Desigualdades sociais, testagem e indicadores prevalência de COVID-19 no Brasil

Luisa Farah Schwartzman, Flavia Cristina Drumond Andrade e Nekehia Quashie

Desde que a COVID-19 se espalhou pelo mundo, as pessoas se acostumaram a olhar para as taxas de mortalidade, hospitalizações, e a proporção de pessoas que testam positivo. Todas essas medidas têm vantagens e limitações. A estatísticas de mortes e hospitalizações são importantes para saber o impacto mais grave da doença, tanto na vida das pessoas quanto na capacidade dos sistemas de saúde e, em geral, são consideradas mais fáceis de medir. Mas a terceira medida, baseada em testes positivos, é importante para se entender como a doença se distribui de forma mais geral na população, sendo que destes alguns serão casos menos graves e outros que também aparecem nas estatísticas de hospitalização ou de mortalidade. Mas estatísticas baseadas em testes positivos tem um problema: elas não captam as pessoas que não testaram. Se a distribuição de testes na população for desigual, isso afetará o nosso entendimento sobre a distribuição da doença na população. 

            É importante pensar se a COVID-19 está afetando a população como um todo da mesma maneira, ou se as desigualdades sociais estão gerando uma distribuição também desigual da doença, e da capacidade das pessoas doentes de serem diagnosticadas e tratadas pelos serviços de saúde. Com a vinda das vacinas, essa questão fica ainda mais importante, se essas vacinas não forem distribuídas igualmente pela população. 

            Para entender essas questões melhor, nós analisamos dados da PNAD-COVID, uma pesquisa amostral domiciliar coletada pelo IBGE em 2020 em todo o Brasil (nossa análise ainda está em fase preliminar, mas decidimos compartilhar aqui algumas observações iniciais). Essa amostra da PNAD é longitudinal: pessoas do mesmo domicílio foram entrevistadas, uma vez por mês, desde maio de 2020. O questionário incluía, entre outras coisas, perguntas sobre se a pessoal teve sintomas geralmente associados ao COVID-19 na semana anterior. A partir de junho de 2020 a pesquisa também perguntou se as pessoas tinham feito o teste de COVID-19, e se o resultado foi positivo ou negativo. A nossa equipe agregou os dados da PNAD de julho a novembro para construir os indicadores de testagem e de sintomas, representados abaixo.  

O indicador de sintomas mostra a proporção de pessoas que responderam ter perdido o olfato, e que também responderam ter um dos seguintes sintomas: dor de garganta, febre, tosse, nariz escorrendo ou entupido, dificuldade de respirar, ou dores no peito. Se a pessoa respondeu ter esses sintomas em qualquer dos meses entre julho e novembro de 2020, ela foi contada no gráfico como tendo sintomas. Os indicadores de testes medem se a pessoa respondeu que testou, e se o resultado deu positivo. Testamos como esses indicadores variam a partir de várias características sociais e de vida das pessoas, como classe social, raça/cor, gênero e local de residência. Em geral, os indicadores de sintomas e de testes apontam na mesma direção: houve, no período analisado, uma maior prevalência da doença em populações de meia-idade, entre populações urbanas, entre mulheres, e entre indígenas. Nós também fizemos uma análise de regressão, considerando todas essas variáveis em conjunto, e ficou confirmado que essas correlações são estatisticamente significativas e independentes umas das outras. 

No entanto, há uma exceção importante: se utilizarmos o número de testes positivos como indicador de prevalência de COVID-19, parece que as famílias de renda mais alta estão mais expostas à doença. Mas se usarmos os sintomas como indicador, não parece haver diferenças por renda familiar. As pessoas em domicílios de renda mais alta testam mais em geral, e também, entre as pessoas que têm sintomas, uma maior proporção testa mais entre pessoas de renda domiciliar mais alta. 

Ou seja, por causa da desigualdade no acesso a serviços de saúde (e em particular aos testes de COVID-19), os resultados dos testes são bons indicadores da prevalência da doença para as classes sociais mais privilegiadas, mas tendem a subestimar a prevalência entre os mais pobres.  Claramente os mais ricos tiveram mais acesso aos testes e foram mais bem diagnosticados que as pessoas de menor renda. 

Luisa F. Schwartzman: A Amazônia, o Brasil e Colonialismo

Com o mundo chocado diante do fogo na Amazônia, o nosso presidente decidiu denunciar o colonialismo europeu, quando líderes e entidades europeias resolveram se pronunciar em defesa da preservação da floresta. Não é a primeira nem a última vez que a direita autoritária se apropria dos discursos tradicionais da esquerda. Na Europa mesmo, por exemplo, podemos ver políticos de direita, de uma hora para outra, virando campeões dos direitos feministas e LGBQT, como forma de justificar suas atitudes racistas contra imigrantes muçulmanos. Nos Estados Unidos, vemos a apropriação de uma tradição de esquerda de criticar as instituições científicas, para abafar o debate sobre as mudanças climáticas.

O colonialismo sempre foi um bicho complicado de entender, mas está em tempo de a gente discutir o que ele significa no caso do Brasil, e de países como o Brasil, como muitos sociólogos e historiadores já fizeram. O Brasil não é simplesmente um país colonizado pelos Portugueses (e mais recentemente, pelos Estados Unidos). Vale lembrar que a nossa independência foi feita pela família real Portuguesa (D. Pedro I) para garantir seu controle sobre a antiga colônia. O país foi construído em cima da terra e da vida dos povos indígenas (que continuamos destruindo em nome do “nosso” progresso), e das vidas, corpos e suor de milhares de africanos que trouxemos para cá, e de seus descendentes.

Vale a pena relembrar o século XIX, quando já éramos um país independente, mas ainda escravocrata e colonizador dos povos indígenas. Os interesses internacionais eram complicados. O império britânico, que tinha se beneficiado imensamente da escravidão nos séculos anteriores, resolveu abolir a escravidão e ir atrás do tráfico internacional de escravos. Não eram bonzinhos: a escravidão foi utilizada como pretexto para os britânicos ocuparem vários territórios na África, explicando que iam erradicar a escravidão dentro do continente, que na verdade foi substituída por outras formas de trabalho forçado. Mas a pressão britânica, em última instância, foi essencial para ajudar a abolir o tráfico de escravos e finalmente a própria escravidão em nosso país, que foi a última a terminar nas Américas.

Os interesses nacionais e internacionais na Amazônia no século XIX também nos ajudam a pensar de forma mais complicada sobre o colonialismo. Com o fim da escravidão nos Estados Unidos durante a Guerra Civil Americana, as elites escravocratas do Sul dos Estados Unidos começaram a olhar para a Amazônia como um lugar onde a escravidão poderia continuar (e continuava a todo o vapor, com o apoio das elites brasileiras), como parte do imperialismo americano que estava expandindo naquela época. Muitos fazendeiros do sul dos Estados Unidos se tornaram plantadores de café no Brasil, na região que hoje se chama Americana, justamente para poder continuar a explorar o trabalho escravo. Os europeus também estavam interessados na Amazônia. O governo brasileiro trabalhou para defender o “nosso” território diante dessas ameaças (mas em nenhum momento questionando a escravidão), expandindo a presença de migrantes brasileiros vindos de outras regiões, em uma ocupação que foi desastrosa para os povos indígenas.

Mais recentemente, durante a ditadura militar, nossas alianças com o colonialismo também foram complicadas, quando o Brasil inicialmente se aliou ao colonialismo português na África, e depois com os países do Terceiro Mundo que ficavam independentes. Alianças com os países do Terceiro Mundo foram feitas mais como uma defesa de interesses econômicos do Brasil nessas regiões do que como uma defesa de direitos humanos, que estavam, ao mesmo tempo, sendo brutalmente suprimidos no nosso país. O nosso desenvolvimentismo (que uma parte importante nossa esquerda também apoiou e continua apoiando) foi criado à custa de um crescimento brutal da desigualdade social, da colonização desenfreada da Amazônia e destruição de milhares de vidas de povos indígenas e do meio ambiente. O governo recente do PT também, apesar de sua preocupação com a desigualdade, com a diversidade e com o racismo, não trabalhou o suficiente para repensar o nosso modelo desenvolvimentista e seus impactos no meio ambiente, nas vidas dos povos da Amazônia e na vida dos brasileiros. Os governos Temer e Bolsonaro pioraram bastante a situação quando, em conluio com a bancada ruralista e companhias mineradoras, afrouxaram as leis ambientais e indigenistas para a exploração econômica, levando a um crescimento vertiginoso do desmatamento este ano.

Eu moro no Canadá. Em Janeiro deste ano, logo depois da eleição de Bolsonaro e do desastre de Brumadinho, vi representantes do governo brasileiro, muito preocupados com o colonialismo, virem aqui para Toronto para a maior conferência de mineração e prospecção do mundo, e dizerem para as companhias de mineração estrangeiras que operam no Brasil (inclusive na Amazônia) para não se preocuparem, porque o governo brasileiro estava afrouxando as leis ambientais e de proteção aos povos indígenas para facilitar a exploração. Os interesses internacionais e nacionais na Amazônia não estão em oposição, o que está em oposição são projetos, ideologias e interesses econômicos, que fazem alianças distintas dentro e fora do país.

Temos que sair dessas dicotomias e entender qual tipo de vida nós queremos para os seres humanos que vivem neste planeta, que inclui a população brasileira. A preservação da Amazônia e do meio ambiente têm um impacto direto na vida dos brasileiros. A destruição da Amazônia afeta diretamente o clima do Brasil, nossas fontes de água, nosso clima, e a vida de milhões de pessoas (indígenas ou não) que moram na região. O crescimento econômico desenfreado e desregulado só vai enriquecer alguns poucos de nossos compatriotas. A qualidade de vida da maioria dos brasileiros depende de repensarmos nossas relações uns com os outros, com o mundo, e com a natureza.

Luisa F. Schwartzman: Inútil Repressão

(Versão ampliada de artigo publicado no O Globo, 13 de outubro de 2018)

O sucesso de Jair Bolsonaro e de outros candidatos a governador, deputado, senador, que defendem uma política tipo “linha dura” nessas eleições tem a ver com a insegurança política e com a insegurança do dia-a-dia que o brasileiro está vivendo. Eu vou focar hoje na insegurança do dia-a-dia, que é a questão da violência, do crime e da segurança pública.

A lógica de muitas pessoas que defendem mais repressão é a seguinte: o problema da segurança pública no Brasil é a impunidade. Ou seja, se a polícia prender mais bandidos, se os jovens de 16 anos que cometem um crime também forem para a prisão, se as sentenças forem mais severas, e se a gente tiver mais leis e mais policiamento que não deixe as pessoas usarem ou venderem drogas, fazerem barulho na rua, etc, as nossas cidades vão ficar mais seguras.

O Brasil é hoje a terceira população carcerária do mundo, ficando só atrás da China e dos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, que parece ser o nosso modelo de repressão, existem comunidades (em geral de maioria pobres e negras) onde mais da metade dos homens jovens estão presos, e uma boa parte das pessoas soltas estão em liberdade condicional. Isso significa que as crianças crescem sem pai, que as famílias tem menos uma pessoa para trabalhar. As pessoas que são ex-presidiárias têm dificuldade de conseguir emprego, porque ninguém quer contratar um ex-presidiário.

No Brasil (assim como nos EUA), a maioria das pessoas são presas por crimes não-violentos: vender drogas, roubos e furtos, etc. A repressão ao tráfico de drogas, nos dois países, foi uma das grandes causas do crescimento da população carcerária. Tanto no Brasil como nos Estados Unidos, entrar numa prisão significa fazer um pacto de longo prazo com o mundo do crime. Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, as organizações do tráfico de drogas (as gangues americanas, e organizaçoes grandes como o PCC e o Comando Vermelho no Brasil) dominam a vida do dia-a-dia nas prisões. Especialmente no Brasil (mas também, de certa forma, nos Estados Unidos) existe um acordo tácito entre a administração dos presídios e o crime organizado onde este último tem muito poder para regular a vida dos presidiários. As gangues nos EUA e os traficantes no Brasil tém um poder enorme sobre a qualidade de vida dos prisioneiros, especialmente quem vai apanhar dentro da prisão, e quem vai receber um tratamento melhor. No Brasil, onde o tráfico tem relativamente mais poder nas prisões, e também nas comunidades de onde vem e voltam os prisioneiros, o tráfico é a conexão do prisioneiro com o mundo lá fora, em termos de visitas de familiares, produtos para comprar, e até a chance de conseguir sair da prisão, e a vida que o preso vai ter depois de solto. Tudo isso está condicionado à pessoa se afiliar ao tráfico. As prisões são escolas de violência: apanhar e bater na prisão é algo corriqueiro. As pesquisas sobre contextos de guerra, de violência urbana, e das prisões, mostram que a violência não é uma coisa natural dos seres humanos: as pessoas aprendem e se acostumam a matar, bater, e torturar à medida em que isso se torna “normal” na sua vida.

A melhora da segurança pública, paradoxalmente, passa, em muitos casos, por uma política de menos repressão. A legalização das drogas significaria menos pessoas presas, menos traficantes acertando dívidas de forma violenta e fora do sistema legal, e a remoção de uma fonte importante de renda para o crime organizado. Legalizar não significa que qualquer pesssoa pode vender drogas como quiser e ter acesso a drogas em qualquer lugar, de qualquer maneira. Se pode regular quem pode vender, onde, e para quem, e fornecer serviços de saúde aos usuários de drogas para eles se livrarem do vício ou que tomem drogas em condições mais seguras. Oferecer penas alternativas em relação a crimes pequenos, que não levem os jovens à prisão e deem a eles uma segunda chance, poderia tirar muitos jovens do mundo do crime organizado. E num país onde crianças de 13 anos às vezes trabalham como “soldados” do tráfico, talvez a gente tivesse que buscar modelos de reintegração desses jovens à sociedade, como se tem feito em alguns países onde guerras civis usaram soldados-criança que, como alguns desses jovens, se acostumaram a matar desde cedo, antes de poderem se desenvolver como pessoas adultas. A redução da maioridade penal, enquanto isso, só vai trazer mais recrutas para o crime organizado.

Um ponto final é a questão das armas. Bolsonaro e outros políticos oferecem dar armas para as pessoas se defenderem. A polícia andar fortemente armada também é considerada por alguns uma medida necessária para combater o crime. Mas essas armas terminam nas mãos de criminosos, seja pelo comércio de armas entre a polícia e o tráfico, seja porque um criminoso muitas vezes usa a arma de uma pessoa despreparada contra ela mesma. A presença de armas torna brigas de bar, de família, entre meninos nas escolas, etc, de uma situação onde alguém fica com um olho roxo, para a uma situação em que o resultado é a morte. Enfim, ao invés de aumentar a segurança, as armas diminuem a segurança para todos.

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Luisa F. Schwartzman é professora de Sociologia da Universidade de Toronto, Mississauga

Luisa F. Schwartzman: uma proposta alternativa às cotas

A introdução forçada de cotas raciais nas universidades, que o Congresso está discutindo, é a maneira errada de tratar de um problema importante, que são as desigualdades sociais que afetam pessoas de diferentes origens sociais e culturais. Existem, no entanto, melhores alternativas, como mostra este texto de Luisa Farah Schwartzman, que vem estudando o tema.


Uma proposta alternativa às cotas

Fiquei surpresa como todo mundo no Brasil se posiciona contra ou a favor de um sistema de cotas, um sistema que nos Estados Unidos é considerado uma forma extrema de ação afirmativa. Os que se opõem às cotas em geral propõem como solução a melhora do ensino básico.

É claro que melhorar o ensino básico é importante. No entanto, não acho que a única escolha que temos é entre um sistema de cotas e melhorar o ensino básico. Mesmo melhorando o ensino básico, sempre vão existir desvantagens que são transmitidas de uma geração para a outra. Isso também acontece em paises desenvolvidos. Além disso, pode-se criar um sistema da ação afirmativa que seja importante somente enquanto o ensino básico não resolver os problemas: se o ensino básico for suficiente, ele vai tornar a ação afirmativa redundante, mas enquanto não for, a ação afirmativa pode corrigir essa deficiência. Alem disso, é bom ter pessoas que vêm de origens mais humildes em posições de prestígio, porque elas podem devolver para a comunidade mais pobre os benefícios que receberam. Por exemplo, um médico que nasceu na favela pode ser mais capaz de tratar dos problemas de saúde das pessoas de sua comunidade de origem.

Um aspecto muito discutido em relação das cotas é a questão racial. Existe obviamente uma correlação forte entre cor, renda e educação no Brasil. Seja quais forem as causas (racismo, herança do passado etc.) seria bom mudar essa correlação. Ser negro no Brasil ainda é visto como sinônimo de pobreza. Se estivéssemos acostumados a ver negros de classe média, talvez não fizéssemos mais essa associação, e isso mudaria a maneira pela qual os negros são tratados na nossa sociedade.

O problema é que usar o critério racial diretamente traz várias dificuldades. Uma tem a ver com se o governo (ou universidades) devem impor identidade/classificação racial às pessoas. O caso da UNB ilustra isso bem: quem tem o direito de determinar se um indivíduo é negro ou não? As universidades vão impor sua classificação aos alunos? Se você deixar a cargo de escolha do indivíduo (como é o caso da UERJ), como você vai saber se as pessoas que estão se classificando como negras (ou pardas) realmente são tratadas como negras (ou não-brancas) na sociedade? E a questão da herança? Ter ancestrais negros não importa, independente da cor da pele? E será que todas as pessoas sabem que são discriminadas? E as pessoas que se classificam como “pardos”? Elas se consideram “negras”? Na linguagem popular, “negro” muitas vezes é um conceito mais restrito, que se refere a pessoas de pele mais escura. Pesquisas mostram que “pardos” e “pretos” são parecidos em relação a características sócio-econômicas, mas que são diferentes em relação a outras questões, como casamento, violência policial e segregação. O que significa que a discriminação contra “pardos” seria mais institucional, e por isso mais difícil de ser notada. Muitas pessoas classificadas como “pardas” nem se vêem como “negras” (ou se vêem assim somente em algumas situações) nem sabem que são discriminadas. Como essas pessoas vão julgar se merecem ou não participar da cota? Além disso, não deveríamos criar a imagem de que os negros de classe media chegaram onde estão somente por causa das ações afirmativas (mas ao mesmo tempo, é melhor ter uma oportunidade assim do que não ter nenhuma).

Uma boa solução seria implantar um sistema de metas. O governo estipula uma meta para as universidades, que pode ser baseada em cor/raça, mas também pode ter outros critérios, como percentagens de alunos cujos pais não foram para a universidade, percentagem de alunos com certo nível de renda etc., e ficaria a cargo dos departamentos dentro das universidades decidir como chegar a essa meta. A meta podia ir crescendo através dos anos para as universidades terem tempo de se adaptar. O papel do governo seria 1) tirar amostras de alunos em períodos mais avançados para avaliar o perfil dessa população e 2) distribuir recursos de acordo com se o perfil está seguindo ou não a meta.

Um sistema de metas significaria que as universidades poderiam usar critérios não-raciais para atingir objetivos de melhora da “igualdade racial.” Isso poderia incluir convênios com cursinhos e escolas secundarias da periferia, modificação do vestibular, cotas com critérios sociais, melhoria no recrutamento (por exemplo, as universidades poderiam dar mais informação para escolas secundarias onde os alunos tendem a não prestar vestibular) etc. A vantagem seria não ter que medir raça no vestibular, mas também criar oportunidades para pessoas brancas que também tenham algum tipo de desvantagem.

Também significaria que a universidade não teria que resolver somente o problema de admissão dos alunos, mas também o de retenção. Ou seja, não adianta colocar todo mundo para dentro e depois do primeiro ano as pessoas largarem a faculdade. A universidade tem que poder incorporar alunos com mais dificuldades, não só dando aula de reforço e ajuda financeira (que deveria que ser parte do pacote do sistema de metas), mas também institucionalizar um sistema que permita a alunos de origens mais humildes entender o “currículo não-escrito,” ou seja, regras informais que pessoas de classe media que entram já sabem, até por terem contatos fora da universidade com pessoas que já são profissionais da área, e em geral por terem pessoas na família que já tem experiência de estar na universidade, ou fazendo aquele curso especificamente.

Um sistema de metas mudaria a obrigação de se perguntar a cor do aluno. Primeiro, porque nem todos os alunos teriam que marcar sua cor, já que seria uma amostra. Segundo, que a cor que um indivíduo marcasse não teria nenhum impacto na chance dele de estar na faculdade, então não teria nenhum incentivo para ele marcar diferente do que ele faria, digamos, numa pesquisa do IBGE, com a vantagem de se poder comparar com as estatísticas. Como marcar a cor não teria conseqüência individual, o ato de marcar a cor teria menos impacto no dia-a-dia da pessoa e portanto seria menos impositivo.

Um sistema de metas poderia ter um resultado mais radical do que um sistema de cotas. Isso porque o sistema de cotas dá margem às universidades de arranjarem maneiras de seguir os critérios formais e ao mesmo tempo reduzir significativamente o numero de alunos beneficiados. Isso parece estar acontecendo na UERJ. A UERJ instituiu uma renda per capita máxima muito baixa e uma nota de corte (para muitos departamentos) muito alta. Isso significa que existem pouquíssimos alunos que, ao mesmo tempo, acabaram o segundo grau, ganham mais do que esse mínimo e vão superar a nota mínima, o que significa que está sobrando vaga na cota. Um sistema de metas (com critérios mais gerais e com certa flexibilidade para os departamentos decidirem os detalhes) eliminaria esse problema.

É possível que membros do movimento negro continuassem criticando esta proposta, argumentando que ela eliminaria a discussão sobre desigualdade racial e discriminação no Brasil. Uma forma de resolver isso seria incluir esses temas no currículo da universidade, o que, no meu ver, deveria incluir uma discussão que questione o conceito de raça como algo com base biológica, e explique para os alunos que esse conceito só faz sentido como um fenômeno social. O tema das cotas está levando a uma discussão sobre o racismo mas deixando intacta a questão do racialismo (a idéia de que raças existem biologicamente), e os estudantes deveriam estar discutindo os dois assuntos. Vale a pena ressaltar que o discurso de miscigenação também é um discurso racialista, pois se não existem raças, também não pode haver miscigenação. De novo, acho que cada departamento deveria ter a liberdade de escolher como inserir a discussão sobre essas questões no currículo, tentando relacioná-las com a área específica de cada curso.

Em resumo, a proposta seria o seguinte. Um sistema de metas raciais (que pode ser combinado com outros critérios), que seria avaliado com base em uma amostra de alunos no terceiro ou quarto período, com recursos do governo atrelados ao cumprimento ou não dessas metas. Junto com isso, uma proposta de incluir nos currículos uma discussão sobre desigualdade racial, racismo e sobre o conceito de raça/cor (que pode incluir uma discussão mais ampla sobre desigualdade social no Brasil).

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