Carlos Kamienski: a Universidade do ABC e o modelo de Bologna

Eu gostaria de adicionar meus 2 cents ao importante texto do colega Simon Schwartzman e aos comentários do colega Helio Waldman. Gostaria de dizer logo no início que acredito que construir uma instituição de ensino de excelência requer esforço constante, mas deixá-la cair na mediocridade requer somente a inação.

Não vou me deter nos problemas conhecidos de (falta de) qualidade das escolas públicas brasileiras. Assumo que o aproveitamento real do potencial proporcionado pelo ensino superior ao aluno para sua autonomia intelectual e socioeconômica depende de certa preparação que, infelizmente, ainda é para poucos no Brasil.

Parafraseando o Prof. Bevilacqua, “na UFABC os alunos são os empreendedores da sua própria formação acadêmica”. Esse modelo tem semelhanças com o processo de Bolonha da Europa, mas também importantes diferenças. Entre elas, uma das mais importantes é a inexistência dos ciclos de formação que possibilita aos alunos trajetórias individualizadas de acordo com suas decisões ao longo do caminho (Bolonha assume o 3+2+3 – bacharelado + mestrado + doutorado). Levantamento realizado recentemente na UFABC concluiu que todos os alunos formados no Bacharelado em Ciência e Tecnologia (um dos dois cursos interdisciplinares de ingresso) tiveram uma trajetória única, com disciplinas, períodos, professores e experiências diferentes dos demais. A sociedade, o desenvolvimento nacional e o mercado de trabalho carecem de pessoas com pontos de vista únicos para gerar a diversidade criativa que gera soluções abrangentes e inclusivas.

Alguns pontos baseados na minha experiência até agora e também em opiniões de colegas, inclusive já manifestadas no grupo de discussão do IVEPESP:

a) O sistema universitário deveria ser baseado em níveis diferentes com objetivos e metodologias diferenciadas. Um bom exemplo é o sistema das universidades da Califórnia, com as University of California, California State University e California Community Colleges. Por mais que eu seja um evangelista do modelo da UFABC, ela é uma universidade de pesquisa, que tem problemas de escalabilidade. Esse modelo teria que ser adaptado para outros níveis de um sistema universitária escalonado (como o da Califórnia). É uma ilusão achar que todo o sistema universitário deveria ter a mesma missão.

b) Os alunos devem ser formados para terem autonomia intelectual, capacidade de decisão, inventividade e capacidade de atualização constante. É uma ilusão alguém, por mais informado que seja, acreditar que na possibilidade de circunscrever num currículo todos os conhecimentos necessários para formar um aluno que vai atuar no mercado por 30-40 anos. Se alguma vez já foi assim, hoje não é mais.

c) O Brasil precisa de universidades de classe mundial, para promover a autonomia científica e tecnológica nacional. Embora esse termo já esteja um pouco desgastado, apontado como elitista, a necessidade de centros de referência na geração do conhecimento é inegável. Como apontado por Jamil Salmi, essas universidades são caracterizadas por alta concentração de talentos, recursos abundantes e governança favorável. Esta última é baseada na flexibilidade de gestão, que é tudo o que não temos nas nossas universidades públicas, as mais próximas do conceito de classe mundial. 

d) Universidades públicas e gratuitas são necessárias para gerar desenvolvimento socioeconômico e ao mesmo tempo equalizar desigualdades históricas do nosso país. No entanto, o alto custo e a ineficiência das universidades públicas (tenho experiência com as federais) advém da falta de flexibilidade e da falta de incentivos corretos para o corpo docente. É uma ilusão acreditar que em todas as universidades todos os professores realizarão pesquisas capazes de contribuir com o desenvolvimento socioeconômico do país e a redução das desigualdades. Ou seja, as universidades públicas estarem sujeitas às mesmas regras de todo o setor público engessa e gera ineficiências de várias naturezas.

e) O ensino superior necessita de transformação constante, principalmente nesse momento. A onipresença da Internet e da informação na sociedade gera uma situação onde os professores não mais dominam o conhecimento que deve ser repassado aos alunos. O papel docente hoje é muito diferente, onde alunos aprendem porque estudam e se informam em múltiplas fontes, inclusive em aulas presenciais. Isso leva à necessidade de rever o modelo de ensino, ainda calcado nos métodos de séculos passados. Sou a favor da universidade como lócus físico onde pessoas se encontram para discutir diferentes temas, mas também de aprendizado à distância, assim como de diferentes inovações pedagógicas para gerar estímulos adequados para que os alunos se deliciem com o conhecimento.

f) A UFABC inovou no seu projeto pedagógico, onde o aluno constrói seus caminhos. Enquanto outras universidades ainda insistem no modelo que se assemelha a um quebra-cabeças onde cada peça (curricular) tem o seu lugar exato, na UFABC o aluno tem à sua disposição blocos de construção que podem ser usados para construir diferentes obras (como no jogo do pequeno engenheiro). No entanto, dentro de cada bloco de construção (as disciplinas) a metodologia continua a mesma. E, por inércia os professores tendem a repetir o mesmo método pedagógico à qual foram submetidos, com aulas expositivas onde o professor “transmite” o conhecimento aos alunos. Faz-se necessário inovar nos métodos pedagógicos daqui em diante. Por sinal, já estamos atrasados como país porque alguns países e até universidades de ponta já estão inovando a sua atividade pedagógica. Por sinal, a disponibilidade de aulas online no MIT há alguns anos atrás gerou uma crise de identidade sobre a função da instituição como lócus físico de ensino. Em pouco tempo, chegou-se a um consenso de que a principal característica formadora do MIT estava nas atividades proporcionadas aos alunos, pelo gestão do MIT, pelos próprios alunos e por terceiros. Esse é o verdadeiro DNA da instituição e não necessariamente as aulas presenciais. 

g) Tive a oportunidade de atuar como Assessor de Relações Internacionais da UFABC por quatro anos e o nosso projeto pedagógico sempre gerou grande atenção dos parceiros internacionais de vários continentes. Alguns elogiavam a nossa coragem em inovar, enquanto outros eram céticos com relação à eficácia do modelo. Mas, ninguém ficava indiferente a um projeto pedagógico inovador e desafiador. Acredito na educação como um processo que sempre se transforma e não deixa as pessoas na zona de conforto.

Author: Carlos Kamienski

Professor da Universidade Federal do ABC

5 thoughts on “Carlos Kamienski: a Universidade do ABC e o modelo de Bologna”

  1. 2 cents…

    Concordo com os seus pontos Carlos.

    Mas na linha do termo “Ilusões” utilizado pelo Simon e em complemento ao comentário da Bruna, existe um indicador que é levado a sério no exterior, mas que dificilmente vejo pautado no Brasil: a taxa de alunos que se formam no tempo correto. No caso da UFABC, por exemplo, esse tempo seria 3 anos.

    Vejo alunos que levam 5 anos, ou mais, para se formar nos BIs, engenheiros levando 8 ou 9 anos para se formar, isso tudo a um custo muito alto para as instituições e para as vidas pessoais dos alunos.

    Não aponto hipóteses ou soluções, mas essa certamente é uma das Ilusões que o Simon não mencionou.

    1. Caro Arlindo,

      Os seus comentários geram a necessidade de reflexão e de busca por soluções. Em casos de problemas novos encontrados por um projeto pedagógico novo como o da UFABC, uma tendência natural é as pessoas logo sugerirem uma volta ao modelo anterior. Ora, mas foi justamente para progredir além dos problemas das universidades tradicionais que o modelo da UFABC foi proposto. Então, todos os novos problemas (e existem alguns) devem ser tratados com soluções olhando para a frente e não para trás.
      Especificamente, posso fazer alguns comentários:
      1) É sabido que os alunos demoram ou pouco mais para se formar na UFABC. E, isso decorre do fato de poderem mudar de área e de fazerem percursos interdisciplinares não previstos. Em universidades tradicionais, quando o aluno não tem muita certeza do que quer, frequentemente desiste. A UFABC segura muitas desistências com a possibilidade de novas escolhas, sem um novo reingresso.
      2) No entanto, é necessário olhar os dados com mais cuidado. Creio que no início os alunos demoravam mais para se formar, mas esse tempo está diminuindo. Mais uma vez, seriam necessários dados e análises mais cuidadosas. Não é possível afirmar que na média os alunos levam 8 ou 9 anos para cursar engenharia.
      3) Os alunos de maneira geral não tem estímulo para terminar o BCT ou BCH antes do curso de formação específica, de modo que o tempo de formação nesses bacharelados interdisciplinares não deveria ser usado como parâmetro. Esse estímulo vem quando um estagiário de engenharia recebe oferta de contratação como analista e para isso precisa de um diploma. Normalmente essa situação faz com que eles terminem o BCT.
      4) A questão do custo tem que ser analisada com um olhar diferente, uma vez que na UFABC a alocação de recursos para cada aluno é dinâmica e não estática. Numa universidade tradicional com entradas por cursos específicos e com os conceitos de turmas, existe uma vaga garantida em todas as disciplinas para todos os alunos que seguem juntos semestre a semestre. Se um aluno deixa de cursar uma disciplina, é gerada um vaga ociosa que em geral não é preenchida. Na UFABC, não há garantias de vagas em disciplinas para alunos (o que de novo, causa outros problemas), mas um sistema de prioridades para o deferimento das matrículas. Nesse caso, um aluno que cursa as disciplinas mais vagarosamente não desperdiça uma vaga, porque ela não estava alocada para ele, e outros alunos podem ocupá-la. Veja que essa questão de alocação de recursos estática versus dinâmica aparece em várias áreas. Minha área de pesquisa, Redes de Computadores, é um exemplo disso. O custo de uma chamada de voz tradicional é muito mais alto do que o uso de dados, porque na chamada de voz (chamada de comutação de circuitos) é alocado um canal fim a fim que fica disponível ao usuário. No caso de dados (comutação de pacotes), não há garantias rígidas de transmissão no momento desejado, mas apenas uma garantia estatística. Não é de se estranhar que o custo de chamadas de voz seja muito mais alto do que uma chamada através de dados, usando aplicativos com VoIP (como Skype, Hangouts ou WhatsApp). Ou seja, sem uma análise mais cuidadosa, não é possível afirmar que a UFABC desperdiça recursos pelo fato de os alunos demorarem mais para se formar. Além disso, esse fato ocorre pela melhoria da formação do aluno e possibilidade de correção de rota.

      Um problema que ocorre é a falta de padrões para avaliar modelos diferentes. É necessário criar métricas e avaliações diferentes para modelos diferentes.

      Espero ter esclarecido meus pontos de vista.

      Carlos Kamienski

  2. O modelo da UAFBC e da UFBA se assemelham, mas o da UFABC veio primeiro e há importantes diferenças. A principal diferença é que os bacharelados interdisciplinares são a única porta de entrada na UFABC, enquanto que em outras universidades que adotaram modelos similares, ele é um adento à estrutura tradicional.
    Ou seja, os alegados problemas de outras universidades, inclusive a UFBA, não podem ser automaticamente transpostos para a UFABC sem incorrer em erro grosseiro.

  3. O modelo da UFABC foi feito no Reuni, sob os auspícios do então reitor da UFBa. Escrevi um texto sobre o Reuni atribuindo a ele a disparada da evasão da UFBa, e duvido muito que possa melhorar sem serem purgados alguns problemas ideológicos. Ao contrário de Bolonha, a (digamos) lasanha bolonhesa congelada de Naomar é anti-mercado e bacharelesca. O aluno paga um imposto de 3 anos de estudo para justificar a contratação de ideólogos, e nada mais. Deixo aqui o meu texto. Depois da repercussão dele (com alunos do BI ameaçando me bater), a UFBa resolveu parar de divulgar a TSG. http://estudoshumeanos.com/2017/09/14/o-reuni-e-a-disparada-da-evasao-na-ufba/

    1. Cara Profa. Frascolla,

      Ser ameaçado de agressão ou ser agredido efetivamente não é uma experiência incomum na “universidade crítica” que não admite crítica, porque a “crítica” é para os outros, veja o caso do professor Rodrigo Jungmann da UFPE que teve seu gabinete arrombado, depredado e roubado por não “posar” de acordo com a cartilha (ora) dominante.

      Trabalhei por sete anos em um Bacharelo Interdisciplinar em Humanidades. Eram também três anos de curso antes que o discente pudesse optar por cinco possibilidades de licenciatura: Pedagogia, Geografia, História, Letras Inglês, Letras-Espanhol. Disse “trabalhei” porque o curso acabou. Havia muitos conflitos entre os professores que se agregaram nas licenciaturas (todos são lotados na Faculdade, não havendo departamentos) e os professores que atuavam quase que exclusivamente no ciclo básico. Alguns professores agregados às licenciaturas se queixavam que a evasão do 1º ciclo era muito grande o que afetaria o ingresso de discentes no 2º ciclo, o das licenciaturas, causando ociosidade acadêmica, que atingia estes cursos de modo bastante desigual. Inclua-se aí o fato de que algumas disciplinas do 1º ciclo tinham dupla coordenação, uma de cada ciclo. O aluno que precisasse se queixar de um docente precisaria se queixar para dois coordenadores.
      Até onde eu pude acompanhar a evasão, o primeiro ciclo perdia algo em torno de 50% de seus alunos. Eram duzentos ingressantes por semestre. Havia portanto um interesse de separação das licenciaturas para que tivessem ingresso direto, sem passar pela corrida de obstáculos de 3 anos do 1º ciclo.
      As preces dessas lideranças das licenciaturas foram atendidas quando o CNE “resolveu” aumentar a carga horária de estágios para licenciaturas, o que demandaria um aumento de horas, então com duração entre dois e dois anos e meio, para quatro anos, e como o 1º ciclo do BHu era bacharelado, essas horas de estágio pedagógico não poderiam ser incorporadas nele. Assim as licenciaturas puderam então obter a tão almejada separação, sendo agora cursos plenos de 4 anos, com ingresso direto. O 1º ciclo ainda existe mas numa proposta (não totalmente) diferente da original, só que agora terminal.
      Mas o esfacelamento do BHu não alterou de modo significativo a visão dos projetos pedagógicos. Houve um conflito e um rearranjo interno para saber quem iria fornecer a “visão crítica” (sem auto-crítica). Se Hume aparecer em alguma disciplina será para ser devidamente “criticado” pelos autores obrigatórios e (con)sagrados.
      O que não mudou todos esses anos, é que continuo sendo voto vencido, quase sempre, (talvez por crítica inconveniente) seja no Consepe, seja no Consu, seja na Congregação. O que é algo de que muito me orgulho, mas não conta para Lattes.

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