Computadores na Educação da Cidade do Rio de Janeiro

Rafael Parente, Subsecretário da Educação do Município do Rio de Janeiro, manda a seguinte nota, a respeito de minha postagem anterior sobre “o milagre da tecnologia”:

Já há uma série de pesquisas que favorecem a utilização de novas tecnologias na sala de aula e contrariam os resultados da Colômbia: (http://www.waynecountyschools.org/150820127152538360/lib/150820127152538360/impact_on_student_achievement.pdf,

http://www2.ed.gov/teachers/how/tech/edpicks.jhtml,

http://thejournal.com/articles/2003/02/01/streaming-technology-improves-student-achievement.aspx,

http://www.ncrel.org/sdrs/areas/issues/methods/technlgy/te800.htm#researchresult).

A compra de computadores na cidade do Rio também foi contestada por algumas outras pessoas e nós precisamos explicar melhor como os computadores estão inseridos em um contexto maior. Em breve estaremos publicando um artigo tocando nestes assuntos e mostrando resultdos de pesquisas que estamos realizando com parceiros.   O importante é que todos entendam que nós não estamos chegando a decisões sem o suporte de pesquisas sérias – no campo e internacionais. Não estamos deixando os difíceis processos de organização, planejamento, estudo, trabalho e investimento de lado, pelo contrário.

Acreditamos, também com base em pesquisas, que um plano de integração das novas tecnologias com as práticas de sala de aula é necessário e deve ser baseado em três conjuntos de ações: 1) a melhoria não só da infra-estrutura, levando-se em consideração máquinas, internet, parte elétrica, segurança, etc, mas também a manutenção dessa infra-estrutura; 2) a capacitação de professores e gestores para a correta utilização das novas tecnologias; 3) a melhoria de sistemas e conteúdos que mediam a utilização dessa nova infra. Na Colômbia, como você explicou, o planejamento e a execução não preencheram essas lacunas.

Temos utilizado o conceito de “inovação de ruptura” na cidade para que o reforço escolar aconteça com o apoio das novas tecnologias — os alunos que não aprendem precisam ser considerados como um público não completamente atendido pela educação pública. Hoje, todos os laboratórios de informática da rede são utilizados praticamente só para o “reforço digital” – http://www0.rio.rj.gov.br/sme/reforcoescolar/index.html. Também criamos a Educopédia que, na nossa opinião, é uma evolução do livro didático

http://www.clipnaweb.com.br/sme/consulta/materia.aspmat=5899, www.educopedia.com.br

http://www.revistapontocom.org.br/conversa-com/sera-mesmo-o-fim-do-livro-didatico.

O professor não será substituído e não estamos deixando de investir em capacitações – uma coisa não precisa excluir a outra, como você e outros às vezes parecem crer. A Educopédia e as apostilas nada mais são do que o nosso tipo de sistema estruturado de ensino. O professor terá aulas prontas com vídeos, quizes, textos e jogos para serem projetados sobre o quadro branco, mas também contará com livros didáticos e apostilas impressas. Fizemos a avaliação da utilização da Educopédia em 30 escolas, de setembro a dezembro e o resultado foi surpreendente – posso lhe enviar em alguns dias.

Só para terminar, a ideia não é “acabar de vez com o ensino regular, com conteúdos bem definidos,  professores bem capacitados e alunos incentivados a trabalhar e partir logo para um novo ensino revolucionário e individualizado, segundo um modelo tirado das teorias de inovação das escolas de business,  que não sabemos exatamente como deve ser”, mas utilizar as novas tecnologias como ferramenta para melhorar o ensino regular, com conteúdos bem definidos, professores bem capacitados e alunos mais motivados para aprender. É isso o que já estamos conseguindo.

Abraços,

O milagre da tecnologia

No Brasil adoramos os milagres, que permitem resolver grandes problemas  sem precisar passar pelos processos dificeis de organização, planejamento, estudo, trabalho e investimento. Se nossa educação anda tão mal (apesar das grandes comemorações de pequenas melhorias que surgiram em algumas avaliações recentes), quem sabe que as novas tecnologias de informação e comunicação nos permitirão sair na frente? Com apoio do BNDES, o Governo Federal lançou no ano passado o Programa Um Computador por Aluno – PROUCA.

Várias Secretarias de Educação, entre as quais a do Rio de Janeiro, estão aderindo: no final de dezembro de 2010 foi assinado um convenio pelo qual, na cidade  do Rio,  “todos os 246 mil alunos do segundo segmento (6° ao 9° anos), de 397 escolas, terão computadores nas salas de aula.”

Ótimo, não é? Infelizmente,  quase todos os estudos sobre o uso de computadores em escolas mostram que eles não fazem diferença nos resultados da educação, e podem até ser prejudiciais.  Por exemplo, um estudo do Banco Mundial feito na Colômbia mostrou que “estudantes em escolas que receberam computadores e professores para seu uso não se deram melhor em testes do que estudantes em grupos de controle. Os pesquisadores não encontraram nenhuma diferença nos resultados dos testes quando olharam componentes específicos  em matemática e linguagem, como álgebra, geometria, gramática e uso de paráfrases em espanhol”.

Várias explicações foram apresentadas para isto, uma delas sendo que os professores não usavam muito os computadores, ou os usavam para ensinar como usar o computador, e não para ensinar os conteúdos das disciplinas.

Recentemente, circulou na Internet um artigo de  Clayton M. Christensen, especialista em temas de inovação da Harvard Business School, baseado em um livro seu de 2008,  ‘Disrupting Class’, cujo resumo e critica pode ser visto por exemplo aqui. Basicamente, o que ele diz é que os computadores realmente não servem para o ensino convencional,  mas podem ter um efeito importante se forem utilizados de forma não convencional, para que cada estudante possa encontrar seu próprio caminho.

Não por acaso, estas idéias foram retomadas e defendidas em um artigo recente de Rafael Parente, que é Subsecretário de Educação da Cidade do Rio de Janeiro (“Aula de Ruptura”). Uma das teses principais de Christensen, apresentada por Parente, é que  “a chave para a transformação da sala de aula com tecnologia é como ela será implementada. Precisamos começar a inovação através de uma ruptura, não para competir com paradigmas existentes e servir clientes atuais, mas para conquistar aqueles que não estão sendo servidos, chamados de não-consumidores. Dessa maneira, tudo o que uma nova abordagem tem de fazer é ser melhor do que a alternativa, que não existe.”

Fica a pergunta de se é isto que o Ministério da Educação e as Secretarias municipais e estaduais que estão comprando todos estes computadores pretendem fazer.  Será que a idéia é acabar de vez com o ensino regular, com conteúdos bem definidos,  professores bem capacitados e alunos incentivados a trabalhar, que ainda não conseguimos implantar, e partir logo para um novo ensino revolucionário e individualizado, segundo um modelo tirado das teorias de inovação das escolas de business,  que não sabemos exatamente como deve ser?

Transferindo as idéias de Christensen para o Brasil, quem seriam os “não consumidores”  que não estão sendo servidos pela educação?  Os que abandonaram as escolas ou os que estão matriculados hoje, mas recebendo educação de má qualidade?

O ponto principal, que nenhuma tecnologia vai resolver, é que não se faz boa educação sem bons professores, escolas organizadas e estudantes estimulados e incentivados a trabalhar. Com estes ingredientes, então as novas tecnologias podem ajudar muito. Sem eles, elas servem muito pouco. Seria importante ter clareza sobre estas coisas antes de embarcarmos tão confiantes nas maravilhas das novas tecnologias (que, aliás, com os tablets, tornarão todos estes milhares de computadores obsoletos em  muito pouco tempo).

Os desafios do ensino médio

A revista Ensino Superior UNICAMP, em seu número 2, publica uma longa entrevista minha sobre o ensino médio brasileiro e sua relação com o ensino superior. A pergunta inicial é: qual  o desafio que o ensino médio coloca para o Brasil atualmente?

Temos alguns problemas básicos no ensino médio. Uma peculiaridade do Brasil, na comparação com outros países da América Latina, Europa, Estados Unidos, é o fato de o nosso sistema de ensino médio ser praticamente um só. Há um pequeno setor de ensino profissional ou técnico, muito pequeno; isso não dá alternativas para os estudantes que queiram seguir diferentes caminhos. A necessidade de um sistema diversificado tem a ver com os interesses diversificados das pessoas; e também com o fato de que a educação básica é muito desigual, e que nem todas as pessoas tem condições de fazer o mesmo tipo de curso médio. Pelo fato de o modelo ser único — o modelo tradicional, acadêmico, ele mesmo com uma série de problemas específicos –, parte das pessoas não conseguem acompanhar o programa e não chegam ao final; ou então, chegam ao final com tantas dificuldades que não têm condições de continuar estudando e de adquirir uma atividade profissional adequada. Temos assim um problema de diversificação; e o sistema predominante, que é quase o único que existe, têm vícios e defeitos, decorrentes de seu conteúdo muito formal e do modelo muito antiquado de ensino, enciclopedista. Há uma carga muito grande de cursos, em que se pede ao aluno decorar e repetir certos conteúdos.  O sistema não é formativo e está muito condicionado pela competição para a universidade – o que determina o conteúdo dos cursos. Os cursos considerados melhores no ensino médio são aqueles que preparam melhor para os vestibulares mais competitivos. Essa formação não é muito adequada.

O texto completo da entrevista, em sua versão original, está disponível aqui.

A educação que não avança

O movimento “Todos pela Educação”  anunciou ontem, primeiro de dezembro, os resultados de suas cinco metas para a educação brasileira, e fiquei encarregado de analisar o cumprimento da meta 3, “Todo Aluno com  o Aprendizado adequado à sua série”.

Os dados são do SAEB e da Prova Brasil, e eles mostram algum progresso até a 8a série, e uma situação desastrosa ao final do ensino médio: em português, somente 29 % dos alunos em todo o país atingem a pontuação mínima esperada, e, em matemática, 11%. E este é um grupo seleto, porque, a esta altura, muitos já abandonaram a escola. Um resultado que chama a atenção é o grande aumento da pontuação em matemática na 4a série / 5o ano, que vai de 18.7  a 32.5% de 2005 a 2009. Não é provável que tenha havido uma revolução no ensino da matemática no país nestes últimos anos, algo parece estar errado com estes resultados, e de fato,  na 8a série em 2009, o desempenho satisfatório em matemática é de menos de 15%,  sem nenhum impacto da melhoria que teria havido em 2005.

Estabelecer metas é importante, mas mais importante ainda é trabalhar para que elas sejam realmente atingidas. Embora o Brasil já gaste, em termos relativos, uma proporção significativa de seu PIB com educação – hoje estimada em cerca de 5% – este é ainda um valor pequeno, considerando as transformações profundas pelas quais o pais precisa passar, para que a maioria de seus estudantes consiga atingir os níveis mínimos de formação requeridos pela sociedade moderna. É importante consolidar a educação pré-escolar de qualidade, que é um fator decisivo para o desempenho futuro dos estudantes; generalizar o ensino de tempo completo, de pelo menos seis horas semanais, até o fim do ensino médio; definir com clareza os currículos  requeridos dos estudantes ao longo de seus cursos; desenvolver materiais e capacitar os professores para usá-los; e criar alternativas reais de formação no ensino médio e de cursos pós-secundários, deixando de impor a todos um currículo pesado e, ao mesmo tempo superficial; melhorar o recrutamento e a qualificação dos professores,  o que requer melhores salários, carreiras associadas a desempenho,  e a abertura para o envolvimento de estudantes universitários e profissionais formados no ensino das disciplinas especializadas; e abrir espaço para novas formas de administração e gerência escolar.

São estes os desafios que precisam ser discutidos e acompanhados por toda a sociedade, para que possamos chegar a ter a educação de que necessitamos.

A questão da diversidade do ensino médio

Nos dias 25 e 26 de outubro o Instituto Unibanco organizou um grande seminário, com quase mil participantes, sob o tema de “como aumentar a audiência no Ensino Médio?” O gráfico ao lado, com dados da PNAD 2009, resume a situação. Cerca de 60% dos jovens no Brasil entram hoje no ensino médio aos 16 anos, e outros entram mais tarde. Aos 18 anos, 30% ainda estão estudando neste nível, e 19% já concluíram. Até os 30 anos de idade, 45% terão concluído o ensino médio ou superior, e 55% nunca concluirão.
Para lidar com o problema, o Instituto Unibanco tem dois projetos, o “Jovem de Futuro”, que apóia com recursos financeiros e técnicos a gestão de escolas públicas que desenvolvam um plano de melhoria de qualidade definido por elas mesmas, e o “Entre Jovens”, que traz estudantes de licenciatura para atividades de tutoria com alunos da primeira série do ensino médio, também em escolas públicas. Em 2009, o “Jovem de Futuro” apoiou cerca de 60 mil alunos em 86 escolas, e o “Entre Jovens”, cerca de 20 mil jovens em 176 escolas
Com os dois projetos, o Instituto trata de melhorar o funcionamento das escolas e o atendimento aos estudantes, fazendo com que eles se interessem mais pelos cursos e não o abandonem, mas sem colocar em questão os objetivos e o conteúdo do ensino médio que é ensinado. No entanto, para alguns dos palestrantes do seminário – entre os quais Claudio de Moura Castro, Francisco Soares e eu – é essencial abrir alternativas e criar mais opções para os estudantes neste nível de educação, como ocorre em quase todo mundo menos no Brasil. Vanessa Guimarães, Secretária de Estado de Educação de Minas Gerais, também falou sobre a importância de fazer com que as escolas de ensino médio ofereçam uma educação condizente e adequada aos alunos que recebem, ao invés tentar forçá-los a absorver um currículo sobrecarregado de 14 ou mais matérias que é o que existe atualmente.
Na minha apresentação, que está disponível aqui, eu procuro mostrar que o engessamento do ensino médio brasileiro vem da própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, e é reforçado pelo ENEM que, no seu formato atual, não abre espaço para opções. Um efeito particularmente perverso desta legislação é o atrofiamento do ensino técnico no país, que, ao invés de ser uma alternativa, se transformou em um peso adicional aos alunos que querem este tipo de formação, já que ela não dispensa que eles façam também o currículo do ensino médio tradicional.

João Batista de Araújo e Oliveira: os três senhores do ENEM

Escreve João Batista Araujo e Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto:

Ninguém pode servir a dois senhores, o ENEM quer servir a três: reformar o ensino médio, unificar o vestibular e servir como critério para o PROUNI. E, além disso, quer inovar a psicometria, criando um construto de “competências gerais” que simplesmente não existe.

Vejamos a história do ENEM e seus desdobramentos.

1. O ENEM surgiu com a intenção de balizar a mal concebida reforma do ensino médio de 1997. A idéia era que todos alunos cursassem disciplinas de uma pretensa educação geral – e com isso engessamos ainda mais os currículos do ensino médio e também os do ensino técnico: jogamos fora o bebê com a água do banho. O ENEM foi criado para avaliar essas tais “competências da educação geral”.

2. Como o ENEM não emplacou, o MEC pediu socorro às federais, para legitimar o exame como substituto do vestibular. Sem perder o vício de origem – medir competências gerais – o ENEM deu uma leve guinada para atender ao novo senhor. E, claro, nada influiu no ensino médio, a não ser tornar mais extenso e irrelevante o currículo dos cursos técnicos.

3. A idéia de competências gerais é sedutora – antigamente se acreditava que grego, latim, xadrez e outras disciplinas teriam esse poder mágico. Até hoje a psicologia cognitiva não conseguiu descobrir competências gerais que tenham o poder de se transferir a novas situações: o conhecimento é específico aos domínios, às disciplinas. Testes que tentam medir compreensão no 2º ano primário, em vários países, não conseguem se correlacionar uns com os outros, pois não possuem construtos válidos, muito menos comparáveis. Portanto, querer um teste para medir competências gerais é missão impossível, no estágio atual de conhecimentos. O ENEM se propõe a isso, e muita gente aplaude. É pura sandice.

4. Para colocar as coisas nos trilhos, é preciso separar os problemas. E usar a evidência científica e experiência internacional como parâmetro.

5. No caso do ensino médio, não existe país com ensino médio acadêmico para 90% dos alunos, como no Brasil. Na maioria absoluta dos países da OCDE mais de 50% dos alunos cursam programas não acadêmicos. O Brasil insiste em fingir que não entende do que se trata, e, no máximo, continua falando em ampliar cursos técnicos no modelo do século XX.

6. No caso do vestibular, a experiência internacional apresenta dois modelos, e apenas dois. Todos dois se baseiam no princípio da validade preditiva, ou seja, um teste que prevê desempenho no curso superior. Um deles é o TOEFL, um teste de vocabulário, com alta correlação com testes de QI. Como nos ensina a psicologia cognitiva, o vocabulário é o maior fator preditivo da compreensão. O outro são testes de conhecimento de disciplinas específicas: quem sabe muita física é um bom candidato a ter sucesso em cursos de física. Nos vários países, os alunos nunca são obrigados a prestar mais de 7 provas, na maioria são 3 ou 4 provas. Cabe às universidades estabelecer o ponto de corte. E as provas, claro, são aplicadas de forma semi-permanente, sem comoção social. Um detalhe: desde 2005 o ETS, que patrocina o TOEFL, também oferece testes nas disciplinas específicas, para concorrer com o ACT.

7. Maior do que o problema do ENEM, o Brasil precisa enfrentar com coragem uma reforma do ensino médio. Hoje temos mais alunos do 1º ano do ensino médio do que egressos do 9º ano do Ensino Fundamental. E desses, pouco mais da metade conclui o ensino médio – a maioria deles com notas inferiores a 4 pontos no ENEM. Ou seja: sabem pouco mais do que nada. Enquanto isso importamos centenas de técnicos de nível médio da China para ajudar a implementar os projetos de desenvolvimento em Itaguaí, apenas para dar um exemplo.

ENEM – Mea Culpa

Eu disse em uma nota anterior que o ENEM atual havia trocado a ênfase em competências, da versão anterior, por uma ênfase em conteúdos, buscando com isto satisfazer as exigências das universidades e influenciar o que é ensinado nas escolas do ensino médio. Reinaldo Azevedo, o conhecido jornalista conservador de Veja, publicou uma análise detalhada da prova de português (que agora se chama “Linguagens e Códigos e Suas Tecnologias” ) que me faz voltar atrás. Eu não sei o que é isto, mas prova de conhecimento ou de competência em uso da língua é que não é.  Vejam abaixo o exempo de uma das questões da prova, na análise de Reinaldo.

A questão 98 do ENEM, conforme Reinaldo Azevedo:

A de nº 98 traz um texto de horóscopo — as características do signo de Câncer e como devem se comportar as pessoas desse signo na família, no trabalho, nos cuidados com a saúde… E qual a curiosidade do examinador? Isto:

“O reconhecimento dos diferentes gêneros textuais, seu comunicativo e seu contexto de uso, sua função social específica, seu objetivo comunicativo e seu formato mais comum relacionam-se aos conhecimentos construídos socioculturalmente. A análise dos elementos constitutivos desse texto demonstra que sua função é A – vender um produto anunciado. B – informar sobre astronomia. C – ensinar os cuidados com a saúde. D – expor a opinião de leitores em um jornal. E – aconselhar sobre amor, família, saúde, trabalho”.

Eu não estou brincando, não. Essa questão é exemplar de uma prática comum na prova. O enunciado é pomposo, quase incompreensível, cheio de macumbarias conceituais para indagar, no fim das contas, se está claro que um texto de horóscopo dá conselhos…

Com a palavra a Academia Brasileira de Letras.

Progresso Mal Educado

O caderno Aliás, do Estado de São Paulo de hoje, 14 de novembro 2010, publica uma entrevista minha a propósito dos problemas do ENEM cujo texto também  está disponível aqui,

Uma das perguntas era sobre a comparação dos governos FHC e Lula na área da educação. O qu disse foi que “A coisa mais importante da gestão Paulo Renato foi a criação do Fundef, que depois virou Fundeb – e equacionou o financiamento da educação fundamental. Foi essa norma que estipulou a distribuição de recursos conforme o número de alunos. No ensino superior, não acho que ele tenha conseguido muita coisa: o ensino privado cresceu sozinho, pois o sistema público continuou fechado e elitista, tal como foi pensado na reforma de 1968, ainda no período militar. Embora tenha criado o Provão e estimulado uma gestão mais responsável dos recursos pelas próprias universidades, Paulo Renato enfrentou greves e grande resistência política. No caso do governo Lula, houve a criação de algumas universidades, mas em boa parte apenas no papel: instituições que já existiam e apenas mudaram de nome. A política do atual governo tem sido a de dar tudo o que as universidades públicas querem, sem pedir nada em troca. Houve um esforço no Reuni, quando se estimulou que elas a aumentassem o número de vagas, criando cursos noturnos. Mas sem clareza sobre em que áreas, de que maneira, para que tipo de público. E teve o Prouni, uma política que faz sentido, de se usar as vagas do setor privado para responder um pouco à demanda. Curiosamente, antes de Lula, essa ideia de subvencionar o estudo no setor privado era um tabu, não se podia fazer no Brasil.”

ENEM – o que realmente importa

A nova confusão com o ENEM mostrou mais uma vez a grande capacidade dos brasileiros de concentrar no que menos importa, deixando de ver ou considerar as coisas de fundo.  Está bem, o INEP tem sido incapaz de administrar o sistema de provas que montou. São problemas logísticos, que cedo ou tarde acabarão se ajustando.O que interessa saber, no entanto, é: precisamos deste ENEM, com este formato?  Que vantagens e problemas ele traz? Não existem outras maneiras melhores de fazer isto?

O principal objetivo do ENEM, desde suas primeiras versões, foi estabelecer um padrão de referência para as pessoas que se formam no ensino médio. Como as escolas são muito diferentes, e as notas dadas pelos professores de cada curso são subjetivas, ter um padrão nacional permite avaliar o que o aluno realmente aprendeu, e, de tabela, dizer algo sobre suas escolas, quando temos um número significativo de alunos da mesma escola participando. São informações que também podem ser usadas por universidades em seus processos de seleção.

Este tipo de avaliação final do ensino médio existe em muitos países, mas de forma muito diferente da nossa. Na Europa, a tradição é fazer com que o aluno passe por uma avaliação feita geralmente nas próprias escolas sob supervisão externa – é o Abitur alemão, o GCSE inglês (General Certificate of Secondary Education), ou o Bachaleaurat francês. No caso inglês, o aluno tem que ser avaliado em conteúdos centrais (core subjects), inglês, matemática e uma entre diversas opções em ciências) e diversas outras opções em línguas, tecnologia, humanidades, ciências sociais e artes. O importante é o que o aluno pode escolher os exames que quer fazer – existem cerca de 40 opções – e as diversas universidades e cursos usam os diferentes resultados conforme seus critérios próprios. Na Universidade de Warwick, por exemplo, diz o Site, “all applicants must possess a minimum level of competence in the English Language and in Mathematics/Science. A pass at Grade C or above in GCSE English Language and in Mathematics or a Science, or an equivalent qualification, satisfies this University requirement. For many courses, requirements are above this University minimum, so you should check the relevant course-specific entry requirements”. A outra característica importante do sistema inglês é que os exames são feitos por cinco “examination boards” independentes, organizações públicas ou privadas de competência técnica reconhecida.  Se trata, portanto, de um sistema aberto, com muitas opções, que não coloca os alunos na camisa de força de um exame único como o ENEM, e que as universidades usam conforme achem mais conveniente.

O melhor exemplo de um outro modelo é o Scholastic Aptidude Test – SAT – utilizado nos Estados Unidos. Uma diferença importante com o modelo europeu é que o SAT não busca medir conhecimentos, e sim competências, em pensamento crítico, matemática e escrita. O SAT é desenvolvido por uma fundação não lucrativa de direito privado, o College Board, e administrado por outra instituição, o Educational Testing Service. Enquanto que o sistema inglês atribui conceitos de A a D para aas provas, os resultados do SAT são estatisticamente padronizados, e comparáveis ano a ano.  Quase todas as universidades americanas usam o SAT como um dos elementos para a seleção de seus alunos.

Estes exemplos mostram que as opções, para este tipo de prova, são ou fazer uma prova baseada em conteúdos, mas de forma diferenciada e descentralizado, e dando opções para os estudantes, como na Europa, ou fazer uma prova de competências gerais, mais unificada (mas sempre diferenciando pelo menos entre as áreas de linguagem e matemática). No caso do SAT, o exame é dado várias vezes por ano em muitos locais diferentes, em um sistema computadorizado no qual as questões vão aparecendo para o estudante conforme ele vai avançando.

O ENEM atual é uma combinação perversa dos dois modelos: por um lado, como na Europa, ele é fortemente baseado em conteúdos, aparentemente para atender às demandas das universidades, para que elas possam, no limite, dispensar seus próprios vestibulares; mas ele não dá opções, e além disto é aplicado em um momento único, quando o exemplo do SAT mostra que existem alternativas para isto

O resultado, além do pesadelo burocrático e logístico das provas, é que ele vai contra a necessidade de criar mais alternativas de estudo no ensino médio, força os alunos a uma maratona de dois dias de prova cujo resultado pode decidir seu futuro, e muitas das principais universidades do país relutam em usar seus resultados como critério de admissão para seus cursos.O ENEM atual teria uma outra função, que seria permitir que os alunos pudessem se candidatar, de uma só vez, a diferentes universidades em todo o país. Mas, na ausência de um sistema adequado de residência universitária e bolsas de manutenção para os estudantes, é muito improvável esta mobilidade esteja sendo criada, e instituições de excelência, como a UNICAMP e o ITA, já fazem tradicionalmente vestibulares de alcance nacional.

O que fazer?  Algumas sugestões:  1) tirar a implementação do ENEM do INEP e do sistema de licitações anuais, e colocar em uma ou mais instituições especializadas, a ser constituidas;  2) voltar ao formato de uma prova única geral de competências centrais aplicada de forma descentralizada e por computadores; 3) abrir o leque de avaliações por áreas de conhecimento, conforme os interesses dos estudantes e das universidades que queiram fazer uso destas informações. 4) criar um sistema adequado de financiamento do sistema, com contribuições das universidades que usam os resultados, dos alunos que fazem as provas (com as devidas isenções) e do governo 5) dar transparência ao sistema, publicando os documentos técnicos e as matrizes de referência para as diferentes áreas em avaliação.

Estas podem não ser as melhores sugestões, mas é isto que deveríamos estar discutindo, e não os erros logísticos que têm surgido, embora eles sejam, pelo menos em parte, conseqüência do sistema mastodôndico de avaliação que se decidiu adotar,

É hora de descer da torre de marfim!

A revista Exame Ceo, da Editora Abril, publica, neste mês de outubro de 2010, o texto abaixo sobre a educação superior no Brasil, que também está disponível em formato pdf clicando aqui.

É hora de descer da torre de marfim!

O sistema de educação superior no Brasil cresce, mas seu tamanho ainda é muito reduzido se comparado com o de países de economia desenvolvida ou até mesmo em desenvolvimento. Nesses países, é comum ver a maior parte dos jovens em algum tipo de instituição de ensino superior. Já no Brasil, apenas cerca de 10 milhões de pessoas têm uma graduação (menos de 10% da população adulta) e pouco mais de 5 milhões estão matriculados em uma universidade (menos de 14% da população jovem). Como há pouca gente com diploma, a remuneração para esse grupo costuma ser muito melhor. Essa discrepância acaba sendo um grande incentivo para que as pessoas queiram entrar numa universidade. Elas enfrentam, no entanto, várias barreiras: a má qualidade do ensino médio, os altos níveis de abandono escolar, a seletividade das universidades públicas e os custos relativamente altos das instituições privadas.

O governo federal tem procurado aumentar a quantidade de vagas e facilitar o acesso ao ensino superior. Além de criar novas universidades e centros de educação tecnológica, dá estímulos para que as universidades públicas abram mais vagas e estimula programas de cotas. Apesar disso, o setor público não consegue aumentar sua fatia e só atende hoje a 25% da demanda, ficando os 75% restantes com o setor privado. Outra maneira encontrada pelo governo federal de facilitar o acesso é a “compra” de vagas do setor privado, tendo como moeda de troca a isenção fiscal.

O Brasil vai precisar na próxima década de mais gente com formação superior, mas é importante perguntar também quem estamos formando e com quais qualificações. O censo do ensino superior do Ministério da Educação mostra que 43% dos estudantes estão matriculados hoje em cursos de ciências sociais, negócios e direito, 17% em educação e 15% na área de saúde e bem-estar. O total nas engenharias é de 9% e nas áreas de matemática e computação, de 8%. Nas sociedades modernas, as áreas de negócios realmente precisam de muita gente, assim como as de serviços de saúde. O nosso problema está no numero de engenheiros formados anualmente. Eles são pouco mais de 51 000, menos de 6% do total, um percentual muito baixo se comparado ao de países como Japão, Coreia e Finlândia (25%), sem mencionar a China (36%). A taxa brasileira é mais próxima de sociedades pós-industriais, como Estados Unidos, Austrália, Canadá e Reino Unido.

Nunca conseguimos desenvolver um setor significativo de formação tecnológica que pudesse, em poucos anos, capacitar pessoas para trabalhar em laboratórios, hotéis, restaurantes, empresas de tecnologia de alimentos, oficinas mecânicas, construção civil, entre outras áreas. Todos os países que expandiram sua educação superior deram esse passo. No Brasil, os estudantes evitam essas carreiras porque as consideram de pouco prestígio. Na prática, em muitos casos, essas funções acabam sendo desempenhadas por pessoas com diplomas universitários. Os dados da PNAD do IBGE de 2008 mostram que 23% das pessoas com nível superior no Brasil trabalham em atividades técnicas e administrativas de nível médio.

A área da pós-graduação também merece atenção. O Brasil forma hoje cerca de 10 000 doutores ao ano. A pesquisa domiciliar do IBGE registra cerca de 326 000 pessoas fazendo cursos de pós-graduação. Em várias áreas, como economia e administração, existem muitos cursos de graduação e a qualidade nem sempre é boa. Nesses casos, a pós-graduação aparece como uma saída para buscar uma posição diferenciada no mercado de trabalho. Mas a questão é que a grande maioria das pessoas com doutorado acaba indo trabalhar em universidades públicas, se é que já não estava lá quando começou a buscar seu novo título. Isso traz vantagens para as universidades públicas, que ficam com professores melhores, mas beneficia pouco os 75% dos estudantes em instituições privadas, que quase não contratam professores doutores. Para ser bem avaliados pela CAPES e receber apoio, os programas de pós-graduação precisam que seus professores publiquem artigos em revistas acadêmicas. Com essa exigência, o número de artigos científicos de fato tem aumentado. A qualidade dessas publicações, no entanto, é baixa quando se usa como medida o número de citações que recebem. Isso sem falar na falta de resultados dessas pesquisas na produção de patentes e de tecnologia.

Existem cursos universitários muito bons no país, mas também muitos de qualidade duvidosa, tanto no setor público quanto no particular. O Ministério da Educação dá conceitos aos cursos, mas não diz, por exemplo, qual é o mínimo de qualidade aceitável em medicina, direito ou administração. Fora isso, tem muito pouca capacidade de interferir nas instituições consideradas de qualidade inaceitável. No setor privado, existem cada vez mais empresas que atendem a dezenas de milhares de alunos a custos muito reduzidos, geralmente à noite, com uma educação de qualidade indefinível. No setor público, não existem mecanismos que incentivem as instituições a melhorar a qualidade e a usar bem os recursos públicos que recebem.

Para a próxima década, o país precisa expandir a educação superior e, sobretudo, fazer com que ela se torne cada vez mais relevante para a sociedade em seus diversos níveis. Os cursos de formação tecnológica precisam aumentar muito, não só para suprir as necessidades crescentes do mercado de trabalho, mas também porque muitos dos que hoje buscam uma universidade não têm formação adequada para realmente seguir um curso superior. Para que os cursos tecnológicos sejam atrativos e produzam pessoas capacitadas, eles precisam ser desenvolvidos em forte cooperação com o setor produtivo, que deve participar discutindo os conteúdos dos cursos, abrindo suas portas para estágios e fornecendo equipamentos. Para que o estigma associado a esses cursos desapareça, é preciso que os créditos obtidos em cursos de curta duração possam valer para pessoas que desejem mais tarde continuar a estudar e completar um curso superior pleno.

Os cursos de graduação também se beneficiariam muito de uma aproximação mais forte com o setor produtivo e precisam adquirir muito mais transparência em relação à sua qualidade e aos resultados que produzem. O Brasil ainda vive a ficção de que todos os títulos de nível superior são iguais. Tanto o mercado de trabalho quanto o setor público ainda recompensam as pessoas que têm títulos independentemente das qualificações efetivas que possam ter. Essa situação é reforçada pelo sistema de regulamentação profissional e também pela reserva de mercado estimulada pelos sindicatos e associações profissionais. São os sociólogos que conseguiram tornar obrigatório o ensino de sociologia nas escolas, os comunicadores que insistem em requerer diplomas para jornalistas, os médicos que querem restringir o trabalho de outros profissionais de saúde, as farmácias que são obrigadas a contratar farmacêuticos… O fortalecimento da educação tecnológica e a redução dos privilégios associados aos diplomas podem fazer com que as pessoas comecem a buscar qualificações mais efetivas e mais práticas, em vez diplomas de cursos superiores de qualidade duvidosa.

Tanto o setor público quanto o privado precisam se ajustar aos novos tempos. As universidades públicas são financiadas com recursos orçamentários que independem de bons resultados. Essas instituições não podem desenvolver políticas ativas de busca de talento, nem demitir professores de má qualidade, ou fechar departamentos e cursos para os quais não há demanda. Como são seus professores que desenvolvem os sistemas de avaliação que o Ministério da Educação utiliza, não é surpreendente que essas universidades sejam, em geral, bem avaliadas. O setor privado se queixa das avaliações que são impostas pelo Ministério da Educação, mas até hoje não desenvolveu um sistema alternativo de controle de qualidade. Os critérios de avaliação de cursos noturnos para alunos que não tiveram uma educação secundária de qualidade, são mais velhos e precisam trabalhar durante o dia não podem ser os mesmos dos cursos dados durante o dia para alunos jovens, selecionados por vestibulares competitivos e com professores de tempo integral. O setor privado, que atende preferencialmente ao público noturno, precisa mostrar com clareza o que pode de fato oferecer, e não permanecer simplesmente como uma versão empobrecida do que o ensino público deveria ser.

A pesquisa universitária precisa deixar de ser, predominantemente, um complemento dos cursos de pós-graduação. O Brasil tem excelentes centros de pesquisa e de tecnologia, vários deles trabalhando em parcerias com o setor produtivo. O drama do país é que essas instituições podem ser contadas nos dedos. Todos os incentivos da pós-graduação são acadêmicos. A recompensa vai para os programas que formam mais gente e que publicam mais artigos, coisas que são importantes, mas só quando não se transformam em um fim em si mesmo.

Finalmente, a educação superior brasileira é provinciana e precisa se abrir mais para o mundo. Existem hoje várias instituições que publicam os rankings das melhores universidades do mundo. A melhor universidade brasileira, a USP, que é também a melhor da America Latina, geralmente fica lá pelo centésimo lugar. Podemos e devemos criticar a forma com que essas listas são feitas, mas a colocação no ranking reflete o fato de que nossas universidades não são conhecidas lá fora. Mostra também que não participamos como deveríamos do fluxo internacional de conhecimentos e talento, que se dá pelo intercâmbio e circulação de estudantes e professores. Muitos professores com doutorado nas melhores universidades brasileiras estudaram fora, mas as agências de governo vêm diminuindo o apoio que davam aos doutorados no exterior, achando que não precisamos mais deles.  Nossas universidades não têm como competir por talentos no exterior devido à falta de flexibilidade dos salários e das dificuldades em contratar estrangeiros. E não temos, no Brasil, universidades que despertem o interesse de estudantes de outros países. É possível resumir tudo isso dizendo que o ensino superior brasileiro vem crescendo, mas se desenvolveu em grande parte de forma fechada, voltado para si mesmo. Por isso, não tem a qualidade, a pujança, a eficiência e a relevância que deveria ter.  É preciso abrir as portas e arejar o ambiente.

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