Polarização e calcificação da política brasileira – críticas e comentários

O texto sobre Polarização e calcificação da política brasileira, com observações a respeito do livro Biografia do Abismo, estimulou vários comentários que contribuem para ampliar o entendimento do tema, alguns dos quais estou compartilhando.  Isto me permite também explicar melhor algumas ideias possam ter ficado pouco claras.

Começo pelo registro da mensagem de Felipe Nunes, um dos autores do livro. Escreve Felipe que “do ponto de vista teórico, o paradigma que você apresenta não diverge do nosso quando evoca o Schattschneider. Aprendi a gostar do trabalho dele com o John Zaller no meu doutorado da UCLA. Na minha avaliação, o nosso livro é basicamente a aplicação dessa ideia para o Brasil de 2018 a 2022. Como as elites (pelas redes sociais), em particular o Bolsonarismo, moldaram a opinião pública brasileira, que agora está calcificada. Acho que a nossa diferença está na calcificação. Você acha que coisas como ‘anulação dos processos da lava-jato e a concessão de recursos e poder crescentes para o Congresso’ podem desfazer a calcificação. Mas pelos dados que a Quaest tem publicado, esses eventos não fazem nem cócegas na polarização da opinião pública. Está tudo calcificado. O raciocínio motivado está ajudando a explicar quase todo tipo de resposta da opinião pública no Brasil. Mas é claro que a calcificação é só uma tese. E como toda boa tese pode e deve ser refutada pela realidade. Vamos ver o que acontece daqui para frente. Queria ser otimista como o senhor sobre os efeitos dos arranjos políticos na opinião pública, mas eu confesso que como bom atleticano, estou pessimista!”.  

Eu não quiz dizer que as acomodações das elites com o fim da Lava Jato e as concessões ao Congresso podem “desfazer” a calcificação,  mas sim que elas ajudam a atenuá-la, e mostram que existem outras coisas na política além da opinião pública. Foi por isto mesmo que achei interessante o artigo comparando as teorias de Downs e Schattschneider.

Nesta linha, o empresário Stefan Bodgan Salej observa que o texto leva a muitas reflexões, uma delas “o papel de grupos empresariais ou econômicos, sejam nacionais ou estrangeiros, no sistema político brasileiro. E aí não só a aliança eleitoral, mas exercício do poder a posteriori, como no exemplo de reforma tributária mais recentemente. Nas grandes empresas brasileiras o cargo mais importante é diretor de relações institucionais, a pessoa que obtém o máximo do estado pelo mínimo de retorno”.

O cientista político e brasilianista Barry Ames me escreve, em inglês, que tem duas observações sobre o artigo. A primeira é que eu deveria ver seu livro recente, com Andy Baker e Lúcio Rennó,  Persuasive Peers: Social Communication and Voting in Latin America (Princeton Univ. Press). “A pesquisa foi feita antes do crescimento dos meios de comunicação social, mas temos muito a dizer sobre o contexto social e comportamento eleitoral. O livro se baseia sobretudo em meus projetos em Juiz de Fora e Caxias do Sul”.  A segunda é que “tem um livro saindo proximamente pela Companhia das Letras por Marcos André Melo e Carlos Pereira intitulado Por que a democracia brasileira não morreu?  De Dilma ao terceiro mandato de Lula.  Eu escrevi a introdução do livro. A tese principal é que as instituições brasileiras são tão fragmentadas que é muito difícil para que um movimento anti-demorático consiga ganhar força no legislativo. Eles argumentam, e eu concordo, qiue Bolsonaro nunca teve chance de instalar o tipo de regime autoritário como os Levitsky e Ziblatt, entre outros, mencionam. A polarização do eleitorado nos Estados Unidos reforça e é reforçada pelo sistema bipartidário. No Brasil isto não pode acontecer (…). Em certo sentido, seu texto reflete a contrapartida do ‘copo meio vazio’ da tese do ‘copo meio cheio’ de Carlos Pereira. Você diz que o sistema brasileiro impede que o país desenvolva as políticas púbicas que tirariam o país da armadilha de renda média. Carlos argumenta que o sistema brasileiro minimiza as chances de um encaminhamento autoritário”. 

Concordo que seria difícil no Brasil fazer uma transição gradual da democracia parlamentar para o autoritarismo como ocorreu na Hungria de Viktor Orbán, mas um golpe militar simplesmente fecharia o Congresso.

O economista e imortal Edmar Bacha, comentando uma primeira versão do texto, pergunta “se a calmaria se deve à acomodação dos interesses relevantes pelo lulopetismo, significando isto que o bolsonarismo seria uma carta fora do baralho”. “Merecia atenção a diferença do caso americano, onde o trumpismo se alimenta de uma insatisfação com a emigração (como na Europa), com a desindustrialização (provocada pela China e pelas novas tecnologias), e com o identitarismo abraçado pelo Partido Democrata. Quais as “causas”  econômicas correspondentes que alimentam o Bolsonarismo no país? Faltou essa análise, que teria ver possivelmente com a ascensão do agronegócio, além da frustração com o PSDB, cujo lugar agora ocupa o PSD, por enquanto como linha auxiliar do bolsonarismo light”. E conclui dizendo que, “francamente, 60% nem de um lado nem de outro eu queria acreditar, mas me parece um exagero. Será que as eleições municipais deste ano ajudarão a compreender o enigma? Se eu fosse um empirista norte-americano, lhe diria para formular uma hipótese sobre a calcificação que poderia ser falsificada pelas próximas eleições municipais”.

O sociólogo Bernardo Sorj, também comentando uma versão inicial, observa que “o PT  certamente foi um dos construtores da polarização (a herança maldita, as elites, etc.).  A pergunta é porque foi Bolsonaro quem conseguiu mobilizar o  polo  adversário ao PT nas eleições presidenciais, nas quais o binarismo ideológico no Brasil tem  peso.    Acredito que um elemento central foi explicitar uma agenda que conseguiu  aglutinar os evangélicos e católicos conservadores, algo a que o polo tradicional ao PT, o PSDB,   nunca foi sensível. Você está certo de que a eleição de 2018 foi o momento alto da polarização, em particular pelo  efeito Lava-jato. Bolsonaro, apesar de 4 anos na presidência ,não conseguiu manter o nível de polarização”. E finalmente observa que “o problema histórico é sobre o papel do game changer (Mussolini, Hitler casos extremos). Quanto estava escrito na estrutura social e quanto depende da iniciativa dos operadores políticos? O razoável é pensar que se trata de uma mistura de ambos em cada situação histórica.  E o papel do efeito demonstração.  O efeito Trump e da nova extrema direita nos Estados Unidos e suas técnicas de atuação, ao igual que o fascismo, se espalharam pelo mundo”.

O cientista político Sérgio Fausto comenta que  “o ‘acordão’ por cima pode perfeitamente coexistir, até o início do novo ciclo d eleições gerais, com a polarização na sociedade. Ou seja, a tese da calmaria não conflita necessariamente com a da ossificação (em tempo: quando falo em eleições gerais, me refiro às presidenciais, para o Congresso e os governos estaduais). Penso que a tese da ossificação (um termo excessivo por indicar uma rigidez que o quadro não parece ter) é compatível com o modelo do ‘semi-sovereign people’. Os dois campos estão assentados em organizações bem estruturadas e capilares: família militar, inclusive polícia, e igrejas evangélicas, de um lado; PT, sindicatos, movimentos e ONGs de esquerda, de outro. Acho que a polarização depende muito dos personagens do drama. A ausência de Bolsonaro do cenário eleitoral, mas não político, abre uma brecha; enquanto o Lula aí estiver, porém, a brecha não se abrirá muito. Você tem toda razão que o que conta é o cálculo eleitoral e não uma ‘intervenção esclarecida das elites’ (a inclinação autoritária do argumento não passa despercebida). Em termos práticos, penso que devemos insistir na tese de que o quadro é mais maleável do que pintam os autores. E ir plantando. Colher mesmo, acho que só depois de 2026.”

O cientista político Edson de Oliveira Nunes escreve, no Facebook, que “quem sabe vale lembrar também o trabalho de Jonathan Haidt, The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion (Vintage, 2020) que argumenta que a cosmovisão à nova destra é mais ‘completa’ que aquela à sinistra em termos de apelo popular”. Fica a recomendação.

Finalmente, o cientista político Paulo Elpídio Menezes Neto também se vale do Facebook para questionar se de fato o 8 de janeiro de 2023 pode ser descrito como tentativa de golpe de estado. Segundo ele, “associar as manifestações de 8 de janeiro a uma ‘tentativa de golpe de estado’ constitui uma redução desviante, muito parecida com outros episódios da história recente. Vide Weimar”. “Não se pode falar em golpe de estado”, argumenta, “por conta de algumas vidraças e de um relógio de antiquários. Ademais, a infiltração por grupos black blocs nunca foi suficientemente esclarecida. Nem as armas do ‘levante’ encontradas entre os 1400 derrotistas recolhidos à Papuda…”

Eu acredito que houve realmente uma tentativa de golpe de estado, da qual a invasão do Planalto seria somente o estopim para que as forças armadas assumissem o poder e suspendessem o resultado das eleições invocando seu suposto  “poder moderador”.  Não faltam outros elementos para corroborar isto, como as tentativas anteriores de desmoralizar as urnas eletrônicas, o abandono intencional da segurança do Planalto pelo governo do Distrito Federal e setores do Exército, assim como a minuta do golpe encontrada na residência de Anderson Torres, as reiteradas referências de Bolsonaro a “minhas forças armadas” e os encontros pouco explicados com figuras estranhas como Daniel Silveira, Marcos do Val e Walter Delgatti.  Mas, como tantas outras ações do grupo de Bolsonaro, foi tudo feito incompetentemente, como um exército Brancaleone que nunca conseguiu se organizar. Nenhum dos mentores desta tentativa estava entre os 1400 que acreditaram neles e acabaram sendo levados para a Papuda, e nenhum destes mentores foi indiciado pela justiça até agora.

Acendendo uma vela

Capa da revista Mosaico, do Diretório Central dos Estudantes da UFMG, 1961. (Ilustração de Amaury Guimarães de Souza).

A pedido da International Review of Educational Development, escrevi um pequeno ensaio refletindo sobre minha experiência de participação em estudos e elaboração de propostas de políticas públicas nas áreas de ciência, tecnologia e educação. Como é para um público internacional, achei que deveria também descrever o contexto destas experiências, desde meus tempos de faculdade em Minas Gerais na década de 60. O artigo se chama “Lighting a candle” – acendendo uma vela – e o texto, em inglês, está disponível aqui.

Eu concluo dizendo que não tenho certeza de ter tido sempre razão nas políticas que propus e nas ideias que defendi ao longo destes anos. O certo é que minhas proposições quase sempre ficavam em minoria. Minha explicação é que a escolha e implementação de políticas públicas é determinada sobretudo por uma combinação de inércia e preservação de interesses estabelecidos, e não pelo mérito das propostas, força dos argumentos ou qualidade das evidências. Pelas decisões feitas e não feitas, o Brasil tem um sistema educativo caro, inchado, ineficiente e muito resistente a buscar alternativas que poderiam levar a bons resultados se fossem postas em prática. Tomara que as coisas melhorem no futuro, o que compensaria ter passado tantos anos segurando uma vela acesa e algumas vezes queimando meus dedos

As guerras de cada um

(Publicado em O Estado de São Paulo, 10 de novembro de 2023)

Existiram um dia a Ucrânia, Palestina, Israel, e têm direito de continuar existindo? Como?  São perguntas que afloram ao ler “A Ucrânia de cada um”, livro organizado por Flávio Limoncic e Mônica Grin na emoção da guerra fraticida da Ucrânia, publicado agora à sombra da também fraticida batalha de Gaza. Não é um livro propriamente sobre a Ucrânia, nem sobre as guerras, mas um conjunto de relatos e testemunhos de descendentes de judeus do leste Europeu que sobreviveram ao holocausto e reconstruíram suas vidas no Brasil e outros países das Américas. São memórias pouco conhecidas, porque a velha geração preferia poupar os filhos das histórias de sofrimento e horror por que passaram. E estes, estimulados a construir suas vidas no novo mundo, olhavam para frente, nem sempre com tempo e espaço interno para os relatos de seus pais.

Agora, as décadas de relativa paz que sucederam à guerra parecem estar se esgotando, os fantasmas voltam a assombrar, e é preciso lembrar de onde viemos.  Os velhos se foram, os filhos e netos amadureceram, e buscam nos fragmentos de memória, em velhos papéis e fotografias, em registros e nas redes de Internet, as histórias de seus pais e o sentido de suas origens. Para alguns, os documentos e as histórias familiares foram mais preservados. Mas para a maioria o que resta são pouco mais que referências desencarnadas de localidades e pessoas que mudaram de nomes ao sabor das migrações, das diferentes línguas e dos poderes que se alternavam no domínio de cada uma das antiga cidades e regiões – Vilna, Minsk, Volhynia, Podolia, Lublin, Galicia, Edinet, Kischinev – quase todas hoje partes da Ucrânia, Moldova e Polônia.

As histórias familiares fazem parte da identidade de cada um, mas não determinam seu destino. Dado o que passou, é inevitável que os relatos de perseguições, guerras e estratégias de sobrevivência sejam o que mais aparece. Mas existem outras histórias importantes a ser contadas. A da persistência de uma forte cultura local, baseada em uma língua comum e instituições comunitárias, de cunho religioso ou não, que estruturavam a vida no dia a dia nas pequenas localidades da Europa oriental; uma cultura do cotidiano que encontrou expressão em uma importante tradição literária que acompanhou as levas de imigrantes que partiram para as Américas, e que aos poucos vem desaparecendo com a perda de lugar do ídiche como a língua franca destes povos. A do judaísmo renovado, seja pela volta à tradição do messianismo religioso do “hassidismo”, seja no sionismo secular em suas diferentes vertentes. Ou finalmente pela busca de identidades novas: participar da cultura cosmopolita, profissional, universitária, científica e empresarial que se desenvolvia na Europa e nas Américas, ou se filiar aos movimentos políticos e sociais de esquerda que se formavam, pela militância nos sindicatos e partidos socialistas e comunistas locais. Não fosse o nacionalismo e o nazismo, a integração de parte dos judeus na sociedade e cultura de países europeus como a Alemanha, Áustria e Polônia teria sido tão bem-sucedida quanto  o foi nos Estados Unidos e Europa Ocidental

A Ucrânia foi por muito tempo lugar de coexistência de russos, ucranianos e judeus de diferentes identidades, da mesma forma que a antiga Palestina tem sido, por séculos, lugar de coexistência de árabes cristãos, judeus e muçulmanos. Nem sempre foi uma coexistência pacífica, mas os historiadores falam mais dos momentos dramáticos de guerras e conflitos do que dos longos tempos de paz, que também existiram e precisam ser reconhecidos e apreciados.

Meu tataravô materno, no século 19, fazia parte da próspera comunidade judaica de Varsóvia e decidiu, por razões religiosas, terminar sua vida  em Sfat, a cidade sagrada da Cabala. Era na antiga Palestina, parte do Império Turco, para onde haviam ido muitos dos sábios judeus expulsos pela inquisição espanhola,  onde nasceu minha mãe.  Meu pai se dizia romeno, nascido em uma das pequenas aldeias da Bessarábia, hoje parte da Moldova, e recentemente soube que minha avó paterna pode ter nascido em Vinnytsia, na Ucrânia. Os avós de minha mulher eram árabes cristãos, sírios e libaneses, que mandavam as moças da família a uma escola católica em Haifa, hoje parte de Israel, e nossos filhos são cidadãos do mundo.

Nada disto nos dá uma solução simples para as guerras de hoje, mas fica, pelo menos, um princípio moral que nos ajuda a pensar. Na apresentação do livro, Flávio e Mônica citam a  Bashevis Singer dizendo que, na língua ídiche, não havia palavras para designar armas, munições, exercícios militares ou táticas de guerra. Hoje são estas as palavras que mais se ouvem nos conflitos do Oriente Médio. Não parece que haja outro caminho para a região senão a plena implementação dos acordos de Oslo, com a constituição de um estado palestino autônomo e viável. Pode ser que nunca se chegue lá, da mesma forma que o nacionalismo e o racismo destruíram as esperanças de paz depois da primeira grande guerra. Mas não podemos perder a lucidez que adquirimos ao reencontrar as origens e possibilidades de cada um de nós.

José Murilo de Carvalho

Triste a perda de José Murilo hoje. Fomos colegas do curso de sociologia e política da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, completamos os estudos de doutorado na mesma época, convivemos por anos como professores do IUPERJ no Rio de Janeiro, com ele se vai mais um pedaço importante de nossa história. De um jeito tímido, calado, Murilo olhava com desconfiança as pretensões e devaneios teóricos e filosóficos dos colegas, e se aferrava ao chão firme dos fatos. Sua tese de doutorado, na Universidade de Stanford, foi uma pesquisa histórica sobre a formação das elites imperiais brasileiras, e a partir daí foi se desenvolvendo com um dos principais historiadores do país. Quando, nos anos 70, eu coordenava uma pesquisa sobre a história da ciência no Brasil, lhe pedi que fizesse um trabalho sobre a Escola de Minas de Ouro Preto, e o resultado foi, como tudo que fazia, uma joia de documentação e interpretação histórica.

Murilo escreveu muito sobre a República brasileira, que sempre via com olhar crítico, e admirava os grandes estadistas do Brasil imperial, dos quais falava como se os tivesse conhecido pessoalmente. Escreveu um livro dedicado ao Imperador D. Pedro II, de cujos méritos (do Imperador, não do livro) nunca chegou a me convencer. Quando, em 1993, houve o plebiscito para que o país escolhesse entre parlamentarismo e presidencialismo, ele foi um dos poucos que defenderam a monarquia. Perguntei a ele, na época, por que a defendia, e resposta foi que, afinal, alguém precisava fazer isso.

O monarquismo de Murilo não passava, nem de longe, pela defesa da escravidão, nem era uma crença tola das virtudes do regime imperial. O que ele buscava destacar, nestes como em outros escritos, era o valor do espírito público e a admiração pelas pessoas que trabalhavam sem concessões pelas ideias e causas que julgavam justas. Como ele.

Que descanse em paz, Zé.

SUCATA – os que voltam

Depois de publicar o texto sobre os altos níveis de abandono dos estudantes de nível superior no Brasil, tomei conhecimento do artigo de Felipe Tumenas Marques, do ano 2020, com dados inéditos sobre os estudantes que voltam a se matricular no ensino superior depois que abandonam. O artigo, “The return to higher education of dropout students in Brazil.” Cadernos de Pesquisa 50: 1061-1077, está disponível aqui. A pesquisa foi feita identificando os alunos que abandonaram os cursos no período 2009 a 2017, e verificando se eles retornaram depois. O artigo também menciona outros estudos sobre o tema que existem.

A boa notícia é que metade dos que se desligam voltam a estudar em algum momento depois, muitos no mesmo ano ou no ano seguinte. É possível também que haja um problema no registro do censo, pessoas que aparecem como tendo abandonado e depois retornado de fato tenham simplesmente se transferido de um curso básico para uma área de formação específica, ou de uma licenciatura para um bacharelado (agradeço a Renato Pedrosa por ter chamado minha atenção para esta possibilidade). Então, a situação não é tão grave quanto a que eu havia indicado.

A pesquisa detalha mais a informação, mostrando, por exemplo, que cerca de 30% dos que se desligam se matriculam em outra instituição no mesmo ano, e 10% no ano seguinte; que só cerca de metade se rematricula na mesma cidade; e que a maioria dos que se desligam de instituiçoes públicas se rematriculam em instituições privadas.

Pode ser que, no setor público, parte da explicação seja que muitos estudantes que fazem o ENEM só conseguem se matricular em instituições distantes, ou em outras carreiras que não as preferidas; ou que procurem cursos menos exigentes. Os dados não indicam quantos dos que se rematriculam finalmente concluem os cursos e quantos voltam a abandonar, o que significa que continuamos sem saber bem a proporção dos que realmente abandonam os estudos definitivamente.

De qualquer maneira, os índices de abandono são altos, e a alta circulação de estudantes entre cursos e instituições indica também ineficiências no sistema. Ainda bem que a situação é menos grave do que parece à primeira vista, e existem pesquisadores tratando de conhecer melhor o que está ocorrendo. O próximo passo será entender melhor e começar a lidar com o problema.

O Mundo que se Pensa: Homenagem a Bruno Latour

Estou compartilhando o convite para o evento organizado pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo dedicado a a rever a obra do autor que faleceu no dia 09 de outubro de 2022, no qual terei prazer em participar.

Quando: dia 22/03/2023, das 9:30 às 12:30
Onde: Sala Alfredo Bosi, Rua Praça do Relógio, 109, Cidade Universitária, São Paulo. Haverá também transmissão on line.

Este evento integra a programação do mois de la Francophonie.

Abertura: Guilherme Ary Plonski (IEA-USP) e Nadège Mezié (Consulado Geral da França em São Paulo)

Exposição:

Simon Schwartzman (Departamento de Política Científica e Tecnológica, IGC/Unicamp)

Stelio Marras (IEB-USP)

Michel Lussault (Ecole Normale Supérieure de Lyon) – online

Moderação:

Elizabeth Balbachevsky (DCP/IEA/NUPPS-USP)

Leitura de trechos da obra de Bruno Latour:

Isaque Almeida (France Alumni Bresil)

Transmissão:

Acompanhe a transmissão do evento em www.iea.usp.br/aovivo

Inscrições

Evento público e gratuito | Sem inscrição

Evento em português/francês | Com tradução simultânea

Não haverá certificação

Organização

Consulado-Geral da França em São Paulo

IEA

Apoio

France Alumni Brasil

Heloisa Pait: Meus professores da Fefeleche

(Estudante da FEA-USP de 1986-89)

Francisco Weffort, Paula Montero, Chico de Oliveira, Beth Lobo, Ruy Fausto e Regis Andrade.

Esses são os professores da Fefeleche que fizeram parte de minha formação. A Beth Lobo nos deu para ler L’Établi, um relato da experiência do autor como operário numa fábrica da Citroën, uma coisa totalmente diferente do que víamos na FEA, e que me encantou. Ela insistia para eu mudar para a sociais, e de algum modo, mudei. Beth Lobo faleceu muito cedo, e confesso que escrevendo agora sinto falta dela. Queria poder falar com ela, já madura, professora, doutora, das fábricas por onde passei.

Ruy Fausto faleceu recentemente, e busquei seus cursos como quem busca no shopping a melhor loja e nela a melhor roupa. Queria um marxismo puro e correto, a lente perfeita para ver o mundo, e nisso não me decepcionei: estava ali um marxismo rigoroso, que analisava até os travessões do texto, as movimentações dos capítulos, a dança dos conceitos. De vez em quando me voltam à cabeça os modos de produção e as formas de cooperação, e vai saber se não são as aulas herméticas do professor buscando seus sentidos no mundo real.

Do Regis, também falecido cedo, lembro que nos deu coisas que não imaginávamos obter: nos deu a liberdade para a pesquisa e o foco também. Tinha perguntas claras e queria que nós fôssemos lá fuçar e descobríssemos. Está entre meus melhores professores de todos os tempos, não só da graduação, mas da vida. Ousou demais, e isso lhe permitia deixar que ousássemos. Dirigia como um doido, mas nas nossas reuniões de pesquisa ouvia atento, sem pressa, com perguntas pausadas, como se nos assistisse. Sentíamo-nos gente, e quando dou uma boa aula penso nele.

A Paula Montero, desses todos, é a que está viva. Fiz um curso com ela dado pelos três departamentos das sociais, sobre o pensamento social brasileiro. O curso foi excelente, e das aulas dela me lembro dos seus olhos, grandes e saltados, que já exigiam de nós uma acomodação. Acho que entendi naquele curso a própria idéia de pensamento, de um conjunto de autores e textos que pode ser interrogado, analisado de modo ponderado. Dos cursos da tradição uspiana de exegese textual, esse é o que ficou, pois descortinava os elos entre a exegese e a vida mundana.

Acho que o curso que fiz com o Chico de Oliveira era sobre estrutura de classe e estratificação social. E penso que o curso do Weffort era sobre a América Latina, mas esse não encontro no meu currículo, talvez tenha feito como ouvinte. Os cursos estão embaralhados em minha memória. Lembro que Chico de Oliveira tinha mais certezas, Weffort mais dúvidas. Um deles subiu até a porta, numa sala em auditório, para pedir a um aluno que estava olhando pelo visor para entrar na aula, ou sair da porta, pois aquela posição ali de vigia lhe lembrava os tempos da ditadura.

Ambos eram uma ponte entre aquele “tempo da ditadura” e os novos tempos, tempos da democracia, que eles procuravam entender, como o Regis, ainda atarantados com esse novo regime, votos, partidos, eleições. Todos, na verdade, eram essa ponte, alguns ignorando uma transição que tinha acabado de acontecer, buscando as forças profundas da sociedade, outros reconhecendo que algo havia mudado e era preciso compreender, como o Regis e o Weffort.

Esses professores, é preciso dizer, acolhiam a nós, “economistas”, numa universidade onde alunos de outros cursos não eram necessariamente bem recebidos, nem na FEA nem na FFLCH. Éramos das primeiras turmas de uma tal resolução 3045, do reitor Goldemberg, que permitia que fizéssemos matérias em outras unidades. Mas nem todos os professores e funcionários gostavam da idéia, criando toda a sorte de obstáculos. Então só o fato de terem nos aceitado nas aulas e ainda nos tomado como interlocutores já diz muito sobre cada um.

Do Weffort, lembro ainda, com carinho, que me indicou para fazer minha primeira pesquisa com o Regis, ou seja, meu primeiro emprego. Ele também leu minha monografia, uma leitura de Dependência e Desenvolvimento, de Fernando Henrique Cardoso, a partir da leitura de Karl Marx do Ruy Fausto, ou seja, um exercício de crítica e interpretação. Ele aceitou conversar comigo numa tarde ensolarada, no Cedec. Sobre a monografia, olhou para mim de igual para igual, como leitor mesmo, e me fez uma pergunta que ainda ouço, quando escrevo coisas assim meio abstratas: “Tá. E daí?”

Não soube responder, mas não importa. Boas perguntas são assim, ficam penduradas na cabeça da gente, à espera do encontro com alguma possível resposta. Cada um desses professores, de um jeito, faz parte do que eu escrevo hoje, seja me levando para viagens mágicas, seja me trazendo para o mundo social. Cada um deles me interroga, seja me chamando a tomar posições, me exigindo rigor conceitual, me instando a compreender melhor o momento e meu lugar nele. E me interrogando, como Weffort, que consequências terão, afinal de contas, o nosso trabalho, sobre as vidas das pessoas.

O sábio e os sabidos

(publicado em O Estado de São Paulo, 13 de agosto de 2021)

“Vem me fazer uma visita”, me disse José Arthur Giannotti, da última vez que nos vimos, em um seminário no Instituto Fernando Henrique Cardoso. Disse que ia, lembrando de outras ocasiões em que me recebeu em sua casa no Morumbi, falando sobre os temas de filosofia, política e das pessoas que o fascinavam. Acabei não indo, e agora ele nos deixou. O encontro anterior havia sido em um voo desde Brasília em que nos encontramos e no qual ele falou longamente sobre o que estava escrevendo sobre Wittgenstein. No final perguntou se eu estava entendendo, eu disse que sim, e ele sorriu, contente, “viu como é simples? Até você entende!”. 

Na verdade não havia entendido direito, hoje acho que compreendo melhor. Se Giannotti era tão difícil de entender, tanto por escrito quanto falando, como explicar o grande sentimento de perda de tanta gente, agora que ele se foi? Não deve ser só por sua produção como filósofo, cujo valor cabe aos colegas de profissão avaliar.  Para os demais, foi sem dúvida importante sua presença e liderança na vida intelectual brasileira que começa na antiga Faculdade de Filosofia da USP na Rua Maria Antônia, continua no famoso grupo de leitura de “O Capital” nos anos 50 e 60, e se prologa nos anos em que presidiu  e participou do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP, a instituição criada pelos professores de filosofia e ciências sociais que, como ele, haviam sido expulsos da USP pelo regime militar. Mais importante, no entanto, eram a  permanente abertura e disposição para o debate e o diálogo, contestando certezas estabelecidas, trazendo ideias inesperadas, e fazendo pensar.

Mas, o que pensava Giannotti, que ideias defendia? O que me parece que ele recupera de Wittgenstein, nos escritos mais recentes, é a noção de que os conhecimentos não se dão de forma abstrata, pelo exercício formal da lógica e da dedução, mas a partir de jogos da interação  e convivência social, que  geram  mundos compartilhados de “jogos de linguagem”,  em cujo interior adquirem  significado.  A vida social supõe um esforço constante para construir novos significados, sendo o desafio a expansão de jogos de linguagem abertos ao diálogo e convivência  plural. O mundo da ciência, da tecnologia, da vida em sociedade, das relações de poder e dos conflitos, tudo isto tem origem nestas linguagens compartilhadas, o que leva a uma agenda política que é a da recuperação desta humanidade comum que nos une, inclusive a nossos adversários.

É tudo muito abstrato, mas se torna mais claro quando se lê seu livro sobre a “Universidade em Ritmo de Barbárie”,  escrito em 1986, refletindo sobre os trabalhos da Comissão Nacional de Reformulação da Educação Superior criada nos primeiros anos da Nova República.  O desafio de então, como o de hoje, era como defender e valorizar uma universidade e  uma comunidade científica que haviam sido violentamente atacadas pelo governo militar, e fazer com que elas, na democracia que se abria, não sucumbissem à lógica dos interesses corporativos que colocavam em risco sua própria razão de ser, e abrissem espaços para o diálogo e o desenvolvimento do conhecimento e da cultura. “A universidade moderna”,  diz ele, “configura uma enorme máquina, altamente sofisticada e complexa, que engole e produz saberes, sábios e sabidos”.  O sábio é quem ensina, pesquisa, questiona, serve de modelo e forma seus alunos.  É quem dialoga, retomando e ampliando os jogos de linguagem da comunicação. O sabido é quem se aproveita da lógica institucional para amealhar vantagens, posições de prestígio e de poder.

Não são entes totalmente distintos, o sábio precisa também ser sabido para sobreviver na máquina universitária.  Mas é fundamental preservar a missão central da vida universitária, e para isto, nos diz Giannotti, é  preciso isolar o sabido, uma tarefa quase impossível, porque a lógica dos interesses de curto prazo fez com que a universidade brasileira se tornasse uma “fábrica de sabidos” . As avaliações externas, os processos internos de seleção de dirigentes baseados na qualidade acadêmica, o fortalecimento da natureza pública das instituições educacionais, sejam elas estatais ou privadas, são alguns dos mecanismos necessários para evitar que a voracidade dos sabidos não termine por sufocar as instituições de ensino e pesquisa de que se alimentam.

O mundo da comunicação e do diálogo que buscava Giannotti não era o mundo falsamente harmônico que esconde a desigualdade, a pobreza e a exploração. Giannotti se formou no ambiente intelectual francês de crítica e revisionismo do marxismo, onde se buscava resgatar as preocupações centrais de Marx com a exploração capitalista e a miséria, sem cair na aberração do totalitarismo do “socialismo real”.  Sem tentar escapar do mundo moderno da tecnologia, da burocracia, das grandes corporações e das redes de comunicação, mas criticando a desigualdade, a alienação e o mundo frenético e empobrecido dos sabidos que produz, Giannotti se manteve sempre como o sábio do pensamento independente, crítico, e do diálogo.

Pedra Lascada

Entrevistado pelo reporter da Folha de São Paulo sobre a incrível declaração do Ministro Paulo Guedes de que o IBGE estava ainda na “idade da pedra lascada”, porque não gostou dos dados de desemprego da Pnad Contínua, eu disse que, se isso fosse verdade, seria culpa dele, porque o IBGE faz parte de seu ministério. No jornal ficou faltando o “se”, dando a impressão que eu concordava com ele. Não concordo. A PNAD contínua é uma pesquisa moderna e inovadora, o IBGE avançou muito nos últimos anos apesar da falta de apoio do governo, e foi capaz de manter suas pesquisas mesmo com a Covid. A diferença entre a PNAD e o CAGED é óbvia para quem conhece um mínimo do assunto: a PNAD é uma pesquisa amostral de alta qualidade, com centenas de milhares de entrevistados, que mede não só o desemprego, mas também o sub-emprego e o desalento, e o CAGED é um registro administrativo que só inclui as pessoas com carteira assinada, cerca de metade dos que trabalham no país. Qualquer economista formado pela Universidade de Chicago sabe disso.

Sonia Rocha: Pobreza no Brasil: conceitos, medidas e politicas públicas

Publicado por Eliva Press, disponível na Amazon e Academia.edu

Este livro reúne um conjunto de textos, muitos deles inéditos, que acompanham a transformação da abordagem da pobreza no Brasil, que, por volta dos anos noventa, passa a ocupar um lugar de destaque, tanto nos meios acadêmicos como na agenda de política social, ganhando visibilidade na mídia e entre o público em geral. A pobreza deixa de ser um assunto de caráter essencialmente filantrópico, de certo modo considerado como um fato normal da vida, associado às desigualdades inevitáveis da organização social. Ganha protagonismo próprio e atenção específica, deixando também de ser vista como um apêndice do subdesenvolvimento e da política pública.  Esta ainda estava muito centrada nas questões macroeconômicas e na promoção do desenvolvimento econômico, na crença que o crescimento da renda levaria automaticamente à redução progressiva da pobreza. 

No âmbito na política pública, a nova abordagem causou uma ruptura do enfoque clientelista e assistencialista que operava sem qualquer controle, passando-se a privilegiar paulatinamente instrumentos e ações anti-pobreza baseadas em evidências objetivas e passíveis de avaliação.

Os textos apresentados aqui rompem portanto com a tradição predominante até os anos oitenta, adotando uma abordagem centrada na pobreza com uma pegada empírica. Utilizam como ponto de partida bases estatísticas oficiais cobrindo o país como um todo e suas subdivisões territoriais/espaciais, que tanto servem para fins de análise e de diagnóstico, focando em última instância na aplicação para desenho, monitoramento e avaliação de políticas voltadas para o combate à pobreza e sua irmã gêmea, à desigualdade de renda. 

O texto inicial serve como pano de fundo para todos os demais. Traz uma retrospectiva dos dados básicos desde 1990, apresentando a tendência geral de declínio da pobreza, mas enfatizando as alterações ocorridas associadas à urbanização e à consequente perda de importância relativa da pobreza rural. A expansão da fronteira do Centro-Oeste causa modificações na distribuição regional da pobreza, mas a dicotomia fundamental entre Norte e Sul pouco se altera, já que a pobreza brasileira permanece predominantemente nordestina, mas crescentemente nortista. 

Os textos que se seguem enfocam diferentes aspectos da questão da pobreza. Geralmente adotam como pressuposto a abordagem da pobreza como insuficiência de renda. Utilizam-se, portanto, frequentemente linhas de pobreza e de extrema pobreza como critério básico para distinguir um subconjunto de pobres, medir a incidência de pobreza e caracterizar a subpopulação pobre. A primazia da abordagem de pobreza enquanto insuficiência de renda na maioria dos textos apresentados aqui merece algumas qualificações. 

A primeira é que, embora pobreza seja reconhecidamente uma síndrome de carências multivariada, o nível de renda é o determinante básico do nível de bem-estar das famílias, pelo menos no que o bem-estar depende do consumo no âmbito privado. Por esta razão estudos de pobreza em países de renda média ou alta utilizam preponderantemente a abordagem da renda como ponto de partida. Um dos textos selecionados – Measuring Poverty in Brazil: A Review of Early Attempts – faz uma revisão dos diferentes experimentos pioneiros de medição de pobreza no Brasil usando linhas de pobreza, explicitando como foram estabelecidos seus valores e quais os resultados obtidos.

A segunda qualificação concerne à aplicabilidade de um valor único de linha de pobreza para um país tão vasto e com características diferenciadas de consumo e de preços, portanto de custo de vida. Os textos selecionados aqui adotam como pressuposto linhas de pobreza e de extrema pobreza diferenciadas por regiões e por suas subáreas (urbanas, rurais e metropolitanas). Além disso, ao invés de usar valores arbitrários como linha de pobreza – como por exemplo, um múltiplo do salário mínimo-, os valores adotados derivam-se da estrutura de consumo efetivamente observada dentre os mais pobres em pesquisas de orçamentos familiares. Os valores das linhas são, portanto, resultado das preferências de consumo dos indivíduos e famílias, dada a restrição de renda que enfrentam. A diferença de valores entre áreas mais afluentes, com estrutura de consumo de maior custo, como a metrópole de São Paulo, e as áreas mais pobres, como a área rural do Nordeste, evidencia a relevância de usar parâmetros de renda tão localizados quanto possível para medir pobreza no Brasil. Premissas e procedimentos utilizados para a derivação e atualização periódica dos valores espacialmente diferenciados das linhas de pobreza são objeto de um dos textos selecionados (Poverty Lines for Brazil: New Estimates from Recent Empirical Evidence). 

Um terceiro aspecto tem a ver com a vantagem do uso de linhas de pobreza como premissa, já que ela permite incorporar à análise, simultaneamente, outras carências associadas à pobreza. Assim, a partir da delimitação dos pobres do ponto de vista da renda, podem ser derivados perfis dos pobres, e se desejado, também dos não-pobres, utilizando variáveis relativas à educação, inserção no mercado de trabalho, acesso a serviços públicos, estrutura familiar, etc. Os textos Poor and Non-Poor in the Brazilian Labor Market e Who are the Poor in Brazil tiram partido desta abordagem combinada. 

Alguns dos textos selecionados utilizam apenas subsidiariamente a renda para a análise de aspectos relevantes da pobreza. Em Sustainable Development and the Poverty Reduction Goal discutem-se três aspectos relativos à noção de sustentabilidade no Brasil, que são frequentemente vinculados à questão de pobreza. Em particular o falso trade-off entre crescimento econômico e política anti-pobreza. Um outro texto, Child Labor in Brazil and the Program for Eradication of Child Labor, enfoca um problema crítico da pobreza e desenvolve uma tipologia das crianças envolvidas em trabalho precoce visando o desenho e a operacionalização do PETI, sem utilizar linhas de pobreza.  

O texto sobre o trabalho infantil acima citado, assim como três outros textos selecionados, enfoca o processo de formulação, aplicação e aperfeiçoamento dos novos programas de transferências de renda, começando com o Bolsa-Escola em Brasília. Revelam-se os defeitos e dificuldades detectados, que foram contornados ou pelo menos amenizados com os aperfeiçoamentos paulatinos introduzidos, em particular, no Bolsa-Família ao longo do tempo. Estes textos sobre os programas de transferência de renda, que combinam micro-simulações, análise e explicitação da lógica da adoção das progressivas mudanças no desenho dos programas, estão fortemente vinculados à operação da política pública anti-pobreza adotada no país desde os anos noventa, fortemente centrada nas transferências de renda focalizadas.  

Dois textos tratam da desigualdade de renda, que está imbricada à persistência da pobreza absoluta no Brasil, já que, diferentemente do que ocorre em países realmente pobres, em base per capita, há renda suficiente para que toda a população brasileira se situe acima das linhas de pobreza. Nas raízes da desigualdade e da pobreza estão as históricas deficiências educacionais, que determinam a relação entre nível de escolaridade dos indivíduos e as possibilidades de inserção no mercado de trabalho. O primeiro texto – Education, Labor Earnings and the Decline of Income Inequality in Brazil – enfoca as relações entre educação e renda do trabalho, e os impactos sobre a pobreza e a desigualdade de renda. O segundo – Age and Regional Inequality Among the Poor in Brazil – se concentra na desigualdade entre os pobres. Mostra como no período 2004-2014, caracterizado pela queda sustentada da pobreza, não houve redução na desigualdade entre os pobres tanto no que se refere ao recorte regional – mantendo-se a concentração de pobres no Norte/Nordeste, como já se comentou, como por faixa etária. Neste último caso foram os idosos, que já se encontravam em melhor situação relativa dentre os pobres, os que mais se beneficiaram da redução da pobreza no período, em particular devido à cobertura dos benefícios previdenciários e assistenciais, indexados ao salário mínimo, que muito se valorizou no período. No extremo oposto foram as crianças as grandes perdedoras, com aumento de sua participação dentre os pobres, apesar de programas como o Bolsa-Família. Estes resultados deixam evidente o ponto crítico da política anti-pobreza que vem sendo adotada no Brasil, dos programas de transferência de renda mais especificamente, incapazes de proteger as crianças, os mais vulneráveis e também em maior desvantagem dentre os pobres. 

Um ultimo conjunto de artigos mostra como as oscilações conjunturais e fatores macroeconômicos impactaram os níveis de pobreza, o que não é surpreendente, já que utilizamos a abordagem da renda. Como a inflação castiga preponderantemente os pobres, o estancamento da alta de preços do Plano Real trouxe uma forte redução da pobreza com melhorias distributivas marcantes, mas não deu origem a um processo continuado (The 1994 Monetary Stabilization. Early Evidence of its Impacto on Poverty).  Entre 1997 e 2004 diversos determinantes macroeconômicos – de crises externas a dificuldades da gestão cambial – deixaram as taxas de pobreza estagnadas. Só a partir de 2004 se iniciou um ciclo sustentado de redução da pobreza, impulsionado por fatores favoráveis tanto internos como externos.  

Hoje muito já se sabe sobre pobreza no Brasil e sobre os mecanismos de política pública mais eficientes para combatê-la. Os textos apresentados neste livro trazem um conjunto de evidências e reflexões com a intenção de ilustrar os progressos ocorridos no longo prazo e o enorme aprendizado acumulado. Os retrocessos ocorridos desde a recessão iniciada em 2014, acentuados pela crise sanitária atual, vão demandar todo o talento e arte para a recuperação das perdas e a retomada do crescimento econômico em moldes adequados à nova realidade.    

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