IPSP: Democracia e Capitalismo

ipsp

 

Este texto é extraído do primeiro capítulo do International Panel for Social Progress que trata das grandes tendências e novas geografias sociais, de autoria de Peter Wagner (Universidade de Barcelona), Elisa Reis (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e e Marcel Van Der Linden (Instituto Internacional de História Social, Amsterdam). O texto completo em inglês, aberto para comentários, está disponível aqui.

Democracia e Capitalismo

Na última década do Século 20, as expectativas de democratização e globalização econômica caminharam de mãos dadas, levantando esperanças quanto a um mundo plenamente democrático no qual as necessidade materiais seriam satisfeitas e a pobreza superada. Era como se o progresso político e o econômico estivessem bem definidos e firmemente estabelecidos.

Contudo, além das crises financeiras, o progresso econômico teve consequências marcadamente desiguais nas diferentes regiões do mundo. Além disso, embora as instituições democráticas estejam mais disseminadas, alguns processos de democratização falharam e desencadearam violência fora de controle. E mesmo onde as instituições democráticas funcionam plenamente, muitos cidadãos deixaram de acreditar que sua participação pode ter impacto sobre resultados de políticas e se afastam da política ou expressam seu descontentamento apoiando demagogos.

Por todas essas razões, o otimismo difuso do final do Século 20 esvaneceu-se. E, para uma avaliação mais adequada da situação atual, necessitamos primeiro dar um passo atrás para compreender como as expectativas de progresso social estavam relacionadas à difusão da democracia e do capitalismo.

Idéias associando o progresso da humanidade ao avanço da democracia e do capitalismo surgiram nos Séculos 17 e 18 e de certa forma retém até hoje sua relevância.

O período que se estende de 1500 a 1800, que os historiadores da Europa caracterizam como os primórdios da era moderna, assistiu à emergência de noções que os seres humanos tem direitos inalienáveis e que toda ordem política legitima deve emergir de um acordo entre aqueles que detém esses direitos. No final do Século 18 a idéia da democracia incarnava o progresso político.

Nessa mesma época, emerge a proposição do comércio como solução para os problemas do conflito permanente, das guerras, e da miséria. Se a natureza humana não podia ser mudada, a sociedade poderia transformar as interações humanas de tal forma a torna-las guiadas antes pelos interesses que pelas paixões. Montesquieu e Adam Smith introduzem a idéia do “comércio benéfico” como um recurso para promover a “riqueza das nações”.

Durante o Século 19, entretanto, emergiram as sociedades divididas por classes, a participação política institucional permaneceu restrita, e a abolição formal da escravidão foi muito tardia. Os primórdios do Século 20 assistem a coincidência da extensão da democracia com uma crise do capitalismo levando a uma situação explosiva. As demandas da população não podendo ser ignoradas ou reprimidas como nos períodos anteriores levaram à ruptura da democracia em diversos países e à ascensão de regimes autoritários.

A história mostra que tanto é errôneo pensar que a democracia e o capitalismo mantém uma harmonia básica entre si enquanto expressões da liberdade humana e da auto determinação, quanto supor que elas são intrinsecamente contraditórias e irreconciliáveis. Na verdade, existe uma tensão permanente no modus operandi delas. Por um lado, democracia é o termo que usamos para a idéia normativa de uma auto determinação coletiva livre e igualitária. Por outro, a ideia normativa da economia capitalista de mercado tem como base a busca dos interesses individuais, e o resultado coletivo não é visto senão como fruto da agregação de iniciativas individuais.

O argumento original sobre “comércio benéfico” e a “riqueza das nações” não implicava que todos os aspectos da vida social seriam beneficiados pela comercialização e mercantilização. Buscando entender “a ascensão e queda da sociedade de mercado” Karl Polanyi salientou corretamente que a economia de mercado precisa ser conscientemente imbricada na sociedade, e não tão desmembrada dela como o ideário do livre-mercado tende a sustentar.

Depois da Segunda Guerra Mundial, o estado-nação democrático capitalista passou a ser percebido com a resposta à tensão entre democracia e capitalismo. Ele seria a expressão democrática da auto determinação coletiva de uma nação através do igualitarismo do sufrágio universal. Seria esse estado que asseguraria os benefícios da eficácia funcional da economia de mercado, embebendo-a no arcabouço nacional através da regulação do comércio exterior e da administração da demanda doméstica, vulgarmente referida como Keynesianismo. Além disso, a tributação poderia ser usada como um recurso de redistribuição social, financiando a construção de estados de bem estar.

As transformações recentes podem ser visas como uma nova dissociação das práticas capitalistas das instituições democráticas. A partir dos anos oitenta, os governos eliminaram crescentemente os obstáculos ao capitalismo global reorganizado, em parte com a esperança de aumentar a produtividade, em parte por medo da perda de ganhos econômicos na competição global.

As consequências políticas de tais políticas econômicas são limitar consideravelmente o alcance de processos democráticos de decisão: políticas relativas à tributação, relações industriais ou condições de trabalho passam a entrar diretamente na competição global pelo capital e tendem a ser descartadas se afetarem diretamente o “ambiente de negócios”. Outros aspectos tais como aqueles relativos ao bem estar ou a educação que dependem dos recursos do governo, são assim severamente afetados por políticas fiscais restritivas. Como resultado da combinação da ampliação do raio de atuação das práticas capitalistas por um lado, e a auto limitação no âmbito das práticas democráticas por outro, a capacidade efetiva de exercer auto determinação coletiva é radicalmente restringida em comparação com práticas democráticas em vigor em outros períodos históricos. Uma nova inserção da economia nas instituições sociais precisa ser concebida sem se limitar a prover um arcabouço estatal para o capitalismo.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

WP Twitter Auto Publish Powered By : XYZScripts.com
Wordpress Social Share Plugin powered by Ultimatelysocial