Claudio de Moura Castro: Ciladas, burocracia e avanços no Ensino Superior

 

Nas suas funções de cuidar do ensino superior, o MEC instalou um labirinto de exigências burocráticas. Faz muito tempo, critica-se a corrida de obstáculos que foi criada.  De fato, falta demonstrar que montanha de exigências leve ao resultado esperado: a qualidade. Além de complicar a vida de todos e exigir um exército de funcionários, é um gentil convite para a pequena corrupção. Está na hora de arejar um pouco esta tutela infantilizante.

Em uma economia de mercado, como é a nossa (em que pesem suas imperfeições), cabe ao Estado monitorar e incentivar a qualidade da educação privada oferecida e garantir um amplo fluxo de informações, essencial para quem precisa tomar decisões. No caso, são as próprias instituições, os pais e os alunos.

A existência de demanda, ou seja, um fluxo aceitável de candidatos aos cursos, não é assunto do Estado, mas de cada operador individual, responsável por confrontar os riscos com os resultados pretendidos. Se há emprego para quem se forma é uma indagação que cabe a quem pretende se matricular nos cursos, não do Estado. Isso tudo não é uma invenção apócrifa mas parte das regras do jogo de um país que optou por uma economia de mercado.

Nos países escandinavos, havia politicas denumerus clausus, ou seja, o governo só autorizava as vagas se as suas projeções indicassem uma oferta de empregos suficiente. Mas tais políticas não deram certo e foram abandonadas, já faz meio século. Hoje, pelo menos no ensino privado, as regras são as do mercado.

O setor público precisa de outro conjunto de regras. Mas embora se deva incluir o interesse social e os projetos econômicos, o mercado não pode ser totalmente ignorado, pois não faz sentido gastar recursos do contribuinte em cursos cujos graduados não encontram empregos comensuráveis com o esforço. Ou que não tenham candidatos à matrícula.

Houve um melhor entendimento desses assuntos, sobretudo, no período do Ministro Paulo Renato de Souza. A tomar posse, descobriu que, até para reduzir vagas o MEC exigia autorização. Naquele momento, havia uma tal de “demanda social”, um termo espúrio e sem sentido na teoria econômica. De fato, a demanda é claramente definida como a função que associa o preço a pagar com o número de candidatos que se apresentam aos vestibulares. A palavra “social” nada esclarece e tudo confunde.

No fundo, prevalecia um sistema grotesco e vulnerável aos lobbies dos que já estavam operando no local onde alguém ousava querer abrir um curso. Ao MEC cabia exarar a sua sapiência para decretar se em Cabrobó havia mercado para mais um curso de, digamos, Fisioterapia. Do ponto de vista metodológico, essa estimativa cai em um poço sem fundo, pois mais da metade dos graduados de ensino superior não exerce a profissão, o que é normal e esperado. Sendo assim, como saber quantos fisioterapistas iriam ser vendedores de terrenos? Era o Estado Babá em sua plenitude. Em boa hora, a “demanda social” foi defenestrada.

Mas o conceito arcaico retornou, alguns anos depois. Demos um passo atrás. Em particular, na Medicina. Os grupos de interesse denunciam a má qualidade dos cursos nesta profissão. Mais do que legítimo, já que estamos diante dos riscos de erros que comprometem a saúde e a vida humana. Não obstante, a má qualidade refere-se aos cursos que estão operando com foros de legalidade. Impedir que outros novos sejam criados não mitiga o grave problema das deficiências dos existentes. Pelo contrário, protege-os de uma nova concorrência.  Seria muito mais razoável levantar a barra para todos, novos e velhos. Se alguém apresenta um projeto convincente, não importa onde seja, deve ser autorizado. E se algum curso existente não atinge o limiar de qualidade estipulado, que seja fechado. Os exames seriados que estão  sendo construídos fazem muito mais sentido, à exemplo do que se começa a fazer em São Paulo.

Pela velha regra que foi exumada, as novas escolas de Medicina são autorizadas nos municípios periféricos, mas não nas capitais, que supostamente estariam saturadas pela presença de outras escolas. Resulta disso uma grande procissão de alunos e professores viajando para o município vizinho. A evidência de que isso promove a interiorização ainda não foi encontrada.

O ENADE faz do Brasil o único país do mundo a medir o que aprenderam os alunos ao se diplomar. Há quem levante dúvidas quanto à sua capacidade de medir a competência dos graduados. Nada mais apropriado do que promover discussões que levem ao aperfeiçoamento do ENADE.

Contudo, na maioria das áreas, não podemos descartar ex abruptoa confiabilidade destas provas. Em que pesem equívocos e imperfeições (e frequentemente, vieses ideológicos), são provas feitas por professores reconhecidos e de sólido currículo, além de receberem o apoio de especialistas em testes. São exames expostos ao escrutínio de todos. Em contraste, um aluno se forma quando é aprovado em um conjunto de provas cuja qualidade técnica e critérios de correção não são conhecidos, nem mesmo dos chefes de departamento. Na prática, cada disciplina é uma caixa negra. E o somatório das notas de cada caixa negra conduz  à concessão de um diploma, validado pelo MEC, sem qualquer cuidado adicional. Comparado com o ENADE, parece bem mais precário.

Sendo assim, por que não dar peso muito maior ao ENADE? Para quê escarafunchar tanto os processos, se a medida do produto é confiável? Mal comparando, o Guide Michelin, avalia a gastronomia oferecida pelos restaurantes, ignorando a marca do fogão e os diplomas do Chef de Cuisine. Por que não fazer o mesmo?

Ao longo das décadas, colecionou-se um amontoado de critérios para a abertura de cursos, alguns tolos, como medir as salas de aula ou exigir cópias certificadas de contratos de locação de imóveis. Na maioria dos casos, criou-se uma corrida de obstáculos, dificultando a vida de faculdades pequenas que não têm os burocratas especializados em satisfazer as bobices do MEC. Além disso, alimenta uma indústria de consultores especializados em dar à papelada a cara que o MEC quer ver, além de empurrar o processo de uma escrivaninha para a outra. Conta o folclore que alguns funcionários do MEC, ao ler o projeto do curso, já sabem de qual consultor foi comprado.

Supostamente, isso tudo garantiria a qualidade. Mas não é bem assim. Usando a matriz do ENADE de 2009, com dois colegas, verificamos que infraestrutura tem correlação negativa com o ENADE nas instituições públicas. E nas privadas é desprezível. Ou seja, são inúteis os quilos e quilos de papel dedicados a certificar-se de que os tijolos e tralhas se conformam com as normas oficiais, pois nada dizem da qualidade do ensino.

Esse é o lado da chatice burocrática. Nada se fica sabendo de importante, nada se exige de relevante, apenas perde-se tempo. Não obstante, há outros critérios que impuseram uma distorção na montagem e operação dos cursos.

O equívoco mais egrégio é o tratamento das áreas profissionais idêntico ao das áreas científicas.  Com efeito, julgam-se todos os cursos pela quantidade de diplomas de mestrado e doutorado dos professores. Ótimo na Física. Mas e na Educação Física? De fato, tratam-se as áreas profissionais igualzinho às acadêmicas. Os professores das Engenharias são julgados pelos diplomas e pela quantidade de paperse não pela sua excelência na profissão. Sendo assim, para melhorar as notas perante o MEC, vale a pena defenestrar professores com décadas de vivência no mundo real e contratar jovens doutores que jamais entraram em uma fábrica ou canteiro de obra. Não custa lembrar, só ensina a prática profissional quem a tem. Nos cursos de Administração, se nossos mais celebrados executivos virassem professores, fariam baixar a nota do curso junto ao MEC, uma vez que não têm Ph.D. E não é diferente nas demais áreas profissionais.

Por que caminhamos nesta direção? As razões jazem na concepção das novas universidades públicas que se gestaram a partir da década de sessenta. Como orientação para elas, buscou-se o modelo pioneiro de Humboldt que propôs a fórmula da universidade de pesquisa.  Fundia-se nela o ensino, a pesquisa e a extensão. Belo e inspirado modelo.  O erro é que foi erigido como o único parâmetro para modelar todo o ensino superior. Chegam os visitadores do MEC na modesta faculdade e logo querem saber das pesquisas – cuja existência é duvidosa até na prestigiosa universidade de onde vêm.

Mas já que estamos discutindo a importação de soluções, é preciso entender que a universidade Humboldtiana não regeu todo o ensino superior dos países que nos serviram de modelo. Mesmo na Alemanha, a universidade de ensino integrado à pesquisa, por séculos, foi de implementação muito restrita. Na França, as Grandes Écoles, matriz produtora das elites do país, por muito tempo proibiram a pesquisa, por se julgar que atrapalhavam o ensino. Nos Estados Unidos, os prestigiosos Liberal Arts Colleges nem têm pós-graduação e nem pesquisa. Das mil universidades americanas, as classificadas como de pesquisa pela Carnegie Commission, andam pela casa da centena. O milhar de colleges (de quatro anos), não se propõem a fazer pesquisa. Na maioria dos community colleges, não são sequer considerados para professores os candidatos com Ph.D., pois julga-se que não têm paciência para lidar com a clientela que acorre a eles. Obviamente, nada impede que alguns professores tenham interesse e façam pesquisas. Mas estas instituições não são modeladas pelo imperativo das publicações.

Dentre nós, são cerca de duzentas instituições classificadas como Universidades. Pelos meus cálculos – já antigos – apenas vinte produziam pelo menos uma publicação anual por pesquisador. Em contraste, são da ordem de dois mil as faculdades e centros universitários, onde a pesquisa é inviável na avassaladora maioria. O mais que se pode fazer é fingir que existe.

Em outras palavras, o modelo Humboldt, de aplicação restrita nos países avançados, foi alçado à posição de ser a única opção tolerável no Brasil. Na sua aplicação, não se valoriza a sala de aula e se choraminga pela pesquisa que não se materializa.

Novamente, usando a mesma matriz de dados do ENADE 2009, associamos os resultados dos testes com a proporção de Ph.Ds, de mestres e de tempo integral dentre as instituições privadas. Surpresa! A correlação não é estaticamente diferente de zero. Ou seja, ter mais doutores iluminados não melhora a qualidade do ensino. O mesmo com mestres ou com professores de tempo integral. Como sabe qualquer bom diretor de escola, ter bons professores é parte do segredo. E nossos números mostram que é irrelevante terem eles muitos ou poucos diplomas.

Note-se que, pelas regras da Dedicação Exclusiva, os professores das Universidades Federais não podem ter experiência nas fábricas. Menos mal que, neste particular, há amplo descumprimento!

Aleluia! Em uma portaria recente (Instrumento de Avaliação de Cursos de Graduação/INEP), o MEC passou a considerar também a experiência profissional dos professores – em paralelo aos diplomas. Faz mais de trinta anos que insisto nisso. Mas não acredito que a mudança tenha sido influenciada pelo meu patético espernear. Importa a retificação de um cacoete antigo.

Neste mesmo documento, o MEC passa a reconhecer que livros e periódicos em formato digital são parte integrante e igualmente valiosa de uma biblioteca universitária. Por muitos anos, ouviam-se casos de bibliotecas alugadas, apenas para a liturgia das visitas iniciais do MEC. Terminada a visita um caminhão levava os livros – para o próximo curso a ser visitado. Vacinado contra estas malandragens, além de valorizar agora o acervo eletrônico, a nova e legítima preocupação é saber se a assinatura dos periódicos digitais tem uma duração aceitável ou vai evaporar-se no dia seguinte. Pela segunda vez, aleluia!

Uma reforma em profundidade no MEC é missão para décadas. Mas, pouco a pouco, alguns reparos vão aparecendo, como os dois acima citados. Festejemos.

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