O novo ensino à distância

(Publicado em O Estado de São Paulo, 23 de junho de 2025)

Depois de muita expectativa o Ministério da Educação divulgou as novas regras para o ensino superior à distância, que proliferou enormemente desde 2015, chegando a quase metade das matrículas.  São cursos baratos, apropriados para quem mora em lugar distante e precisa trabalhar. Mas havia a sensação de que muitos se graduavam sem de fato aprender, sem falar nos que desistem pelo caminho.

As novas regras definem três modalidades de ensino: (1) presencial, com professores e alunos no mesmo lugar; (2) “presencial síncrona mediada”, à distância, mas com os alunos podendo interagir com professores ou tutores; e ( 3) à distância propriamente dita, em que as aulas podem estar gravadas e acessadas a qualquer momento. E define também três tipos de curso, pela combinação destas modalidades: presencial, com pelo menos 70% de aulas presenciais; semipresenciais, com pelo menos 30% de aulas presenciais e mais 20% de aulas síncronas mediadas; e à distância, com pelo menos 10% de aulas presenciais e 10% de aulas síncronas mediadas. Além disto, elas exigem que cinco cursos – direito, medicina, odontologia, psicologia e enfermagem – sejam obrigatoriamente presenciais, e que  os demais cursos na área de saúde e de  formação de professores não sejam à distância (podem ser presenciais ou semipresenciais). Além disto, existem novas regras sobre requisitos e qualificações do corpo docente,  funcionamento das sedes  e polos de educação à distância, formas de avaliação dos alunos e parcerias.

O impacto mais direto destas novas regras será a redução drástica do número de alunos em cursos à distância, sobretudo no setor privado: de 4,9 milhões em 2023 para 2.8 milhões pelas novas regras, com 217 mil indo para cursos presenciais e 1.9 milhões para a nova modalidade semipresencial.  O gráfico acima compara a situação atual, com os dados mais recentes do censo do ensino superior de 2023, com com a que seria pelas novas regras, previstas para quando o novo sistema estiver em vigor, em 2026

Mas os custos desta mudança, somado aos das novas exigências, serão muito altos, e farão com que muitos cursos se tornem inviáveis tanto para alunos quanto para as instituições. Isto se refletirá, certamente, em uma queda significativa no número de estudantes matriculados no ensino superior, afetando sobretudo os mais pobres. Mas pode ser um preço a pagar se o resultado for um sistema de educação superior de melhor qualidade.

A dúvida é se esta nova regulação produzirá, de fato, este resultado desejável. O Ministério da Educação estabeleceu um período de dois anos de transição para as novas regras e um sistema complexo de credenciamento ou recredenciamento dos cursos através de inspeções locais, para verificar se os novos requisitos estão sendo cumpridos, a ser realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (INEP) a serviço da  Secretaria de Regulação do Ensino Superior (SERES). A experiência destas agencias com este tipo de supervisão não tem sido boa, com queixas repetidas sobre a morosidade, burocratização e falta de coerência no uso dos critérios adotados, e não há nenhuma indicação de que elas farão um trabalho melhor desta vez.   

Mas existe um problema de fundo mais geral, que é a ideia de que a qualidade da educação possa ser assegurada pelos seus processos, e não pelos resultados. No Brasil sempre prevaleceu a ideia de que, se o governo aprovar a forma em que os cursos são dados, especificando tempos, características dos professores, instalações e currículos detalhados, os diplomas que as instituições dão aos alunos estarão automaticamente garantidos. Isto pode ter funcionado em certa medida no passado, mas hoje é claro que o importante é que os estudantes sejam certificados individualmente por agências indendentes, sobretudo para o exercício de profissões de impacto na vida ou patrimônio das pessoas, como no Direito e nas profissões médicas. No Direito, aliás, esta certificação já existe com o Exame da OAB, e não fica clara a razão pela qual o Ministério resolveu que estes cursos precisam ser necessariamente presenciais.

Como na frase famosa de Deng Xiaoping, não interessa a cor do gato, desde que ele coma o rato.  Parece razoável a presunção de que mais contato direto de professores com alunos é melhor do que menos, mas as novas tecnologias podem ser muito mais eficazes na transmissão de conhecimento e acompanhamento individualizado da aprendizagem do que aulas convencionais, sobretudo em cursos noturnos que foram em grande parte substituídos pelo ensino à distância. Problemas de qualidade ocorrem em qualquer modalidade de ensino, e têm mais a ver com a má formação com que os alunos entram na universidade, currículos inadequados e deficiências dos professores do que com questões formais. Por mais que o Ministério da Educação tenha avançado na identificação de boas práticas de ensino à distância, este é um campo que vem se transformando a cada dia, e uma norma que possa parecer razoável hoje, como o máximo de 70 alunos para cursos mediados à distância, pode se tornar obsoleta amanhã, se já não o é.

Não se trata de abandonar completamente a regulação da oferta, mas de colocar cada vez mais ênfase na avaliação dos resultados, que, uma vez conhecidos, vão afetar necessariamente a forma em que os cursos são oferecidos, sem que a burocracia tenha que estar sempre correndo atrás das mudanças que ocorrem no mundo real.

O Futuro da universidade

(Publicado em O Estado de São Paulo, 9 de maio de 2025)

Não deve ter sido por acaso que,  na mesma semana, fui convidado para dois seminários sobre o mesmo tema, o futuro da universidade. A primeira coisa que digo sobre isto é que “a universidade” não existe, o que existe são milhares de instituições diferentes, desde grandes universidades com pesquisa, cursos de pós-graduação e milhares de estudantes, geralmente públicas, até gigantescas empresas com centenas de milhares de estudantes em cursos à distância, passando por um sem-número de pequenas faculdades isoladas com cursos noturnos em educação, administração ou saúde. Existem as públicas, gratuitas e financiadas pelo governo federal e alguns estados, e as privadas, algumas religiosas ou de orientação comunitária, e a grande maioria com fins de lucro.  Estamos falando de que?

Mas existe também, na cabeça das pessoas, uma ideia difusa de “universidade” como um lugar para onde os jovens vão no início da vida adulta, aprofundam seus conhecimentos, vivem a cultura da juventude,  criam redes de relacionamento que vão levar para toda a vida, e adquirem uma profissão que vai lhes dar um lugar seguro e muito mais rentável do que o de seus pais, se de famílias mais pobres, ou semelhante aos deles, se de famílias mais ricas e educadas. Quando milhões de jovens, todo ano, se inscrevem no ENEM, é esta ideia que estão perseguindo, embora saibam que poucos conseguirão a nota necessária para entrar em uma carreira de prestígio em uma boa universidade. Quando, depois, muitos dos que sobraram se inscrevem em cursos  baratos à distância, onde é mais fácil conseguir um diploma, é ainda a ilusão das carreiras universitárias que perseguem, embora  a maioria acabe abandonando os cursos ou só consiga um trabalho precário e mal pago.

A incerteza sobre o futuro da universidade é a incerteza  crescente sobre esta ideia difusa, que reflete a incerteza sobre o futuro do país. Apesar das imensas desigualdades, predominava no Brasil até recentemente a sensação de que as coisas iam melhorar para todos, que amanhã seria melhor do que hoje, que a vida de nossos filhos seria melhor do que a nossa.  Esta sensação vinha da grande mobilidade econômica que social durou, com altos e baixos, até dez anos atrás, e que se interrompeu com a crise econômica e a desilusão com  governos, partidos políticos e instituições. Investir a longo prazo em uma carreira, esquentar a cadeira aprofundando conhecimentos, construir uma reputação profissional pelo trabalho sério e responsável, tudo isto perde sentido quando comparado com a fascinação do estrelismo prometido pelos meios de comunicação, o enriquecimento pela tacada de um grande negócio ou os números corretos na Mega Sena, e as certezas simples de entender disseminadas pelos influenciadores da Internet.

O que mais se ouve, conversando com professores universitários, é como os estudantes de hoje são apáticos, mal cumprem as obrigações escolares, e são muito mais ligados a suas redes de Internet do que ao que dizem seus professores. Pesquisas mostram que um terço dos jovens, no Brasil, gostariam de mudar para outro  país. Existem hoje mais de 4 milhões de brasileiros no exterior, comparado com 3 milhões dez anos atrás e menos de um milhão no ano 2000.

A incerteza, no entanto, vai além da estagnação do país e da apatia da juventude. A ideia de que as universidades, primeiro as públicas, depois as privadas, se aproximariam ao modelo tradicional, e que seriam acessíveis a todos, está cada vez mais distante, com 80% das matrículas em instituições privadas e mais da metade em cursos à distância.  Instituições públicas mal conseguem recursos para pagar salários a seus professores e manter os prédios que ocupam.  Poucas conseguem manter pesquisa e programas de pós-graduação de qualidade, e a distância entre a pesquisa brasileira e a dos países de ponta só aumenta. No setor privado, o espaço das instituições comunitárias e religiosas, criadas com a intenção de influenciar a sociedade com seus valores, vem diminuindo, na concorrência com os grandes conglomerados de ensino que dificilmente vão além de cursos empacotados nas profissões sociais mais simples e baratas de ministrar. E, com os novíssimos recursos da inteligência artificial, ninguém sabe mais o que, como e para quê ensinar.

As instituições de ensino superior, em suas diversas formas e com todas as suas dificuldades, não vão desaparecer, porque o mundo depende cada vez mais de conhecimentos e competências, e a capacitação intelectual e profissional continuará sendo a grande porta de entrada para a vida dos países, instituições e pessoas. Elas precisam, no entanto, se reinventar. Esta reinvenção passa por novos tipos e cursos e carreiras, novas formas de ensinar, novas maneiras de buscar recursos, e novos e mais relevantes temas para pesquisar. Para isto, elas contam com um recurso precioso, que é o capital intelectual de seus professores e a tradição de autonomia e audácia intelectual que muitas vezes acabaram perdendo, pelo peso da rotina, da burocracia ou dos resultados de curto prazo. É por aí que passa o futuro, se ele não trouxer mais desilusões.

Nota sobre a feminização do ensino superior brasileiro

No Brasil, sabemos que existem mais mulheres estudando em cursos superiores do que homens – cerca de 60%, pelo Censo da Educação Superior do INEP. Sabemos também que existem diferenças importantes por áreas de conhecimento, com as mulheres se concentrando sobretudo em áreas como educação, saúde e ciências sociais,  os homens predominando em áreas como engenharia e computação.

De onde vem esta diferença?  Pelo censo escolar, o número de homens e mulheres na educação básica é praticamente o mesmo, embora se saiba que, em geral, o desempenho das meninas é melhor do que o dos meninos. Infelizmente, o  INEP não divulga mais a proporção de homens e mulheres por nível escolar, mas os dados da PNAD Contínua confirmam que a proporção é mais ou menos a mesma tanto no ensino fundamental quanto no médio.

Os dados do ENEM sugerem que a diferença ocorre justamente na passagem do ensino médio para o ensino superior. Examinando os microdados disponíveis para 2023, podemos observar que a proporção de mulheres entre os que fazem o exame é próxima de 60%, que esta proporção é maior para os níveis socioeconômicos mais baixos, e que os resultados das provas já refletem diferenças importantes de desempenho, com as mulheres se saindo melhor na prova de redação, e os homens na prova de matemática.

Os gráficos acima usam a ocupação da mãe, que consta do questionário socioeconômico do ENEM, como indicador de nível socioeconômico do candidato, e os resultados seriam semelhantes se usássemos ocupação, nível educacional ou renda do pai ou da mãe.

O melhor desempenho dos homens em matemática, e o melhor desempenho das mulheres em linguagem, é um fenômeno conhecido e praticamente universal, e tem sido atribuído tanto a diferenças congênitas quanto a diferenças sociais e culturais. É importante notar, no entanto, que é uma diferença estatística, no agregado, mas não muito grande, e não determina o desempenho de cada pessoa individualmente.

O que é menos conhecido, me parece, é a maior propensão de mulheres de condição social mais baixa de buscar a educação superior,  mesmo que tenham que se conformar em estudar e trabalhar em áreas profissionais de menor rendimento e menor prestígio. É como se, para elas, a estabilidade e independência proporcionada por uma profissão, ainda que menos valorizada, fosse mais importante do que para os homens, que aparentemente desistem de estudar mais facilmente quando não conseguem acesso a uma carreira mais prestigiada. Não por acaso, as carreiras mais “femininas”,  como educação, saúde e profissões sociais, são também as que são mais fáceis de entrar, seja porque exigem médias menores no ENEM ou porque são oferecidas por menor custo no setor privado.

Velhos e novos doutorados

(publicado em O Estado de São Paulo, 9 de janeiro de 2015)

O novo modelo de pós-graduação que está sendo introduzido pelas universidades paulistas, facilitando a passagem do mestrado para o doutorado, é muito bem-vindo,  embora mais tímido do que poderia ser e sem uma consideração adequada, me parece, das diferenças de propósito dos programas de mestrado e doutorado, fruto da maneira pela qual os programas de pós-graduação foram criados e se desenvolveram no Brasil.

Quando a Universidade de São Paulo foi criada em 1934, ela trouxe da Europa a instituição do doutorado, em que um candidato, querendo se dedicar à carreira de ensino e pesquisa, desenvolvia um projeto sob a orientação de um professor catedrático. Para prosseguir na carreira, era preciso, depois, fazer uma tese de livre-docência, e finalmente de professor titular, quando havia vaga. A reforma universitária de 1968 trouxe para o Brasil um modelo totalmente diferente, o das graduate schools americanas, com cursos de pós-graduação organizados em unidades administrativas próprias, com currículos organizados e sistemas regulares de avaliação dos candidatos. Nas graduate schools, a seleção dos estudantes é feita pelos departamentos, e não pelos professores, e só depois de um período inicial de estudos  e exames é que eles definem um projeto de tese e são formalmente promovidos a candidatos ao doutorado, aí sim sob a orientação de um professor. As duas grandes vantagens do sistema americano, que começou a ser introduzido no início do século 20 e hoje é adotado em todo o mundo, é que os doutores se formam com uma base de conhecimentos muito mais ampla, e em muito maior número do que no sistema artesanal europeu.

A  dificuldade para a adoção do modelo americano no Brasil foi que a USP era, na época, a única instituição com capacidade de dar títulos de doutorado, mas no modelo europeu, enquanto as universidades federais, em sua quase totalidade, no máximo conseguiam reunir massa crítica para organizar cursos iniciais de mestrado.  Aos poucos, a USP foi se adaptando ao novo modelo, organizando programas de pós-graduação e instituindo mestrados como etapa inicial de formação, enquanto as demais universidades, também aos poucos, foram se capacitando para criar programas de doutorado próprios. O resultado é que os mestrados, que deveriam ser cursos curtos de complementação e formação especializada para o mercado de trabalho, como em todo o mundo, se transformaram, no Brasil, em pré-requisitos para os doutorados, ou mini doutorados destinados a suprir a carência de professores qualificados nas universidades públicas.

Entre as virtudes da pós-graduação brasileira estão que ela pôde contar, desde o início, com um sistema de avaliação dos cursos organizado pela CAPES; que os cursos são gratuitos; e que boa parte dos alunos recebem bolsas de estudo para se manter.  Com o tempo, o sistema foi crescendo, e começaram a surgir os problemas: os alunos que o faziam demoravam demais em completar os doutorados, e as avaliações da CAPES eram demasiado acadêmicas. Apesar disso os mestrados, na prática, foram se aproximando do modelo do resto do mundo, de formação complementar ao ensino de graduação, em que os estudantes estão mais interessados em obter uma melhor colocação no mercado de trabalho do que completar o doutorado com a perspectiva de se seguir uma carreira de professor universitário e pesquisador. A CAPES tentou lidar com isso criando os mestrados e doutorados profissionais e modificando o sistema de avaliação, ao mesmo tempo em que se criou um grande mercado privado e não regulado de cursos de MBA e especialização, hoje três vezes maior do que o de pós-graduação estrito senso.

O novo modelo das universidades paulistas pretende lidar com estes problemas facilitando a passagem do mestrado para o doutorado após um primeiro ano de cursos gerais e de empreendedorismo, dando bolsas mais robustas para os alunos selecionados para o doutorado após este primeiro ano, e uma formação complementar a nível de mestrado para os demais. O modelo é tímido porque ele poderia, simplesmente, facilitar o recrutamento de estudantes de doutorado diretamente dos cursos de graduação, deixando o projeto de tese para após um período inicial de formação, como nas graduate schools americanas; e peca por dar a entender que os mestrados seriam, simplesmente, prêmios de consolação para os que não conseguissem entrar nos doutorados, e não uma alternativa de formação válida em seus próprios termos.

E peca também, me parece, por pretender que a questão do pouco vínculo das universidades e programas de pós-graduação e pesquisa brasileiros com o setor produtivo possa ser resolvida com cursos de empreendedorismo ou mudanças de currículo de um tipo ou outro, quando a dificuldade está, sobretudo, na falta de competitividade e estímulo à inovação da economia brasileira, fechada e protegida como é. Com ou sem  cursos deste tipo, se houver demanda por inovação, e os profissionais tiverem formação sólida em suas áreas de informação, ela virá. Se não houver, não serão cursos de empreendedorismo ou mudanças pedagógicas que farão a diferença.

Ao pé da lareira

(Publicado em O Estado de São Paulo, 8 de novembro, 2024)

Quando Gustavo Capanema quis fundar a Universidade do Brasil, na década de 1930, ele abriu um concurso internacional para construir a Cidade Universitária. Ganhou Marcelo Piacentini, o arquiteto de Mussolini. Os perdedores, o grupo de Lúcio Costa associado ao francês Le Corbusier, protestaram, e acabaram recebendo como compensação o projeto do edifício do Ministério da Educação. Com a guerra, a universidade de Piacentini nunca passou da maquete. O Edifício do Ministério da Educação ainda resiste, meio abandonado no caos urbano do centro do Rio de Janeiro.  Aprendi isso quando pesquisava os arquivos de Capanema, e me fazia lembrar a  frase de que uma universidade começa com uma conversa informal ao pé de uma lareira, que havia lido nos papeis que descreviam a fundação, cem anos antes, da Universidade da California em Berkeley, onde estive para meus estudos de doutorado.

A ideia de que universidades são feitas por comunidades de pessoas, e só depois por leis e edifícios, foi o fio condutor de uma série de estudos  em que participei ao longo dos anos. Claro, elas precisam de prédios, equipamentos, pessoal administrativo,  e atender às expectativas dos estudantes, da sociedade e das profissões. Mas seu principal capital, que faz a diferença, é o talento de seus professores e uma cultura de valorização do estudo, da pesquisa, da independência intelectual e da competência técnica, que desenvolvem e transmitem a seus alunos e a toda sociedade. Se isto é verdade, então os professores universitários formariam uma espécie de profissão das profissões, uma comunidade cuja identidade central seriam estes valores, que transcenderiam outras identidades institucionais, profissionais e mesmo nacionais.

Existe, no entanto, outra visão, a de que o ideal das profissões autônomas é um mito, que elas na prática são ou acabam sendo controladas pelas grandes burocracias públicas e privadas. Os profissionais autônomos de transformariam em empregados, e as comunidades profissionais, em sindicatos de um proletariado letrado.  Quando, na década de 90, fizemos uma pesquisa sobre os professores universitários no Brasil, constatamos que havia, no país, um pequeno grupo de professores de alta formação, pesquisadores, que compartilhavam os valores de autonomia e liderança intelectual da comunidade acadêmica; um grupo bem maior, de formação intermediária, funcionários das universidades públicas, em que prevalecia a identidade corporativa e sindical; e um terceiro grupo fragmentado, sem identidade própria, trabalhando de forma precária para o mercado de ensino superior privado.

O que aconteceu com os professores universitários brasileiros desde então? Olhando os dados, algumas coisas chamam a atenção. Entre 2010 e 2023, o número de estudantes universitários passou de 6 para 10 milhões, mas o número de professores permaneceu praticamente o mesmo, cerca de 350 mil, metade no setor público, metade no privado. A razão é que o sistema público cresceu pouco, e o sistema privado aumentou sua eficiência pelo uso mais intensivo de seus professores, sobretudo através do ensino à distância. O número de alunos por professor no setor privado subiu de 22 para 40, enquanto, no setor público, permaneceu entre 10 e 12. Desapareceu, praticamente, a figura do professor horista no setor privado, substituído pelos contratos em tempo parcial.

Depois, os professores ficaram mais velhos e mais qualificados. Esta é a tendência geral, mas existem grandes diferenças por setor. No setor privado, a proporção de professores de 40 anos ou menos passou de 46% para 35%. Nas universidades federais, de 37% para 26%; e nas universidades paulistas, de 16% para 9%. A proporção de professores com doutorado passou de 56% para 75% no sistema federal, de 15% para 33% no sistema privado, e permaneceu acima de 95% no sistema paulista.

Ao mesmo tempo, a posição relativa dos professores universitários em termos renda piorou. Para demonstrar essa mudança, comparei três rendas médias: a das pessoas com educação superior em geral, a dos professores universitários do sistema privado e a dos professores do sistema público, todas em relação à renda média do país. A análise foi feita com dados de dois anos: 2012 e 2023.

Assim, tomando a renda média do país em cada ano como referência (igual a 100), em 2012, as pessoas com diploma universitário ganhavam, em média, 253% da renda nacional — mais do que duas vezes e meia a média do país. Professores universitários do setor privado recebiam 300%, e os do setor público, 400%. Já em 2023, essas proporções caíram para 202%, 268% e 357%, respectivamente, conforme os dados da PNAD.

Essa redução indica um enfraquecimento da vantagem salarial tanto para os portadores de diploma quanto, em maior medida, para os professores universitários.

Só com estes dados não dá para dizer quanto ainda persiste, entre eles, o modelo das comunidades profissionais autônomas, das corporações profissionais ou dos sindicatos. Mas temos indicações, por  outros lados, que o prestígio dos professores tem caído e sua autoridade, e da ciência que incorporam, contestada. No setor privado há um processo de profissionalização fragmentada que parece se consolidar: os professores trabalham mais, ganham menos, não têm estabilidade no trabalho,  e formam um “precariado” que não consegue se organizar para defender seus interesses. No setor público, com a maior qualificação, envelhecimento e a perda relativa de vantagens, podemos entender que prevaleça entre muitos uma atitude defensiva e de ressentimento, mais do que a de uma profissão autônoma e altiva. E mal temos lareiras para nos sentarmos a seu pé para conversar.

Recordistas mundiais

(Publicado em O Estado de São Paulo, 11 de novembro de 2024)

O Censo da Educação Superior de 2023, publicado recentemente, confirma que somos recordistas mundiais em pelo menos duas coisas, a proporção de estudantes em instituições privadas, 80%, e em cursos à distância, metade. No setor público, somente 10% dos alunos estão em cursos à distância; no setor privado, 60%.  São ao todo cerca de 10 milhões de estudantes: 27% em cursos de negócios, administração e direito; 22% na área de saúde e bem-estar; e 17% na área de educação. Nas engenharias são 9%, na computação 7%, e, nas ciências naturais, 1.3%.

O Brasil não difere muito da maioria dos países, mas exagera. Em quase todo o mundo, também, são três as áreas com mais estudantes: administração (incluído economia, negócios e direito) saúde (incluindo medicina) e educação. A principal diferença do Brasil é o tamanho diminuto das áreas de ciências naturais e engenharias. Nos últimos anos, em quase toda parte, a educação superior privada cresceu, assim como a educação à distância. O setor privado cresceu porque o setor público não dá conta de atender toda a demanda, e a venda de serviços de  ensino se transformou em um bom negócio. Além disto, o setor privado conta geralmente com mais autonomia e capacidade empresarial para ir atrás de sua clientela.  O alunos das instituições públicas são em geral  jovens de origem social média ou alta que completam o ensino médio de qualidade e conseguem passar com boas notas nos processos seletivos. Para os mais velhos, geralmente mais pobres, que terminam o ensino médio com dificuldade e precisam trabalhar, a alternativa eram os cursos noturnos em instituições privadas. A pandemia mostrou que era possível dar estes mesmos conteúdos à distância a um menor custo, e isto se tornou irreversível. 

A principal explicação para nossos extremos é o elitismo do modelo adotado na reforma universitária de 1968, que perdura em suas linhas gerais. A reforma procurou trazer para o Brasil um modelo único de universidade de pesquisa vagamente inspirado na universidade alemã do início do século 19 e adotado por algumas universidades americanas, com professores doutores trabalhando em tempo integral, envolvidos em atividades de ensino e pesquisa e alunos bem qualificados e estudando também em tempo integral. É um modelo que custa caro e não tem como dar conta da crescente demanda por educação superior que só começaria no Brasil a partir da década 70, vinda de estudantes que chegam do ensino médio com formação menos rigorosa e precisando trabalhar. Os países que conseguiram lidar com esta transição foram o que os que mantiveram e até ampliaram a presença de suas instituições de elite, mas também investiram em outras modalidades de ensino profissional e técnico, já a partir do ensino médio. O Brasil insistiu em um modelo público único que se manteve imutável na forma, mas, ao se ampliar de maneira forçada, acabou se deteriorando em parte, criando grande desigualdade em seu interior e abrindo espaço para que o setor privado expandisse.

Por muitos anos, o governo federal tratou o setor privado como um problema, e não como parte da solução para sua incapacidade de ampliar e diversificar a oferta de educação. O sistema de avaliação criado em 2004 tinha como principal objetivo controlar o setor privado, o que nunca conseguiu. E os governos do PT,  supostamente contrários ao setor privado, ao se darem conta que só ele seria capaz de ampliar o acesso, passaram a subsidiá-lo através de dois mecanismos, as isenções fiscais do Prouni e o crédito estudantil garantido do FIES, fazendo com que ele se transformasse em um negócio cada vez mais vantajoso.

Os governos também fizeram um esforço de ampliar o setor público, através dos financiamentos do programa Reuni, e de democratizar o acesso através da política de cotas. Com a crise financeira a partir de 2015 e a rigidez burocrática e administrativa,  o setor público só conseguiu passar de 1.6 para 1.9 milhões de matrículas entre 2010 e 2020, enquanto o setor privado passava de 4,7 a 6,7 milhões. Com a política de cotas, a composição social do alunos no setor púbico se tornou mais equitativa, mas foi o setor privado que abriu mais oportunidades de estudo para pessoas vindas de condição social mais desfavorável.

E tem a questão, nunca enfrentada, da má qualidade e das altas taxas abandono. Entre todos que  entraram no ensino superior em 2019,  as taxas de desistência, em 2023, eram de 64% no ensino privado à distância, em um extremo, e 42% no presencial público no outro. Dos que se formam, metade não consegue trabalhar em atividades de nível superior. Cada vez há mais pessoas querendo estudar, cada vez mais os governos buscam subsidiar os estudos, mas não existe nenhum sistema que informe aos estudantes, aos futuros empregadores e aos próprios governos, em que instituições e áreas as pessoas têm mais chances de se qualificar a partir das condições trazem e fazer uso de seus conhecimentos. O sistema incha, mas fica do mesmo tamanho.

Cem novos institutos federais?

(Publicado em O Estado de São Paulo, 14 de junho de 2024)

No final de março, o Ministério da Educação anunciou a criação de cem novos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Alguns jornais saudaram a iniciativa, dizendo que, finalmente, o governo estava dando atenção à educação técnica e profissional. Fiquei sem entender: como é que o governo federal, que mal consegue manter suas universidades e institutos funcionando, vai criar mais cem? E será que, criando, vai fazer diferença?   

Estes institutos foram criados em 2008, a partir de uma rede de Centros Federais de Educação Técnica de nível médio que existiam em vários Estados. Seus professores e funcionários foram equiparados aos das universidades federais, novos cargos foram criados, e, além de cursos técnicos de nível médio, eles passaram também a poder dar cursos superiores e de pós-graduação.   Hoje, são 39 institutos e dois que continuam como CEFETs. É difícil saber exatamente o que fazem, os dados são escassos e confusos, mas, pelas estatísticas do INEP, eles têm cerca de 230 mil alunos em cursos de graduação e 320 mil na educação média, matriculados em cerca de 600 locais diferentes, a grande maioria em cursos integrados com o ensino profissional. Além disto, têm cerca de 4 mil estudantes em cursos de pós-graduação, quase todos de mestrado. O projeto do MEC não é, na verdade, de criar cem institutos, mas cem novos locais para os cursos de ensino médio, o que poderia significar cerca de 50 mil matrículas adicionais.

Para entrar nestes cursos médios, é preciso passar por um processo seletivo, e as vantagens para os que conseguem são grandes. Eles estudam em tempo integral e os colegas são mais qualificados, criando um ambiente mais estimulante. Os professores também são mais qualificados, ganham mais do que os das redes estaduais, o número de alunos por professor é menor, e as instalações são melhores.  E, quando fazem o ENEM, os formados entram nas cotas de estudantes das redes públicas, ficando nos primeiros lugares. Esses cursos têm sido propostos como o modelo ideal para o ensino técnico médio no Brasil, mas os alunos, por serem selecionados e estudarem em escolas de qualidade,  tratam de ingressar em universidades em vez de se profissionalizarem como técnicos.

Para os cursos superiores, seria de se esperar que os alunos estivessem sobretudo em cursos  aplicados de curta duração(o que no Brasil se chama de “cursos tecnológicos”).  Isto ocorre, mas bem menos do que seria de se esperar: 26% comparado com 30% em cursos de formação de professores (licenciaturas) e 44% em cursos tradicionais de bacharelado. Das áreas de estudo, um terço está em educação, 44% em cursos de engenharia e computação, e os demais dispersos em outras áreas.  Estes institutos sofrem com uma praga conhecida que afeta o ensino profissional em muitas partes, a pressão para se tornarem o mais parecido possível com universidades, à custa das missões originais para as quais teriam sido criados.

O caso dos institutos é semelhante ao das universidades federais.  Começa-se com um modelo idealizado, caro e em pequena escala, e depois não se consegue expandir, seja pelas limitações do modelo, que se desvirtua, seja pela falta de recursos. Os institutos federais são uma gota d’água: cerca de 2 a 3% das matrículas, tanto do ensino médio quanto do ensino superior e tecnológico.  Daria para aumentar? Os Institutos Federais custaram, em 2022, cerca de 18 bilhões de reais, comparado com os 56 bilhões das demais 80 instituições superiores federais. A quase totalidade destes custos vai para pessoal, sobrando quase nada para investimentos e custeio.

 Nos cursos de graduação, partiu-se com a ideia de uma universidade pública, universal, gratuita e fundada na pesquisa. Hoje, quase 80% das matrículas do ensino superior estão no setor privado, e poucas universidades públicas conseguem manter atividades de pesquisa mais significativa. A educação superior tecnológica vem se expandindo, mas sobretudo no setor privado. Na pós-graduação, criou-se um sistema controlado  e subsidiado para formar mestres e doutores, mas a maioria de seus estudantes não têm interesse em fazer carreira  em pesquisa, as matrículas estão caindo, e a pós-graduação lato senso é muito maior, desregulada e não se sabe bem o que faz.

A questão central é qual o papel adequado para o governo federal e dos estados quando os gastos públicos não têm mais como expandir e as demandas e necessidades da sociedade vão muito além do que os governos podem proporcionar. A criação de 10 novos campi universitários no modelo tradicional, anunciada esta semana, assim como a restrições recentes aos cursos de educação à distância, mostra que o governo federal ainda não entendeu o problema. Melhorar o papel regulatório, estimular boas práticas, concentrar os recursos existentes em atividades estratégicas de relevância, qualidade e equidade, e estimular estados e municípios e o setor privado a canalizar melhor suas energias, parece fazer mais sentido do que insistir em, simplesmente, fazer mais do mesmo.

Estadão: Os cortes na FAPESP

(Transcrevo abaixo o editorial do jornal O Estado de São Paulo, “Notas & Informações”, 12 de maio de 2024)

” O governo paulista ensaia medidas para realocar recursos das instituições de pesquisa e ensino superior. No projeto da Lei Orçamentária Anual de 2025, primeiro o governo previu redistribuir uma parcela de recursos da USP, Unicamp e Unesp para outras instituições. Logo depois recuou. Mas o projeto prevê a possibilidade de uma redução de até 30% do orçamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Esforços para racionalizar e otimizar a dotação de recursos são legítimos. Mas não é assim que se faz, com tesouradas abruptas, sem articulação com as partes interessadas nem um planejamento de longo prazo. Tanto mais numa área a um tempo tão estratégica e tão vulnerável quanto a formação e pesquisa universitárias.

Em comparação ao resto do mundo, o sistema paulista está longe de ser ótimo, mas no Brasil ele é, em geral, o melhor. Há décadas USP, Unicamp e Unesp são as universidades brasileiras mais bem posicionadas em rankings internacionais, e o apoio da Fapesp impulsiona o Estado na vanguarda das pesquisas nacionais.

É possível melhorar? Sem dúvida. O sociólogo Simon Schwartzman, um dos pesquisadores sobre educação mais qualificados do País, há anos apresenta diagnósticos e propostas de modernização com base nas melhores práticas internacionais.

Em artigo no Estadão, Schwartzman demonstra como o sistema atual é falho tanto do ponto de vista da cobertura e equidade quanto, na outra ponta, na manutenção e garantia de excelência. O ensino estadual público é o mais qualificado, mas só atende 11% dos alunos da graduação. As políticas de ações afirmativas introduzem um fragmento diminuto de alunos vulneráveis nesse sistema de elite. O resto é obrigado a pagar por uma formação de qualidade duvidosa em universidades privadas. Assim, a ideia de investir em outras instituições acessíveis e eficientes não é impertinente. Ao mesmo tempo, o modelo do funcionalismo público vigente nas universidades públicas perpetua uma burocracia rígida que dificulta alocação mais ágil de recursos e mecanismos meritocráticos de incentivo, necessários à formação e pesquisa de alto nível.

Schwartzman sugere três aspectos cruciais para se atingir um sistema a um tempo mais equitativo e excelente: um plano diretor prevendo parcerias com outros níveis de governo e o setor privado; um mecanismo de elaboração de orçamentos plurianuais que dê previsibilidade de recursos básicos, mas também preveja alocações condicionadas a metas de desempenho; e o fortalecimento da autonomia universitária, sobretudo na flexibilidade do uso de recursos e modelos de contratação e remuneração de professores.

São medidas que podem otimizar os recursos públicos aplicados no sistema universitário, gerar novas fontes de receita e eventualmente abrir espaço para realocar recursos em áreas mais vulneráveis, como o Ensino Básico. Mas o caminho para elevar esse sistema de bom para ótimo exige planejamento e reformas. Realocações e cortes abruptos podem até economizar dinheiro no curto prazo, mas têm tudo para causar graves prejuízos no longo prazo.”

Vinculação de recursos e autonomia universitária em São Paulo

(Publicado em O Estado de São Paulo, 10 de maio de 2024)

Desde 1989 que o Estado de São Paulo vincula 9.57% de sua arrecadação do ICMs para suas três universidades, em uma proporção fixa de 5,02% para a USP, 2,34% para a Unesp e 2,19% para a Unicamp. Este ano, o governo do Estado tentou incluir outras instituições estaduais nesta conta, mas voltou atrás depois dos protestos dos reitores. Esta vinculação tem sido defendida como garantia da autonomia financeira contra a instabilidade e as interferências de políticos que afetam, por contraste, as universidades federais.

Muitos dados têm sido apresentados como prova de que a autonomia tem funcionado, como o aumento da produção científica, as posições da USP e Unicamp nos rankings internacionais e a qualidade profissional dos formados pelas principais faculdades. Mas é difícil saber se estes bons resultados se devem à vinculação financeira ou a outros fatores como a disponibilidade de recursos e a maneira pela qual professores e alunos são selecionados, entre os mais qualificados do Estado mais rico do país. E ao lado dos bons resultados, existem outros,  preocupantes, que sugerem que o sistema público paulista não pode continuar acomodado.

O dado mais evidente, que mereceria maior atenção, é a cobertura extremamente reduzida do setor público estadual. No Brasil como um todo, em 2022, 78% da matrícula no ensino superior estava em instituições privadas. No Estado de São Paulo, esta proporção sobe para 84.3%. O setor estadual público só atende a 11% dos alunos de graduação, sendo 120 mil nas três universidades, para uma matrícula total de 2.5 milhões no Estado. O setor federal, menos de 3%. Isto é o resultado de uma política deliberada, de manter um sistema público pequeno e elitista, deixando o setor privado lidar com o resto? Não parece, dada a preocupação dos últimos anos com as políticas de ação afirmativa. Não seria mais justo, socialmente, investir mais dinheiro público em instituições de mais fácil acesso e mais eficientes e baratas, como as do sistema Paula Souza, a Universidade Virtual e em parcerias, proporcionando formação mais prática, gratuita e de boa qualidade para mais gente? E como combinar isto com a manutenção de qualidade da pesquisa e da formação de alto nível dos cursos mais tradicionais?

Se o sistema atual falha do ponto de vista da cobertura e equidade, ele também tem problemas na outra ponta, de manutenção e garantia da excelência. O processo de concursos públicos para escolha de professores é formal, burocrático e dificulta que as universidades recrutem professores com perfis adequados para suas necessidades. A rigidez e padronização das carreiras e salários faz com que muitas áreas não consigam mais competir com o setor privado e instituições internacionais pelo talento que seria indispensável  para dar continuidade às pesquisas de ponta e a formação de alto nível de que o país necessita.

Nestas questões, tenho ouvido o argumento de que o ótimo é inimigo do bom, e que é melhor manter a rigidez orçamentária conquistada 35 anos atrás do que abrir o vespeiro de sua revisão anual.  Mas seria lamentável se conformar com a ideia de que instituições com tantas qualidades não deveriam buscar novos caminhos. A reforma tributária, com o fim do ICMS, de qualquer maneira vai forçar uma revisão, e é melhor, para as universidades, sair à frente com novas propostas do que ser atropeladas.

Um novo modelo para o sistema estadual deveria contemplar pelo menos três aspectos.  O primeiro é elaborar um plano diretor que  tome em conta os objetivos  de médio e longo prazo que o setor público deve ter e as parcerias que precisa estabelecer com outros níveis de governo e o setor privado para aumentar a cobertura, a qualidade e as vocações das diferentes instituições na formação profissional, formação para o magistério, pesquisa e cultura. Deve ser um documento conciso, construído em diálogo com diferentes setores, que estabeleça um consenso básico sobre o que o Estado deve fazer. Há anos que o conhecido sistema da California, com seus community colleges, universidades estaduais de ensino e a pós-graduação e pesquisa concentrados na Universidade da Califórnia,  tem sido citado como um modelo que o Estado poderia adotar, e ainda pode servir de inspiração. O segundo é criar um mecanismo regular de elaboração de orçamentos plurianuais  com participantes e processos definidos que possa garantir estabilidade de recursos e espaço para aperfeiçoamentos e mudanças de rumos com metas  e indicadores de resultados conforme o plano diretor, e não, somente, das antigas vinculações. E terceiro, fortalecer ainda mais a autonomia universitária, sobretudo no que se refere à flexibilidade no uso de recursos, processos administrativos e  políticas de recrutamento, contratação e remuneração de professores, que não podem continuar a ser rígidos e idênticos para todas as instituições e áreas de atuação. 

Com isto, o sistema público paulista poderia de fato se tornar mais funcional e equitativo, e suas universidades poderiam finalmente entrar para o século 21, como todos desejamos.

Inflação de Diplomas

(Publicado em O Estado de São Paulo, 12 de abril de 2024)

Se há uma quase unanimidade no Brasil é que o país precisa de mais educação, e isto tem justificado um investimento cada vez maior no setor. Entre 2012 e 2023, a proporção de pessoas entre 18  e 40 anos com ensino médio completo ou mais passou de  53% para 71%, e com educação superior, de 11 para 19%. A estimativa é que, em 2018, o dado mais recente que consegui, o país tenha gasto 6.6% do PIB com os alunos da rede pública, dos quais 1.4% no ensino superior. E isto sem contar os gastos com aposentadorias e pensões de professores, bolsas de estudo, além do crédito educativo e Prouni, que beneficiam o ensino privado. É muito ou pouco? Afinal, ainda temos muita gente que não completou o ensino médio, e a educação superior deveria ser para todos. Vamos investir mais? Que tal gastar 10% do PIB, como aprovado, mas nunca cumprido, pelo Plano Nacional de Educação de 2014? Tirando de onde?

Antes de fazer isto, seria interessante refletir sobre um trabalho recente de pesquisadores do IPEA sobre a relação entre a educação e o mercado de trabalho no Brasil[1]. O que eles fizeram foi, com base na Classificação Brasileira de Ocupações, verificar qual o nível educacional requerido para cada uma delas – fundamental, média, superior – e depois, com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, verificar a proporção de pessoas que estão trabalhando em atividades abaixo, equivalente ou superior à sua formação, entre 2012 e 2022.

Os resultados são impressionantes. Nestes dez anos, a proporção de pessoas sobre-educadas, ou seja, com mais educação do que o requerido pelas ocupações que desempenham, passou de 26% para 37% do total, enquanto a de sub-educados, ou seja, pessoas trabalhando em atividades que requerem mais educação do que as que têm, caiu de 32 para 20%. É um caso claro de inflação educacional, em que se emitem cada vez mais títulos que o mercado de trabalho não tem como absorver. A maior parte dos sobre-ocupados são de nível médio, cerca 50%, mas a proporção entre os de nível superior também é alta,  pouco mais de 30%. Os dados mostram ainda que a grande maioria das ocupações existentes não requer muita educação.  Este quadro praticamente não se alterou nos últimos dez anos, exceto na indústria de transformação de alta tecnologia, em que há uma polarização, com mais trabalhadores de formação superior e de educação fundamental, e menos de educação média. Mas é um setor pequeno, com menos de 5% dos empregos.

Os autores não especulam muito sobre as razões deste quadro, exceto para dizer que ele deve ter sido afetado pelas crises no mercado de trabalho que vêm ocorrendo no Brasil desde 2015. Mas uma lição que podemos tirar é que não basta dar mais educação para que as pessoas se tornem mais produtivas.  Outra possível conclusão seria que se trata de um problema dos conteúdos da educação. Para obter um emprego compatível, não basta ter um diploma de nível médio ou superior, é necessário que este diploma esteja associado às competências que o mercado de trabalho requer. Mas, mesmo que esta associação exista, o mercado de trabalho tem uma lógica que depende de muitos fatores, dentre os quais a disponibilidade de recursos humanos qualificados é somente um – uma condição necessária, mas não suficiente.

A conclusão mais geral é que não faz sentido continuar aumentando os investimentos em educação de forma indiscriminada, isto só produz inflação de diplomas.  Além da grande frustração dos que não conseguem trabalhos condizentes com sua formação, existem os milhões que gastam tempo e dinheiro aprendendo coisas que nunca usam e  logo esquecem, os que abandonam seus cursos antes de terminar, e os que desistem e  saem cedo do mercado de trabalho, sobretudo mulheres.

 Claro que a educação tem outros objetivos além de preparar as pessoas para o trabalho –  formar pessoas mais cultas, mais solidárias, melhores cidadãos, com capacidade de aprender e lidar com uma sociedade em constante transformação. Mas, se as pessoas que se formam, sobretudo em nível superior, não conseguem trabalho compatível com seu nível de formação, e isso vem aumentando, algo está errado.  

Existe uma prioridade clara, que requer investimentos, que é a educação fundamental de qualidade, até os 15 anos de idade. É neste nível também que a questão das desigualdades deve ser enfrentada – não há política de ação afirmativa nem incentivo financeiro que consiga compensar as desigualdades de formação inicial. A partir daí, é necessário abrir espaço para caminhos alternativos, inovações e flexibilidade. A reforma do ensino médio, felizmente salva pelo Congresso em suas ideias centrais, pode contribuir para isto, se bem conduzida. E, no ensino superior e pós-graduação, é importante ser seletivo no uso de recursos públicos,  deixando de subsidiar sem maiores critérios as ilusões do diploma salvador, como se ele pudesse compensar pelas disfunções econômicas e institucionais que mantêm o país no atraso, e os jovens sem poder fazer uso de seu potencial.

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[1]Carvalho, Sandro Sacchet, e Maurício Cortez Reis. “Evolução da sobre-educação no mercado de trabalho no Brasil entre 2012 e 2022: primeiros resultados.” Boletim Mercado de Trabalho: Conjuntura e Análise. (IPEA), 2023.

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