As duas Américas

(Publicado em O Estado de São Paulo, 12 de setembro de 2025)

No Brasil é comum olhar para os Estados Unidos como um exemplo que deveríamos seguir, ainda que sabendo muito bem de seus problemas. Além de desenvolvido, é – ou era, até Donald Trump – um lugar onde imperavam as leis, as instituições eram respeitadas, a economia era dinâmica, a ciência e a educação eram estimuladas, existiam políticas para lidar com os problemas de desigualdade e pobreza, e, na política internacional, procurava combinar o interesse próprio com políticas de cooperação e apoio a valores como a democracia e os direitos humanos. Destes valores, o único que parece ainda valer para Trump é o do dinheiro, cada vez mais concentrado. Em seu livro  recente sobre a história das relações entre os Estados Unidos e América Latina  (America, América – A New History of the New World, Penguin, 2025), o historiador Greg Grandin procura mostrar que, longe de ser uma anomalia, as políticas de Trump  dão continuidade a uma longa história de violência interna e imperialismo. A única exceção teria sido o período que vai do início do New Deal de Franklin Roosevelt, em 1933, até o fim da Segunda Guerra, quando os Estados Unidos, graças à influência da América Latina, desenvolve políticas internas em favor da população mais necessitada e apoia a criação  de uma nova ordem internacional com ass Nações Unidas.

Para Grandin, ao invés de olharmos para o Norte como modelo, eles é que deveriam aprender conosco. Tanto os países da América do Sul quanto do Norte foram formados através de um terrível processo de escravização ou extermínio das populações locais, mas os latinos teriam tido uma vantagem moral, que era o reconhecimento, por parte de religiosos como  Bartolomé de Las Casas, que os indígenas eram seres humanos com direitos a serem respeitados, o que os ingleses não aceitavam. Graças a isto, os latinos teriam organizado sociedades complexas e inclusivas, ainda que fortemente hierarquizadas, enquanto os Estados Unidos levavam ao extremo as políticas de genocídio da população nativa e discriminação racial.  

Mais tarde, nos anos da independência, Simon Bolívar defendeu o direito  das novas nações à autonomia e, cada vez mais, à convivência pacífica de acordo com um novo direito internacional, noções que acabaram sendo incorporadas, em parte, na carta das Nações Unidas (a doutrina de Monroe de 1823, interpretada muitas vezes como o embrião de um sistema de cooperação internacional, teria sido na verdade uma manifestação da pretensão de domínio norte-americano sobre a região, em oposição às potências europeias). Teria sido na América Latina, também, e sobretudo com a revolução mexicana, que surgiram e se desenvolveram as ideias dos direitos e políticas sociais na região, incluindo o da reforma agrária, muitas das quais aceitas e incorporadas às políticas americanas do New Deal.

Quando, com a guerra fria, os Estados Unidos decidem investir pesadamente na reconstrução da Europa através do Plano Marshall, eles deixam para trás a “política de boa vizinhança” de cooperação com os países da região, apesar dos protestos de empresários como o brasileiro Roberto Simonsen. Reduzidos à condição de exportadores de matérias primas,  os países latino americanos ficam condenados ao subdesenvolvimento, como teria sido  demostrado pelos trabalhos de Raul Prebisch,  da CEPAL no Chile, e dos outros autores que desenvolveram a chamada “teoria da dependência”.

Há muito o que aprender nas quase 800 páginas deste livro, mas me parece que a ênfase nas doutrinas e nas relações internacionais acaba levando a um entendimento distorcido tanto da realidade da América Latina quanto à dos Estados Unidos. É na maneira pela qual as sociedades se constituem e funcionam internamente, mais do que nas relações que mantêm com o exterior ou as doutrinas de alguns de seus políticos e intelectuais, que devem ser buscadas as explicações de seus sucessos e fracassos. Não é que o imperialismo norte-americano não tenha existido e que muitos países, na América Latina e outras partes, não tenham sofrido com suas manifestações mais truculentas. Mas os Estados Unidos sempre foram um país voltado sobretudo para seu interior, receptivo aos imigrantes, parecido, neste aspecto, com o Brasil, que aliás aparece pouco no livro.  O processo de ocupação da América Latina, através de plantations e grandes empreendimentos comerciais associados aos impérios português e espanhol, com grande concentração de riqueza nas mãos de poucos, foi muito diferente do norte-americano, baseado em colonos que se instalavam e se organizavam com autonomia. 

Mas o passado não é destino, e alguns países e regiões, mais do que outros, conseguiram se constituir em sociedades mais democráticas e capazes de gerir seu próprio destino, enquanto outras mal conseguem sair do círculo vicioso do autoritarismo e da estagnação. Apesar dos exageros, não há como não concordar com Grandin quanto à importância de valores como igualdade, direitos sociais e respeito à autonomia dos países em administrar seus próprios interesses, sem falar na valorização dos princípios e procedimentos legais.  Felizmente, estes valores existem e persistem nas duas Américas, com boa chance de voltarem a prevalecer.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

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