerar evidências sólidas sobre o desenvolvimento da compreensão leitora dos estudantes. Por isso, seu teste usa apenas dois textos, cada um, tipicamente, com mais de 400 palavras. O PIRLS considera que a compreensão leitora está desenvolvida apenas quando o estudante é capaz de mobilizar as várias habilidades necessárias para o entendimento do texto, as quais organiza em quatro categorias: Localizar e Recuperar informações explícitas, Fazer inferências diretas, Interpretar e integrar ideias e informações, Avaliar e Criticar. Para cada texto são formuladas em torno de 15 questões para verificar essas categorias. Algumas questões são de múltipla escolha, outras abertas, essas essenciais para se verificar o domínio de habilidades de maior complexidade cognitiva.

O PIRLS verifica não apenas o domínio de habilidades isoladas, mas também e principalmente seu uso concomitante para a construção do sentido do texto. Na realidade, a resposta a um item isolado não gera evidência de domínio de uma habilidade específica. Esse fato é comprovado ao se constatar que há itens que se referem à mesma habilidade, situados em pontos diferentes na escala. Finalmente, o PIRLS reconhece a importância de textos multimodais, cujo uso é cada vez mais frequente na internet e, portanto, devem estar no ensino e na avaliação da compreensão leitora.

Estas formulações são particularmente importantes para o debate sobre a reformulação do SAEB. Originalmente, ele preconizava o mesmo que é praticado pelo PIRLS. Com o passar do tempo, isso se perdeu. Hoje, os testes do SAEB e seus similares contêm itens cujo suporte são recortes de textos, não textos autênticos e, portanto, quase nunca representam situações de comunicação relevantes. O uso apenas de itens de múltipla escolha e a ênfase em habilidades específicas não permitem aos testes do SAEB gerar evidências adequadas sobre o desenvolvimento da competência leitora, já que a ideia de mobilização de aprendizados, essencial no conceito, não impacta adequadamente o planejamento do teste.

A segunda inovação foi a disponibilização de testes semelhantes aos do SAEB para todos os anos escolares, preparados para uso imediato pelas escolas e redes. Essa iniciativa facilita a prática, já bastante frequente, de uso dos testes de avaliações externas na rotina das escolas. Ela cria a possibilidade os itens e as respectivas respostas dos estudantes serem usados na preparação de devolutivas. Isso caracterizaria o uso formativo da avaliação externa, iniciativa muito necessária para torná-las mais relevantes pedagogicamente.

No entanto, as potencialidades positivas da iniciativa desaparecem quando se analisam as questões dos testes publicados. Detenho-me aqui apenas no teste do terceiro ano, que deve ser feito por estudantes de oito anos de idade, os quais, pelo Plano Nacional de Educação, deveriam estar alfabetizados. Assim, esse teste pode ser visto como a expressão operacional, na visão do MEC, do que sabe e do que não sabe fazer um estudante que completou o ciclo do “aprender a ler” e supostamente está pronto para iniciar a etapa do “ler para aprender”.

O teste analisado é constituído de 22 questões, cujo percentual de acertos será usado como medida do desempenho de cada estudante. As instruções de aplicação indicam que os enunciados de várias questões devem ser lidos pelo aplicador. Esse formato de aplicação é completamente inadequado para se verificar os aprendizados de estudantes que estão no fim do processo de alfabetização e devem, portanto, ler autonomamente. Sete das 22 questões verificam o desenvolvimento de habilidades de alfabetização, como as relações fonema/letra, em situações de irregulares ortográficas simples. Essas habilidades deveriam ter sido construídas nos anos anteriores e, portanto, não é razoável que um quarto da evidência coletada pelo teste do terceiro ano venha desse tipo de item.

Os textos incluídos no teste, na realidade recortes de textos, são muito pequenos e não permitem a formulação de questões de interpretação de texto. Por isso, muitas das questões que têm os textos como suporte no teste captam a capacidade de o estudante reconhecer o gênero discursivo e seus elementos constitutivos. Esse tipo de habilidade, embora uma expressão da competência leitora, informa pouco na ausência de questões de interpretação. A baixa complexidade das habilidades contempladas no teste pode ser verificada pelos verbos das habilidades associadas aos itens do teste: localizar, identificar e reconhecer, todos indicando processos cognitivos da ordem mais baixa. O teste não verifica as habilidades com demandas cognitivas mais altas e não inclui questões que verifiquem as habilidades de escrita, essenciais na alfabetização, que estavam presentes no teste da ANA, Avaliação Nacional da Alfabetização, o padrão de desempenho usado anteriormente.

Ou seja, esse teste não gera informações sólidas sobre a compreensão leitora dos estudantes ao fim do ciclo de alfabetização. Além disso, tem um nível de demanda muito baixo e, portanto, as escolas terão resultados altos que, em vez de indicarem excelência, apenas legitimarão um nível de domínio superficial e insuficiente da compreensão leitora. Isso é particularmente grave educacionalmente, pois crianças que não aprendem a ler até o final do terceiro ano do ensino fundamental tendem a ter dificuldade de leitura pelo resto de suas vidas e, provavelmente, terão dificuldades de desenvolver outros conhecimentos, todos dependentes de proficiência na compreensão leitora.

Em síntese, o MEC envia mensagens contraditórias com suas duas recentes iniciativas. Por um lado, coloca um padrão muito baixo de aprendizado ao fim de ciclo de alfabetização. Por outro, divulga a definição de compreensão leitora latente nos melhores modelos conceituais existentes. Não seria o caso de o MEC e construir um sistema para subsidiar as avaliações formativas nas escolas, através de plataforma com interface bem-feita, como a criada para os testes divulgados usando entretanto, o modelo conceitual do PIRLS?

José Francisco Soares: está na hora de mudar o IDEB?

O INEP divulgou no dia 15 de setembro/2020 os resultados do IDEB referentes a 2019. Há muitos avanços a comemorar. Desde que foi lançado, em 2007, o IDEB tornou-se a principal referência para  Educação Básica brasileira, usado para a definição e monitoramento das políticas públicas educacionais. Foi incluído na lei do Plano Nacional de Educação 2014-2024 e, assim, hoje, melhorar a educação básica brasileira passou a ser sinônimo de melhorar o IDEB.  Diante disso, considerando sua profunda influência, a informação gerada pelo indicador deve receber amplos e detalhados escrutínios. 

O IDEB se baseia em dois resultados que são essenciais para definir a qualidade da educação e, consequentemente, para o  monitoramento do direito à educação: a escolarização e o aprendizado.  A escolarização é medida pelas taxas de aprovação, ou seja, a proporção de alunos que passam ou não de ano, e o aprendizado pelo  SAEB, através dos testes de  português e matemática.  Mas, em determinadas situações, o IDEB, em vez de ajudar, pode contribuir para a exclusão educacional de estudantes, como consequência das métricas usadas tanto para a escolarização quanto para o aprendizado.  

Ao usar apenas as taxas de aprovação para medir a escolarização, o IDEB não considera os estudantes que, no ano de cálculo do indicador, estão fora da escola, fruto de evasão escolar anterior. Estes estudantes são que mais precisam do apoio do sistema de educacional mas, paradoxalmente, não influenciam o indicador de qualidade deste sistema. O IDEB,  portanto, não  incentiva os gestores a criarem ações para atender os estudantes evadidos. 

A medida de aprendizado usada no Saeb tem duas limitações sérias. Primeiro, a expectativa de aprendizagem é muito baixa. Podemos ver isto comparando o texto considerado para a avaliação de leitura do aluno brasileiro com o de Portugal, país com língua quase igual à nossa – o nosso é muito mais simples. Os documentos da prova internacional de capacitação em leitura, PRILS, que pode ser chamado de PISA do Ensino Fundamental e é aplicado em Portugal para estudantes que no Brasil estariam no quarto ano, mostram a diferença na complexidade dos textos usados nessa avaliação e os utilizados na Prova Brasil. A segunda limitação dos testes é a adoção  apenas de questões de múltipla escolha, que só permitem contemplar processos cognitivos mais elementares. 

Além das métricas, as opções de agregação das duas medidas em um indicador também podem gerar exclusões indevidas.  Como o  IDEB usa as proficiências médias dos estudantes de um território,  o desempenho alto de um estudante nas provas compensa o desempenho baixo de outros. Ocorre que o direito à Educação é direito de cidadãos reais, não de um indivíduo médio hipotético. 

Além disso o uso de médias permite que, mesmo quando IDEB é alto, existam estudantes com baixo desempenho. A divulgação dos resultados de aprendizado é mais útil quando feita através de faixas ou níveis. O movimento “Todos pela Educação” criou dois níveis para sintetizar o desempenho dos estudantes. Usou para isso um ponto de corte com a mesma metodologia utilizada para definir as metas do IDEB. Cada um desses dois níveis foi dividido, em alguns sistemas estaduais de avaliação, em dois outros, criando-se quatro níveis: Abaixo do Básico, Básico, Adequado e Avançado. Como mostramos a Profa. Flávia Xavier e eu em um artigo, é só quando IDEB  passa de  6,5 que podemos ter certeza de que não existem estudantes com desempenho no nível Abaixo do Básico. No entanto, valores altos do IDEB, como os situados entre 5,5 e 6,5, são compatíveis com altas proporções de estudantes no nível Abaixo do Básico. Esses estudantes sofrem um processo de “apagamento” institucional, podendo deixar de receber atenção em uma escola ou município que está comemorando o valor do IDEB. 

O IDEB é também insensível a desigualdades. O Brasil é um país profundamente desigual, também na Educação. Usando o indicador de nível socioeconômico (NSE) que desenvolvemos, Profa. Teresa Alves e eu, na Faculdade de Educação da UFMG, mostramos que a diferença de desempenho entre os estudantes do primeiro quinto quintil do NSE pode chegar a dois anos de escolarização. Essa constatação exige o desenho de políticas públicas para a sua superação,  o que não ocorre com o uso apenas da evidência do IDEB.  A associação entre o NSE da escola e o IDEB é muito alta. Apesar disso, há municípios que festejam as escolas de IDEB mais alto, certamente obtido por trabalharem com estudantes que trazem mais de casa, como se o resultado fosse apenas da escola

Diante disso, é importante ter novos indicadores para monitorar a qualidade da educação. Essa é uma pauta urgente, tendo em vista que, para alocar parte dos recursos do novo Fundeb, serão usados indicadores de “eficiência” e “efetividade”. Se esses recursos forem alocados apenas conforme os resultados do IDEB atual, as exclusões  comentadas acima ganharão incentivo financeiro para serem continuadas. Um esforço nesse sentido foi feito com o desenvolvimento recente do indicador de desigualdades e aprendizagem, o IDeA. 

O monitoramento da Educação Básica, além do IDEB, deve incluir indicadores da qualidade da trajetória de escolarização dos estudantes e de desigualdade conforme o nível socioeconômico, pela cor-raça e pelo gênero, pelo menos. Além disso, é preciso mudar a métrica de medida do aprendizado, aproximando-a às necessidades do mundo atual – a Base Nacional Comum Curricular aprovada é a principal referência para esse aprimoramento.

O uso desses indicadores deve ensejar uma política educacional universal de “maximização do desempenho mínimo”. Isso porque o baixo desempenho nos diferentes grupos é a característica que explica mais desigualdades. Esse objetivo, obviamente, não deve ser o único a ser perseguido. Claro, essa política deve ser acoplada a outras que visem à maximização da excelência. Tanto a maximização dos mínimos como a maximização da excelência são diretrizes que têm como alvo o nível de aprendizado dos estudantes. Se o país busca uma situação de justiça educacional, esses objetivos devem ser acompanhados de um outro, a equidade, que pode ser expressa assim: tanto o percentual de estudantes com proficiência mais baixa quanto o percentual de estudantes com alto desempenho devem ser iguais em todos os grupos sociais observados.

Nesse processo de repensar o indicador, é preciso também repensar o uso da avaliação  educacional. É necessário colocá-la  mais claramente a serviço da aprendizagem e, portanto, da garantia do direito à educação. Ou seja, é preciso ter mais avaliação formativa, mais devolutivas para os estudantes,  plataformas públicas que permitam a colaboração  entre professores, gestores, famílias e estudantes, uma expressão fundamental de solidariedade educacional. 


Ensino médio sem aberração, e a base fraturada

 

Ensino médio sem aberração

(Publicado no jornal  O Globo, 12/8/2018)

A poucos meses das eleições, antes que o governo termine, o Ministério da Educação se mobiliza para organizar o novo ensino médio, reformado pela lei 13.415 de fevereiro de 2017. Há pouca clareza, no entanto, sobre como isto será feito, e muitas críticas baseadas muitas vezes em pouca informação sobre o problema e possíveis encaminhamentos.

A necessidade da reforma é clara: dos jovens que têm hoje 25 anos, 13% completaram o ensino superior, 15% ainda estão estudando neste nível, 41% só completaram o ensino médio, e 31% não chegaram lá. Todas as escolas preparam para um exame único, o ENEM, que obriga a todos a estudar um monte de matérias que serão esquecidas no dia seguinte, e só beneficia um pequeno número que consegue entrar nas universidades públicas ou ganhar uma das bolsas do PROUNI. Dos que entram em uma universidade, pública ou privada, metade abandona antes de terminar. Entre 2004 e 2014, o Brasil triplicou os investimentos por aluno no ensino médio, mas a qualidade permanece estagnada: a grande maioria termina sem saber um mínimo de matemática e de linguagem, e fica com um título que lhe serve de muito pouco na vida.

A lei da reforma tentou juntar propostas que já vinham sendo elaboradas pela Comissão de Educação da Câmara de Deputados, liderada pelo Deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) e pelo Conselho de Secretários Estaduais de Educação, e acomodar diferentes pontos de vista que foram se manifestando nos debates da proposta inicial, apresentada como Medida Provisória. Ficou meio tosca, mas algumas coisas importantes foram aprovadas:

– Ao invés de obrigar todo mundo a estudar tudo, os estudantes passam a se aprofundar em determinadas áreas (os “itinerários formativos”), a partir de um conjunto mínimo de áreas comuns de formação.

– O ensino técnico de nível médio, que até hoje tem sido uma área adicional ao currículo tradicional, passa a ficar dentro, como um dos itinerários possíveis

– Ao invés de organizar o currículo por matérias e aulas tradicionais, os conteúdos passam a ser estabelecidos por grandes temas e competências.

– O tempo de aula, que hoje é de quatro ou até menos horas por dia, passa a cinco horas, e, na medida do possível, para tempo integral.

Com isto, o ensino médio no Brasil deixa de ser uma aberração e se torna mais parecido com o que ocorre no resto do mundo. Para que isto funcione, existem muitas coisas que precisam ser feitas. Primeiro, definir com clareza qual é a parte comum e quais as principais trajetórias, ou itinerários formativos, que os alunos podem seguir. O documento da Base Nacional Curricular Comum do Ensino Médio publicado meses atrás pelo MEC tentou fazer parte disso, mas não ficou bom. Segundo, substituir o atual ENEM unificado por um conjunto de provas distintas a ser feitas pelos alunos conforme suas trajetórias e expectativas de estudo. Terceiro, fortalecer o ensino técnico e profissional de nível médio, que pode ser a melhor opção para muitos, mas não pode ser um beco sem saída para quem queira continuar estudando. Quarto, acabar efetivamente com o ensino médio noturno, que não funciona na prática e ainda é a realidade de 25% dos alunos.

Mais complicado do que tudo isto será mudar a cultura das escolas e a prática tradicional de nossos professores, de que a educação se reduz a horas de aula com os professores falando e os alunos repetindo. No novo ensino médio, devem preponderar o aprofundamento dos temas, o desenvolvimento de projetos, os altos padrões de exigência e, ao mesmo tempo, o reconhecimento de que nem todos podem fazer de tudo, mas cada um deve poder fazer o melhor dentro de suas escolhas e suas possibilidades.

O MEC e o Conselho Nacional de Educação fazem bem em querer terminar este ano com pelo menos as linhas mestras do novo sistema já esboçados. Mas é importante entender que este é só o começo de um longo processo que precisa ser acompanhado de outras reformas, não menos importantes, na educação pré-escolar, fundamental e superior.


Fraturas na Base

Para quem quiser se aprofundar sobre os problemas da Base Nacional Curricular Comum elaborada pelo Ministério da Educação, o Instituto Alfaebeto acaba de publicar um  livro que pode ser baixado gratuitamente, Fraturas na Base: Fragilidades estruturais da BNCC,  editado por João Batista Araujo e Oliveira, que critica tanto o conteúdo do texto quanto o processo pelo qual ele foi preparado.

Segundo o editor, “o produto peca por diversas razões. O nome do documento já suscita problemas. Na maioria dos países o nome usado para o documento nacional de orientação da atividade escolar é programa de ensino ou currículo. Esse documento indica, com clareza, o que deve ser ensinado nas diferentes etapas de ensino. O que varia nos diversos países é o grau de detalhamento. Já a nossa base ficou no meio do caminho – ninguém sabe ao certo se falta algo ou o que ainda será preciso fazer nos estados e municípios. E o documento não prima pela clareza”.

“Um segundo problema decorre do primeiro: por não se definir como currículo a BNCC não leva em consideração os pilares básicos de um currículo – estrutura e sequência. Praticamente só a Matemática recebe um tratamento adequado. Também – como ficará claro da leitura dos vários capítulos deste livro – a BNCC não passa no teste dos três critérios fundamentais para avaliar a qualidade de um currículo, foco, rigor e consistência. Mas, dirão os seus proponentes – afinal a BNCC não é currículo, portanto…. não precisa ter essas características… Mas então, afinal o que é essa BNCC? E quais seriam critérios adequados para sua formulação e sua avaliação?”

Boa leitura!

Chico Soares: Contribuição para o debate sobre competências

 

Contribuição para o debate sobre competências

CHICOsoares (*)

  1. Caveat

Mineiro e escaldado, entro no debate sobre competências com uma nota de precaução. Andrei Sakharov, cientista e prêmio Nobel da Paz, disse certa vez que ideias transformadoras aparecem apenas através de debates, nos quais há longa sequência de troca de argumentos, e nos quais seus participantes expressam tanto ideias já solidamente justificadas, como também dúvidas, perguntas e propostas de soluções ainda em estágio inicial de formulação.  Sei que isso é muito difícil de acontecer hoje no Brasil, um país dividido em tudo, mas assumo que isso é verdade nessa discussão.

  1. Este debate é necessário

O tema da competência é importante. Afinal o uso desta opção de organização do trabalho pedagógico é uma das respostas possíveis para o problema dos conhecimentos inertes, usualmente associados com o texto The aims of Education de Alfred Whitehead. O autor diz que a inclusão de itens no currículo escolar deve ser baseada na sua relevância para a vida dos estudantes.  Crachay e Marcoux, em um texto construído em uma tradição muito crítica ao uso de competências na educação, reconhecem a importância nessa dimensão.

  1. Polissemia

Não há na literatura uma definição consensual do conceito de competência. Diferentes atores usam este termo com sentidos similares, mas cujas diferenças tem impactos pedagógicos. O conceito adotado mais amplamente no Brasil não é o mesmo adotado pelo PISA e OCDE, a definição mais influente no debate mundial educacional

  1. Definição – OCDE

Para a organização do PISA, a OCDE organizou um grupo de trabalho: DeSeCo – Defining and Selecting Key Competencies. O artigo de Weinert (2001) conclui que “não existe uma definição única do confeito de competência aceita amplamente nem uma teoria latente”. Assim sua recomendação, aceita por muitos, foi adotar uma definição funcional do conceito. Para ele,

“Competência é a capacidade atender com êxito demandas complexas em um contexto particular, através da mobilização de pré-requisitos psicossociais (incluindo aspectos cognitivos e não-cognitivos. Esta definição foi também adotada pela União Europeia que define competência como uma combinação de conhecimentos, habilidades (skills) e atitudes exigidas pelo contexto”.

Esta definição foi recentemente reafirmada pela OCDE no texto The Future of Education and Skills – The Future we want.

Há três polos nessa definição: contexto específico, mobilização e diversidade de recursos: conhecimentos, habilidades e atitudes. Nessa definição, o foco principal do conceito está nas ações, escolhas e maneira de se comportar com que cada pessoa enfrenta os problemas que a vida lhe põe.

  1. Nomenclatura

Nesta abordagem, as palavras “skill”e “competence”, traduzidos usualmente para o português do Brasil como habilidade e competências, referem-se a conceitos diferentes, ainda que associados. O relatório do DeSeCo é enfático ao afirmar que “nem os componentes cognitivos nem os aspectos motivacionais isoladamente constituem uma competência. Por exemplo, habilidades (skills) de pensamento crítico, habilidades analíticas, capacidade de solução de problemas gerais, ou persistência não são competências, porque não descrevem uma resposta individual completa a uma demanda específica.Constituem, no entanto, elementos valiosos, se não indispensáveis de competência de ação.” A ideia de que o conceito de competência está associado à capacidade de resolver problemas específicos e complexos, como são os da vida cotidiana, tem consequências tanto na organização do ensino como da avaliação

  1. Avaliação de Competências

O PISA é organizado por competências e, por isso, a OECD desenvolveu documentos conceituais que descrevem as competências que avalia: Leitura, Matemática e Ciências. Importante para o debate brasileiro notar que o PISA não descreve estas competências como um conjunto de habilidades.  Os itens incluídos nos testes do PISA são escolhidos analisando a relevância da tarefa proposta e sua adequação para expressar a competência a ser testada. Aceita a sua relevância, a etapa seguinte do processo de produção do item envolve uma análise detalhada do item para a identificação dos conhecimentos e habilidades necessários para que os estudantes produzam a resposta correta.  Ou seja, o PISA trabalha indo do conceito de competência para o de habilidades. A discussão no Brasil se organiza da forma oposta. Com frequência a instrução para a construção do item é o texto da habilidade.

  1. Ensino por Competências

A opção por organizar por competências tem claro impacto na organização do ensino. Como consequência lógica da sua definição, o ensino organizado por competências deve ser organizado através da exposição dos estudantes a situações reais que exigem determinados conhecimentos, habilidades, atitudes e o discernimento possibilidade pelos valores.  Isso foi formalizado com a abordagem pedagógica denominada “situated learning theory”, introduzida por Lave e Wenger (1991),  que preconiza que qualquer conhecimento é criado apenas pela participação dos estudantes em ações concretas em diferentes contextos.

  1. Vocabulário comum

Na forma atual do debate, o termo competência é usado por diferentes atores e textos legais e normativos com sentidos diferentes. Como argumentado acima, a posição da OEDC não pode ser usada para justificar todas as posições no nosso debate, já que a definição daquela organização se baseia em pontos não considerados por muitos dos atores brasileiros:  a essencialidade de problemas concretos e a impossibilidade de reduzir a competência a seus componentes e a ênfase apenas em aspectos cognitivos.  Algum acordo conceitual é necessário.

  1. Alternativas conceituais

Além da abordagem por competência, pode-se considerar a alternativa de organização por objetivos de aprendizagem, usada nas experiências americanas, ou aquela defendida por  Michael Young, um sociólogo do currículo inglês que responde à questão: ‘Qual é o conhecimento a que os alunos têm direito?’ sugerindo uma organização disciplinar para as recomendações curriculares comuns de um país. Usa para apoiar sua posição o conceito de conhecimento poderoso.  Naturalmente todas estas opções se interconectam e não devem ser confundidas com opções sobre a pedagogia – a forma de ensinar – apropriada. O estudante do século 21 pede pedagogias ativas como: debates estruturados, discussões mediadas, discussão de eventos atuais, jogos cooperativos, aprendizagem baseada em projetos, aprendizagem pela participação em serviços

  1. Continuar o debate

Pessoalmente entendo que a solução para o problema dos conhecimentos inertes deve ser construída com a contribuição da noção de competência. No entanto, isso não resolve o problema de como organizar as recomendações curriculares comuns para os sistemas de ensino. Nos próximos meses é importante concentrar o debate na reorganização do ensino médio, considerando o que a lei que já estabelece.

Há uma parte obrigatória: Língua Portuguesa, Matemática e Língua estrangeira, constituída daquilo que todos os estudantes devem saber. Esta parte é continuação do Ensino Fundamental II, onde a organização por competências tem justificativas mais fortes, como mostra a experiência e os documentos do PISA, que é aplicado em estudantes, idealmente, no fim da educação obrigatória (que na maioria dos países é aos 15 ou 16 anos). A terceira parte do currículo do ensino médio preconizado pela lei consiste de uma parte específica – os itinerários propedêuticos e técnicos.  Nesta parte o estudante deve ser exposto às formas pelas quais o conhecimento é produzido e transferido, e não somente como é usado. Por isso, nesta etapa é fundamental a possibilidade de opção pessoal, diferentemente do Ensino Fundamental II, que deve ter muito claramente um núcleo comum.  Cada uma destas três etapas exige uma pedagogia específica.

  1. Coda

Termino reafirmando meu caveat inicial, desta vez com uma licença poética em um verso de Raul Seixas.  “E para aquele que mostrar que eu estou errado, eu tiro o meu chapéu”

  1. Referências

Crahay, M., & Marcoux, G. (2016). “Construir e mobilizar conhecimentos numa relação crítica com os saberes”. Cadernos de Pesquisa, 46(159), 260-273.

Figel, J. (2007). Key competences for lifelong learning-European reference framework. Luxembourg: Office for Official Publications of the European Communities. Retrieved May, 25, 2009.

Lave, J., & Wenger, E. (1991). Situated learning: Legitimate Peripheral Participation. Cambridge University Press.

OECD.  2006. PISA 2006 Technical Report.

OECD. 2018. The Future of Education and Skills – The Future we want.

Weinert, F. E. (2001).” Concept of competence: A conceptual clarification”. In Rychen, D. S. E., & Salganik, L. H. E. (2001). Defining and selecting key competencies (pp. 45- 65) Gottingen, Germany: Hogrefe & Huber

Whitehead, A. N. (1959). The aims of education. Daedalus, 88(1), 192-205.

Young, M. (2014). “Superando a crise na teoria do currículo: uma abordagem baseada no conhecimento”. Cadernos Cenpec| Nova série, 3(2).


(*) José Francisco Soares, matemático e estatístico, é professor aposentado da UFMG, membro do Conselho Nacional de Educação e ex-presidente do INEP.

Ainda a alfabetização na BNCC

Enquanto as escolas públicas brasileiras não conseguirem alfabetizar bem seus alunos, os debates sobre como entender e lidar com o problema continuarão. Sem ser um especialista,  tenho aproveitado este espaço para circular diferentes pontos de vista sobre o assunto, que incluem uma nota de um grupo de especialistas criticando a maneira pela qual o tema é tratado na Base Nacional Curricular Comum recentemente aprovada, uma resposta das autoras às críticas, e um esclarecimento de José Francisco Soares sobre como o CNE decidiu lidar com o fato de que não existe consenso a este respeito entre os especialistas.

Agora recebo um outro documento do primeiro grupo, buscando esclarecer em mais detalhe seu entendimento, que está disponível no site do Instituto Alfa e Beto na Internet. Neste documento, os autores buscam explicar o que é alfabetizar, a relação entre alfabetização e compreensão, o que significa “letramento”, discutem a questão dos métodos, a do momento e duração do processo de alfabetização, e as implicações que os diferentes entendimentos sobre este processo podem ter para o sucesso ou fracasso das políticas educacionais do país.

O assunto não é novo. Em 2011 a Academia Brasileira de Ciências organizou um grupo de trabalho sobre “Aprendizagem Infantil –  Uma abordagem da neurociência, economia e psicologia cognitiva“, onde o tema foi tratado em profundidade. Antes ainda, em 2007, a Câmara de Deputados organizou um grupo de trabalho sobre alfabetização infantil, cujas conclusões também estão disponíveis na Internet.

O que seria de se esperar era que, ao longo destes anos, a discussão, os esclarecimentos conceituais e sobretudo o acúmulo da evidência de experiências e das pesquisas no Brasil e no exterior levassem a uma convergência de pontos de vista, que pudessem estar claramente apresentados na Base Nacional Curricular Comum. O que se vê, infelizmente, é que os argumentos se repetem e a discussão não sai do lugar. Assim, dou por encerrada, por agora, a divulgação deste debate neste site, que provavelmente continuará em outros espaços; espero poder voltar ao tema quando tivemos bons resultados a comemorar.

E com esta esperança, aproveito para desejar a todos boas festas e um 2018 que nos permita renovar as esperanças sobre o futuro.

 

 

José Francisco Soares: A controvérsia sobre alfabetização na Base Nacional Curricular Comum

Sobre a controvérsia de como melhor alfabetizar as crianças nas escolas brasileiras, comparto a nota abaixo de José Francisco Soares, ex-presidente do INEP e membro do Conselho Nacional de Educação:

 

A Alfabetização na BNCC

A BNCC é um documento político e normativo, já que seu objetivo é fixar os “direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento”.  No entanto, necessariamente, usa conceitos pedagógicos nos seus enunciados que, entretanto, não são suficientemente detalhados para orientar a organização do ensino nas redes e escolas de educação básica.

A alfabetização é definida no artigo 12 da resolução do CNE que institui a BNCC nos seguintes termos

No primeiro e no segundo ano do Ensino Fundamental, a ação pedagógica deve ter como foco a alfabetização, de modo a garantir aos estudantes a apropriação do sistema de escrita alfabética, a compreensão leitora e a escrita de textos com complexidade adequada à faixa etária dos estudantes, e o desenvolvimento da capacidade de ler e escrever números, compreender suas funções, bem como o significado e uso das quatro operações matemáticas.”

Este artigo cria uma pauta pedagógica a ser desenvolvida pelos múltiplos atores educacionais. A partir do comando da norma será preciso definir exatamente o sentido do conceito de “sistema de escrita alfabética” e criar uma forma objetiva de definir quais textos que as crianças demonstrem ser capazes de criar e  ler serão considerados como evidências de que seu direito à alfabetização foi garantido.

Isso deve ser feito nos diferentes sistemas de ensino e mesmo nas escolas, conforme facultado pela LDB. No entanto, é esperado que a União também faça sua definição, pois será baseado neste entendimento que as avaliações como a ANA – Avalição Nacional da Alfabetização serão construídas.

A BNCC criou, portanto, um mecanismo claro que permite à sociedade brasileira monitorar o sucesso da alfabetização nas suas escolas. Este monitoramento é função claramente política a partir de um conteúdo pedagógico.

O documento enviado pelo MEC ao CNE foi incluído como um anexo da resolução sendo, portanto, um dos documentos que compõem a BNNC, inclui explicações dos objetivos de aprendizagem e também orientações pedagógicas. Durante o processo de análise e discussão deste documento no CNE, várias comunidades acadêmicas manifestaram dissensos sobre as opções das equipes, contratadas pelo MEC, que redigiram os diferentes capítulos do documento.

A forma de solução deste conflito já estava prevista na LDB e assim sendo a resolução do CNE, já no parágrafo primeiro do artigo 1º, estabelece

“No exercício de sua autonomia, prevista nos artigos 12, 13 e 23 da LDB, no processo de construção de suas propostas pedagógicas, atendidos todos os direitos e objetivos de aprendizagem instituídos na BNCC, as instituições escolares, redes de escolas e seus respectivos sistemas de ensino poderão adotar formas de organização e propostas de progressão que julgarem necessários.”

Este parágrafo deixa claro que a implementação da BNCC é obrigatória, mas a forma pode variar. No exercício da autonomia, as redes e escolas poderão agregar, expandir e reordenar os objetivos de aprendizagem, e incluir outros objetivos que contemplem as diferenças regionais e as necessidades específicas das comunidades atendidas e suas concepções pedagógicas.

Ou seja, a alfabetização estará garantida aos estudantes se estes demonstrarem os resultados estabelecidos pelo artigo 12 da resolução, independentemente do processo usado no ensino.

No entanto, é importante observar que as três equipes diferentes que redigiram os objetivos de aprendizagem de Língua Portuguesa, na versão 2, na versão 3, enviada ao CNE, e na revisão da versão 3, finalmente aprovada, têm grandes dissensos. Além disso, cada uma destas versões recebeu críticas de outros grupos acadêmicos.

Ficou claro que a comunidade acadêmica na área de alfabetização não tem um consenso sobre como organizar a alfabetização nas escolas brasileiras. Diante disso é necessário que seja criado um sistema de monitoramento das opções pedagógicas praticadas nas diferentes redes para que as propostas pedagógicas que são capazes de produzir os aprendizados definidores da alfabetização sejam identificadas. Um trabalho de pesquisa empírica de grande importância, tendo em vista que atualmente, depois de três anos de escolarização, muitos estudantes não consolidaram nem os rudimentos da alfabetização.

É amplamente conhecido que já existem muitas experiências implantadas em diferentes munícipios onde todas as crianças, independentemente de suas características sociais, são alfabetizadas.  São muitas experiências espalhadas felizmente em todo o território nacional. Por conhecer, gosto de citar o sucesso de Lagoa Santa., um pequeno município do entorno de Belo Horizonte onde todas as crianças são alfabetizadas até o 2º ano do ensino fundamental.

A nova proposta de alfabetização apresentada pelo MEC ao CNE- 2

 

Por 20 votos a 3, em 15/12/2017, o Conselho Nacional de Educação aprovou o texto da Base Nacional Curricular Comum da Educação Fundamental. Em postagem anterior, eu circulei uma nota preparada por um conjunto de pesquisadores e especialistas criticando o documento na parte específica sobre o processo de alfabetização. Em resposta, as autoras responsáveis escreveram um texto que também estou disponibilizando aqui.

É um tema especializado que deveria ter sido amplamente discutido antes da aprovação da Base, não agora que ela já está aprovada, mas não há dúvida que discussão deverá prosseguir. Não tenho conhecimentos específicos de pedagogia e psicologia da aprendizagem para entrar nos detalhes desta discussão, mas acho importante assinalar alguns dos pontos principais.

Pelo que entendo, para os críticos do documento aprovado, o processo de alfabetização é um processo relativamente simples e ao alcance de todas as crianças, desde que conduzido de forma adequada. Segundo eles,

Uma criança aprende a ler em poucos meses de ensino apropriado do sistema alfabético. Meses estes precedidos de estimulação à fala, vocabulário, brincadeiras metafonológicas (desde a educação infantil); e seguidos de contextos educacionais estimulantes e incentivadores da leitura. É o que nos mostram os estudos recentes, os relatos de experiências, as pesquisas com modelos de intervenções experimentais nos mais diferentes países e línguas”.

Mais especificamente, dizem que

“O sistema alfabético de escrita se revela como um ‘código alfabético’ de relações entre o som da fala e a representação da fala, que muitos confundem com ‘código ortográfico’. O código alfabético é facilmente decodificado quando se conhece a sua ‘chave’;  isto é, que as letras e conjuntos de letras estão representando sons da fala!! Quando a criança ou o adulto iletrado aprende a chave do código, a aprendizagem do sistema alfabético deslancha! É por isso que precisamos ensinar as letras do alfabeto e as formas possíveis de combiná-las para escrever e ler em Língua Portuguesa. Neste contexto teórico só se ensina letras como sinais que representam sons (…) A proposta da BNCC não prevê esta informação para alfabetizar. Consequentemente se afasta dos resultados de pesquisas que mostram a melhor forma de ensinar a ler em sistemas alfabéticos”.

Para as autoras do texto da Base, por outro lado, o processo de alfabetização deve ser integrado pelo processo de “letramento”,

“O que supõe um trabalho contextualizado pelos gêneros discursivos e, por outro lado, o compromisso de o processo de alfabetização ocorrer em um contexto que permita a reflexão do aprendiz, considerado, então, como um sujeito ativo em seu processo de aprendizagem”.

Segundo as autoras,

“Tratar a linguagem escrita como código equivale a entendê-la como uma transcrição da linguagem oral e, com isso, assumir uma relação de equivalência biunívoca entre sons e grafemas (…)  Além disso, não há como ignorar pelo menos 30 anos de tradição científica em que essa visão da linguagem escrita como código alfabético vem sendo desmantelada. São incontáveis os autores e as pesquisas que demonstraram a falência de um processo de alfabetização baseado numa visão da linguagem escrita como código e a consequente necessidade de apostar num sujeito ativo que observa, analisa e reflete sobre a escrita, bem como num trabalho contextualizado e pautado pelos usos sociais da leitura e da escrita, quando da abordagem do sistema de escrita do português do Brasil”.

Os críticos, no entanto, dizem exatamente o contrário: que a literatura especializada internacional, que citam,  mostra justamente a importância da abordagem que eles propõem, e que o texto da Base Nacional Curricular Comum não considera.

Apesar de extremamente técnica em muitos aspectos, esta discussão tem grande relevância. As autoras do texto da Base argumentam que as crianças brasileiras, em sua grande maioria, não teriam condições de se alfabetizar no primeiro ano escolar:

 “Um país em que crianças de 08 anos, 11 anos desmaiam de fome no caminho para a escola ou na própria escola, pela pobreza que impede alimentação adequada e pela distância entre suas moradias e a escola (…) querer que esses alunos cheguem finalmente à escola para períodos intensivos e acelerados de treinos e testes para a aquisição da consciência fonológica e, mais ainda, antes dos seis anos de idade, chega a ser surreal. Provavelmente, não estamos vivendo – os missivistas e nós – no mesmo país.”

Assim, elas defendem que o processo de alfabetização se dê ao longo dos dois primeiros anos a partir dos seis anos de idade, como está na versão mais recente da Base –  o que é um avanço em relação à política do Ministério da Educação até aqui, que era de aceitar um prazo de três anos. Enquanto isto, seus críticos afirmam que, com o uso de métodos adequados, a alfabetização pode se completar em um ano ou menos, desde que as crianças estejam na escola e os professores estejam adequadamente preparados, e lembram que “os professores formados até a década de 70 sabiam alfabetizar seus alunos no primeiro ano escolar”.

O fato é que, mesmo com o prazo de três anos, e talvez  em parte por causa dele, um grande número de crianças nas escolas públicas brasileiras continuam funcionalmente analfabetas. Por outro lado, escolas públicas bem organizadas e que fazem uso de métodos estruturados de alfabetização conseguem excelentes resultados com estudantes de famílias pobres, como no conhecido exemplo de Sobral, no Ceará e outros, uma evidência de que, sem ignorar as dificuldades existentes, não se pode colocar nas condições sociais das crianças a responsabilidade pelo fracasso educacional de grande parte de nossas escolas públicas.

 

 

 

A proposta de alfabetização da Base Nacional Curricular Comum

 

Neste final de 2017, o Conselho Nacional de Educação está discutindo a nova Base Nacional Curricular Comum elaborada pelo Ministério da Educação, que inclui, entre outras coisas, uma proposta sobre o processo de alfabetização infantil, que é um problema de extrema gravidade no país, em que uma parte muito significativa dos estudantes nunca aprende a ler e escrever com a fluência que poderiam ter.

Um grupo de professores e pesquisadores, especializados no tema, acaba de publicar uma nota com uma crítica muito detalhada da proposta, que pode ser lida na íntegra aqui.

O objetivo da nota é “alertar as autoridades do MEC, responsáveis pela elaboração da BNCC, e os conselheiros do CNE, responsáveis pelo parecer, a respeito dos graves erros [da proposta] e suas implicações para a alfabetização das crianças em nosso país.”  Segundo eles,  “o programa é incorreto, incompleto e insuficiente para alfabetizar de forma adequada.  Guarda muito pouca semelhança com programas de ensino de alfabetização de outros países – notadamente o de Portugal – que seria o mais diretamente relevante para o Brasil.  De modo particular a frase ‘é nos anos iniciais (1o e 2o anos) do Ensino Fundamental que se espera que ela se alfabetize’ reproduz a triste memória das teorias que advogam a inação e a espera pedagógica e o mito de que ‘a criança deve alfabetizar-se a si mesma’.  Cabe à Pedagogia assumir a responsabilidade pelo ensino, e o sucesso da pedagogia é avaliado pelo grau de competência da criança em ler e escrever. No caso específico da alfabetização, isso consiste em decifrar e cifrar com eficiência, fluência e correção fonotática, de modo a liberar os recursos centrais da atenção e memória para fazer o processamento semiotático.”

O texto inclui ainda referência a uma extensa bibliografia nacional e internacional sobre alfabetização infantil, que, segundo os autores, não foi considerada na preparação da proposta do Ministério da Educação.

WP Twitter Auto Publish Powered By : XYZScripts.com
Wordpress Social Share Plugin powered by Ultimatelysocial