Acendendo uma vela

Capa da revista Mosaico, do Diretório Central dos Estudantes da UFMG, 1961. (Ilustração de Amaury Guimarães de Souza).

A pedido da International Review of Educational Development, escrevi um pequeno ensaio refletindo sobre minha experiência de participação em estudos e elaboração de propostas de políticas públicas nas áreas de ciência, tecnologia e educação. Como é para um público internacional, achei que deveria também descrever o contexto destas experiências, desde meus tempos de faculdade em Minas Gerais na década de 60. O artigo se chama “Lighting a candle” – acendendo uma vela – e o texto, em inglês, está disponível aqui.

Eu concluo dizendo que não tenho certeza de ter tido sempre razão nas políticas que propus e nas ideias que defendi ao longo destes anos. O certo é que minhas proposições quase sempre ficavam em minoria. Minha explicação é que a escolha e implementação de políticas públicas é determinada sobretudo por uma combinação de inércia e preservação de interesses estabelecidos, e não pelo mérito das propostas, força dos argumentos ou qualidade das evidências. Pelas decisões feitas e não feitas, o Brasil tem um sistema educativo caro, inchado, ineficiente e muito resistente a buscar alternativas que poderiam levar a bons resultados se fossem postas em prática. Tomara que as coisas melhorem no futuro, o que compensaria ter passado tantos anos segurando uma vela acesa e algumas vezes queimando meus dedos

“A China não é um bom exemplo para o IBGE”

O jornal O Estado de São Paulo publicou hoje, 23/11/2023, uma entrevista minha sobre as questões de confiabilidade e divulgação dos dados do IBGE. O texto espelha razoavelmente bem a conversa telefônica que tive com o jornalista, com duas pequenas correções. Primeiro, não sou filho do jornalista Salomão Schwartzman, que era xará de meu pai. Segundo, que eu saiba, a ex-presidente do IBGE Suzana Cordeiro Guerra não foi indicada por Jair Bolsonaro, mas pelo Ministro da Economia Paulo Guedes, que no entanto não lhe deu o apoio que deveria.

Um estudo detalhado sobre a qualidade dos sistemas nacionais de estatística, publicado pelo Banco Mundial em 2019, mostra que os países mais desenvolvidos em relação a isto são a Noruega, Italia, Polônia, Austria, Eslovênia e Estados Unidos, todos com perto de 90 pontos em uma escala de 100. Nesta escala, o Brasil tem 76,8 pontos, a Índia 70,4 e a China 58,2, o que significa que nem China nem India são modelos para nós. O que a Índia tem de notável foi o grande avanço na implantação do governo digital. A China seguramente não está atrás no uso de informações digitais pelo governo, mas não é o melhor exemplo de transparência.

Transcrevo abaixo o texto da entrevista, tal como publicado:

“A China não é um bom exemplo para o IBGE, diz o ex-presidente do instituto. Simon Schwartzman considera um equívoco o atual gestor, Marcio Pochmann, buscar no país asiático ideias para aplicar no Brasil, quando a Índia seria a melhor referência em digitalização.

O Estado de São Paulo. Por Carlos Eduardo Valim, 23/11/2023 | 14h30

O sociólogo Simon Schwartzman, filho do jornalista Salomão Schwartzman, presidiu o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre 1994 e 1998, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Na época, já defendia uma modernização da estrutura da instituição para proteger o corpo técnico da interferência política, algo que voltou a preocupar economistas e quem trabalha com dados populacionais.

A gestão do instituto está sob os holofotes desde o apagão de dados no meio do governo de Jair Bolsonaro, com o adiamento do último Censo, e agora com a escolha do economista Marcio Pochmann, filiado ao PT, para liderar o órgão.

Este último chamou atenção após, em uma palestra para funcionários do IBGE realizada no fim de outubro, defender “modernizar” a forma de divulgação dos dados da instituição e comentou que buscou exemplos de como trabalhar com pesquisas na China. Schwartzman contesta que a possibilidade de país asiático ser uma referência para o Brasil, e que o exemplo precisaria ser buscado na Índia, que digitalizou a coleta de dados de forma inovadora.

Em entrevista ao Estadão, ele também defende que o IBGE deveria receber uma autonomia operacional e administrativa similar à do Banco Central, além ter um conselho técnico que aferisse e cobrasse da instituição a adoção de padrões internacionais.

As declarações e os posicionamentos políticos de Pochmann trazem preocupação sobre a credibilidade do IBGE?

Eu não vi o texto da conferência dele, mas estou acompanhando as notícias de jornais. Claro que existe uma preocupação de algum tempo de que o IBGE precisa garantir que produz dados confiáveis. Uma coisa muito importante da estatística é que ela precisa ser reconhecida como um dado válido. E isso acontece ao se adotar padrões internacionais, como os usados pela ONU (Organização das Nações Unidas), com a mesma qualidade dos principais centros de estatística do mundo. Também é preciso ter gente com reputação técnica adequada coordenando esse processo. Isso tudo é necessário porque a sociedade não tem como aferir o detalhe técnico e se o trabalho foi feito corretamente. Então, é preciso um mecanismo que traga a garantia de aplicação das melhores práticas internacionais, o que traz confiança para investidores e para a população, e dá segurança para que se possa utilizar os dados para fazer políticas públicas.

Historicamente, os dados do IBGE não costumam ser contestados. Ele não tem este arcabouço confiável?

O IBGE sempre buscou fazer um esforço neste sentido, mas não tem uma estrutura suficientemente sólida para garantir isso. Não tem conselho técnico e um mecanismo para garantir que as melhores práticas estão sendo aplicadas. Então, ele depende muito de quem está na presidência, que é um cargo demissível. Não é uma posição protegida. Deveria ser um cargo mais técnico. O problema da credibilidade é que, quando uma pessoa vem com uma marca ideológica muito forte, já se cria um clima de desconfiança que causa muito impacto. A credibilidade é muito fundamental.

Durante sua gestão nos anos 1990, houve esforços para se adotar uma governança modernizada e a falta de apoio para isso teria sido o motivo de sua saída?

Na minha presidência, eu insisti para evoluir nisso e não consegui. Eu tentei, mas não consegui na época implementar as modificações necessárias. Continuo insistindo que é necessária essa estrutura. Nenhum governo posterior levou isso para frente.

Sem isso, a instituição ficou muito exposta a pressões políticas?

Houve situações em que o instituto ficou à mercê de pessoas com posições de ideologias muito marcadas, sem compromisso com a precisão.

O Pochmann disse que se espelhava na coleta de dados digitalizada feita pela China. Esse é um bom exemplo?

O país notável do terceiro mundo é a Índia. E todos os países da Europa Ocidental também fazem isso. A China não é um bom exemplo para o IBGE. Ela é muito fechada. A Índia é mais interessante na digitalização, e tem hoje uma população maior até do que a China. É um desafio altíssimo coletar dados lá na Índia, mas todo mundo tem identidade digital, todo mundo usa comunicação digital. Eles avançaram muitíssimo nisso.

O IBGE está muito atrás? O Pochmann também causou polêmica ao defender que a divulgação pela imprensa não seria mais tão importante se é possível divulgar mais as pesquisas pela internet. Isso faz sentido?

O IBGE já avançou muito na informação disponível na internet. Todos os sistemas são digitais, todos podem acessar. Mas a divulgação pela imprensa é importantíssima, para traduzir os dados mais importantes para a população. Não entendo qual seria a novidade que ele gostaria de trazer em relação a isso.

De todos os presidentes entre 2003 e 2019, só em 10 meses entre 2016 e 2017 não teve alguém que não era funcionário de carreira. Seria importante voltar a isso?

Eu não sei se é fundamental. Eu como presidente vim de fora. Chegar à direção vindo do corpo técnico não é essencial. A questão é que as pessoas escolhidas sejam reconhecidas na área, que entendam do tema, de estatísticas. É até bom vir alguém de fora, com uma perspectiva diferente. O problema atual não é esse. Precisaria haver um mandato e a autonomia do presidente do IBGE, como é no Banco Central. Ou, então, o gestor fica sob influência do ministro ou dependente da indicação do presidente.

Quando a gestão do IBGE perdeu a confiabilidade? A primeira indicada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, a Susana Cordeiro Guerra, vinha de fora da instituição, mas tinha boas credenciais. Por que isso não teve sequência?

Ela foi indicada pelo Bolsonaro e não recebeu apoio do Ministério da Economia quando se resolveu cortar a verba do Censo. Ela ficou entre dois fogos e não conseguiu permanecer. Ela tinha uma agenda importante de se passar a usar mais informações administrativas, geradas por outras áreas do governo, como a área fiscal e a de dados econômicos. Assim, o Brasil poderia depender menos da pesquisa de opinião e usar mais os dados administrativos de qualidade gerados. Até por causa da pandemia isso ficou mais agudo ainda. Ela queria adotar critérios para os integrar os dados administrativos aos produzidos pelo IBGE, e fez um trabalho neste sentido.

Quem produz dados administrativos relevantes?

Os ministérios da Saúde, da Educação, do Desenvolvimento Social e a Receita Federal, por exemplo. É parte do trabalho de várias áreas produzir essas informações. É preciso, então, desenvolver um processo mais organizado, para usar o que eles produzem como dados oficiais para efeito estatístico. O IBGE ainda tem um formato muito antigo, com agências localizadas em cidades do País, uma coisa dos anos 1930 e 1940, para coletar declarações das pessoas. Hoje não faz mais muito sentido, com os equipamentos de última geração e software modernos.

As guerras de cada um

(Publicado em O Estado de São Paulo, 10 de novembro de 2023)

Existiram um dia a Ucrânia, Palestina, Israel, e têm direito de continuar existindo? Como?  São perguntas que afloram ao ler “A Ucrânia de cada um”, livro organizado por Flávio Limoncic e Mônica Grin na emoção da guerra fraticida da Ucrânia, publicado agora à sombra da também fraticida batalha de Gaza. Não é um livro propriamente sobre a Ucrânia, nem sobre as guerras, mas um conjunto de relatos e testemunhos de descendentes de judeus do leste Europeu que sobreviveram ao holocausto e reconstruíram suas vidas no Brasil e outros países das Américas. São memórias pouco conhecidas, porque a velha geração preferia poupar os filhos das histórias de sofrimento e horror por que passaram. E estes, estimulados a construir suas vidas no novo mundo, olhavam para frente, nem sempre com tempo e espaço interno para os relatos de seus pais.

Agora, as décadas de relativa paz que sucederam à guerra parecem estar se esgotando, os fantasmas voltam a assombrar, e é preciso lembrar de onde viemos.  Os velhos se foram, os filhos e netos amadureceram, e buscam nos fragmentos de memória, em velhos papéis e fotografias, em registros e nas redes de Internet, as histórias de seus pais e o sentido de suas origens. Para alguns, os documentos e as histórias familiares foram mais preservados. Mas para a maioria o que resta são pouco mais que referências desencarnadas de localidades e pessoas que mudaram de nomes ao sabor das migrações, das diferentes línguas e dos poderes que se alternavam no domínio de cada uma das antiga cidades e regiões – Vilna, Minsk, Volhynia, Podolia, Lublin, Galicia, Edinet, Kischinev – quase todas hoje partes da Ucrânia, Moldova e Polônia.

As histórias familiares fazem parte da identidade de cada um, mas não determinam seu destino. Dado o que passou, é inevitável que os relatos de perseguições, guerras e estratégias de sobrevivência sejam o que mais aparece. Mas existem outras histórias importantes a ser contadas. A da persistência de uma forte cultura local, baseada em uma língua comum e instituições comunitárias, de cunho religioso ou não, que estruturavam a vida no dia a dia nas pequenas localidades da Europa oriental; uma cultura do cotidiano que encontrou expressão em uma importante tradição literária que acompanhou as levas de imigrantes que partiram para as Américas, e que aos poucos vem desaparecendo com a perda de lugar do ídiche como a língua franca destes povos. A do judaísmo renovado, seja pela volta à tradição do messianismo religioso do “hassidismo”, seja no sionismo secular em suas diferentes vertentes. Ou finalmente pela busca de identidades novas: participar da cultura cosmopolita, profissional, universitária, científica e empresarial que se desenvolvia na Europa e nas Américas, ou se filiar aos movimentos políticos e sociais de esquerda que se formavam, pela militância nos sindicatos e partidos socialistas e comunistas locais. Não fosse o nacionalismo e o nazismo, a integração de parte dos judeus na sociedade e cultura de países europeus como a Alemanha, Áustria e Polônia teria sido tão bem-sucedida quanto  o foi nos Estados Unidos e Europa Ocidental

A Ucrânia foi por muito tempo lugar de coexistência de russos, ucranianos e judeus de diferentes identidades, da mesma forma que a antiga Palestina tem sido, por séculos, lugar de coexistência de árabes cristãos, judeus e muçulmanos. Nem sempre foi uma coexistência pacífica, mas os historiadores falam mais dos momentos dramáticos de guerras e conflitos do que dos longos tempos de paz, que também existiram e precisam ser reconhecidos e apreciados.

Meu tataravô materno, no século 19, fazia parte da próspera comunidade judaica de Varsóvia e decidiu, por razões religiosas, terminar sua vida  em Sfat, a cidade sagrada da Cabala. Era na antiga Palestina, parte do Império Turco, para onde haviam ido muitos dos sábios judeus expulsos pela inquisição espanhola,  onde nasceu minha mãe.  Meu pai se dizia romeno, nascido em uma das pequenas aldeias da Bessarábia, hoje parte da Moldova, e recentemente soube que minha avó paterna pode ter nascido em Vinnytsia, na Ucrânia. Os avós de minha mulher eram árabes cristãos, sírios e libaneses, que mandavam as moças da família a uma escola católica em Haifa, hoje parte de Israel, e nossos filhos são cidadãos do mundo.

Nada disto nos dá uma solução simples para as guerras de hoje, mas fica, pelo menos, um princípio moral que nos ajuda a pensar. Na apresentação do livro, Flávio e Mônica citam a  Bashevis Singer dizendo que, na língua ídiche, não havia palavras para designar armas, munições, exercícios militares ou táticas de guerra. Hoje são estas as palavras que mais se ouvem nos conflitos do Oriente Médio. Não parece que haja outro caminho para a região senão a plena implementação dos acordos de Oslo, com a constituição de um estado palestino autônomo e viável. Pode ser que nunca se chegue lá, da mesma forma que o nacionalismo e o racismo destruíram as esperanças de paz depois da primeira grande guerra. Mas não podemos perder a lucidez que adquirimos ao reencontrar as origens e possibilidades de cada um de nós.

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