Francisco Soares: diálogo para definir as novas políticas educacionais

A aliança que venceu as eleições é constituída basicamente de pessoas que aceitam a democracia como o valor essencial. Pelos mapas de votação, pode-se inferir que esse grupo é composto majoritariamente pelos pobres, com presença menor, mas significativa, de pessoas das classes médias e um número diminuto de ricos. Por motivos políticos, éticos, financeiros ou de mera sobrevivência, essas pessoas votaram em um projeto que assume compromissos claros com a democracia, com a manutenção de convivência pacífica entre os brasileiros e com a busca da prosperidade para todos. Entendem que isso, entretanto, não é possível se o Brasil mantiver os níveis atuais de desigualdade e exclusão.

Contudo, os que agora se encontram em um mesmo barco, têm posições diferentes sobre muitos assuntos. Um diálogo, que precisa começar logo, deve definir a direção a ser seguida. Se cada um remar em uma direção, agarrando-se às suas posições originais, o barco ficará parado e será afundado, logo ali na frente, pelas enormes dificuldades que os próximos anos trarão. Esse diálogo, idealmente, deve ocorrer em ambiente que aceite a expressão de dúvidas, no qual se busque ouvir e compreender, mais do que convencer, e que procure superar o “nós e eles”. Muito difícil construir um diálogo nestas bases, mas atalhos não ajudam. Por exemplo, os que querem distribuir renda devem falar com os que querem gerar renda, os que defendem direitos têm de entender os que defendem a melhoria da eficiência do Estado; os que se preocupam pela educação de determinados grupos populacionais precisam ouvir os que pensam e defendem políticas universais, os que enfatizam a necessidade de melhorias nos indicadores sociais precisam considerar os argumentos dos que se preocupam com as desigualdades regionais e entre grupos sociais.  

Restrinjo-me à educação básica, etapa sobre a qual posso falar com mais propriedade e legitimidade, que, entretanto, não inclui todas as questões educacionais que precisam ser discutidas. O debate deveria se iniciar buscando confrontar as diferentes interpretações do estabelecido no artigo 205 da Constituição. Esse artigo estabelece, na visão de muitos, mas não de todos, que a educação tem a missão de garantir, a todos, os aprendizados que permitam o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Aceitando-se que o desenvolvimento de aprendizados está no âmago do conceito de educação, o debate precisa convergir para formas concretas de como o preceito constitucional influenciará as rotinas das redes e escolas. Nesse sentido, deve tratar de três temas essenciais – o que ensinar? como ensinar? como avaliar? –, além do tema da gestão, responsável por ações que harmonizem em cada escola e rede as três dimensões do projeto pedagógico.

Na primeira dimensão – o que ensinar? –, é preciso definir o papel da BNCC nas políticas educacionais dos próximos anos. No caso do ensino fundamental, esse documento é visto por atores importantes do debate educacional como inconcluso, pois não houve esforço para capacitas as redes e escola para o desenvolvimento de tarefas que implementam concretamente os comandos pedagógicos da BNCC. No entanto, há amplo espaço para convergência, ao se trazer, para o centro do debate, a ideia de que os estudantes aprendem o que fazem. Como consequência, a política pública necessária seria definir, de forma participativa, mas fundada na ciência e em experiências bem-sucedidas nacionais e internacionais, quais são as tarefas que os estudantes devem ser capazes de fazer ao fim do ensino fundamental. Essas tarefas estariam à disposição dos docentes para uso no ensino e na avaliação.

Um tema especialmente premente é decidir o que fazer com os estudantes que, tendo ficado afastados por quase dois anos das escolas, não se alfabetizaram adequadamente. No momento, é dramática a situação no chão de muitas escolas, principalmente as que atendem a crianças cujas famílias não puderam lhes dar algum apoio durante a pandemia. A rotina pedagógica das escolas precisa ser adequada para as necessidades atuais dos estudantes. Isso exige um projeto nacional, para o que felizmente o Brasil possui expertise e o diálogo aqui defendido especificará.

No caso do ensino médio, são muito grandes as dificuldades para se chegar a uma convergência. A reforma começou com uma medida provisória, uma opção legal que alienou muitos atores. Além disso, a especificação do modelo se deu por meio de indicações ainda mais abstratas do que as usadas no ensino fundamental. Os conceitos de formação geral básica e itinerários não tiveram conceituação clara nos documentos legais, o que impactou enormemente as opções feitas pelos estados. No entanto, há currículos feitos e decisões tomadas, que precisam ser consideradas na política nacional para o ensino médio, especialmente no ENEM. Mesmo os que apontam as imperfeições do modelo tal como implementado devem perceber a importância da expansão do ensino técnico e a transformação do ensino médio em uma etapa de tempo integral, presentes na reforma.

O segundo tema – como ensinar? – só pode ser tratado no âmbito da escola. Aqui, o diálogo necessário é especialmente difícil, pois, na coalizão vencedora, há os que pensam a escola apenas a partir da posição dos docentes e os que pensam a escola como instrumento do Estado para a garantia do direito de aprender dos estudantes. Não são duas visões excludentes, mas, até aqui, as políticas apoiadas em uma visão têm tido pouca preocupação com a outra.  Outra versão desta dicotomia é a falsa divisão entre recursos/processos e resultados. Os recursos e processos que não levem a resultados aceitáveis para os estudantes são ruins; resultados inaceitáveis indicam problemas nos recursos e nos processos. Precisamos de uma visão compreensiva de recursos/processos e resultados. Uma proposta que circula na periferia do debate pode ser a chave para uma convergência. As escolas de educação básica poderiam se transformar em escolas de tempo integral para os docentes e para os estudantes. Essa é a forma de organização das escolas de educação básica em muitos países. Nesse contexto, seriam tratados os temas dos salários docentes, da formação continuada, do acompanhamento da permanência e do aprendizado dos estudantes e da melhoria da infraestrutura. Essa é, entretanto, uma transformação para uma década.

Para definir o terceiro tema – como avaliar? –, o debate deve enfrentar o atual domínio do uso das avaliações para produzir medidas de desempenho dos estudantes, minimizando a geração de informações sobre o aprendizado.  O sistema atual é capaz de indicar onde estão os problemas, mas não tem capacidade de indicar o que deve ser feito. Além disso, para muitos, o sistema atual usa formas de medida inadequadas, por ser baseado em expectativas de aprendizagem que exigem quase sempre processos cognitivos superficiais, deixando de verificar se os estudantes estão preparados para as tarefas que a vida lhes colocará e que exigem processos cognitivos mais complexos. Além de sua utilidade pedagógica, a avaliação gera dados que permitem monitorar os resultados da educação. As formas atuais de monitoramento não consideram, entretanto, os estudantes que estão fora da escola – exatamente os que mais precisam do sistema educacional –, nem as desigualdades entre grupos sociais. Felizmente existem dados que podem ser usados para mudar esse perfil, ainda que não haja um caminho único. Nesse caso, as bases para uma convergência estão estabelecidas.

Há outros temas nos quais as discordâncias serão possivelmente menores. Por exemplo, a necessidade de recuperar recursos que foram retirados da educação básica e o fim do atendimento clientelista, que nos últimos anos tornou-se padrão e, ainda, a volta de acesso amplo aos dados necessários para o monitoramento

A democracia abre espaços para a expressão de conflitos e cria ao mesmo tempo as condições para a sua resolução, através de suas instituições que devem promover diálogos com esse propósito. No entanto, nenhum grupo social conseguirá implantar completamente sua agenda. Neste ponto, é apropriado retomar a fala de Ulisses Guimarães na sua luta pela redemocratização, quando repetia com frequência Fernando Pessoa, dizendo “Navegar é preciso”; ou seja, cabe aos vencedores, neste momento, tomar as iniciativas para construir uma educação para todos que atenda às necessidades de um país que precisa ser próspero e mais justo. Isso precisa estar acima dos interesses e ideais pessoais.

Author: José Francisco Soares

Prof. Emérito da UFMG

2 thoughts on “Francisco Soares: diálogo para definir as novas políticas educacionais”

  1. “A aliança que venceu as eleições é constituída basicamente de pessoas que aceitam a democracia como o valor essencial.” hahahaha hahahaha!! A diferença foi de pouquinho mais de 1%, gente. Possivelmente, muito mais motivada pela economia do que por outra coisa.

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