As Universidades Brasileiras, a OCDE e o Processo de Bologna

(Publicado no jornal O Estado de São Paulo, 12 de julho de 2019)

O objetivo do ingresso do Brasil na Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento, OCDE, é fazer com que o país se comprometa com a adoção das melhores práticas internacionais de políticas públicas, que possam melhorar as condições vida da população, não só na economia, mas também no meio ambiente e nas questões sociais. Na educação, o Brasil já participa do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, o PISA, e, em 2018, uma equipe da OECD analisou o sistema brasileiro de avaliação da Educação Superior, o SINAES, recomendando alterações profundas que ainda precisam ser implementadas.

Este é o momento também de avançar na modernização da educação superior, cuja última reforma data de 1968, quando havia não mais do que 100 mil estudantes neste nível em todo o país. Naquele ano, o Brasil resolveu adotar o modelo universitário norte-americano, com seus cursos de pós-graduação, departamentos, institutos de pesquisa e professores de tempo integral, que foi sobreposto às antigas faculdades profissionais organizadas no velho modelo francês ou italiano. A origem da reforma de 1968 é geralmente atribuída ao famoso acordo MEC-USAID, mas é curioso que os americanos só tenham recomendado que copiássemos a ponta da pirâmide da educação superior de seu país, as famosas universidades de pesquisa, e tivessem se esquecido da enorme base dos community colleges e universidades estaduais, originárias em sua maioria dos land-grant colleges que, desde o século 19, fizeram da educação superior americana uma das mais diversificadas, amplas e acessíveis do mundo (veja a respeito a classificação das instituições de ensino superior americanas feita originalmente pela Carnegie Foundation). Outra hipótese, mais plausível, é que foram os brasileiros que só se interessaram pela parte mais elitista do sistema.

Hoje já temos uma educação superior de massas, com 8 milhões de estudantes extremamente diversificados em instituições também muito distintas, mas continuamos aferrados a um modelo tradicional de universidade de elite. Ainda achamos que o ensino é sempre “indissociável” da pesquisa, que todos os professores devem ter doutorado, que a educação superior deve ser gratuita e que não é possível obter um título universitário em menos de 4 ou 5 anos. A realidade, no entanto, é bem diversa: a maioria dos professores não pesquisa, três quartos dos alunos pagam suas matrículas no setor privado, quase metade dos alunos abandonam os estudos antes de terminar, e as faculdades não podem contratar como professores profissionais experientes que não tenham títulos acadêmicos.

Em contraste, em 1999 os países da União Europeia iniciaram um ambicioso processo de reforma da educação superior que ficou conhecido como Processo de Bologna, do qual já participam hoje cerca de 50 nações. Um dos objetivos é fazer com que a formação e os títulos universitários dos países participantes sejam equivalentes, facilitando a mobilidade internacional dos profissionais. Para nós, o que mais interessa é a adoção de um sistema de cursos escalonados, semelhante ao americano e inglês. Neste formato, o ingresso na educação superior se dá em um primeiro nível de três anos, quando o estudante se aprofunda em algumas áreas como ciências sociais ou ciências biológicas, e adquire um título de bacharel, e existe também um amplo sistema de formação mais prática, vocacional. O segundo nível, de um ou dois anos, é o de mestrado, onde o estudante se profissionaliza em áreas como administração, engenharia, enfermagem ou comunicações (não existem “mestrados acadêmicos”). E há um terceiro nível, de doutorado, para formação avançada em pesquisa e carreiras mais complexas como medicina e alta tecnologia. As instituições podem se especializar ou combinar os três níveis de maneira distinta, ampliando o ensino e concentrando os cursos avançados e a pesquisa de qualidade em um número relativamente menor de entidades.

A mudança na estrutura dos cursos é só um dos elementos necessários para uma reforma mais ampla. A segunda é mudar o sistema de financiamento, que deve se diversificar e, na parte pública, ser feito através de contratos de gestão em que as instituições estabelecem suas prioridades e são financiadas conforme seus planos de trabalho e capacidade demonstrada de cumpri-los. Para isto, elas precisam ter efetiva autonomia de gestão financeira e patrimonial, o que é incompatível com o atual regime de repartição pública. As instituições públicas precisam adotar práticas gerenciais típicas de empresas modernas, e as privadas, para serem reconhecidas e receber apoio, precisam demonstrar qualidade e relevância. Como no setor privado, as instituições públicas devem ter carreiras próprias para seus professores e funcionários, liberdade para negociar salários, e flexibilidade nos contratos de trabalho. Parte do financiamento pode ser feito a partir de subsídios, cobrança ou financiamento direto aos estudantes, tanto no setor público quanto privado, adotando um sistema de crédito educativo como o australiano, em que o ressarcimento é feito em função da renda futura. O atual sistema de avaliação precisar ser alterado, tornando as universidades mais responsáveis pela qualidade de seus cursos, fazendo uso de dados sobre taxas de aprovação e mercado de trabalho, e reformando profundamente o ENEM.

A transição do velho sistema para o novo, em países como Portugal ou Alemanha, não foi simples, e a criação de um sistema integrado de padrões e equivalência de títulos ainda está longe de ter se completado. Mas, no novo formato, os países têm conseguido ampliar o acesso à educação superior, distribuí-la conforme as demandas e necessidades dos diferentes setores e investir mais e melhor em pesquisa e inovação. Mudanças como estas são controversas, precisam ser amadurecidas, mas precisam ser encaradas. Está mais do que na hora de começarmos a buscar novos caminhos.

Em busca da República

Publicado pela Editora Intrínseca, 130 anos: Em Busca da República reune cerca de 40 ensaios sobre os 130 anos da República brasileira, escritos por historiadores, economistas, juristas e cientistas sociais, editados por Edmar Bacha, José Murilo de Carvalho, Joaquim Falcão, Marcelo Trindade, Pedro Malan e Simon Schwartzman. Lançamentos nos dias 25 e 27n de junho no Rio de Janeiro e São Paulo.

Consenso e Dissenso em Educação

(artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, 14 de junho de 2019)

Seis ex-ministros da educação, em recente nota, falam do grande consenso que teria sido construído no Brasil sobre o setor, que o atual governo estaria desconsiderando. De fato, existe um forte consenso sobre a prioridade que a educação deve ter,  e o governo até agora não mostrou uma política para o setor que vá além de cortes orçamentários e posturas ideológicas, diferentemente do que ocorre na economia e na segurança, aonde, concordando-se ou não, existem propostas claras formuladas com o apoio de fortes contingentes de economistas, juízes, promotores e funcionários públicos qualificados.

Mas o consenso é ilusório. Tal como na economia, a educação brasileira, depois de um período de crescimento  descontrolado, chegou a um impasse, com milhões de jovens concluindo a educação fundamental semianalfabetos, o ensino médio estagnado e com altíssimas taxas de abandono, um ensino superior público caro, desigual e que não consegue atender a mais do que 25% das matrículas, e um sistema de pós-graduação e pesquisa em grande parte voltado para si mesmo, que cresceu em quantidade mas não em impacto e relevância científica e econômico-social, com as boas exceções de sempre. 

O ponto mais alto deste consenso, segundo os ex-ministros, teria sido o Plano Nacional de Educação, aprovado por unanimidade pelo Congresso Nacional em 2014, com planos filhotes para cada estado e município, e que se desdobrava em 10 diretrizes e vinte grandes metas, divididas em 244 estratégias específicas, a serem financiadas com 10% do PIB. Para acompanhar tudo isto, contava-se com uma grande parafernália de comissões tripartites estabelecidas com as associações de secretários de educação estaduais e municipais e fóruns permanentes de negociação. Foi um consenso construído à custa de botar no papel todas as demandas de todos os interessados, e, como escrevemos na época com alguns colegas, não havia chance de dar certo, mesmo sem a crise econômica que veio depois. O PNE é um zumbi que se recusa a morrer, e, até que seja devidamente enterrado e substituído por um conjunto pequeno de objetivos realistas e bem definidos, não há como a educação brasileira avançar.

Dois exemplos recentes do suposto consenso foram a elaboração da base nacional curricular comum e a reforma do ensino médio.  A ideia de que todos os estudantes, até determinado nível, precisam compartir um conjunto mínimo de conhecimentos, sobretudo no domínio da linguagem, do raciocínio matemático e de familiaridade com as ciências naturais e sociais, é hoje reconhecida em todas partes. Mas nenhum país, que eu sabia, tem um documento semelhante à BNCC brasileira, com suas 600 páginas e centenas de habilidades e competências que os estudantes deveriam adquirir. É um texto recheado de linguagem empolada, incompreensível ou meramente retórica, como na introdução, aonde se diz o que o objetivo é  levar à  “educação integral” a partir de uma “visão plural, singular e integral da criança, do adolescente, do jovem e do adulto – considerando-os como sujeitos de aprendizagem – e promover uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades”. Compare-se com o Socle Commun francês de 30 páginas, ou o currículo da Nova Zelândia resumido em 8 quadros, em linguagem direta e sem adjetivos. A grande lista de assessores, especialistas, colaboradores, pesquisadores, comissões de discussão e leitores críticos listados ao final mostra o esforço do MEC de construir um consenso a favor do documento. Só não foram consideradas as críticas mais profundas que chamavam a atenção para a necessidade de se chegar a um documento sintético, compreensível e compatível com o estado da arte internacional sobre os processos de aprendizagem.

O outro exemplo foi a reforma do ensino médio, que começou com uma tentativa de quebrar o consenso do currículo único tradicional e propor a implantação de trajetórias escolares diversificadas a combinadas com um núcleo comum.  À medida em que o projeto ia sendo discutido, o tamanho deste núcleo comum aumentava, atendendo às demandas dos professores das diversas disciplinas, até se transformar em uma versão reduzida do currículo tradicional, deixando as trajetórias curriculares em segundo plano, e diluindo a proposta inicial. O ENEM, que deveria ser reformulado para corresponder ao novo formato, continua como está. O novo ensino médio entra em vigor em 2020, e as escolas não sabem o que fazer.

É preciso construir um novo consenso, baseado na ideia de que deve ser possível fazer muito mais com os 5% do PIB que o Brasil já gasta em educação. Com a queda da natalidade, serão menos estudantes, e será possível ter menos professores e pagar mais. A profissão docente precisa ser reformada, com melhores cursos de formação, carreiras associadas ao desempenho, e facilitando o acesso ao ensino de pessoas com outros perfis. A educação infantil deve deixar de ser meramente assistencialista, e ser tratada como etapa essencial de formação.A tolerância com o analfabetismo funcional deve acabar, com o uso de métodos comprovados de alfabetização e acompanhamento de resultados. O segundo ciclo do ensino fundamental precisa ser repensado, e a reforma do ensino médio precisa ser efetivamente implementada, inclusive pela ampliação e fortalecimento da educação técnica.  O formato do ensino superior precisa ser revisto, criando mais alternativas de formação em diferentes níveis, e a pós-graduação e a pesquisa precisam se tornar menos acadêmicas e mais vinculadas às necessidades do país. E, em todos os níveis, os papéis do setor público e privado precisam ser revistos, para que se tornem complementares e livres do predomínio do corporativismo e do mercantilismo. 

A pesquisa universitária no Brasil e no mundo

A Universidade de Leiden, na Holanda, acaba de publicar um ranking internacional de universidades do ponto de vista de sua produção de pesquisas, baseado em uma seleção de artigos das principais revistas (“core publications”, em inglês e de âmbito internacional) da Web of Science, com uma série de indicadores sobre a produção absoluta e relativa que nos permitem ver, entre outras coisas, como a pesquisa universitária se distribui no Brasil, e qual a posição brasileira no contexto internacional. Os detalhes e dados completos estão disponíveis aqui.

A Universidade de São Paulo aparece na 8ª posição no ranking em número de publicações no período 2014-2017. A segunda na América Latina é a Universidade Autônoma do México, na posição 108, com 7.308 publicações no período. A Universidade de Buenos Aires, com 3.434 publicações, aparece na posição 355, e a Universidade do Chile, com 2.951, na posição 425. No Brasil, a segunda universidade é a UNESP, seguida da Unicamp, e depois a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a primeira das federais. 

15 universidades com maior produção de pesquisa no mundo, 2014-2017
Universidades brasileiras com mais de mil trabalhos em “core publications”

Estes dados, que só incluem instituições com pelo menos mil publicações no período, confirmam que a Universidade de São Paulo, como principal universidade de pesquisa no país, ocupa um lugar significativo internacionalmente, e mostram também como a pesquisa universitária brasileira está concentrada em um número pequeno de instituições, o que é sabido por outras fontes.

Chama a atenção, entre os indicadores elaborados por Leiden, o número de citações por artigo, o número de artigos entre os 5% mais citados, e a proporção de artigos escritos em colaboração com autores do setor produtivo. O número de citações por artigo da USP, de 4,1, é o mais baixo entre as 15 universidades mais produtivas no mundo. A percentagem de artigos entre os “top 5” na USP é 2.8%, também a mais baixa entre as grandes. E proporção de trabalhos feitos em colaboração com a indústria é a menor, e próxima de duas universidades chinesas.

Comparando com outras universidades brasileiras, a USP só perde para a UNICAMP, e por pouco, em termos de citações por artigo, e para a Universidade Estadual de Maringá em termos de artigos nos “top 5”.  Em termos de colaboração com a indústria, a Universidade brasileira que mais se destaca é a UFRJ, seguida pela Universidade Federal Fluminense.

Estes dados confirmam o que sabemos, de um modo geral, sobre a pesquisa universitaria brasileira: ela está altamente concentrada em poucas instituições; sua qualidade é relativamente baixa, e está bastante isolada do sistema produtivo.

Confiança e autonomia das universidades

(Versão completa do artigo publicado no O Estado de São Paulo, 10/05/2019, p. A2)

Mais do que um preceito legal, a autonomia das universidades é uma condição necessária para que elas cumpram o papel que a sociedade espera delas, como principais depositárias da cultura, polos de criação de novos conhecimentos e instituições formadoras de profissionais competentes. Assim como não são os pacientes que dizem aos médicos como devem ser tratados, porque são os médicos que entendem da saúde, não são os governos (ou os estudantes) que podem dizer às universidades o quê e como devem pesquisar e ensinar, porque são os professores e pesquisadores, e não os governantes ou estudantes, que trabalham na fronteira do conhecimento e dos estudos.

Isto, claro, no mundo ideal. No mundo real, a autonomia depende de uma relação de confiança entre as universidades e a sociedade, que, quando existe, reconhece e valoriza a autoridade intelectual dos professores e contribui com seu dinheiro. No passado, quando as universidades eram pequenas, custavam pouco e seus professores e alunos provinham das mesmas elites dos governantes, esta relação de confiança se estabelecia de forma quase automática. No mundo de hoje, com universidades gigantescas, grandes orçamentos e professores e alunos provenientes de diferentes ambientes e condições sociais, esta relação de confiança fica abalada, fazendo com que movimentos políticos pressionem e governos desenvolvam sistemas complicados e nem sempre bem-sucedidos de avaliação do desempenho das universidades e restrições no acesso e uso de recursos. Na medicina, tampouco acreditamos mais, piamente, em tudo que o médico nos diz, recorremos ao Dr. Google e buscamos quase sempre uma segunda opinião, o que força os médicos a se explicarem mais e deixarem de escrever de forma ilegível.

Esta desconfiança tem suas razões, porque o exercício legítimo e necessário da autonomia pode facilmente se converter ou se confundir com a mera defesa de interesses e privilégios corporativos. Mas, quando os pacientes ou o dono do hospital começam a dizer aos médicos como tratar, e políticos, burocratas e movimentos sociais a mandar nas universidades, nem a medicina nem a educação conseguem funcionar direito. A agressividade recente do Ministro da Educação contra as universidades federais é só um exemplo extremo desta perda de confiança, que precisa ser recuperada.

Esta recuperação interessa a todos, e requer um trabalho permanente de ambas as partes. Não é possível voltar aos velhos tempos em que as universidades faziam o que queriam e a sociedade pagava a conta. Os sistemas de avaliação externa vieram para ficar, mesmo que, como no Brasil, custem muito e deixem de avaliar o que mais interessa. Apesar do que diz a Constituição, as universidades federais brasileiras nunca foram autônomas, porque não têm controle sobre seus recursos, rigidamente administrados pelo governo central. A quase totalidade se vai em salários e aposentadorias, e os demais custos – custeio, investimentos, criação de novos cargos – devem ser negociados um a um pelos reitores, que precisam mostrar lealdade aos ministros ou recorrer a pressões políticas para sobreviver. Tampouco existe total liberdade de ensino e de pesquisa, com os currículos mínimos estabelecidos pelo Conselho Nacional de Educação, os programas de pós-graduação tendo que seguir os padrões da CAPES e a contratação de professores sujeita às regras rígidas dos concursos. As universidades paulistas têm mais autonomia para administrar seus recursos, mas todas estão submetidas às mesmas regras do serviço público e sujeitas a permanente assédio de órgãos de controle ou grupos políticos quando buscam ampliar sua liberdade de ação, sobretudo na área financeira.

Para recuperar sua legitimidade, as universidades públicas precisam se preocupar mais seriamente com a qualidade e relevância do que produzem, mostrar melhor o que fazem e assumir a responsabilidade pela administração de seus recursos, saindo do colo confortável, mas sufocante, do serviço público. O formato das organizações sociais, adotado com sucesso pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada e pelo Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, mostra como fazê-lo. É preciso diversificar as fontes de recursos, inclusive pela cobrança de matrículas dos alunos, por um mecanismo que não discrimine os mais pobres, como o financiamento vinculado à renda futura adotado na Austrália e outros países; e entrar definitivamente no mercado de talentos, negociando contratos flexíveis e salários competitivos para diferentes setores e áreas de conhecimento. É preciso também adquirir mais autonomia em relação aos grupos de interesse internos, estabelecendo sistemas de governança com forte participação externa.

O governo, ao invés de alternar entre aceitar tudo e pagar a conta, para garantir apoio ou com medo dos protestos, ou partir para o ataque, precisa desenvolver um sistema mais adequado de avaliação e associar o financiamento público ao desempenho efetivo das instituições, mediante contratos de gestão, e não a seus custos históricos. Um bom ponto de partida seria levar a sério as recomendações do relatório da OECD, publicado no final de 2018, sobre como reformular o sistema brasileiro de avaliação da educação superior. Ao invés de avaliar cada curso, aumentar a responsabilidade das instituições sobre o que fazem; deixar de lado o ENADE, com seus rankings sem padrões de qualidade e os índices cabalísticos que ninguém entende, e introduzir dados objetivos sobre desistência, empregabilidade e custos; e criar uma agência de avaliação independente, fora do Ministério da Educação.

As instituições de educação superior e de pesquisa, públicas e privadas, com todos os seus problemas, são também um patrimônio inestimável, construído ao longo de décadas, habitadas por pessoas competentes, motivadas e comprometidas com o trabalho que fazem, que precisam ser tratadas com carinho. No final dos anos 70, o israelense Joseph Ben-David, famoso historiador e sociólogo da ciência, veio ao Brasil a convite de José Pelúcio Ferreira, então presidente da FINEP, envolvida com o reerguimento da pesquisa e da tecnologia brasileira, abaladas com os expurgos do regime militar. Perguntado sobre a dificuldade em construir instituições, e a facilidade com que elas podem ser destruídas, respondeu que, infelizmente, contra comissários e coronéis truculentos, não há muito que se possa fazer. É necessário evitar que isto aconteça novamente.

O lugar das ciências sociais

(versão preliminar de “A Era das Ciências Sociais”, Página Aberta, revista Veja, 52, 19, 8 de maio de 2019, pp.58-59)

De forma ainda vaga, mas enfática, o Presidente da República e o Ministro da Educação deram declarações dizendo que pretendiam reduzir os investimentos em sociologia e filosofia, em favor de outras profissões que gerem renda para as pessoas e benefícios para a sociedade. O número de estudantes de sociologia e filosofia no Brasil é ínfimo – menos de 10 mil, para um universo de 8 milhões de universitários. Tudo indica que estavam se referindo às ciências sociais como um todo, cuja matrícula, incluindo administração, direito, contabilidade e marketing, é enorme, chegando a 37% do total, ao lado de educação, com 19,2%, e as humanidades e artes (incluindo literatura e filosofia) com mais 2.2%. Fora das ciências sociais e humanas, as áreas mais procuradas hoje pelos universitários são as de saúde e bem-estar social (16% da matrícula), e o grupo de Engenharia, Produção e Construção, com 14.8%.

A concentração das matrículas em profissões características das atividades terciárias, de serviços, não se dá só no Brasil: são 63% das matrículas nos Estados Unidos, 74% na França, 51% na Espanha, por exemplo. Este predomínio acompanha os ventos da economia mundial. Em todo o mundo, as atividades industriais e agrícolas, altamente mecanizadas, empregam cada vez menos gente, enquanto aumentam os empregos nos serviços públicos e privados de educação, saúde, comércio, transportes e outros, onde são valorizadas cada vez mais as competências de tipo social e cultural. Mesmo para nas áreas mais técnicas, a cada dia se fala com maior intensidade da importância das “competências do século 21”. Para tomar o exemplo de Cingapura, lembrado como um dos lugares de melhor ensino do planeta, elas são definidas em termos em um leque que engloba cultura cívica, consciência do mundo global, conhecimentos transculturais, pensamento crítico e inovador, e habilidades de comunicação, colaboração e processamento de informações – todas das áreas das ciências sociais e das humanidades.

A outra razão de seu grande tamanho é que os cursos nestas áreas tendem a ser menos custosos e mais acessíveis para pessoas que terminam o ensino médio com formação mais limitada. No Brasil, em áreas como economia, administração e direito, existem algumas poucas faculdades extremamente seletivas e de alto padrão, mas a grande maioria dos cursos é ministrada à noite, à distância, sobretudo pelo setor privado, a preços bastante reduzidos, abrindo oportunidades para muitos que não teriam condições de seguir uma formação universitária mais exigente e de tempo integral. Existe a dúvida de se este ensino mais elementar é útil e vale a pena, visto que grande parte dos formados em direito, por exemplo, nunca consegue passar no exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Mas o fato é que quem completa o trajeto na universidade, mesmo que não adquira uma formação especializada, acumula conhecimentos e competências gerais que o mercado de trabalho valoriza, pagando salários significativamente mais altos do que os dos pararam ao final da educação média.

Não é uma situação ideal, longe disso. As taxas de desistência nestes cursos são enormes, da ordem de 50% no setor privado, e não há razão para que durem quatro ou mais anos. Ainda que se apresentem como cursos de formação especializada, na verdade oferecem uma formação geral, como se pode ver pelo número relativamente pequeno de pessoas que trabalham na mesma área em que se graduaram. Isso, porém, não é necessariamente um problema. Na União Europeia, desde 1999, os países adotam o “modelo de Bologna” para o ensino superior que começa com uma formação geral de três anos, abrindo depois opções para mestrados e cursos mais avançados de um ou mais anos. Nos Estados Unidos, muitos dos que buscam a educação superior são atendidos por um amplo sistema de “community colleges” de dois anos que já dão uma qualificação razoável para quem não vai seguir os estudos nos colleges de 4 anos. Além disto, em todo o mundo, a partir do ensino médio já existem opções de estudos profissionalizantes que habilitam para o mercado de trabalho tanto nas áreas mais técnicas quanto na de serviços. O Brasil precisaria evoluir nestas linhas, ampliando a formação básica geral, fortalecendo as opções profissionais de nível médio e abrindo mais possibilidades de cursos de formação superior curtos. Eles já existem no papel como “cursos tecnológicos”, mas têm sido negligenciados sobretudo pelas universidades públicas.

Para os que pretendem e têm condições de se profissionalizar de forma mais diferenciada nas carreiras sociais, a pós-graduação é hoje quase obrigatória. O Ministério da Educação, através da Capes, administra um sistema de pós-graduação com 375.000 estudantes em cursos de mestrado e doutorado, dos quais 110.000 nas áreas de ciências sociais e humanas, sobretudo educação, administração e direito (mas menos de 10 mil em filosofia e sociologia). Somam-se a estes mais de um milhão em cursos de MBA e outras áreas de especialização não regulamentadas.

Os investimentos em pesquisa social no Brasil são relativamente baixos, embora as principais questões de política pública no Brasil sejam a má qualidade da educação, a violência, a pobreza, a desigualdade social, a disfuncionalidade do sistema político-eleitoral e do judiciário e a baixa produtividade da economia, entre outros. São todos temas centrais de investigação nas áreas de sociologia, economia, antropologia e ciências jurídicas, que precisam, isso sim, ser reforçadas e cuidadas para que alcancem a mais alta qualidade. É possível argumentar até que pesquisas sobre temas sociais são mais importantes para o país do que as das áreas tecnológicas, dado que é mais fácil importar e adaptar tecnologias disponíveis na literatura e no mercado internacional do que no campo social.

A predisposição manifestada pelo governo contra a área de ciências sociais parece se explicar por uma combinação de desconhecimento sobre os números e a natureza da área social aliado a um preconceito de tipo ideológico – a sociologia e a filosofia seriam focos de ideologias marxistas, que precisariam ser extirpadas. Quem conhece de perto estas áreas de estudo, no entanto, sabe que o marxismo ocupa nelas um lugar bastante reduzido, embora persista, de forma simplificada, em alguns setores e nas manifestações de movimentos políticos ligados à área de educação – nada muito diferente do resto do mundo. A preocupação com os problemas da pobreza, desigualdade social, direitos humanos e discriminação social faz parte do patrimônio humanístico contemporâneo, são temas centrais a uma sociedade tão desigual como a nossa, e independe de filiações a esta ou aquela corrente filosófica, sociológica, jurídica ou econômica. E a melhor maneira de reduzi-la é trabalhar para que estes problemas deixem de existir.

Os problemas das universidades e da pesquisa

Quem acompanha meus textos sobre a educação brasileira sabe que sou muito crítico do sistema que montamos, tanto da educação básica quanto da superior, e também da pesquisa. Mas, assim como os problemas da educação básica não são o marxismo e as ideologias de gênero, os problemas do ensino superior não são a filosofia, as ciências sociais e, de novo, o marxismo.

O problema central do ensino superior é, em poucas palavras, a baixa qualidade da grande maioria dos cursos e sua baixa eficiência, que se manifesta no grande número de estudantes que começam a estudar e nunca terminam, dos que terminam com qualificações rudimentares, e, nas universidades públicas, os custos elevados causados sobretudo pelo grande número de professores contratados com dedicação exclusiva como se fossem pesquisadores mas que de fato não o são.  A pesquisa, em alguns casos excelente, é em sua maioria espalhada de forma rasa em um grande número de centros e departamentos desprovidos de equipamentos e de massa crítica que produzem resultados que nem têm impacto acadêmico significativo nem utilidade prática.

A discussão sobre se a pesquisa universitária deve ser puramente acadêmica, guiada pelo interesse e livre escolha dos professores, ou aplicada, voltada a resultados práticos para a economia e a sociedade, é antiga e superada: os bons sistemas de pesquisa fazem as duas coisas. Cientistas e acadêmicos não gostam quando governos começam a discutir prioridades na área científica, argumentando que todas as áreas são importantes, que não se pode discriminar uma área em benefício de outras, etc.; mas de fato, em todos os países, os governos e suas agências de pesquisa estabelecem prioridades, porque os recursos são escassos, e não existe um mercado perfeito que regule os investimentos  públicos em pesquisa. 

No passado, por inspiração vinda sobretudo da União Soviética, muitos países tentaram planejar quantos engenheiros, médicos, advogados, dentistas, etc., suas universidades deveriam formar, o que se chamava de “manpower planning”.  Nunca deu certo, e hoje não se faz mais isto: não dá para prever quantos serão necessários em cada profissão daqui a 5 ou 10 anos, muitas pessoas mudam de  profissão ao longo da vida e a escolha de carreiras depende muito de outros fatores, como a condição com que os estudantes chegam ao nível superior. Há uma ideia, bastante difundida, de que formamos muitos “bacharéis” e poucos engenheiros, mas, na verdade, o mercado de trabalho para pessoas com nível superior no Brasil, como na grande maioria dos países, é formado sobretudo por atividades de serviço – administração pública, defesa e seguridade social (40.3%), educação (12%) e atividades financeiras (6%), ficando a indústria de transformação com somente 7% dos formados (dados da RAIS de 2017). É verdade que as novas tecnologias requerem engenheiros altamente qualificados, mas, mesmo em países mais desenvolvidos, seu número é relativamente menor do que o de serviços, e, com o encolhimento relativo do setor industrial, é muito comum que muitos engenheiros acabem ficando desempregados, ou trabalhando em outros campos.

Na pesquisa ocorre fenômeno semelhante. Os grandes problemas que afligem o Brasil de hoje são o desemprego, a violência, a má qualidade da educação, a desorganização urbana, as disfuncionalidades do sistema legal e penal, a marginalização social e a estagnação econômica – todos temas centrais da pesquisa social, realizada por economistas, sociólogos, cientistas políticos, antropólogos, juristas e outros. É possível se perguntar se a pesquisa social que se produz no Brasil consegue realmente lidar bem com estes temas. Existem altos e baixos, e muitas vezes a boa pesquisa não consegue influenciar as decisões de quem está em posições de governo. Mesmo assim, é possível argumentar que, se é para estabelecer prioridades para o investimento em pesquisa, seria mais importante investir em pesquisa social de qualidade do que em pesquisa nas ciências naturais, que tende a ser mais internacionalizada, e aonde nossas desvantagens comparativas são maiores.

Não estou dizendo que tenha que ser assim.  A pesquisa precisa ser apoiada por critérios que combinem qualidade, relevância e custo. Pesquisa de alta qualidade em matemática e filosofia são baratas, contribuem direta e indiretamente para as demais áreas de conhecimento, e não há razão para limitá-las. É preciso pensar bem para investir em pesquisa que requer grandes investimentos e aonde nossa chance de produzir maior impacto é menor. A pesquisa aplicada, geralmente muito mais cara, precisa estar associada a possibilidades efetivas de desenvolvimento e comercialização. Sistemas modernos e sofisticados de política científica e tecnológica combinam avaliações de mérito, impacto e custos, com a participação indispensável de cientistas e representantes do setor produtivo e agências públicas responsáveis por questões como saúde, pobreza, ordem social, defesa, desenvolvimento econômico e regional e meio ambiente. É neste sentido que as políticas de apoio ao ensino superior e à pesquisa devem se desenvolver.

O Gigantismo do MEC

(publicado no jornal O Estado de São Paulo , 12/04/2019)

A preocupações ideológicas que marcaram a curta gestão de Velez Rodrigues e que aparentemente continuarão na agenda do novo Ministro nem de longe refletem as questões que o Ministério da Educação, com um orçamento de 123 bilhões de reais e 450 mil funcionários em 2018, precisa enfrentar. Além de administrar uma rede própria com mais de cem instituições e 1.3 milhões de estudantes, o Ministério é responsável por autorizar, avaliar e cuidar do desempenho dos estudantes e de todas as instituições de ensino superior federais e privadas, desenvolver os parâmetros curriculares de todos cursos de todos os níveis, manter em dia as estatísticas educacionais, administrar o crédito educativo e uma longa lista de programas como Proinfância, Dinheiro Direto nas Escolas, Livro Didático, Brasil Profissionalizado, Transporte Escolar e tantos outros, sem falar em grandes “missões” que surgem de repente como o Ciência Sem Fronteiras e o Pronatec, do período Dilma. Temas associados a valores e costumes algumas vezes surgem em alguns exames ou currículos propostos para determinadas áreas de estudo, são questionados e repercutem na imprensa. Existem também controvérsias importantes sobre métodos de ensino, usos de novas tecnologias, e modelos de organização do sistema escolar. São discussões que têm seu lugar, mas não deveriam nos distrair da questão fundamental: o Brasil está gastando bem os 6% do PIB que hoje destina à educação? As pessoas estão aprendendo a ler, escrever e contar como deveriam? Sabemos que não, o que leva à segunda pergunta: o Ministério da Educação, com seu atual formato e estrutura, é o melhor instrumento para mudar a situação, bastando, para isto, encontrar um bom Ministro e uma equipe certa? Ou será que é necessário repensar de maneira profunda e ousada o papel do Ministério, e buscar outras alternativas?

O governo federal só contribui com 30% dos gastos públicos em educação, concentrados no financiamento de suas universidades, ficando o restante por conta dos estados e municípios, sobretudo para a educação infantil e fundamental, sem falar nos grandes investimentos das famílias na educação privada. No ensino superior, o governo federal só atende a 15% da matrícula, ficando 75% com o setor privado, e os demais com os Estados. No ensino fundamental, a participação federal é irrisória – menos de cem mil matrículas, ficando 85% com os Estados e Municípios e 15% com o setor privado. No papel, o governo federal, sobretudo através do Conselho Nacional de Educação, tem autoridade regulatória sobre todo o sistema, e a Constituição diz que o e ensino nos três níveis deve ser organizado em “regime de colaboração”. Mas, na prática, existe muita controvérsia sobre como esta colaboração deve funcionar, e a dificuldade de o Ministério da Educação chegar ao “chão da escola” com suas orientações curriculares, avaliações e programas de apoio acaba resultando em interminável proliferação de portarias, instruções normativas, notas técnicas, resoluções, decretos e mudanças na legislação de efeitos desconhecidos, porque não existem procedimentos adequados para avaliar sua eficácia.

Uma das razões desta combinação de gigantismo com ineficácia a que chegamos foi a tentativa do Ministério, ao longo dos anos, de cooptar todos os grupos de interesse da área de educação, da UNE às multinacionais do ensino privado, passando pelos sindicatos de professores, instituições filantrópicas, associações científicas e corporações profissionais. O resultado mais evidente deste processo nos governos do PT foi o Plano Nacional de Educação aprovado unanimemente pelo Congresso Nacional em 2014, e ainda em vigor, com uma longa lista de objetivos irrealizáveis e desconexos a serem pagos com pelo menos 10% do PIB a cada ano. O exemplo mais recente é a reforma do ensino médio, uma ideia importante que parece estar sendo perdida pelo cipoal normativo que acabou gerando. Políticas educacionais não podem ser implementadas sem competência técnica, autoridade e legitimidade, mantidas através do diálogo ativo e respeitoso com as comunidades profissionais a adoção das melhores práticas internacionais. Isto é muito diferente de simplesmente atender aos interesses corporativos dos que falam mais alto, ou impelir a ideologia do momento.

A solução liberal extremada para tudo isto é simples: fechar o Ministério e as secretarias de educação, privatizar as universidades e escolas, e deixar que as forças do mercado cuidem de tudo. Mas isto não funciona em nenhum lugar do mundo; os países que conseguem melhorar sua educação são aqueles em que o setor público funciona com autoridade, competência e investimento significativo de recursos públicos. Existem formas muito diferentes de fazer isto, mais centralizadas, como na França, ou mais abertas e plurais, como nos Estados Unidos. Apesar da influência francesa no passado, o Brasil é mais próximo da desorganização americana, com um governo central relativamente débil, alguns governos regionais e locais fortes, e um forte setor privado.

Os dois modelos sugerem o caminho a seguir. Ao invés de uma administração de comando, de cima para baixo, políticas mais indutivas, abrindo espaços e valorizando a diversidade e as experiências locais. Ao invés de fortalecer a burocracia federal, decentralizar não só a execução, mas inclusive a avaliação dos resultados da educação, envolvendo governos, entidades profissionais e associações voluntárias de credenciamento e certificação, na medida de suas competências efetivas. Ao invés de normas e determinações minuciosas e detalhadas impostas de cima para baixo, mais respeito às iniciativas locais. Sem abdicar da responsabilidade de garantir a qualidade e reduzir a inequidade, valorizar e estimular a iniciativa particular e introduzir nas universidades públicas formas de gerenciamento e incentivos mais típicos do setor privado, como a administração por objetivos e contratos de gestão; e não permitir que programas governamentais continuem existindo sem mecanismos claros de avaliação de resultados e justificação de seus custos.

Não chega a ser o mapa da mina, mas pode ser um roteiro.

Carlos Kamienski: a Universidade do ABC e o modelo de Bologna

Eu gostaria de adicionar meus 2 cents ao importante texto do colega Simon Schwartzman e aos comentários do colega Helio Waldman. Gostaria de dizer logo no início que acredito que construir uma instituição de ensino de excelência requer esforço constante, mas deixá-la cair na mediocridade requer somente a inação.

Não vou me deter nos problemas conhecidos de (falta de) qualidade das escolas públicas brasileiras. Assumo que o aproveitamento real do potencial proporcionado pelo ensino superior ao aluno para sua autonomia intelectual e socioeconômica depende de certa preparação que, infelizmente, ainda é para poucos no Brasil.

Parafraseando o Prof. Bevilacqua, “na UFABC os alunos são os empreendedores da sua própria formação acadêmica”. Esse modelo tem semelhanças com o processo de Bolonha da Europa, mas também importantes diferenças. Entre elas, uma das mais importantes é a inexistência dos ciclos de formação que possibilita aos alunos trajetórias individualizadas de acordo com suas decisões ao longo do caminho (Bolonha assume o 3+2+3 – bacharelado + mestrado + doutorado). Levantamento realizado recentemente na UFABC concluiu que todos os alunos formados no Bacharelado em Ciência e Tecnologia (um dos dois cursos interdisciplinares de ingresso) tiveram uma trajetória única, com disciplinas, períodos, professores e experiências diferentes dos demais. A sociedade, o desenvolvimento nacional e o mercado de trabalho carecem de pessoas com pontos de vista únicos para gerar a diversidade criativa que gera soluções abrangentes e inclusivas.

Alguns pontos baseados na minha experiência até agora e também em opiniões de colegas, inclusive já manifestadas no grupo de discussão do IVEPESP:

a) O sistema universitário deveria ser baseado em níveis diferentes com objetivos e metodologias diferenciadas. Um bom exemplo é o sistema das universidades da Califórnia, com as University of California, California State University e California Community Colleges. Por mais que eu seja um evangelista do modelo da UFABC, ela é uma universidade de pesquisa, que tem problemas de escalabilidade. Esse modelo teria que ser adaptado para outros níveis de um sistema universitária escalonado (como o da Califórnia). É uma ilusão achar que todo o sistema universitário deveria ter a mesma missão.

b) Os alunos devem ser formados para terem autonomia intelectual, capacidade de decisão, inventividade e capacidade de atualização constante. É uma ilusão alguém, por mais informado que seja, acreditar que na possibilidade de circunscrever num currículo todos os conhecimentos necessários para formar um aluno que vai atuar no mercado por 30-40 anos. Se alguma vez já foi assim, hoje não é mais.

c) O Brasil precisa de universidades de classe mundial, para promover a autonomia científica e tecnológica nacional. Embora esse termo já esteja um pouco desgastado, apontado como elitista, a necessidade de centros de referência na geração do conhecimento é inegável. Como apontado por Jamil Salmi, essas universidades são caracterizadas por alta concentração de talentos, recursos abundantes e governança favorável. Esta última é baseada na flexibilidade de gestão, que é tudo o que não temos nas nossas universidades públicas, as mais próximas do conceito de classe mundial. 

d) Universidades públicas e gratuitas são necessárias para gerar desenvolvimento socioeconômico e ao mesmo tempo equalizar desigualdades históricas do nosso país. No entanto, o alto custo e a ineficiência das universidades públicas (tenho experiência com as federais) advém da falta de flexibilidade e da falta de incentivos corretos para o corpo docente. É uma ilusão acreditar que em todas as universidades todos os professores realizarão pesquisas capazes de contribuir com o desenvolvimento socioeconômico do país e a redução das desigualdades. Ou seja, as universidades públicas estarem sujeitas às mesmas regras de todo o setor público engessa e gera ineficiências de várias naturezas.

e) O ensino superior necessita de transformação constante, principalmente nesse momento. A onipresença da Internet e da informação na sociedade gera uma situação onde os professores não mais dominam o conhecimento que deve ser repassado aos alunos. O papel docente hoje é muito diferente, onde alunos aprendem porque estudam e se informam em múltiplas fontes, inclusive em aulas presenciais. Isso leva à necessidade de rever o modelo de ensino, ainda calcado nos métodos de séculos passados. Sou a favor da universidade como lócus físico onde pessoas se encontram para discutir diferentes temas, mas também de aprendizado à distância, assim como de diferentes inovações pedagógicas para gerar estímulos adequados para que os alunos se deliciem com o conhecimento.

f) A UFABC inovou no seu projeto pedagógico, onde o aluno constrói seus caminhos. Enquanto outras universidades ainda insistem no modelo que se assemelha a um quebra-cabeças onde cada peça (curricular) tem o seu lugar exato, na UFABC o aluno tem à sua disposição blocos de construção que podem ser usados para construir diferentes obras (como no jogo do pequeno engenheiro). No entanto, dentro de cada bloco de construção (as disciplinas) a metodologia continua a mesma. E, por inércia os professores tendem a repetir o mesmo método pedagógico à qual foram submetidos, com aulas expositivas onde o professor “transmite” o conhecimento aos alunos. Faz-se necessário inovar nos métodos pedagógicos daqui em diante. Por sinal, já estamos atrasados como país porque alguns países e até universidades de ponta já estão inovando a sua atividade pedagógica. Por sinal, a disponibilidade de aulas online no MIT há alguns anos atrás gerou uma crise de identidade sobre a função da instituição como lócus físico de ensino. Em pouco tempo, chegou-se a um consenso de que a principal característica formadora do MIT estava nas atividades proporcionadas aos alunos, pelo gestão do MIT, pelos próprios alunos e por terceiros. Esse é o verdadeiro DNA da instituição e não necessariamente as aulas presenciais. 

g) Tive a oportunidade de atuar como Assessor de Relações Internacionais da UFABC por quatro anos e o nosso projeto pedagógico sempre gerou grande atenção dos parceiros internacionais de vários continentes. Alguns elogiavam a nossa coragem em inovar, enquanto outros eram céticos com relação à eficácia do modelo. Mas, ninguém ficava indiferente a um projeto pedagógico inovador e desafiador. Acredito na educação como um processo que sempre se transforma e não deixa as pessoas na zona de conforto.

A Fábrica de Ilusões

(Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo em 9/3/2019)

No Brasil, todos querem ganhar na loteria, e muita gente joga, mesmo que pouquíssimos ganhem. No ensino superior é parecido: certa de 7 milhões se candidatam todo ao ano ENEM, disputando cerca de 300 mil vagas em universidades federais. Muitos dos que não passam vão para escolas privadas, em alguns casos com bolsas ou créditos educativos. Em 2017, 2.5 milhões de pessoas entraram em cursos superiores, a grande maioria no setor privado, e 1.2 milhões se formaram. Dados do INEP mostram que depois de 4 anos, 31% dos estudantes haviam abandonado o curso, e só 11% haviam se formado. O abandono é muito maior nas instituições privadas (37%), e em áreas como ciências matemáticas e computação (40%), ciências sociais (35%) e cursos à distância (42%).

A peneira, na verdade, começa antes. Hoje, existe escola fundamental para todos, mas a qualidade, sobretudo nas redes municipais e estaduais, é muito ruim, e a grande maioria chega ao ensino médio mal sabendo escrever e fazer contas. Em 2018, 3 milhões de jovens entraram no ensino médio, mas só 2.3 milhões chegaram ao terceiro ano. Outros 1.4 milhões, mais velhos, se matricularam em cursos de educação de jovens e adultos, onde a grande maioria não se forma, e qualidade é pior ainda. É pior do que loteria, porque é um jogo de cartas marcadas: filhos de famílias mais ricas e educadas e que estudam em escolas particulares ou passam nos “vestibulinhos” das escolas federais têm mais chances de conseguir boa nota no ENEM, passar na FUVEST, escolher os melhores cursos ou ir para uma escola superior privada de elite; a grande maioria fica pelo caminho.

Ter educação superior hoje no Brasil significa ter uma renda média do trabalho de 4.600 reais mensais, comparado com 1.600 para os que têm nível médio e 1.350 para os que só têm o fundamental. Mas depende muito de qual curso e qual faculdade a pessoa seguiu: cerca de metade das pessoas de nível superior trabalham em profissões de nível médio, com renda próxima de 2400 reais. Para ter maiores benefícios, é preciso entrar em uma carreira disputada como medicina ou engenharia, ou passar na prova da OAB, ou em um difícil concurso para um cargo público: é para poucos.

Além do imenso custo pessoal para os milhões que gastam anos, dinheiro e esperança tentando uma carreira que nunca vão atingir, existe o custo público de manter tudo isto. Segundo os dados da Secretaria do Tesouro, os gastos da União em educação superior passaram de 32 a 75 bilhões de reais entre 2008 e 2017, em sua grande maioria na forma de salários para professores de tempo integral das universidades federais, enquanto que o crédito educativo, concedido de forma indiscriminada ao setor privado até recentemente, chegou a mais de 30 bilhões em 2016 e 2017. Tudo isto para financiar um sistema com 30% ou mais de ineficiência, sem falar na qualidade e pertinência do que é ensinado. O Ministério da Educação mantém um sistema extremamente complexo e caro de avaliação do ensino superior, com as provas do ENADE e a divulgação de diferentes índices que não nos dizem quais cursos são efetivamente bons ou ruins, nem qual a empregabilidade dos formados, ou a eficiência das instituições no uso dos recursos públicos.

Outra ilusão é a suposta “indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão” consagrada no art. 207 da Constituição. Em seu nome, 87% dos professores das instituições federais e 80% das estaduais têm contratos de trabalho de tempo integral, e a maioria de dedicação exclusiva, elevando enormemente os custos, embora a pesquisa que mereça este nome – regular, de padrão internacional e de impacto social e econômico – esteja concentrada em umas poucas instituições, existam poucas patentes e grande parte dos artigos produzidos terminem enterrados em revistas que ninguém lê. Em seu nome, também, as instituições de ensino são avaliadas pelo que elas não querem não sabem fazer, e nem precisam – quantos professores doutores têm, quantos papers produzem, quantos cursos de pós-graduação oferecem.

Não será fácil sair desta situação. Não é possível reverter o relógio e limitar o acesso à educação superior, mas é possível melhorar as avaliações e oferecer uma gama de alternativas de estudo e formação para pessoas que chegam ao ensino superior com diferentes condições e necessidades. O “modelo de Bolonha”, adotado pela União Europeia e muitos outros países, consiste em um primeiro ciclo de 3 anos de amplo acesso, seguido por mestrados ou cursos mais avançados. Além disto, existem amplos sistemas de formação vocacional que começa no ensino médio e continua no pós-secundário, em institutos e centros especializados. Transitar do sistema tradicional de cursos de 4 ou 5 anos para este modelo não sido fácil, mas é possível, se houver uma visão clara do que se pretende, e estímulos adequados para que as instituições respondam.

O setor privado, que trabalha em uma perspectiva empresarial, já vem se adaptando às novas condições, compensando a perda dos subsídios do crédito educativo por cursos à distância e ampliando a oferta de cursos “tecnológicos” de curta duração. O setor público necessita, sobretudo, de incentivos corretos para disputar e usar bem seus recursos, com contratos de gestão para cumprir metas diferenciadas e realistas, novas formas de governança e flexibilidade legal e institucional para responder a estes incentivos. E os estudantes devem compartir a responsabilidade e os custos de sua educação, sobretudo através de créditos educativos associados à renda futura.

O mercado tem suas vantagens, mas também problemas quando a competição se dá por baixos custos e venda de ilusões. O ensino superior brasileiro precisa de uma visão de futuro, regras claras de funcionamento, mais flexibilidade e mais transparência, e o Ministério da Educação, que é parte, talvez não seja a melhor agência para regular este sistema.

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