Ainda sobre o programa “Pé de Meia”

Meu texto sobre o programa “Pé de Meia” do Ministério da Educação, pelo qual os estudantes de baixa renda no Ensino médio receberão um estímulo financeiro para continuarem estudando, provocou diversas discussões e questionamentos, que não pretendo rebater aqui. É importante que o tema seja debatido, não tenho mais o que dizer além do que escrevi, e não sou dono da verdade.

No entanto, gostaria de esclarecer alguns pontos e trazer alguns dados que não caberiam em um artigo de jornal.  Eu citei, no texto, os trabalhos sobre fluxo escolar feitos por Fletcher, Costa Ribeiro e Ruben Klein da década de 80 (Fletcher 1984; Klein and Ribeiro 1991) que mostraram que, ao contrário do que se pensava  até então, o problema da educação brasileira não era de abandono, mas de repetência, e algumas pessoas comentaram que estes dados dos anos 80 poderiam não ser mais válidos hoje. O que eles mostraram, olhando as estatísticas de idade e série, é que poucas crianças abandonavam a escola no ensino fundamental, mas muitas repetiam o ano, e com isto o número de matriculados na 2ª série, por exemplo, era bem menor do que na primeira, dando a impressão falsa de que muitos haviam abandonado. A diferença entre aquela época e hoje é que, graças em parte a estes estudos e a crítica à “pedagogia da repetência”, não se reprova mais as crianças da mesma forma que antigamente, e o fluxo escolar é mais regular. Hoje sabemos que reprovar a criança não faz com que ela aprenda mais, e pode contribuir para que ela se aliene da escola e acabe abandonando quando mais velha. Mas é claro que simplesmente passar de ano não resolve o problema da aprendizagem. Os dados da tabela abaixo, da PNAD contínua de 2021 (que tem informações sobre renda familiar) mostram que as crianças de famílias mais pobres podem tardar um pouco mais para entrar na escola, mas, a partir dos 9 anos, praticamente todos estão estudando.

O quadro seguinte dá a proporção dos que não estudam por nível de renda e idade, entre 15 e 23 anos. Este quadro, me parece, mostra algumas coisas importantes. A primeira é que o abandono escolar ainda é reduzido até os 16 anos, e aumenta rapidamente a partir dos 17. A segunda é que a renda familiar só começa a fazer diferença aos 17 anos, e se acentua sobretudo a partir dos 19. Para as faixas de renda mais altas, a percentagem de jovens fora da escola diminui a partir dos 18 anos. É como se muitos fizessem uma pausa ao final do ensino médio, mas depois retomassem o estudo em nível superior, o que não ocorre com os mais pobres.

O quadro abaixo dá a situação de estudo dos jovens aos 17 anos. O que se observa é que a proporção que já não estuda não varia muito por faixa de renda, mas sim a dos que estão atrasados, que atinge não só os mais pobres, mas todas as faixas de renda até 2 salários mínimos per capita.

A questão é quanto que o abandono pode ser revertido com um subsídio. Houve quem observasse que o subsídio, que  pode chegar a quase 10 mil reais em três anos, é substancial, e pode fazer uma grande diferença para pessoas de renda mais baixa. Outros observaram que, mesmo que o curso seja ruim, o jovem esteja atrasado em seus estudos, e não consiga acompanhar as aulas, é sempre bom que ele vá à escola, pelo que pode ganhar pela convivência e por se manter ocupado.  Tudo isto é certo.  O outro argumento a favor do subsídio é que ele poderia garantir a frequência, e com isto reduzir o risco de abandono.

Mas, por outro lado, existe a pressão da idade que começa a atuar fortemente aos 17 anos e expulsa os jovens que estão defasados ou desestimulados, e não é certo que um estímulo financeiro de 200 reais mensais, e a promessa de 3 mil reais alguns  anos depois, possa realmente fazer muita diferença. E existe o risco de que o subsídio acabe sendo capturado justamente pelos jovens que estejam bem ajustados aos estudos e precisem menos dele.

No texto eu sugeri que estes recursos poderiam ser mais bem utilizados para reduzir o número de matrículas de ensino médio nos cursos noturnos. Não consegui este dado, que o INEP deixou de divulgar, mas penso que em muitos lugares só existem cursos médios noturnos, utilizando as instalações usadas durante o dia pela educação fundamental.  Transformá-los em cursos diurnos requer investimentos significativos em edifícios, instalações, professores, e subsídios para estudantes mais velhos que precisem trabalhar, e para os quais uma bolsa de 200 reais ao mês não resolve a vida.

Referências

Fletcher, Philip Ralph. 1984. Primary school repetition : a neglected problem in Brazilian education : a preliminary analysis and suggestion for further evaluation. Stanford, CA: Stanford University.

Klein, Ruben, and Sérgio Costa Ribeiro. 1991. “O censo educacional e o modelo de fluxo: o problema da repetência.” Revista Brasileira de Estatística 52(197):5-45.

Pé de Meia

(publicado em O Estado de São Paulo, 9 de fevereiro de 2014)

Com a reforma do ensino médio estancada, o governo resolveu instituir o programa “pé-de-meia”, pelo qual estudantes de baixa renda do ensino médio que frequentem as aulas receberão duzentos reais por mês e mais mil reais por ano completado, a serem recebidos ao final do curso. Pelo anúncio, o custo seria de 7.1 bilhões ao ano, atendendo a 2.5 milhões de estudantes. Pelos dados da pesquisa do IBGE que consultei para este artigo (Pnad contínua 2021), existiriam cerca de 5.7 milhões de jovens entre 15 e 24 anos com renda familiar per-capita de até ¼ de salário-mínimo, dos quais 2.8 milhões no ensino médio, número próximo ao divulgado pelo governo.

Os objetivos da lei são genéricos – democratizar o acesso, mitigar a desigualdade, estimular a mobilidade social, promover o desenvolvimento humano – e em nenhum lugar se indica como o incentivo contribuirá para estes fins.  O que está de trás, aparentemente, é a ideia de que existe muita evasão escolar no ensino médio, que ela afeta sobretudo jovens de baixa renda, e que isto pode ser corrigido com um estímulo financeiro. Nada disso é certo.

A ideia de dar um dinheiro para manter as crianças na escola é antiga e vem do Bolsa Escola, que deu origem ao Bolsa Família. O que se viu, no entanto, foi que as chamadas “condicionalidades” praticamente não funcionavam. Com bolsa ou sem bolsa, havendo escolas, as famílias mandavam os filhos, da mesma maneira que buscavam atendimento de saúde se havia serviços disponíveis. Com suas limitações, o Bolsa Família é importante como política de renda, mas não tem como solucionar problemas não resolvidos das áreas de educação e saúde.

A outra coisa que sabemos é que o problema da deserção escolar é muito menor do que se pensa. Os trabalhos de Philip Fletcher, Sérgio Costa Ribeiro e Ruben Klein mostraram, na década de 80, que o problema não estava no abandono, e sim na repetência. As crianças permaneciam na escola, mas aprendiam pouco e iam ficando para trás.  Depois se pensou que o abandono  ocorria principalmente a partir do ensino fundamental 2, aos 11 anos de idade, e se acentuava no ensino médio. Mas os dados atuais mostram que praticamente não existe abandono até os 15 anos, e que ele não é maior entre os mais pobres. Para estes, aos 14 anos, a percentagem que não estuda é de 0,6%. Há um pequeno aumento aos 15, para 2,6%, e só a partir daí cresce –  4,8%, 14,2% e 49,3% para 16, 17 e 18 anos de idade. Dos 19 anos em diante, mais da metade dos jovens está fora da escola. Aos 19 anos, 27% só estudam, 12% estudam e trabalham, 27% só trabalham,  e 33% engrossam o exército dos “nem-nem”.  Isto ocorre em todas as faixas de renda. Mesmo nas famílias mais ricas, de mais de 5 salários mínimos mensais per capita, um terço dos jovens já está fora da escola aos 19 anos.

Existe claramente um efeito de idade. Ao se aproximar da maioridade, os jovens precisam decidir o que fazer da vida, e a opção para a maioria é deixar de estudar. Há os que deixam a escola para trabalhar, mas poucos conseguem de fato uma ocupação. A maioria abandona simplesmente porque ficou para trás, não entende e nem se motiva pelo que é ensinado, e não vê perspectiva na corrida de obstáculos que é concluir o ensino médio, fazer o ENEM e tentar uma faculdade. É improvável que uma pequena bolsa de permanência tenha mais do que um efeito marginal, já que ela é desnecessária para os que continuam matriculados e incapaz de fazer com que os que já desistiram voltem à escola.

A reforma do ensino médio de 2019, agora condenada pelo MEC, tentou lidar com parte deste problema ao abrir caminho para um ensino médio com conteúdos modernos, mais possibilidades de escolha e o fortalecimento de um ensino técnico mais prático e apropriado para os milhões que não querem ou não conseguem seguir os cursos tradicionais. Passar de um modelo único, que deixa milhões pelo caminho e se baseia em um currículo elitista moldado pelo ENEM, para um outro com a complexidade requerida por uma educação de massas, com profundas desigualdades e em meio a uma revolução tecnológica, não seria fácil. Teorias pedagógicas à parte, tenho para mim que a principal razão da resistência que a reforma encontra foi que ela mexe com as rotinas de trabalho do Ministério, das secretarias de educação e dos professores das redes públicas. Apesar disto, várias tentativas foram feitas de experimentar com currículos inovadores, pluralidade de trajetórias e cursos técnicos, que precisam ser avaliadas e valorizadas.

Uma  alternativa  que tem sido apresentada é a escola média de tempo integral.  Hoje, nas redes estaduais, somente 20% dos alunos estão nestes cursos, enquanto um número muito maior (que não aparece mais nas estatísticas do INEP) estuda em cursos noturnos em condições precárias.  Quando escolas de tempo integral são bem geridas e o currículo é inovador,  o resultado pode ser interessante, mas isto pode ser também feito, a menor custo, com escolas diurnas regulares. Um bom uso do dinheiro do pé-de-meia, aliás, seria destiná-lo a reduzir o ensino noturno.

Duas frases simples resumem a moral desta história.  No ensino médio, não é o mercado que atrai os jovens, é a má qualidade e inadequação dos cursos que os expele. E não há como melhorar o que está ruim colocando dinheiro para ter mais do mesmo.

O novo plano vem aí

(publicado em O Estado de São Paulo, 8 de setembro, 2023)

Em 2024 termina o Plano Nacional de Educação aprovado pelo Congresso em 2014, que ficou praticamente todo sem se cumprir, e já se veem movimentos para elaborar um novo que deveria entrar em vigor em 2025, com o risco de ter o mesmo destino. O fracasso do PNE de 2014 não foi nenhuma surpresa. Em 2011, quando ainda estava em gestação, escrevi com alguns colegas um artigo em que dizíamos que o plano não passava de uma “lista de Papai Noel”, que colocava no papel objetivos inalcançáveis e deixava de lado reformas fundamentais como a da formação de professores, diferenciação do ensino médio, fortalecimento da educação professional, alinhamento dos currículos com sistemas de avaliação, e outros.

Se a inteligência natural não nos ajudou a elaborar políticas educacionais efetivas no passado, quem sabe que, agora, a inteligência artificial nos ajuda? Pedi ao ChatGTP que me indicasse quais países tinham planos nacionais de educação, e ele listou Brasil, Portugal, Mexico, Chile, Colômbia e Índia.  Perguntei que países haviam obtido os melhores resultados educacionais nos últimos anos, e ele listou Finlândia, Singapura, Coreia do Sul, Canadá, Japão. Ou seja, uma coisa parece excluir a outra.  Acacianamente, o ChatGTP me fez lembrar que “o sucesso na educação não pode ser atribuído apenas a um plano nacional, mas sim a uma combinação de políticas, práticas e investimentos ao longo do tempo”.  Chile e Portugal são dois países que melhoraram a qualidade de sua educação nos últimos anos, medida pelos resultados nas provas internacionais do PISA, mas isto não se explica por seus planos, e sim por reformas específicas na formação de professores, aperfeiçoamento dos currículos, sistemas adequados de acompanhamento de resultados, e outros, além do aumento de investimentos.

Além da educação básica, o PNE tinha metas específicas para o ensino superior, e existiu um plano nacional de pós-graduação para o período de 2011 a 2020, que agora está se tentando ressuscitar. Para a educação superior, o PNE tinha três metas principais: aumentar o total de matrículas, aumentar proporção de jovens no ensino superior, e aumentar a proporção de matrículas no setor público. Das três, a única que se cumpriu foi a primeira, mas ela se deu sobretudo pela expansão do setor privado, que hoje cobre 75% da matrícula, e o aumento da proporção de estudantes mais velhos. Nos últimos anos, os temas que têm predominado nas discussões sobre o ensino superior são a ampliação do acesso, incluindo as políticas de cotas, e as dificuldades de financiamento do ensino superior público. Na realidade, o acesso ao ensino superior no Brasil aumentou muito entre 2000 e 2015, antes portanto do plano, passando de pouco menos de três para 8 milhões de matrículas, graças sobretudo ao subsídio descontrolado dos governos do PT ao setor privado, na forma de isenções fiscais e crédito estudantil garantido pelo governo federal.  Foi a ampliação do setor privado, e não as políticas de cotas para as universidades públicas, que fez com que aumentasse o acesso de pessoas de condição social mais precária ao ensino superior. Mas isto se fez a um alto custo não só em dinheiro público e privado, mas em termos da frustração de milhões que não passam no filtro do ENEM, de mais da metade dos estudantes que abandonam os cursos superiores antes de terminar, e da metade, entre os que terminam com um diploma, que só consegue trabalhar em atividades de nível médio.  Os problemas de financiamento das instituições públicas, que são graves, estão associados aos custos crescentes de pessoal e à inexistência de um sistema adequado que vincule investimentos a resultados, e não, simplesmente, à existência ou não de “vontade política” deste ou aquele governante a favor do ensino superior, embora isso não possa ser desprezado.

Na pós-graduação, as duas metas principais, de aumentar o número de mestres e doutores nos cursos estrito senso, para 60 e 20 mil por ano, respectivamente, foram cumpridas, mas sem considerar o número muito maior de pessoas que fazem cursos de pós-graduação e especialização não regulados, nem um entendimento mais aprofundado do quem são e o que fazem efetivamente estes pós-graduados. A justificativa para o subsídio generalizado aos mestrados e doutorados é que a pós-graduação seria o espaço de formação de nossos pesquisadores, mas há indicações de que os vínculos entre a pós-graduação e pesquisa tendem ser mais a exceção do que a regra.

O ensino à distância, novas tecnologias como as da inteligência artificial, as mudanças profundas que estão ocorrendo nas profissões e no mercado de trabalho, as crescentes desigualdades de resultados de aprendizagem e oportunidades de trabalho para os formados nas diferentes carreiras, tipos e modalidades de instituições, os custos crescentes de financiamento, a precariedade das instituições de pesquisa, tudo isto mostra que precisamos de políticas inovadoras e audaciosas para a educação como um todo, muito além dos temas tradicionais de acesso, inclusão e financiamento e de planos ambiciosos que ficam no papel.

Esperanças na Educação

(Publicado em O Estado de São Paulo, 13 de janeiro de 2023)

Com Camilo Santana e Izolda Cela na liderança no Ministério da Educação (MEC), surge a esperança de que o País consiga, finalmente, enfrentar o grave problema do analfabetismo funcional, em que as crianças permanecem na escola mas não aprendem a ler nem escrever como deveriam. Eles trazem a experiência do Ceará, que tem conseguido dar às crianças das escolas municipais de uma das regiões mais pobres competências de linguagem e matemática equivalentes às dos Estados mais desenvolvidos. O segredo é uma ação sistemática e persistente que combina materiais pedagógicos estruturados, com o uso de componentes fônicos, e forte integração entre as redes municipais e o governo do Estado, com avaliações permanentes, apoio e estímulo ao bom desempenho.

A esperança é que a mesma atitude inovadora que transformou a educação fundamental no Ceará possa ocorrer nos outros níveis da educação, em que, é preciso reconhecer, a experiência dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) desde 2003 deixou muito a desejar. Entre 2002 e 2015, o orçamento do Ministério da Educação passou de R$ 18 bilhões para R$ 180 bilhões ao ano, as redes públicas se expandiram, a escolaridade cresceu, mas a qualidade da aprendizagem aumentou muito pouco, e a produtividade do País se manteve estagnada. Ao final do ensino fundamental, no 9.º ano, continuamos entre os piores países do mundo na avaliação internacional do Pisa, e muitas crianças já ficaram para trás; temos uma reforma do ensino médio mal iniciada em 2017, que ficou pelo caminho; e um sistema de educação superior ainda moldado em uma legislação de meio século atrás, em que metade dos estudantes que entram não terminam, e metade dos que terminam não conseguem um trabalho de qualificação correspondente a seus títulos. Temos também um sistema de pós-graduação e pesquisa caro que se expandiu, mas com resultados sofríveis em termos de qualidade da pesquisa e impacto na inovação e na melhoria da qualificação geral da força de trabalho do País.

Para cada uma dessas áreas existem diagnósticos que precisam ser aprofundados e ações a serem feitas que precisam ir muito além da simples reconstrução do desastre administrativo e financeiro dos anos de Jair Bolsonaro. A reforma do ensino médio precisa ser completada, com a implantação de percursos de formação diferenciada, reforço da educação técnica e um novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) compatível com um sistema de formação plural.

No ensino superior, a expansão das universidades e institutos federais levou a um sistema caro e pouco eficiente. A última reforma do ensino superior brasileiro vem dos anos 1960, antes que a demanda por educação superior começasse a aumentar, e nenhum governo desde então se empenhou em ampliar a diferenciação do sistema público, fora dos bacharelados e licenciaturas tradicionais, nem conseguiu regular o sistema privado. O regime de cotas não foi suficiente para dar acesso aos estudantes mais carentes, que acabam sendo atendidos, de forma precária, por um sistema privado comercializado que hoje cobre mais de 75% das matrículas. Dos 8.5 milhões de estudantes de nível superior em 2021, 1.3 milhões vinham de domicílios com renda per capita de meio salário mínimo ou menos, e, destes, dois terços estavam no setor privado (dados da Pnad Continua de 2021).

É preciso identificar com clareza as diferentes missões das instituições públicas – ensino profissional, formação tecnológica, pós-graduação e pesquisa, desenvolvimento regional, formação de professores – e dar a cada uma estímulos e autonomia apropriados para que façam melhor o que esteja a seu alcance, e não desperdicem recursos naquilo que não querem e não podem fazer. O setor privado precisa ser mais bem regulado, o atual sistema de credenciamento e avaliação do ensino superior está obsoleto, e existem propostas para sua revisão que precisam ser aprofundadas e implementadas.

O modelo elitista permitiu que o Brasil desenvolvesse um setor razoável de pesquisa e pós-graduação das universidades públicas, mas concentrado em poucas instituições. Já é tempo de desfazer o sistema excessivamente centralizado e burocratizado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), também concebida há 70 anos atrás e que não cumpre mais seus objetivos. A ideia de que a pós-graduação e a pesquisa são duas faces da mesma moeda é tão obsoleta quanto o antigo mantra da “indissociabilidade do ensino e da pesquisa”, que diziam que existia nas universidades alemãs de 200 anos atrás, e que persiste em nossa legislação. É verdade que a maior parte da pesquisa brasileira de qualidade ainda ocorre nas principais universidades, mas tem pouco impacto, e a maioria dos cursos de pós-graduação hoje, sobretudo de mestrado, é de qualificação profissional.

Pelos dados mais recentes da PNAD contínua do IBGE, havia, em 2021, 1.315 mil estudantes em cursos de especialização “lato senso”, não regulados, sobretudo no setor privado; e 280 mil em cursos de mestrado e 175 mil em cursos de doutorado regulados pela CAPES, estes sobretudo no setor público. Como se pode ver no gráfico acima, a renda domiciliar per capita destes estudantes de pós-graduação é duas ou três vezes maior do que a dos estudantes dos cursos superiores, os quais, por sua vez, têm renda domiciliar duas vezes maiores do que a dos estudantes de nível médio. São estudantes de famílias de alta renda que podem precisar de financiamento, mas não precisam de bolsas para estudar nem da regulação que tolhe a autonomia das instituições de encontrar seus próprios caminhos. A pesquisa e a formação de alto nível precisam de apoio e incentivos, mas isso não se faz pela centralização burocrática e pulverização de recursos em dezenas de milhares de bolsas de estudo para todo tipo de cursos.

A nova equipe do MEC tem todas as condições para reconhecer esses problemas e buscar novos caminhos. Tomara que consiga.

As três agendas da transição

(Publicado em O Estado de São Paulo, 9 de dezembro de 2022)

Vendo as primeiras propostas dos grupos de trabalho da equipe de transição do governo Lula, é possível notar três agendas principais. A primeira, indispensável, é a de desfazer as ações de terra arrasada do bolsonarismo na saúde, educação, política ambiental, cultura, ciência, tecnologia e no estímulo ao ódio, ao armamentismo e à violência política. A segunda, preocupante, são as tentativas de fazer o relógio andar para trás, e retomar aos modos de trabalho e políticas desastrosas, econômicas e sociais, que levaram ao país à maior recessão de sua história, desencadeando uma crise política que resultou no desastre do bolsonarismo. E a terceira, que seria a mais importante, mas que até agora quase não aparece, é a de iniciar políticas públicas inovadoras, capazes de lidar de forma efetiva com as condições de pobreza e precariedade da população brasileira e fazer o país retomar um ritmo saudável de desenvolvimento econômico e social.

A boa notícia é que, nas últimas décadas, houve um esforço muito significativo de estudiosos e pesquisadores de diversas tendências para entender por que tantas políticas públicas bem-intencionadas redundaram em fracasso, e propor alternativas. Em 2011, antes que a crise que se armava se tornasse mais visível, ajudei a organizar, com Edmar Bacha, uma série de seminários sobre os temas de saúde pública, previdência, políticas de renda, educação e segurança pública, com a participação de cerca de 20 especialistas, publicados depois em um livro sobre Nova Agenda Social [1]que o Brasil deveria seguir. Não por acaso, o livro buscava retomar as questões do documento sobre Agenda Perdida de 2002[2], em que um grupo notável de economistas, entre os quais José Scheinkman, Marcos Lisboa, André Urani  e Ricardo Paes e Barros mapearam as políticas econômicas e sociais que poderiam permitir ao país retomar o crescimento e reduzir a desigualdade social. Mais recentemente, outro grupo de economistas preparou um projeto detalhado de um amplo Programa de Responsabilidade Social[3] para implementar políticas integradas de renda mínima, poupança e seguro familiar, reunindo os diversos programas sociais que hoje se superpõem. E, em um livro recente, Marcos Mendes reuniu 30 autores que descreveram em detalhe 25 políticas econômicas e sociais equivocadas dos últimos anos que contribuíram para empobrecer o Brasil[4]. Existem muitas outras boas propostas, nas áreas de energia, legislação trabalhista, administração pública, meio ambiente, etc. 

Na educação, ciência e tecnologia, áreas que conheço mais de perto, existe o paradoxo de que o Brasil, até Bolsonaro, multiplicou várias vezes os gastos públicos em todos os setores, sem que a produtividade melhorasse, ou os estudantes aprendessem mais, ou que a desigualdade de resultados diminuísse, ou que nosso sistema de pesquisa e inovação tornasse a economia mais competitiva. É preciso salvar a educação brasileira da asfixia, mas não será pela simples retomada dos gastos que ela vai melhorar. É necessário rever a fundo o que deu errado até aqui, encarar os fatos e tomar as decisões. Sabemos que nenhum sistema de educação pública é melhor do que a qualidade de seus professores, mas nunca tivemos uma política organizada e sistemática de seleção, formação e qualificação de nosso professorado. Estamos vivendo uma transição demográfica que faz com que tenhamos cada vez menos alunos, podendo pagar melhor a professores mais qualificados, e é preciso não perder esta oportunidade. No ensino superior, continuamos falando das maravilhas das políticas de cotas, ignorando que temos um sistema público elitista e disfuncional, cuja última reforma data de sessenta anos atrás. Ele só consegue atender a 25% dos estudantes, e funciona como uma grande peneira que atrai milhões para um exame nacional que seleciona menos de 300 mil estudantes por ano, dos quais a metade nunca completa seus estudos, deixando a grande maioria sem qualificação e à mercê de um mercado selvagem de credenciais de valor desconhecido.

O que explica a pouca presença destas propostas inovadoras na agenda política do novo governo é o modo de trabalho do Partido dos Trabalhadores, que, ao invés de 50 profissionais qualificados para administrar a transição, preferiu reunir centenas de representantes dos mais diversos setores que sejam simpáticos ao PT e tenham força e habilidade para se fazer presentes.  Organizar assembleias, criar direitos e distribuir benefícios são excelentes formas de obter apoio, mas não são o melhor caminho para implementar políticas corajosas que rompam com a rotina e contrariem grupos de interesse organizados.  Uma vez eleitos, governos devem identificar com clareza seus objetivos, buscar os melhores diagnósticos e as melhores pessoas e tomar decisões que atendam ao interesse geral da sociedade, ainda que contrariem determinados setores. A transição até aqui parece ainda fazer parte da campanha eleitoral. A partir de janeiro, vai ser preciso governar.


[1] Bacha, Edmar e Simon Schwartzman. 2011. Brasil: A Nova Agenda Social. Rio de Janeiro: Editora LTC, 2011.

[2] Lisboa, Marcos B, Aloísio Pessoa Araújo, Ricardo Paes de Barros, José Márcio Camargo, Leandro Piquet Carneiro, Reynaldo Fernandes, Pedro Cavalcanti Ferreira, Naércio Aquino Menezes-Filho, Pedro Olinto, Affonso Celso Pastore, Samuel de Abreu Pessoa, Armando Castelar Pinheiro, Maria Cristina Pinoti, José Alexandre Scheinkman, Rozane Bezerra Siqueira, Maria Cristina Trindade eAndré Urani. A  Agenda Perdida: Diagnósticos E Propostas Para a Retomada Do Crescimento Com Maior Justiça Social. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade – IETS, 2002.

[3] Botelho, Vinícius, Fernando Veloso, Marcos Mendes, Anaely Machado e Ana Paula Berçot, Programa de Responsabilidade Social –  Diagnóstico e Proposta,  São Paulo, Centro de Debate de Políticas Públicas, 2020 

[4] Mendes, Marcos, ed. 2022. Para não esquecer: Políticas Públicas que Empobrecem o Brasil. Rio de Janeiro: Autografia Edição e Comunicação Ltda.

Francisco Soares: diálogo para definir as novas políticas educacionais

A aliança que venceu as eleições é constituída basicamente de pessoas que aceitam a democracia como o valor essencial. Pelos mapas de votação, pode-se inferir que esse grupo é composto majoritariamente pelos pobres, com presença menor, mas significativa, de pessoas das classes médias e um número diminuto de ricos. Por motivos políticos, éticos, financeiros ou de mera sobrevivência, essas pessoas votaram em um projeto que assume compromissos claros com a democracia, com a manutenção de convivência pacífica entre os brasileiros e com a busca da prosperidade para todos. Entendem que isso, entretanto, não é possível se o Brasil mantiver os níveis atuais de desigualdade e exclusão.

Contudo, os que agora se encontram em um mesmo barco, têm posições diferentes sobre muitos assuntos. Um diálogo, que precisa começar logo, deve definir a direção a ser seguida. Se cada um remar em uma direção, agarrando-se às suas posições originais, o barco ficará parado e será afundado, logo ali na frente, pelas enormes dificuldades que os próximos anos trarão. Esse diálogo, idealmente, deve ocorrer em ambiente que aceite a expressão de dúvidas, no qual se busque ouvir e compreender, mais do que convencer, e que procure superar o “nós e eles”. Muito difícil construir um diálogo nestas bases, mas atalhos não ajudam. Por exemplo, os que querem distribuir renda devem falar com os que querem gerar renda, os que defendem direitos têm de entender os que defendem a melhoria da eficiência do Estado; os que se preocupam pela educação de determinados grupos populacionais precisam ouvir os que pensam e defendem políticas universais, os que enfatizam a necessidade de melhorias nos indicadores sociais precisam considerar os argumentos dos que se preocupam com as desigualdades regionais e entre grupos sociais.  

Restrinjo-me à educação básica, etapa sobre a qual posso falar com mais propriedade e legitimidade, que, entretanto, não inclui todas as questões educacionais que precisam ser discutidas. O debate deveria se iniciar buscando confrontar as diferentes interpretações do estabelecido no artigo 205 da Constituição. Esse artigo estabelece, na visão de muitos, mas não de todos, que a educação tem a missão de garantir, a todos, os aprendizados que permitam o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Aceitando-se que o desenvolvimento de aprendizados está no âmago do conceito de educação, o debate precisa convergir para formas concretas de como o preceito constitucional influenciará as rotinas das redes e escolas. Nesse sentido, deve tratar de três temas essenciais – o que ensinar? como ensinar? como avaliar? –, além do tema da gestão, responsável por ações que harmonizem em cada escola e rede as três dimensões do projeto pedagógico.

Na primeira dimensão – o que ensinar? –, é preciso definir o papel da BNCC nas políticas educacionais dos próximos anos. No caso do ensino fundamental, esse documento é visto por atores importantes do debate educacional como inconcluso, pois não houve esforço para capacitas as redes e escola para o desenvolvimento de tarefas que implementam concretamente os comandos pedagógicos da BNCC. No entanto, há amplo espaço para convergência, ao se trazer, para o centro do debate, a ideia de que os estudantes aprendem o que fazem. Como consequência, a política pública necessária seria definir, de forma participativa, mas fundada na ciência e em experiências bem-sucedidas nacionais e internacionais, quais são as tarefas que os estudantes devem ser capazes de fazer ao fim do ensino fundamental. Essas tarefas estariam à disposição dos docentes para uso no ensino e na avaliação.

Um tema especialmente premente é decidir o que fazer com os estudantes que, tendo ficado afastados por quase dois anos das escolas, não se alfabetizaram adequadamente. No momento, é dramática a situação no chão de muitas escolas, principalmente as que atendem a crianças cujas famílias não puderam lhes dar algum apoio durante a pandemia. A rotina pedagógica das escolas precisa ser adequada para as necessidades atuais dos estudantes. Isso exige um projeto nacional, para o que felizmente o Brasil possui expertise e o diálogo aqui defendido especificará.

No caso do ensino médio, são muito grandes as dificuldades para se chegar a uma convergência. A reforma começou com uma medida provisória, uma opção legal que alienou muitos atores. Além disso, a especificação do modelo se deu por meio de indicações ainda mais abstratas do que as usadas no ensino fundamental. Os conceitos de formação geral básica e itinerários não tiveram conceituação clara nos documentos legais, o que impactou enormemente as opções feitas pelos estados. No entanto, há currículos feitos e decisões tomadas, que precisam ser consideradas na política nacional para o ensino médio, especialmente no ENEM. Mesmo os que apontam as imperfeições do modelo tal como implementado devem perceber a importância da expansão do ensino técnico e a transformação do ensino médio em uma etapa de tempo integral, presentes na reforma.

O segundo tema – como ensinar? – só pode ser tratado no âmbito da escola. Aqui, o diálogo necessário é especialmente difícil, pois, na coalizão vencedora, há os que pensam a escola apenas a partir da posição dos docentes e os que pensam a escola como instrumento do Estado para a garantia do direito de aprender dos estudantes. Não são duas visões excludentes, mas, até aqui, as políticas apoiadas em uma visão têm tido pouca preocupação com a outra.  Outra versão desta dicotomia é a falsa divisão entre recursos/processos e resultados. Os recursos e processos que não levem a resultados aceitáveis para os estudantes são ruins; resultados inaceitáveis indicam problemas nos recursos e nos processos. Precisamos de uma visão compreensiva de recursos/processos e resultados. Uma proposta que circula na periferia do debate pode ser a chave para uma convergência. As escolas de educação básica poderiam se transformar em escolas de tempo integral para os docentes e para os estudantes. Essa é a forma de organização das escolas de educação básica em muitos países. Nesse contexto, seriam tratados os temas dos salários docentes, da formação continuada, do acompanhamento da permanência e do aprendizado dos estudantes e da melhoria da infraestrutura. Essa é, entretanto, uma transformação para uma década.

Para definir o terceiro tema – como avaliar? –, o debate deve enfrentar o atual domínio do uso das avaliações para produzir medidas de desempenho dos estudantes, minimizando a geração de informações sobre o aprendizado.  O sistema atual é capaz de indicar onde estão os problemas, mas não tem capacidade de indicar o que deve ser feito. Além disso, para muitos, o sistema atual usa formas de medida inadequadas, por ser baseado em expectativas de aprendizagem que exigem quase sempre processos cognitivos superficiais, deixando de verificar se os estudantes estão preparados para as tarefas que a vida lhes colocará e que exigem processos cognitivos mais complexos. Além de sua utilidade pedagógica, a avaliação gera dados que permitem monitorar os resultados da educação. As formas atuais de monitoramento não consideram, entretanto, os estudantes que estão fora da escola – exatamente os que mais precisam do sistema educacional –, nem as desigualdades entre grupos sociais. Felizmente existem dados que podem ser usados para mudar esse perfil, ainda que não haja um caminho único. Nesse caso, as bases para uma convergência estão estabelecidas.

Há outros temas nos quais as discordâncias serão possivelmente menores. Por exemplo, a necessidade de recuperar recursos que foram retirados da educação básica e o fim do atendimento clientelista, que nos últimos anos tornou-se padrão e, ainda, a volta de acesso amplo aos dados necessários para o monitoramento

A democracia abre espaços para a expressão de conflitos e cria ao mesmo tempo as condições para a sua resolução, através de suas instituições que devem promover diálogos com esse propósito. No entanto, nenhum grupo social conseguirá implantar completamente sua agenda. Neste ponto, é apropriado retomar a fala de Ulisses Guimarães na sua luta pela redemocratização, quando repetia com frequência Fernando Pessoa, dizendo “Navegar é preciso”; ou seja, cabe aos vencedores, neste momento, tomar as iniciativas para construir uma educação para todos que atenda às necessidades de um país que precisa ser próspero e mais justo. Isso precisa estar acima dos interesses e ideais pessoais.

A lição do Flamengo

(publicado em O Estado de São Paulo, 13 de maio de 2022)

O 7 x 1 derrubou o mito de que bastava o talento e a esperteza de alguns jogadores para sermos os melhores mundo, e o futebol brasileiro só começou a sair do buraco quando o Flamengo decidiu importar um técnico português. Está na hora de seguir o exemplo, e importar um técnico português para cuidar de nossa educação.

A Copa do Mundo da educação é o exame PISA, que avalia estudantes de 15 anos que estão completando a educação fundamental em dezenas de países em leitura, matemática e ciências. A nota média em cada uma das provas é 500, e o Brasil, desde que começou a participar, passou de 386 em leitura em 2000 a para 413 em 2018. Entre 2009 e 2018, os resultados praticamente não se alteraram em nenhuma das três áreas. Isto significa. que, em 2018, metade dos jovens que terminam o ensino médio não têm a capacidade mínima de leitura esperada (abaixo do nível 2), e só 2% demonstram alto desempenho (acima do nível 4). E isto apesar de que os investimentos públicos por aluno tivessem mais do que triplicado no período. 

Portugal começou um pouco melhor, ainda bem abaixo dos outros países europeus, mas em 2018 já havia se aproximado da média europeia. Em 2018, 20% dos estudantes portugueses ainda terminavam o ensino médio abaixo do mínimo esperado em leitura, mas a média geral tinha aumentado, e 7% demonstravam alto despenho.

Existe uma clara associação entre desempenho escolar e a condição social das famílias dos estudantes, e as primeiras políticas de Portugal, na gestão da Ministra Lurdes Rodrigues (2005 a 2009) para melhorar a qualidade de sua educação, consistiram em uma série de programas destinados a apoiar e melhorar o desempenho das escolas que atendem às populações de baixa renda. Depois, na gestão de Nuno Crato, entre 2011 e 2015, a ênfase foi estabelecer metas claras de desempenho em leitura, matemática e ciências, com mais horas de ensino nestas matérias, um exame nacional obrigatório de matemática e português ao final do ensino médio, reforço na formação de professores e maior autonomia para as escolas se responsabilizarem pelo cumprimento de suas metas. Houve também um investimento na diversificação do ensino médio, criando oportunidades adequadas de formação para estudantes com diferentes níveis de desempenho.

Para implantar estas politicas, foi necessário dissipar a neblina de ideias pedagógicas confusas e supostamente “progressistas” que vicejavam tanto em Portugal quanto no Brasil, e que ainda estão à vista para quem queira ler as bases nacionais curriculares brasileiras aprovadas em 2017. Em um pequeno livro publicado em 2006, O eduquês em discurso direto, o professor de matemática e depois Ministro da Educação Nuno Crato faz uma crítica contundente ao que ele denomina “pedagogia romântica e construtivista” que impede que as escolas se empenhem em sua tarefa central que é a formação dos alunos a partir da base indispensável da leitura e da matemática. O livro foi reeditado no Brasil em 2020 e é de leitura obrigatória para quem queira entender a confusão em que nos metemos.   

Não há como reproduzir os argumentos aqui, mas vale a pena reter os pontos principais das críticas que faz: ao “romantismo”, que remonta às ideias de Jean-Jacques Rousseau, de valorização do instintivo em detrimento da racionalidade; ao construtivismo, que supõe que os conhecimentos  devem ser “construídos” pelos estudantes, e não precisam ser ensinados pelos professores: ao abuso de conceitos pouco claros como “competências”, “interdisciplinaridade” e contextualização”, em detrimento da transmissão de conteúdos; e à “educação centrada no aluno”, que questiona a importância da educação organizada e sistemática, da disciplina e da avaliação regular dos resultados.

É certo que estes conceitos da “educação nova”, que na realidade datam do século 19, vieram em resposta à rigidez da educação tradicional, formal e burocrática, que sufoca os estudantes, os obrigam e memorizar informações sem sentido, não toma em conta as condições pessoais, sociais e culturais de suas famílias, e ignora as diferenças de classe que reproduz. Mas não tem que ser uma coisa ou outra, e não se pode, em nome do respeito aos alunos e suas circunstâncias, jogar fora as crianças com a água suja do banho.

Quando e se o técnico português chegar, seu primeiro desafio será deixar claro que quem manda no jogo, e no dinheiro, é ele, e não os cartolas da educação.  Feito isto, será preciso refazer a base nacional curricular, com prioridades claras de formação e expurgada do eduquês; cuidar da formação de professores, para que efetivamente aprendam a ensinar; fazer com que a pré-escola seja um espaço de aprendizagem, e não depósito de crianças; garantir que a alfabetização se complete aos 7 anos; retomar a reforma do ensino médio, deturpada de seus objetivos, com opções claras e apoio à formação técnico-profissional; e estabelecer um sistema efetivo de avaliação de resultados escolares, com provas obrigatórias ao final da educação básica, e um ENEM inteligível e compatível com um ensino médio diversificado.

De pastores e competências

(Uma versão resumida deste artigo foi publicada em O Estado de São Paulo, 8 de abril de 2021)

A revelação de que dois pastores amigos do presidente cobravam uns trocados para liberar recursos do Fundo Nacional de Educação, FNDE, tomou conta do noticiário durante dias e provocou a queda do Ministro.  Mas ninguém se deu ao trabalho de explicar o que é e como funciona este Fundo, que maneja 50 bilhões de reais ao ano. Uma outra notícia, a da aprovação, pelo Ministério, de uma desastrosa proposta de alteração do Exame Nacional do Ensino Médio, que pode afetar o futuro de milhões de jovens nos próximos anos, passou totalmente desapercebida. É assim que a educação brasileira não anda: gasta-se enorme energia discutindo os detalhes, e ignora-se as questões maiores.

O FNDE é uma autarquia que administra e repassa recursos obrigatórios para estados e municípios, como o Fundeb, o crédito educativo (FIES) e os recursos do salário educação, e executa um enorme varejo de programas, como os de livros didáticos, transporte escolar, dinheiro direto nas escolas, alimentação escolar, construção de prédios e outros. Vários bilhões são classificados como “transferências voluntárias”, e dependem, para ser liberados, do bom entendimento entre a direção do Fundo e os governadores e prefeitos. Não é à toa, e não é de hoje, que o Centrão sempre teve interesse em controlar o FNDE. Precisamos mesmo de uma autarquia como essa?  Não seria melhor, simplesmente, transferir os recursos da educação básica diretamente para as redes escolares carentes, em função de critérios de equidade e desempenho, ou inclui-los no FUNDEB, e tirá-los das mãos dos políticos? É isso que precisaria ser discutido.

Sobre o novo ENEM, o Conselho Nacional de Educação desenvolveu recentemente um projeto bastante razoável, alinhado com o que ocorre no resto do mundo, em que os alunos que se destinam a cursos superiores seriam avaliados conforme as grandes áreas de orientação profissional – tecnologia e engenharia, ciências biológicas e da saúde, profissões sociais, humanidades. Se bem executada, a proposta poderia ajudar a dar um rumo à reforma do ensino médio, que se arrasta há anos, já que as escolas seriam levadas a se organizar para preparar os estudantes para estes exames. No entanto, o Ministério da Educação preferiu adotar um projeto prolixo e inexequível que combina cinco “eixos estruturantes” (investigação científica, processos criativos, mediação e intervenção sociocultural, empreendedorismo) com quatro estranhos “itinerários formativos”:  linguagens, que vão do português à dança, passando por informática; ciências naturais, que vão da física à biologia molecular, mas excluem as engenharias; ciências sociais e humanas, que vão da sociologia à filosofia, mas excluem economia e direito; e matemática, que, Deus sabe porquê,  fica sozinha. Mais ainda, na proposta do MEC os estudantes teriam que escolher um bloco de dois itinerários, em quatro combinações das seis possíveis, o que forçaria as escolas de ensino médio a montar diferentes programas de estudo combinados. Teria sido uma oportunidade para o CNE publicar sua proposta, em um texto claro e simples, livre de jargão jurídico e pedagógico, firmando posição e abrindo um debate que seria de grande importância para quando tivermos um governo que queira fazer algo em relação a isso. Mas o CNE preferiu colocar sua proposta na gaveta e endossar a que veio da burocracia ministerial. Se é para fazer isto, para que mesmo serve este Conselho?

Tanto o parecer engavetado do CNE quanto o modelo aprovado pelo MEC preveem dois dias de prova, uma de tipo geral, para todos os candidatos, e outra específica, à escolha de cada um, em um conjunto de quatro. A ideia, nos dois casos, é que esta primeira prova avalie os conhecimentos ou competências próprias da parte geral do ensino médio, que, em princípio, seriam aquelas definidas pela base nacional curricular comum. No parecer do CNE havia a indicação de que esta prova deveria se aproximar do modelo do PISA, o exame da OECD utilizado internacionalmente para avaliar estudantes aos 15 anos, ao final do ensino fundamental, em competências gerais de leitura, matemática e ciências. Isto é muito diferente do que o MEC pretende fazer, que é avaliar todo o conteúdo desta parte geral. Na linguagem gongórica da apresentação divulgada pelo MEC, “as competências previstas na BNCC serão articuladas como um todo indissociável, fortalecendo as relações entre os saberes, conforme artigo 11 da Resolução do CNE nº 3, de 21 de dezembro de 2018, inseridas no contexto histórico, econômico, social, ambiental, cultural, do mundo do trabalho e da prática social, a partir de temas contemporâneos que afetam a vida humana em escala regional e global”. 

Seria muito importante ter, no Brasil, uma prova semelhante ao PISA, mas ao final a educação fundamental, que é quando todos os estudantes precisam consolidar os conhecimentos e competências básicas em linguagem, matemática e ciências. Seria uma adaptação do atual SAEB, com a diferença de que os resultados fariam parte do currículo dos estudantes. Isso funcionaria como um forte incentivo para melhorar a qualidade do ensino fundamental II, que é a parte mais precária da educação pública brasileira, e os resultados poderiam servir de instrumento para orientar os estudantes em suas opções para o ensino médio.

A ideia inicial da reforma do ensino médio foi que, como na prática muitos estudantes chegam ao ensino médio sem esta formação consolidada, então deveria haver ainda uma parte comum de formação que cumpriria este papel. Mas deveria ser uma parte pequena, porque, neste nível, esta formação deveria ser consolidada no contexto das diferentes áreas de estudo dos alunos.  No entanto, no processo de discussão do projeto de lei, o Congresso acabou inchando esta parte, que pode chegar a 60% do total das horas de estudo, mutilando assim o sentido original da reforma  

A proposta do CNE significaria, na prática, criar uma prova semelhante ao antigo ENEM, quando ele ainda não tinha sido transformado em um exame vestibular nacional, o que tem sua lógica, embora a rigor ela devesse ser feita ao final do ensino fundamental.  Já o que o MEC pretende fazer é totalmente sem sentido, a começar pelo fato de nenhuma resolução de ninguém consegue juntar todos os conhecimentos e competências em um “todo indissolúvel”, e não é possível medir esta grande quantidade de dimensões diferentes em uma mesma prova.  A técnica utilizada hoje para a elaboração destas provas, a chamada “teoria de resposta ao item”, supõe que as provas contenham vários itens, ou questões, com níveis diferentes de dificuldade, que estejam alinhadas a uma mesma dimensão, e sejam extraídos de uma grande coleção de itens equivalentes devidamente testados e ponderados que possam ser substituídos nas provas a cada ano, mantendo a comparabilidade dos resultados. Se eu quiser medir três coisas diferentes, como capacidade de leitura, raciocínio matemático e raciocínio científico, preciso de três provas distintas, que podem até ser feitas no mesmo dia, mas não há como ir muito além disto. Este mesmo problema afeta a proposta do MEC em relação às provas do segundo dia, que deveriam medir os cinco “eixos estruturantes”, cada um com duas ou três partes, chegando a um total de 11 dimensões em cada um dos quatro “itinerários formativos”.  O papel aceita tudo, mas no mundo real não há como desenvolver um banco de itens apropriado para medir tudo isto e espremer tudo em uma prova única.

Nem o parecer CNE nem proposta do Ministério da Educação avançam na questão da avaliação dos alunos que optarem pelo ensino médio técnico, ou profissional. Os dois tentaram uma porta dos fundos para trazer para o exame as pessoas que não se prepararam para ele. O CNE não propõe um exame separado para estes cursos, inclusive porque podem ser centenas, mas diz, enigmaticamente, que os alunos destes cursos “deverão prestar as mesmas provas dos egressos de itinerários acadêmicos, preferencialmente organizadas em áreas profissionais e carreiras que dialoguem com as formações dos itinerários profissionalizantes”. O Ministério da Educação propõe um sistema complicado e arbitrário de “pontos” que as universidades poderiam atribuir aos alunos dos cursos técnicos que tenham feito somente a prova do primeiro dia, ou não se saído bem na prova do segundo. Mas a grande maioria dos que fazem cursos técnicos de nível médio não pretende ir para a universidade, e sim obter uma qualificação valorizada no mercado de trabalho (os que pretendam e tenham condições podem sempre fazer o ENEM, independentemente das opções que tenham feito até ali). O que eles necessitam é de um sistema robusto de certificação de competências profissionais desenvolvido em parceria com o setor produtivo, que poderia começar com algumas profissões mais demandadas, e ir se ampliando progressivamente. O ensino técnico não pode ser um beco sem saída, e para isto é preciso ampliar a oferta de cursos superiores curtos (que no Brasil recebem o nome de “tecnológicos”) que possam dar sequência à formação profissional de nível médio para quem queira continuar sua formação. Mais amplamente, é necessário ampliar as possibilidades de educação pós-secundária para pessoas que venham de trajetórias mais profissionais e menos acadêmicas. Mas esta é uma questão que tem a ver o ensino superior brasileiro como um todo, que não pode ser resolvida no ENEM.

Há mais de dez anos que eu e outras poucas pessoas vimos escrevendo sobre os equívocos que começaram com a Base Nacional Comum Curricular, se desdobraram nas deformações introduzidas na reforma do ensino médio, e culminam agora nesta proposta do Novo Enem. O que defendemos é o que se faz em todo o mundo onde a educação funciona. Ninguém contesta, mas a burocracia pedagógica segue impávida em sua falta de rumo. 

A questão central é que a educação não pode ser pensada como o acúmulo de habilidades ou competências separadas, mas como a transmissão e desenvolvimento de culturas que combinam conteúdos e práticas de forma viva e significativa. Se eu juntar um sistema digestivo, um sistema respiratório, um cérebro etc. eu, no máximo, construiria um Frankenstein, nunca uma pessoa. Da mesma forma, não se aprende uma língua decorando regras gramaticais e taxonomias de estilos literários, mas interagindo, falando, lendo, escrevendo, e depois analisando; e não se formam bons profissionais com aulas de empreendorismo e processos criativos, mas com o desenvolvimento e apropriação integrados de conhecimentos, práticas e valores das diferentes áreas de atuação. O que se deve buscar na educação não é substituir o ensino burocrático e tradicional dos currículos de química, biologia, história e geografia por competências genéricas vazias, mas dar aos estudantes condições e oportunidades para absorver e fazer parte da cultura viva e rica de conteúdos que começa com a linguagem e o uso dos números e culmina nas diversas áreas de formação acadêmica e profissional. Para ser um físico, um economista, um advogado ou um programador, não basta acumular os conhecimentos e as técnicas próprias de cada campo, mas incorporar também um conjunto de maneiras de trabalhar, pensar e conviver que só se aprende em contato quem já atua nestes campos e serve de modelos e referências. Não é uma coisa rígida, novas culturas técnicas e profissionais estão sendo todo o tempo criadas, recombinadas e transformadas, mas sempre a partir de uma base de conhecimentos e práticas anteriores, e não de forma arbitrária, a partir de um catálogo de competências ou habilidades.

Parece óbvio, e a grande dúvida é por quê que tanta gente é contra, ou indiferente. Minha explicação é que manter e desenvolver a cultura viva é muito mais difícil do que persistir na rotina do ensino burocrático, que continua a mesma quando se pretende substituir as matérias enlatadas pelas “competências” da moda. Da mesma maneira que se prefere o varejo das verbas federais administradas pelo Centrão ao compromisso e responsabilidade com os resultados da educação.

Precisamos de um Sistema Nacional de Educação?

Simon Schwartzman e João Batista Araujo e Oliveira

(Publicado em Valor Econômico – Opinião, 30/06/2021)

O Brasil precisa, certamente, de  políticas públicas que melhorem a qualidade da educação,  reduzam as grandes desigualdades de oportunidade de estudar entre pessoas de diferentes condições sociais e regiões, e façam com que os recursos disponíveis, e os que possam ser acrescentados ao setor, sejam usados com a máxima eficiência possível. A questão é como fazer isto.  Existe a ideia generalizada, e equivocada, de que o principal instrumento para isto é o planejamento da educação, listando objetivos a serem alcançados e fixando-os em lei.  O Plano Nacional de Educação, aprovado por unanimidade no Congresso Nacional em 2014, tinha dez diretrizes e vinte grandes metas, divididas em 244 estratégias específicas. Como somos uma federação, o plano se desdobrou em 27 planos estaduais e 5.570 planos municipais, sem falar nos  “projetos políticopedagógicos” que cada uma das centenas de milhares de escolas ficou na obrigação de fazer. O resultado foi praticamente nulo. A mudança mais importante nos últimos anos foi uma melhoria modesta no desempenho dos estudantes nas séries iniciais, mas não há como atribuir este resultado ao plano ou planos. Apenas no Ceará se observa uma melhoria consistente, por razões que têm a ver com políticas consistentes e de longo prazo implantadas pelas lideranças locais. No restante do país as melhorias são pontuais e instáveis, tanto em escolas quanto em redes de ensino.  

Existem muitas razões pelas quais esse plano, como os anteriores, não funcionou. Não foi por acidente, nem pelas mudanças ocorridas no ambiente político e econômico do país, de resto inevitáveis em um período de 10 anos. A principal razão é que que políticas públicas complexas precisam ser implementadas de forma contínua e incremental, por ajustes contínuos, e não por planos detalhados fixados de antemão  (Lindblom, 2018). Mas existe a ideia, reiterada em documento recente do movimento Todos pela Educação, que o que faltou foi um Sistema Nacional de Educação (SNE), que precisaria ser urgentemente transformado em lei. Segundo este documento, os planos decenais são “a principal ferramenta de planejamento dos sistemas de ensino”, e caberia ao Sistema Nacional de Educação promover “a efetiva articulação entre os Planos Nacional, Estaduais e Municipais de Educação”,  o que permitiria, finalmente “a materialização do planejamento de longo prazo das políticas educacionais no País”. (Todos pela Educação, 2021) Chama a atenção o fato de que o documento simplesmente ignora o fracasso dos planejamentos até aqui.

O termo “sistema” costuma ser utilizado de muitas maneiras diferentes, e por isto mesmo não pode ser empregado sem se dizer exatamente do que se trata. Na sua forma mais simples, um sistema é um conjunto de partes relacionadas. A federação brasileira é um sistema, porque combina o governo federal, estados e municípios.  Um conjunto de leis, como a Consolidação das Leis do Trabalho, é um sistema de regras que estabelecem direitos, deveres, etc. Na sua forma mais complexa, um sistema é um conjunto de partes interconectadas por mecanismos ou processos que garantem sua permanência através do tempo e o diferenciam do meio externo. Existe um esforço de estabelecer uma “teoria geral de sistemas” fazendo uso de conceitos como homeostase, retroalimentação, input-output, adaptação, etc., que podem ser efetivamente utilizados na construção de sistemas mecânicos, eletrônicos e no estudo de sistemas biológicos ou ambientais. Um automóvel é um sistema mecânico, um programa de computador é um sistema eletrônico, um ser vivo é um sistema orgânico. É possível falar em “sistemas econômicos”, que descrevem os mecanismos de produção, alocação de recursos e distribuição de bens e serviços em determinado território, com seus diferentes mecanismos de regulação e instituições. Mas as sociedades são sistemas abertos, e por isto, quando usada para a implementação de políticas públicas, a linguagem de sistemas é sobretudo uma abordagem, uma perspectiva para entender dinâmicas complexas, e não uma teoria ou uma técnica propriamente ditas.

A perspectiva de sistemas tem sido defendida como uma alternativa mais adequada para a implementação de políticas complexas (“wicked problems”) do que abordagens mais tradicionais como os modelos lineares (em que uma agência central identifica as melhores práticas e trata de implementá-las) e os modelos cooperativos (em que se estabelecem fortes pactos de colaboração entre diferentes setores tanto na criação de conhecimentos como em sua implementação). Na perspectiva de sistemas, há um esforço para identificar e tomar em consideração interesses, valores e orientações divergentes, e as relações do sistema com o ambiente político, econômico e institucional mais amplo. Não existem regras fixas de como fazer isto, mas alguns instrumentos que são geralmente utilizados,  como o fortalecimento do papel das lideranças, a criação de redes de organizações que compartem objetivos convergentes e cujas lideranças estejam dispostas a colaborar, e formas de comunicação que não sejam unilaterais mas tomem em conta a pluralidade de interesses e orientações dos diferentes participantes. Estes sistemas de implementação de políticas não são criados e muito menos fixados por leis, mas desenvolvidos na prática por lideranças institucionais que precisam avaliar, tomar decisões e fazer ajustes ao longo do caminho,  e não, simplesmente, executar o que consta de uma lista fixa de metas (Best & Holmes, 2010; Haynes, Garvey, Davidson, & Milat, 2020; Head, 2019).  

A proposta do SNE preconizada pelo Todos Pela Educação, pretende, ao mesmo tempo, resolver alguns problemas formais de coordenação e divisão do trabalho entre os diversos níveis da Federação e implantar mecanismos de colaboração.  Mas a colaboração não pode ser estabelecida por lei, pois depende do exercício efetivo de lideranças capazes promovê-la.

Quais problemas formais de coordenação e divisão do trabalho em educação precisam ser estabelecidos por lei no Brasil? Já existe uma regra segundo a qual cabe ao governo federal, prioritariamente, a educação superior, aos governos estaduais o ensino médio, e aos municípios a educação fundamental e pré-escolar. A situação atual, em que muitas vezes estados e municípios mantêm redes escolares paralelas nas mesmas localidades, é disfuncional, e deveria ser evitada, mas a simples aprovação de uma lei proibindo esta superposição poderia criar  mais problemas do que benefícios, desmontando redes existentes sem a garantia de que seriam substituídas por um conjunto melhor. O governo federal tem responsabilidades gerais de coordenação, desenvolvendo sistemas de informação e de avaliação, estabelecendo padrões de qualidade, e de financiamento complementar.. Mas programas específicos como os de financiamento centralizado da formação de professores, merenda, transporte escolar e produção de livros didáticos deveriam ser reavaliados, em vista os riscos e ineficiências associadas à operação centralizada.  Estados e municípios também têm muitas destas atribuições,  mas a capacidade de implementação varia muito de lugar para lugar. Intervenções ou interferências do governo federal, se necessárias, possivelmente seriam mais eficazes se calibradas e ajustadas a problemas específicos ou à condição de alguns estados, e dificilmente o governo federal disporá de capacidade e meios para atender municípios de maneira específica.  

Isto significa que não é possível nem desejável estabelecer, por lei, uma divisão rígida de funções e atribuições entre governo federal,  estados e municípios, e sim orientações gerais, partindo do princípio que é sempre melhor fortalecer a autonomia local, e não o poder central, a não ser de forma subsidiária e quando indispensável. Na verdade, estas leis  já existem – até mais do que o que seria desejável ou necessário. Não há nada que o governo federal, estados ou municípios devam fazer para revolucionar a educação que  não consigam por falta de leis ou normas.  

O Brasil tem uma tradição perversa de legislações excessivas que, no caso da educação,  se multiplicam em uma infinidade de decretos, pareceres, regulamentos e orientações normativas que se sucedem e que deveriam ser reduzidas ao mínimo, pois  seu único efeito é sobrecarregar de trabalho as escolas e secretarias de educação. As escolas precisam de regras básicas para operar. A sociedade e as famílias precisam de instrumentos claros para fazer valer os seus direitos.  A operação das escolas privadas – isoladas ou pertencentes a redes de ensino –  deixa claro que elas podem funcionar sem necessidade de tutela adicional.   

A cooperação entre governos estaduais e municipais para a implementação de políticas de melhoria da qualidade na educação básica é desejável e pode dar bons resultados, como no caso muitas vezes citado do Estado do Ceará. Mas esta cooperação, para existir, não depende de legislação, e sim de lideranças motivadas e em condições de tomar iniciativa, que tem sido raras (Segatto & Abrucio, 2016).  O sistema proposto pelo Todos pela Educação tem como ideia central a noção de que a única maneira de implementar políticas públicas complexas é através de conselhos ou órgãos deliberativos em todas as instâncias, capazes de estabelecer pactos de cooperação que garantam os direitos e os interesses de todas as partes. As palavras “pactuação” e “pacto”, que aparecem no texto no texto mais de cem vezes. 

Esta ideia tem origem em um conceito idealizado de gestão democrática, ou  democracia participativa, desenvolvido em contraposição ao modelo mais tradicional de democracia representativa, que foi fortemente promovido pelos governos do Partido dos Trabalhadores, sobretudo nas áreas de educação e saúde. Foi uma experiência controversa que não teve continuidade e ainda precisaria ser mais bem analisada (Rhodes‐Purdy, 2017). O interesse por estas formas de deliberação e pactuação local se explica, certamente, pelos conhecidos problemas da democracia representativa brasileira, tanto no funcionamento do legislativo quanto do poder executivo, nos diferentes níveis de governo. Mas, ao lado do evidente benefício de ter a presença e a participação ativa de membros dos diversos setores envolvidos nas tomadas de decisão, que pode ser realizada de diferentes maneiras, o risco quase certo é a captura destes conselhos e fóruns por grupos mais organizados, fazendo com que os interesses corporativos pactuados acabem prevalecendo sobre o interesse geral, e a grande dificuldade de introduzir inovações disruptivas capazes de alterar as rotinas estabelecidas. Paradoxalmente,  ao lado da ênfase na gestão participativa, existe também a tendência a congelar em lei,  e se possível na Constituição, todos os direitos e interesses dos diferentes participantes, para evitar que eles deixem de ser executados pelos governantes do momento. A grande experiência de deliberação participativa e pactuação na educação brasileira foi a elaboração do Plano Nacional de Educação de 2014, que se transformou em uma agregação das demandas de todos os participantes, todas fixadas em lei, sem que trouxessem benefícios para a educação do país. O mesmo se pode dizer da experiência mais recente da Base Nacional Curricular Comum, também desenvolvida, supostamente, por mecanismo participativo, que levou a um documento prolixo e quase ininteligível de 600 páginas.

Medida por parâmetros internacionais como a avaliação do PISA, a qualidade da educação brasileira é muito baixa, mas pesquisas de opinião mostram que a população não tem esta percepção. Em uma pesquisa IBOPE Inteligência de 2008,  41% dos entrevistados classificaram a educação pública brasileira como ótima ou boa, 35% como regular, e só 9% diziam que o principal problema era a qualidade IBOPE Inteligência, 2008). Mais recentemente, uma pesquisa CNI-IPOPE de abril de 2019 mostrou que  “51% dos brasileiros aprovam as ações do governo em relação à educação”. Além dos problemas de qualidade da educação básica, existem graves problemas na forma em que o ensino superior é financiado, organizado e avaliado; no ensino médio, cuja reforma mais recente ainda não foi implementada; no ensino profissional de nível médio e superior, que não consegue se desenvolver; e sobretudo na falta de estratégias para atrair pessoas de talento e  qualificar os  professores para o magistério. No mundo inteiro, os sistemas educacionais se transformam continuamente, diante do impacto das novas tecnologias de informação e comunicação, das transformações do mercado de trabalho, das mudanças demográficas e dos novos conhecimentos produzidos por pesquisas sobre os processos educativos, e por isto mesmo não podem ser congelados em leis imutáveis.  Para sair do atual patamar de mediocridade, a educação brasileira precisa de lideranças que estejam em dia com estes desenvolvimentos, tenham legitimidade para introduzir as modificações que sejam necessárias, e que não estejam tolhidas pelo emaranhado normativo que hoje emperra as iniciativas, sobretudo no setor público.  

O ideal seria que esta liderança fosse exercida pelo governo federal, mas as experiências das últimas décadas não permitem nutrir muitas esperanças.   Algumas agências federais, como o INEP e a CAPES, em alguns períodos e em determinadas áreas, conseguiram exercer um papel significativo de liderança e inovação, mas mesmo estas sofrem com o duplo problema da instabilidade política da administração central e da rigidez burocrática do serviço público.  Por outro lado, existem muitas iniciativas locais, públicas e privadas, que acabam se perdendo pelo peso excessivo da máquina federal.  Mal comparando, a federação brasileira é muito mais próxima dos Estados Unidos, em que vitalidade do sistema educacional se dá sobretudo nos Estados e no setor privado, do que de países centralizados como a França, em que o governo central exerce um papel mais forte,  focado em poucas questões de natureza mais estratégica.

O atual marco federativo não impede um município ou rede estadual de ensino de promover uma revolução na educação. A contribuição do governo federal seria mais eficaz se limitada a questões que efetivamente poderiam ser mais bem exercidas por esse nível de governo – como a questão de currículos, avaliação e correção de inequidades via financiamento.  Para além disso, o governo federal poderia contribuir reduzindo o cipoal regulamentar e, eventualmente, estimulando inovações de eficácia comprovada mediante certames competitivos. Há muitos instrumentos mais eficazes para melhorar a educação do que criando um “Sistema Nacional”.


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