Jorge Jatobá: Corporações

capa-algomais-115Reproduzo artigo do economista Jorge Jatobá, publicado anteriormente na Revista Algomais número 144 (que tem matéria de Capa de João Batista Araújo e Oliveira, que também recomendo):

Corporações

Na crise e fora dela toda sociedade tem conflitos de interesse. Faz parte do jogo democrático mediá-los e conciliá-los com o interesse público. Quando a economia entra em recessão e o sistema político se fragiliza os conflitos se agravam. Em meio ao tumulto político e econômico que se estabeleceu no país, temos observado um conjunto expressivo de manifestações corporativas que colocam seus interesses acima dos da nação. Brasileiro parece só se unir e ser patriota quando torce pela seleção nacional em competições oficiais.

Nos executivos, federal e estadual, eclodem greves com demandas inviáveis no curto prazo. Funcionários do INSS, professores, médicos, etc., exigem maiores salários que desconsideram a situação das finanças públicas. No judiciário federal, funcionários pressionam o Congresso para aprovar reajustes salariais nos próximos anos que comprometem a saúde fiscal do país, mas não estão nem se importando com as consequências. Por sua vez, a magistratura beneficia-se e luta para manter, entre outras benesses, o auxílio-moradia, uma aberração que agride todos os brasileiros. Na Petrobrás, que está completamente debilitada pelos erros de gestão, pelo baixo preço do petróleo e pelos impactos da operação Lava Jato, os funcionários demandam aumentos salariais e fazem paralisações de alerta, sabendo que o valor do programa de investimentos da empresa é constantemente redefinido para baixo. No legislativo, eivado de gastos excessivos, o Congresso aprova irresponsavelmente as pauta-bomba que inviabilizam o equilíbrio fiscal. Falta solidariedade entre os poderes, desconhecendo-se que a fonte do dinheiro é única: o dinheiro de todos nós.

Este aguçamento dos conflitos de interesse durante a crise, todavia, repousa em uma antiga e enraizada cultura corporativista que impregna o setor público brasileiro e que se agravou nos governos petistas que transformou o país em arquétipo de república sindicalista. Todavia, há uma característica estrutural na formação desses mercados de trabalho que constituem o caldo de cultura corporativista.

O acesso às carreiras de estado em todos os níveis de governo bem como a entrada nas estatais é disciplinada por concursos públicos. Isso é muito bom para o país, deve ser louvado e precisa ser mantido. Todavia, aí está a gênesis do corporativismo. Os mercados de trabalho assim formados são segmentados entre si, ou seja, uma pessoa não pode se deslocar de um para outro- e cada um deles tem uma única porta de entrada. Assim eles se fecham, desenvolvendo uma cultura corporativista para atender aos seus interesses, custe a quem custar.

Esses mercados de trabalho fechados com única porta de entrada são chamados de mercados primários, sendo uma das causas mais importantes junto com as diferenças educacionais para a ainda elevada desigualdade de renda que caracteriza o nosso país. Uma vez dentro, os funcionários exigem maiores benefícios diretos e indiretos que drenam os recursos dos tesouros, federal e estadual, e os caixas das estatais. E aumentam as diferenças com quem está de fora.

Corporações, dessa forma, contribuem para as desigualdades de renda. Todos se espelham uns nos outros. Uma sala de espelhos que leva a um ciclo vicioso para equiparar salários e benefícios. Ademais, corporações em meio à crise desenvolvem um instinto animal de defesa. E na falta de lideranças que definam um rumo e que filtre interesses levando-os a uma solução negociada, ela tende a crescer. Líderes mediam conflitos e concilia-os com os interesses da sociedade. Estão faltando muitos.

 

O impasse do Ensino médio e o Funil do ENEM

O impasse do Ensino médio e o Funil do ENEM

(Versão ampliada de artigo publicado no O Estado de São Paulo, 17 de outubro de 2015)

Mais uma vez, o país se mobiliza para a grande maratona do ENEM – quase 8 milhões de inscritos, disputando cerca de 250 mil vagas nas universidades federais, uma para cada 32 candidatos. Quase todas as vagas serão preenchidas por filhos de famílias mais educadas que cursaram boas escolas privadas ou as poucas escolas públicas federais e de tempo integral. É um jogo de cartas marcadas, como se pode ver pelo quadro 1, que dá a relação entre o desempenho dos candidatos no ENEM e o nível educacional do pai, que se correlaciona fortemente com o nível de renda, para cada tipo de curso médio.

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Quadro 1

As notas de corte tendem a ser de 700 pontos ou mais para cursos como administração e ciências sociais, e mais de 800 para cursos de direito, medicina e engenharia. Em 2013, somente 162 mil candidatos obtiveram mais de 650 pontos, metade dos quais com pais com curso superior completo ou pós-graduação. Dos 1.083 mil que fizeram escola pública, somente 42 mil, menos de 4%, conseguiram esta pontuação.

Na prática, nem todos os que fazem o ENEM participam do sistema de seleção unificada para o ensino superior, o SISU. Muitos fazem o ENEM como treinamento, antes de completarem o ensino médio, outros para se beneficiar do PROUNI no ensino privado, e outros ainda para obterem um certificado de nível médio, que requer 450 pontos nas provas objetivas e nota superior a zero na prova de redação. O mesmo critério vale para poder se inscrever no SISU. No ENEM de 2013, o último para o qual existem dados detalhados disponíveis, haviam 7.173 mil candidatos, dos quais somente 3.222 tinham ou estavam concluindo o ensino médio e atingiam o mínimo de notas para participar do SISU.

O ENEM, ao exigir conhecimentos detalhados de linguagens, ciências da natureza, humanas, matemática e redação, coloca uma camisa de força em todo o ensino médio, com graves prejuízos tanto para os que vão para o ensino superior privado ou estadual, e não dependem do ENEM, quanto para os que nunca entrarão em uma universidade. Em 2013, haviam cerca de 5 milhões de vagas para o ensino superior, das quais 4.5 milhões no setor privado, e somente 321 mil nas federais, conforme os dados do Censo do Ensino Superior (quadro 2). Em 2015, dos 22 milhões de jovens entre 18 e 24 anos de idade, 15 milhões já não estavam estudando, e, destes, cerca da metade não havia concluído o ensino médio, pelos dados da PNAD contínua (quadro 3).

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Quadro 2
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Quadro 3

É preciso mudar isto. No ensino médio, em todo o mundo, aos 15 anos de idade, os jovens se orientam para as áreas de estudo a que vão se dedicar, conforme seu interesse e desempenho. A maioria se prepara para a vida profissional, e só uma minoria vai para os cursos universitários tradicionais. Assim deveria ser no Brasil. Ao invés de ter aulas sobre tudo e não aprender quase nada, como hoje, deveria haver um núcleo comum de formação geral, com ênfase no uso da língua e do raciocínio matemático, que não ocupe mais do que metade das 2.400 horas requeridas ao longo de três anos, com a outra metade dedicada a uma área eletiva de formação e aprofundamento (ciências físicas, biológicas, ciências sociais ou humanidades), que prepara para estudos mais avançados, ou uma área de formação técnica e profissional, que dê uma qualificação para o mercado de trabalho, e dê acesso também um curso superior especializado. O ensino médio deve ser uma etapa de formação e qualificação, geral e profissional, e não um longo cursinho de preparação para uma universidade na qual poucos entrarão.

O ENEM, no seu formato atual, tenta servir de padrão de qualidade para o ensino médio e funcionar como um grande vestibular unificado para as universidades, além de selecionar bolsas para o PROUNI, e não consegue fazer bem nenhuma destas coisas. Ele precisa ser modificado, com ênfase na primeira função, e tomando em conta a necessidade de diversificar o ensino médio. Ao invés de uma prova única, deveria haver uma avaliação de competências gerais de uso de linguagem e raciocínio matemático para todos, e avaliações diferentes, opcionais, para as diferentes áreas de formação e aprofundamento. Para o ensino técnico de nível médio, é necessário desenvolver um sistema de certificações para as diversas áreas profissionais de formação. Ao invés de uma maratona nacional como hoje, os exames poderiam ser dados em diferentes momentos e locais, fazendo uso de técnicas computadorizadas como as adotadas pelo Scholastic Aptidude Test (SAT) e provas semelhantes nos Estados Unidos.

A justificativa da transformação do ENEM em um exame vestibular unificado foi que ele tornaria o acesso ao ensino superior mais democrático, e de fato o sistema permite que estudantes de qualquer cidade possam se candidatar a uma vaga em qualquer universidade federal do país. Mas, ao criar um grande funil, criou uma situação mais elitista do que antes: as instituições regionais perdem vagas para alunos vindo de regiões mais ricas, as notas de corte são cada vez mais altas, e as universidades perdem a possibilidade de selecionar alunos que sejam mais adequados a seus projetos pedagógicos e profissionais. A separação entre alunos cotistas e não cotistas não ajuda, porque o funil se repete dentro de cada grupo. No SISU de 2015, baseado no ENEM de 2014, o total de inscrições foi de 2.791 mil, das quais 51,9% pela ampla concorrência, 42,7% pela lei de cotas, e ainda 5,4% para ações afirmativas adicionais. A relação candidato por vaga pela lei de cotas foi maior que na ampla concorrência (27,99 contra 25,66)[1].

A pontuação das notas do ENEM, em centésimos, é um artifício que só serve para classificar os alunos para as universidades, e não tem interpretação no mundo real. Se um candidato tiver 520 e outro 540 pontos, o segundo será selecionado no lugar do primeiro, mas não se pode afirmar que ele tenha de fato melhor qualificação do que o outro. O correto seria fazer uso de conceitos amplos, como de A a D, ou de excelente a insuficiente. Os alunos poderiam usar os conceitos em seus currículos, e as universidades poderiam requerer níveis mínimos de desempenho em áreas específicas para selecionar seus alunos, em combinação com critérios próprios.

Não será fácil passar do atual sistema para um outro como sugerido aqui. A Base Nacional Comum Curricular, que hoje está sendo discutida, precisa se adequar a um ensino médio diversificado. As escolas precisarão se adaptar, haverá necessidade de realocar professores e formá-los para novas práticas; e há muitíssimo que aprender para criar um sistema amplo de educação técnica e profissional de nível médio com as respectivas certificações profissionais. Mas é necessário começar, lembrando que, considerando a péssima situação em que nos encontramos, não há nada a perder.

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[1] http://g1.globo.com/educacao/noticia/2015/01/mec-divulga-aprovados-no-sisu-2015.html acessado em 10/10/2015/

Seminario Internacional sobre Políticas de Educação Superior nos países em desenvolvimento

Higher Education in the BRICS countries

Nos dias 21 e 22 de setembro de 2015, o Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS) e a Academia Brasileira de Ciências realizarão um Seminário Internacional sobre Políticas de Educação Superior nos Países em Desenvolvimento, que tem como origem o livro “Higher Education in the CS Countries – Investigating the Pact between Higher Education and Society”. O evento será transmitido ao vivo pela Internet, e as informações sobre o seminário e como acompanhar a transmissão estão disponíveis aqui.

O tema geral do seminário é o impacto da aspiração crescente pelo ensino superior em todo o mundo, criando expectativas, aumentando os custos públicos e privados, e transformando tanto as instituições quanto as políticas públicas para o setor. As respostas de cada  país variam com sua história, cultura e regime político. Todos eles enfrentam problemas semelhantes, como escassez de recursos e o poder político de atores do sistema de ensino superior e fora dele. Cinco dilemas se apresentam aos países: 1) expansão, igualdade de acesso e diversificação das matrículas, taxas de participação, o número e os tipos de instituições; 2) limitações financeiras; 3) regulação do ensino superior privado; 4) como fazer com que as instituições de ensino superior prestem mais contas a seus alunos, funcionários  e à sociedade como um todo; e 5) qualidade e relevância social da aprendizagem e pesquisa em instituições  de ensino superior.

Apesar das grandes diferenças entre os países, algumas respostas são comuns: a diversificação institucional, que inclui forte expansão do setor privado; políticas de ação afirmativa; crescimento das matrículas nas ciências sociais, humanidades, profissões sociais e educação; e pouco sucesso nas políticas de internacionalização, apesar da preocupação crescente com o tema.  A versão portuguesa de meu artigo de introdução,Demanda e Políticas Públicas para a Educação Superior nos Brics, publicada no   Caderno CNH (Salvador), vol 38 (2015)  está disponível aqui.


Visões da Democracia no Brasil

A convite do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da PUC / Rio, participei de uma interessante mesa redonda sobre  “Visões da Democracia no Brasil”, em companhia de Luiz Werneck Vianna e Carlos Pereira, coordenada por Maria Celina d’Araújo.

Ainda que não estivesse no programa, o tema, claro, era a grave crise política do momento, com o governo paralisado diante da crise econômica e a probabilidade de impeachment da presidente se tornando mais provável a cada dia. Aonde falhamos? Poderia ter sido diferente? A crise atual é uma prova de que nossa democracia não funciona, porque gera governos incapazes, ou, ao contrário, é uma prova de que funciona muito bem, porque não há perspectiva de rompimento das regras do jogo democrático?

Para Werneck, se interpreto bem, o que explicaria a atual situação é o abandono, pelo PT, do grande projeto de modernização do país que estava presente no movimento contra a ditadura nos anos 70 e 80, que reunia o sindicalismo independente de Lula com o MDB de Ulysses Guimarães e os intelectuais das artes e das universidades, trocado pelo oportunismo que permitia ganhar eleições, mas que ia, ao mesmo tempo, destruindo as bases deste país moderno em gestação. Em grandes pinceladas, ele fez referência a importantes momentos da história política brasileira, da unificação territorial dos tempos da Colônia à Coluna Prestes e à Semana de Arte Moderna de 1922 e à modernização dos anos de Vargas, lembrando que todos tinham seus problemas e limitações, mas apontavam em uma direção ascendente de modernização que acabou sendo traída.

Carlos Pereira partiu de uma perspectiva totalmente diferente, mas a conclusão não foi muito distinta. Seu foco é nosso sistema presidencialista de coalizão, e seu entendimento, assim como de outros cientistas políticos que cita, é que o sistema teria funcionado muito bem até recentemente, do ponto de vista da capacidade da presidência de fazer passar pelo Congresso a legislação de que necessita para governar, pagando o preço necessário, em termos de cargos e verbas, para garantir seus apoios. Seus dados mostram, no entanto, que o custo de obter este apoio vem aumentando cada vez mais, sobretudo pela preferência do PT em distribuir cargos e recursos para os próprios correligionários, ao invés de utilizá-los para garantir o apoio dos partidos coligados. A crise atual, segundo ele, se explica pela incapacidade do PT, e do governo Dilma em particular, de entender o funcionamento do presidencialismo de coalizão.

Embora partindo de premissas totalmente distintas, Werneck e Carlos Pereira concordam que nosso problema é a incapacidade do PT, e especialmente do governo Dilma, de entender os rumos que o país deveria tomar, e administrar com competência o sistema democrático para o qual foi eleito.

Longe de mim discordar das críticas de Werneck e Carlos Pereira ao PT e ao governo Dilma. Mas acredito que é papel das ciências sociais buscar explicações mais estruturais, que dependam menos das escolhas e das virtudes ou limitações individuais dos governantes. Em minha apresentação, que foi a primeira, comecei por criticar duas visões que me parecem equivocadas, a utópica, que argumenta que, como nossa democracia é imperfeita, ela não existe, e a hiper-realista, ou panglossiana, que argumenta que democracia é isto mesmo, e que a nossa é tão boa quanto tantas outras democracias imperfeitas que existem por aí, e que estamos no melhor dos mundos possíveis.

Lembrei que a democracia, mais do que um valor, é um mecanismo que tem se mostrado extremamente funcional para a solução de disputas de interesse e conflitos na sociedade, e citei um importante livro de Bolívar Lamounier (Da independência a Lula : dois séculos de política brasileira, Augurium, 2005) que mostra como, desde o Império, os períodos democráticos têm sido muito mais estáveis e profícuos do que as inúmeras interrupções autoritárias salvacionistas pelas quais passamos. Isto não significa, no entanto, que não existam democracias melhores e piores, e o critério para avaliá-las não pode se limitar à capacidade do Executivo de implementar suas decisões.

Para funcionar bem, o regime democrático deve ser legítimo, o que depende de um sistema representativo que garanta que os cidadãos se sintam representados pelos governantes, e deve ser também eficaz, tanto para garantir os direitos civis, políticos e sociais da cidadania quanto para lidar com a complexidade crescente das políticas econômicas, sociais e ambientais requeridas pela sociedade moderna. E as duas coisas estão ligadas, porque governos legítimos têm mais autoridade para implementar suas políticas, e dependem muito menos da troca de favores, do que governos debilitados e sem apoio na sociedade.

Deste ponto de vista mais amplo, o sistema político brasileiro tem falhado, ao levar ao extremo uma lógica de competição de curto prazo baseada na ampla distribuição de vantagens grandes e pequenas para ricos e pobres, de forma legal ou ilegal. É uma lógica eleitoral que funciona bem em épocas de recursos abundantes, mas não tem como se manter em períodos de escassez, ou quando os recursos públicos se esgotam.

Uma outra característica de nossa democracia tem sido a tendência a simplificar de forma extrema as políticas públicas, quase sempre colocadas em termos de ações simplistas e de grande efeito, mas de qualidade ou impacto desconhecido ou mesmo desastroso (incluindo, entre tantos outros, o falecido Trem Bala, o Ciência Sem Fronteiras, os campeões do BNDES, a euforia do Pré-Sal, o Mais Médicos, o Minha Casa Minha Vida, o FIES, o PRONATEC, e tantos outros).

A questão é se estes problemas de incompetência, que estão na raiz da crise atual, são inerentes ao regime democrático ou são decorrentes das limitações dos atuais detentores de poder. Em minha apresentação lembrei de um argumento de vem sendo reiterado pelo economista Samuel Pessoa, segundo o qual o déficit crônico do setor público brasileiro se deve a um pacto implícito ratificado na Constituição de 1988, de distribuir ao máximo (e além do máximo) os recursos públicos existentes entre os diversos grupos de interesse (com especial destaque para os benefícios previdenciários), deixando pouco ou nenhum espaço para investimentos de longo prazo e para o reequilíbrio da economia.

Não há dúvida que este pacto, se existiu, poderia ser revertido por um governo que entendesse o alcance dos problemas e tivesse apoio e legitimidade suficiente para levar à frente as reformas necessárias, tal como foi quando da implantação do Plano Real. O problema não me parece ter sido a miopia ou outros pecados do PT, mas a base política com a qual ele chegou e tem se mantido no poder, que é uma combinação de apelo populista, aliança com oligarquias políticas tradicionais e o apoio de grandes interesses econômicos que se beneficiam da proximidade com o poder. Esta combinação funcionou muito bem até recentemente, mas agora está chegando a seus limites por dois fatores: a crise econômica, que não permite mais a farta distribuição de recursos, e o fortalecimento de novos atores importantes da sociedade e no sistema político brasileiro, começando pelo novo Ministério Público e o judiciário, dramatizado pelo Lava Jato, e amplos setores da população e do empresariado que não dependem nem querem depender das bondades do Estado, mas reclamam, sobretudo, a instauração e o fortalecimento do império da lei e de uma nova política voltada para a representação da cidadania, e não sua manipulação.

Não sabemos qual será o desenlace desta crise, mas duas coisas parecem certas: não haverá rompimento da ordem democrática, e os atuais mecanismos de sustentação do poder, da velha política, dificilmente sobreviverão.

 

 

 

 

A Revolução Soviética na UFRJ

Em uma carta ao Ministro da Educação, transcrita abaixo, 25 professores eméritos da Universidade Federal do Rio de Janeiro protestam contra o fato de o comando de greve, que vem paralisando a universidade há vários meses, ter agora assumindo as funções de responsabilidade acadêmica da instituição. Dizem eles: “nossa preocupação vai além da quase completa paralisação das aulas e atividades administrativas numa greve que já dura 3 meses. Greves por longos períodos já ocorreram no passado, mas o que presenciamos agora é de gravidade sem precedentes: a transformação de instâncias sindicais em canais de tramitação dos procedimentos acadêmicos, e de decisão sobre questões da alçada do Conselho Universitário e do próprio Reitor”.

Não chega a ser sem precedentes. Em 1917, Lênin lançou a diretriz de “todo poder aos Soviets”, que eram as organizações de trabalhadores que apoiaram a revolução de outubro e que, depois, foram violentamente reprimidas pelo governo implantado em seu nome. Fora isto, de fato, o direito de greve, dentro de seus limites, tem sido reconhecido em todas as partes, mas jamais confundido com a entrega da autoridade das organizações aos sindicatos, nem no setor privado, nem no setor público. Até agora.

Tão ou mais preocupante é que este protesto tenha partido de professores eméritos, e não dos professores ativos.  Será que, para eles, está tudo bem, como esteve bem a “consulta” que substituiu o processo legal de escolha dos candidatos a reitor, e que levou à indicação e posterior nomeação do reitor atual?

 

CARTA ABERTA DE PROFESSORES EMÉRITOS DA Universidade Federal do Rio de Janeiro
Exmo. Sr Ministro da Educação
Professor Renato Janine Ribeiro
Esplanada dos Ministérios, Bl. L -8º Andar – Gabinete 70047-900 -Brasília – DF

(e-mail: gabinetedoministro@mec.gov.br)

Rio de Janeiro, 20 de agosto de 2015

Senhor Ministro,

Na qualidade de Professores Eméritos da UFRJ trazemos à sua atenção nossa profunda preocupação com episódios recentes que vêm ameaçando a nossa Universidade enquanto instituição de ensino, pesquisa e extensão de qualidade. Nossa preocupação vai além da quase completa paralisação das aulas e atividades administrativas numa greve que já dura 3 meses. Greves por longos períodos já ocorreram no passado, mas o que presenciamos agora é de gravidade sem precedentes: a transformação de instâncias sindicais em canais de tramitação dos procedimentos acadêmicos, e de decisão sobre questões da alçada do Conselho Universitário e do próprio Reitor.

Relatamos a seguir apenas dois exemplos de episódios recentes de nosso conhecimento:

1) Foi negado o pedido de afastamento do país de docente visando participar de evento científico representando a UFRJ. O processo seguiu as etapas iniciais de avaliação; porém, antes de ser encaminhado à Reitoria, duas entidades ligadas ao SINTUFRJ (Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFRJ), “Comando Local deGreve” e “Comissão de Ética” sentiram-se no direito de analisar e negar o afastamento por não considerá-lo uma atividade essencial. Solicitações análogas de outros docentes tiveram o mesmo desfecho. Na prática isto representa uma usurpação, aparentemente consentida, da autoridade da Reitoria, à revelia de qualquer norma ou regulamento da Universidade.

2) Em reunião do Conselho Universitário de 13/08/2015, o professor Afrânio Kritski, diretor da Faculdade de Medicina e com aprovação da respectiva Congregação, solicitou posicionamento do Conselho Universitário, órgão colegiado máximo da UFRJ, sobre o reinício das aulas na sua Unidade, conforme desejam seus professores. Em resposta, o Pró-Reitor de Graduação, professor Eduardo Serra, informou que o Conselho de Ensino de Graduação deliberou que excepcionalidade deste tipo deveria ser encaminhada ao CLG (Comando Local de Greve), procedimento acatado pelo Reitor, não incluindo o assunto na pauta do Consuni. Entendemos que a avaliação de questões acadêmicas por instâncias de caráter sindical, como o “Comando Local de Greve” e a “Comissão de Ética”, invertem a prática universal em instituições de ensino e pesquisa do julgamento pelos pares, inviabilizam a convivência universitária sadia e prejudicam gravemente a reputação da nossa Universidade.

A UFRJ segue uma rota perigosa, que em breve poderá tornar-se irreversível. Certos de sua compreensão sobre a gravidade da situação institucional vigente, contamos com sua ação pronta e enérgica no sentido de apurar as responsabilidades por episódios como os descritos e regularizar os procedimentos acadêmicos da UFRJ.

Saudações Universitárias,

Antonio Carlos Secchin, Faculdade de Letras

Antonio Flávio Barbosa Moreira, Faculdade de Educação

Fernando Cardim de Carvalho, Instituto de Economia

Fernando Garcia de Mello,, Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho

Heloísa Buarque de Hollanda, Faculdade de Educação

I-Shih Liu,, Instituto de Matemática

José Murilo de Carvalho, Instituto de História

Luiz Felipe Canto, Instituto de Física

Marcello André Barcinski, Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho

Martin Schmal, COPPE

Nelson Velho de Castro Faria,, Instituto de Física

Radovan Borojevic, Instituto de Ciências Biomédicas

Willy Alvarenga Lacerda, COPPE

Antonio Dias Leite, Instituto de Economia

Erasmo Ferreira, Instituto de Física

Fernando de Souza Barros, Instituto de Física

Gilberto Barbosa Dumont, Instituto de Química

Herch Moysés Nussenzveig, Instituto de Física

João Saboia, Instituto de Economia

Luiz Bevilacqua, COPPE

Luiz Pereira Calôba, COPPE

Mario Luiz Possas, Instituto de Economia

Muniz Sodré, Escola de Comunicação

Nicim Zagury, Instituto de Física

Takeshi Kodama, Instituto de Física

 

Educação: ainda pode piorar

iurO jornal O Estado de São Paulo publica hoje, 30/6/2015, o artigo abaixo sobre a proposta de criação de um Sistema Nacional de Educação:

Educação: ainda pode piorar

Cláudio de Moura Castro, João Batista Araujo e Oliveira e Simon Schwartzman

A educação brasileira continua péssima pelos padrões internacionais, apesar dos sucessivos Planos Nacionais de Educação – PNE – e do enorme aumento de gastos, que passou de 4 a 9.3% da receita líquida do Tesouro Nacional entre 2004 e 2014. Em diversos momentos, cada um dos autores deste artigo já comentou a respeito dos equívocos do Plano atual, uma grande lista desconexa de metas sem prioridades nem mecanismos efetivos de implementação. Uma destas metas é criar um “Sistema Nacional de Educação” – SNE- cujo formato está sendo proposto agora pelo MEC. Se esta proposta vingar, o mais provável é que a burocracia e os custos aumentem, e a qualidade da educação piore ainda mais. Como concebido, este sistema engessa definitivamente o setor, entroniza o corporativismo e destrói o que quer fortalecer, o combalido federalismo.

Dois documentos, um de 2014 e outro recente, de 2015, especificam o que se pretende. O primeiro estabelece uma lei complementar para tratar do regime de “cooperação” – termo novo substituindo o regime de colaboração previsto na Constituição. O segundo cria um emaranhado de instâncias consultivas e deliberativas entre municípios, estados e governo federal, que supostamente ajudariam a resolver os problemas de qualidade e equidade da educação.

Em nenhum país sério as decisões sobre educação são tomadas através de negociações recorrentes e intermináveis entre sindicatos, professores, grupos de interesse e governos locais, estaduais e nacionais. O cipoal de instâncias burocráticas e consultivas propostas destrói qualquer possibilidade de políticas inteligentes, criando um nevoeiro de vozes cacofônicas. Há dezenas de países com regime federalista, incluindo a Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Rússia, Suíça e Estados Unidos. O grau de descentralização e autonomia dessas federações é muito variável, mas em nenhum deles há algo parecido ao que se propõe para o SNE, e todos estão bem nas avaliações da educação da OECD, o PISA.

O federalismo ajuda ou atrapalha? Estudo recente sobre o federalismo alemão mostra como uma única iniciativa – educação infantil de qualidade – seria capaz de neutralizar as desigualdades regionais, atribuídas muitas vezes às diferentes maneiras em que as regiões organizam seus sistemas escolares. A lição é clara: para lidar com os problemas de equidade e qualidade são necessárias políticas focalizadas, viáveis e consistentes – e não arranjos institucionais complexos.

Como estabelecer as responsabilidades de cada instância da federação? A educação básica é atribuição de estados e municípios, que variam muito em termos de recursos e capacidade gerencial. O governo federal tem importantes papéis a cumprir, levando à frente a proposta de uma base nacional comum para a educação fundamental, estabelecendo padrões de qualidade, melhorando os sistemas de avaliação, estimulando a formação de bons professores, certificando diretores, aprimorando os mecanismos de seleção de livros didáticos, proporcionando assistência técnica e complementando os recursos das redes escolares mais carentes. Os Estados, por sua vez, poderiam promover a municipalização do ensino fundamental e concentrar-se em diversificar o ensino médio, com suas variantes acadêmicas e profissionais, como ocorre em todo o mundo – isso já seria um grande avanço. Ambos poderiam criar incentivos para estimular iniciativas eficazes e diversificadas por parte dos municípios, que não podem ser tratados como se os 3.914 com menos de 20.000 habitantes fossem iguais a São Paulo ou o Rio de Janeiro, ou Belo Horizonte.

Dentro do próprio governo existem propostas interessantes, como a do Ministro Mangabeira Unger, de usar recursos federais para premiar professores que atingirem determinados patamares de desempenho. Se estes professores fossem destinados às turmas e escolas mais fracas, isto poderia produzir muito mais ganhos de equidade e qualidade do que realizar 5.500 conferências municipais de educação.

Tudo isto pode ser feito dentro da atual legislação. Além de trazer complicações desnecessárias, o SNE exigiria recursos adicionais que hoje não existem, e, se existissem, deveriam ser aplicados em projetos bem definidos, com metas claras e mecanismos também claros de avaliação de resultados. Para promover a eficiência e equidade, existem dois mecanismos conhecidos: os incentivos, estimulando e premiando as boas práticas, e as regras hierárquicas, em que as autoridades governamentais usam de sua autoridade legal para cumprir os objetivos para os quais foram eleitos ou nomeados. Em seu lugar, o SNE propõe regras complexas e inviáveis, a ser estabelecidas por assembleias, comitês, conselhos e uma infinidade de órgãos que, em última análise, diluem as responsabilidades. Em contraste, o uso criativo de bons sistemas de incentivo, associados ao estímulo à diversidade, autonomia, iniciativa local e simplificação de procedimentos, costumam ser muito mais eficazes. A experiência internacional mostra que há maneiras muito mais simples e eficazes de oferecer ensino de qualidade do que as propostas do PNE e do SNE.

 

O isolamento brasileiro

migrationEm um mundo em que conhecimentos, mercadorias, pessoas e recursos circulam cada vez mais, como está o Brasil? Na economia, sabemos que o isolamento é muito maior do que se imagina, com exportações de bens e serviços correspondendo a somente 12.6% do PIB em 2013, na 177a posição entre os 184 países para os quais existia esta informação, disponível do site do Banco Mundial.

Em trabalho recente, publicado em Brésil(s), revista do Centre de Recherches sur le Brésil Colonial et Contemporain  e também disponível em inglês, Luisa F. Schwartzman e eu procuramos ver o que ocorria em termos de fluxo de população, sobretudo de pessoas alta qualificação,  tanto de fora para dentro quanto de dentro para fora, e o que se vê é que o isolamento também é grande. Em 1900, haviam 1.2 milhões de pessoas nascidas no exterior vivendo no Brasil, 7.2% da população. Em 2010 eram 600 mil, ou 0.3%. Não sabemos ao certo quantos brasileiros vivem no exterior, mas uma estimativa do Ministério de Relações Exteriores de 2011 era de 3.1 milhões, mais ou menos metade nos Estados Unidos, resultantes de um êxodo que teve seu início nos anos da “década perdida” de 1980.

O isolamento é uma forma primitiva de defesa, que protege empresas e pessoas no mercado de trabalho de concorrentes e imigrantes mais qualificados; e a saída para o exterior pode significar, em muitos casos, perdas importantes de pessoas qualificadas, que tiveram sua formação financiada pelo país . Mas o isolamento deixa o país fora dos fluxos internacionais de cultura, conhecimentos, informações e investimentos produtivos, sem o qual a economia não avança e a sociedade não se moderniza.

Neste trabalho, procuramos olhar mais de perto, com os dados disponíveis, quem sai do Brasil para trabalhar ou estudar, o que fazem lá fora, o que acontece com os que voltam, quem são os imigrantes que o país continua recebendo, aonde vivem e o que fazem; lembramos a grande contribuição que imigrantes estrangeiros trouxeram para o desenvolvimento da economia, ciência, tecnologia e educação superior no país, e discutimos os esforços mais recentes de internacionalização, assim como suas limitações. Boa leitura!

Fundações são parte da solução, não do problema

O Jornal O Globo publica hoje, 15 de abril,  uma matéria  de Raphael Kapa com uma entrevista feita comigo sobre o tema das fundações universitárias.  A matéria completa pode ser vista clicando aqui.

Computador de 30 anos atrás, quando a discussão sobre as fundações universitárias estava no mesmo lugar do que hoje
Computador de 30 anos atrás, quando a discussão sobre as fundações universitárias estava no mesmo lugar do que hoje

Fundações são parte da solução, não do problema

Na opinião do sociólogo Simon Schwartzman, especialista em ensino superior, o caminho para fazer com que as universidades usem melhor os recursos que recebem é dar mais autonomia para que utilizem este dinheiro, seja público ou privado, mas cobrando delas metas claras e transparência na prestação de contas.

— O problema é que o regime de serviço público não permite isso, e os setores mais dinâmicos das universidades, como os institutos de pesquisa e tecnologia, necessitam poder administrar seus recursos de forma mais flexível — afirma Schwartzman. Segundo ele, é nesse contexto em que surgem as fundações. — Elas são parte da solução, não do problema. O problema está na burocracia e na inércia deste atual modelo de serviço público.

Desde domingo, os jornais O GLOBO, “Zero Hora”, “Diário Catarinense”, “Gazeta do Povo” e “O Estado de S. Paulo” vêm relatando casos de irregularidades em contratos com fundações universitárias e empresas privadas, em muitos casos beneficiando indevidamente professores que deveriam trabalhar em regime de dedicação exclusiva.

Para o sociólogo, o uso das fundações pode gerar uma flexibilização que coíbe a corrupção:

—Os financiamentos obtidos das agências de financiamento de pesquisa e através de convênios com empresas públicas e privadas normalmente requerem relatórios, prestações de conta, você tem que mostrar como o dinheiro está sendo utilizado. O problema é que um grande setor da universidade não quer mudar a forma como ela funciona. Para eles, a burocracia é boa. Eles recebem recursos públicos, independentemente dos resultados que possam obter, no ensino e na pesquisa.

Schwartzman afirma também que não se pode condenar professores que, mesmo com contratos de dedicação exclusiva, buscam alternativas para melhorar seus salários e, ao mesmo tempo, trazer recursos e novas pesquisas para as universidades.

— A “dedicação exclusiva” acabou virando salário-base para a grande maioria dos professores das universidades públicas. A ideia original era que metade do tempo de dedicação seria voltada à pesquisa, mas sabemos que pesquisa de qualidade está concentrada em um número reduzido de universidades e regiões. Não há por que pensar que os professores que trazem mais dinamismo e mais recursos para as universidades não podem ganhar mais por suas iniciativas.

Schwartzman também afirma que não há como ter bons quadros sem flexibilização, porque a universidade precisa disputar talentos com o mercado.

— Muitos dos melhores médicos de São Paulo são professores universitários. É justo eles terem que deixar seus consultórios para serem professores? Se não puderem combinar o trabalho profissional com a universidade, o mais provável é que abandonem o ensino, e quem perde é a universidade.

O pesquisador afirma que, enquanto a estrutura universitária não se adequar ao dinamismo necessário para o uso eficiente e flexível dos recursos e o relacionamento mais dinâmico com a sociedade, o papel das fundações é fundamental.

O Ataque às Fundações Universitárias

Fiquei chocado com o ataque generalizado às fundações universitárias feito por uma matéria conjunta dos principais jornais do país, entre os quais O Estado de São Paulo e O Globo. Entrevistado sobre isto por um repórter do Estado de São Paulo, lembrei que as fundações são um caminho encontrado pelas universidades para sair da camisa de força do serviço público que as mantêm congeladas e isoladas da sociedade, e que o correto seria transformar todas as universidades em fundações regidas pelo direito privado, e não acabar com a pouca flexibilidade que as fundações trazem. Tambem observei que as eventuais situações de abuso e falta de transparência poderiam ser facilmente controladas por uma supervisão e regras claras de transparência, mas é absurdo pensar que flexibilidade e corrupção são a mesma coisa, e que não há salvação fora da burocracia do serviço público, quando é exatamente o contrário.

O assunto, infelizmente, é antigo. Em 1988 houve também um ataque generalizado às fundações, e um decreto governamental que determinou sua extinção, mas prevaleceu o bom senso e foi cancelado. Reproduzo abaixo o artigo que escrevi a respeito, publicado no Jornal do Brasil em 1988.

As Fundações Universitárias (Jornal do Brasil, 9 de maio de 1988)

Ainda não se sabe se o governo federal vai realmente modificar o artigo 40 do decreto 95.904, do dia 7 passado, em que se davam 30 dias para que as universidades federais extinguissem cerca de 40 fundações por elas criadas como forma de sair da camisa de força que lhes dá sua condição de autarquia pública. Estas fundações são, tipicamente, entidades não lucrativas de direito privado, estabelecidas e controladas por universidades e escolas superiores, através das quais convênios de pesquisa são assinados, serviços de extensão e assistência técnica remunerados são feitos, e hospitais universitários são administrados. O Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras solicitou ao Ministro da Educação que intercedesse junto à Presidência para pelo menos prorrogar o prazo para 180 dias, para dar tempo a um exame mais aprofundado do problema, evitando, inclusive, a demissão de quase 7 mil profissionais da área de saúde, sem falar da inviabilização de um sem número de projetos de pesquisa hoje financiados pela FINEP, CNPq e outras instituições. Esta determinação veio no bojo da extinção da URP para servidores federais, e passou quase despercebida, não provocando, nem de longe, reação semelhante à que existe quanto à proibição temporária de contratação de novos professores pelas universidades federais, apesar de ser possivelmente muito mais grave.

A justificativa formal para a determinação é que estas fundações são ilegais, por terem sido estabelecidas por meros atos administrativos, e há um parecer do Tribunal de Contas da União sugerindo seja sua extinção, seja sua melhor regulamentação. Esta regulamentação é, efetivamente, necessária, já que fundações deste tipo podem ser, se mal utilizadas, uma porta aberta para o desvirtuamento das funções universitárias, e a apropriação, para uso privado, de bens públicos. Assim, em um exemplo fictício, os professores de uma faculdade de arquitetura poderiam, através de uma fundação deste tipo, vender serviços feitos durante suas horas de trabalho em regime de dedicação exclusiva, utilizando-se de equipamentos e materiais fornecidos pelo governo, e receber por isto muito mais do que colegas que não participam das fundações. Não só haveria, no caso, uma utilização indébita de recursos públicos para fins privados, como uma concorrência desleal da universidade com os escritórios privados de arquitetura, além de gerar o desinteresse dos professores pelas atividades regulares de ensino e de pesquisa para os quais, afinal, o governo lhes paga. A maneira de evitar que estes abusos ocorram é colocar as fundações sob supervisão acadêmica, administrativa e financeira direta dos departamentos, institutos ou universidades a que estejam vinculadas, estabelecendo regras para que seus trabalhos tenham um sentido acadêmico claro, para que o tempo dedicado e as remunerações adicionais dos professores obedeçam a normas definidas, e que haja uma efetiva transferência de recursos das fundações para o interior das universidades. Estas regras não podem ser gerais, mas devem ser estabelecidas pelas universidades em cada caso.

Existe um outro tipo de oposição às fundações, no entanto, que não se mostra de corpo inteiro, mas que talvez explique melhor a truculência do decreto presidencial (que não tem agido com igual determinação ante outros casos de uso privado de funções públicas) assim como a pouca grita que a medida está causando no próprio ambiente universitário, onde poucas vozes se uniram, até agora, ao protesto dos reitores.

Esta oposição surda às fundações vem do fato de que, na prática, muitas delas têm conseguido romper o monolitismo e o controle burocrático da vida das universidades federais, criando um espaço de liberdade, diferenciação e “insubordinação” que a burocracia não tolera, e que os setores menos competentes das universidades olham com inveja e desconfiança. Elas também são vistas, por muitos, como uma forma embrionária de privatização das universidades, já que são portas através das quais recursos não orçamentários podem ser obtidos, inclusive para a complementação de salários. Através de uma Fundação, por exemplo, um instituto de engenharia de alto nível pode estabelecer relações de cooperação com a indústria local, transferir de forma efetiva a tecnologia gerada por suas pesquisas, e dar formação atualizada a seus alunos; através de uma fundação pesquisadores competentes podem obter um financiamento para um grande projeto, que traga novos equipamentos, contrate assistentes técnicos e administrativos, proporcione estágios a estudantes, e assim por diante. As fundações dão lugar ao surgimento, nas universidades, de líderes empreendedores que localizam talentos, identificam fontes de financiamento, formulam projetos e fazem crescer seus institutos e departamentos As complementações salariais feitas pelas fundações permitem às universidades reter as pessoas mais qualificadas e que atuam nas profissões mais bem pagas (médicos, administradores, economistas, engenheiros), que de outra forma terminariam por abandoná-las pelo setor privado.

Aumentar os vínculos das universidades com o mundo que as rodeia, torná-las sensíveis às demandas da sociedade, dar liberdade e iniciativa a seus professores e pesquisadores, não são tarefas fáceis, e geram inevitáveis ambigüidades, distorções e conflitos de interesse que precisam ser examinados e resolvidos caso a caso a partir dos valores maiores do desenvolvimento do conhecimento e da capacitação científica e tecnológica do país. Acabar com as fundações por um fiat administrativo pode, sem dúvida, eliminar muitos abusos. Mas este ato vai, principalmente, acabar com o “abuso” dos setores mais dinâmicos da universidade federal brasileira de tentar se diferenciar e fazer valer sua competência e sua capacidade de iniciativa. O fim das fundações será mais uma vitória dos que trabalham, sem pensar muito no que fazem, pelo achatamento monolítico e centralizado das universidades federais, e mais um passo em seu plano inclinado de decadência. <

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