O Século Chinês

(publicado em O Estado de São Paulo, 10/04/2020)

“Indústria Americana”, o documentário produzido pela produtora de Michelle e Barack Obama que ganhou o Oscar de melhor documentário este ano e pode ser visto no Netflix, conta a história tragicômica de um milionário chinês que decide transformar uma planta abandonada da General Motors nos Estados Unidos em uma moderna fábrica de vidros de automóveis, com operários americanos trabalhando sob as ordens de gerentes chineses. Os chineses se esforçam para entender a cultura individualista e a falta de disciplina dos americanos, levam americanos para a China para ver como uma fábrica deve funcionar, e acabam trocando a maioria dos americanos por robôs, para que a fábrica finalmente possa dar lucro.

Vendo o filme, fica mais fácil entender o sucesso dos chineses em controlar a epidemia do coronavirus em Wuhan com um mínimo de mortes e impedindo que ela se alastrasse por sua imensa população, e a dificuldade dos americanos e europeus em fazer o mesmo. A explicação que geralmente se ouve é que a China é um estado autoritário, com poderes para controlar sua população que seriam inimagináveis em uma democracia. Há rumores de que não estão contando toda a história, pode ser, mas o a fato é que conseguiram estancar a hemorragia. Além da força bruta, outros dois fatores, a forte coesão social e o uso intensivo e competente de tecnologias avançadas, parecem ter sido muito mais importantes.

“Coesão social” se refere ao grau em que as pessoas se sentem parte de uma comunidade e obedecem às normas de comportamento de seus grupos. Todos concordam que é uma coisa boa, mas discordam sobre quanto. No documentário, os americanos olham espantados como os operários chineses marcham sincronizados e gritam palavras de ordem, e como, em uma festa da fábrica, as crianças dançam com precisão geométrica em louvor à eficiência e à produtividade, lembrando as gigantescas manifestações coreografadas na Coreia do Norte em homenagem ao Grande Líder. Os chineses trabalham muito mais horas por dia do que os americanos, ganham muito menos, e são muito mais produtivos.

Vendo isso, é difícil separar o que é coesão social do que é totalitarismo, mas outros países que também estão conseguindo controlar a epidemia, como a Coreia do Sul, Singapura, Taiwan e Japão, são regimes democráticos com culturas semelhantes à chinesa. É a coesão social, mais do que o regime político, que os diferencia dos países ocidentais.

O terceiro fator que explica o sucesso destes países é o uso intensivo de tecnologias de testagem, acompanhamento dos movimentos da população pelos celulares, equipamentos de proteção de médicos e paramédicos e amplo uso de equipamentos caros e complexos como tomógrafos para melhor diagnosticar os doentes. Aqui também vem a dúvida de quanto é admissível, em uma democracia, permitir que governos controlem cada movimento das pessoas, mas isto já é feito em nossos países para fins comerciais.  Estas tecnologias também estão disponíveis e muitas delas tiveram origem no ocidente, mas os orientais têm sido mais eficientes em produzir, inovar e utilizá-las em grande escala do que os americanos e europeus.

Das muitas especulações que se fazem sobre como será o mundo pós-coronavirus, para quem sobreviver à imensa catástrofe que estamos presenciando, me parece claro que o século 21 será, definitivamente, o século chinês. Isto não significa que ficaremos todos sob a ditadura de Xi Jinping, já que a própria China pode evoluir para formas menos autocráticas de governo e os países ocidentais certamente recuperarão suas economias. Mas a China, que já vinha ocupando um espaço cada vez maior na economia mundial, deve sair desta crise muito mais fortalecida, transferindo definitivamente o polo da economia e do avanço tecnológico mundial para o oriente.

Das lições que temos que aprender da China, a que menos interessa, e que infelizmente muitos vão apregoar, é que as democracias não são capazes de enfrentar os grandes desafios epidemiológicos e ambientais que nos esperam, e precisam ser substituídas pelos candidatos a ditadores que surgem nestas horas difíceis. A democracia precisa ser preservada, mas deve ser menos disfuncional, com instituições públicas mais fortes nas áreas de ciência e tecnologia, políticas sociais mais firmes, e mecanismos legais capazes de lidar rapidamente com os eventuais comportamentos predatórios e demagógicos de seus líderes. Mais do que armas para eventuais guerras, é indispensável ter estoques estratégicos de suprimentos e equipamentos médicos que não dependam dos interesses comerciais e incertezas do mercado internacional, como vem ocorrendo. O SUS precisa ser repensado, concentrando recursos na saúde preventiva, vigilância epidemiológica e atendimento médico à população carente. Não se pode, e não sei se queremos, copiar o modelo de coesão social dos países orientais, mas precisamos tornar nossas sociedades mais educadas, coesas e solidárias. Sairemos desta tragédia mais pobres e sofridos, mas, quem sabe, um pouco mais sábios, para conseguir sobreviver no século chinês.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

6 thoughts on “O Século Chinês”

  1. Caro Simon,

    Parabéns enfáticos por seu brilhante e bem informado artigo de hoje no Estadão. É a melhor análise que já li até agora sobre esta pandemia em qualquer meio de comunicação, no Brasil e no exterior (ao menos nas línguas em que sou capaz de ler – inglês, espanhol e francês).

    Sua referência ao documentário “Indústria Americana” é perfeita. A partir dela, você consegue sintetizar alguns traços fundamentais da sociedade chinesa, que Henry Kissinger (On China, 2011) precisou de 600 páginas para descrever!

    No final da década de 1990, quando eu trabalhava na OEA, recebi o encargo de fazer um estudo sobre a entrada da China na OMC, que iria ocorrer em 2001. Àquela altura, eu conhecia quase nada sobre o país e gastei alguns meses lendo a literatura disponível. Desde então, tornei-me um aficionado pela economia chinesa. Alguns textos meus estão no site do Cindes, mas você não precisa ler, porque seu artigo de hoje resume as questões essenciais. De fato, coesão social, eficiência produtiva, e capacidade inovadora diante de fenômenos novos são traços marcantes dos chineses, sob qualquer ângulo de análise. Não por acaso – antes dos Estados Unidos, Japão e União Europeia – a economia chinesa foi a primeira a redesenhar sua estrutura industrial, visando explorar as oportunidades oferecidas pela revolução nas tecnologias de informação das últimas décadas. Em 1990, por exemplo, os portos chineses estavam entre os mais atrasados do mundo, e sob o comando de burocratas corruptos. Hoje em dia, operam na fronteira tecnológica mundial, com rotinas aduaneiras tão transparentes quanto as de Rotterdam. E os exemplos são infindáveis.

    Enfim, vou parar por aqui. Nestes dias horrorosos, seria alentador acordar e ler, todas as manhãs, algo tão inteligente quanto sua peça de hoje.

    Grande abraço,

    1. Uma das coisas mais lúcidas e inteligentes sobre China e essa crise que já li nos últimos meses. Parabéns! Parabéns também aos comentários de José Tavares.

  2. Muy buenos bueno Simon . Más pobres pero más sabios. Tomará
    Coincido: “ . A democracia precisa ser preservada, mas deve ser menos disfuncional, com instituições públicas mais fortes nas áreas de ciência e tecnologia, políticas sociais mais firmes, e mecanismos legais capazes de lidar rapidamente com os eventuais comportamentos predatórios e demagógicos de seus líderes”
    Esta noche trato de ver si Netflix tiene este programa en Francia. Obrigado.

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