A liberdade individual e o comércio das armas

Eu pretendo votar “sim” no plebiscito de proibição das armas, mas temo que a campanha esteja indo mal, e que o “não” acabe ganhando.
A campanha pelo “sim” começou dizendo, de forma quase lírica, que ser pela proibição das armas era ser a favor da vida, e esta linha de defesa não foi muito longe. E as armas dos bandidos, quem tira? Porque que o governo, que não tira as armas dos bandidos, passa a responsabilidade para a população, e quer tirar as armas dos homens (e mulheres) de bem?
Os defensores das armas parece que estão sucedendo em colocar a questão em termos da defesa da liberdade e dos direitos individuais, contra a intervenção indevida do Estado em nossas vidas. Já li gente inteligente dizendo que proibir as armas é tão ruim quanto exigir o uso de cinto de segurança nos automóveis, ou restringir o uso de cigarros. O fato é que, graças a estas exigências e restrições, muitas pessoas estão vivendo mais e melhor, e o custo social de atendê-las e tratá-las tem diminuído. O mesmo vale para a obrigação de usar capacetes em canteiro de obras, ou dirigindo motocicletas: quem é contra, em nome da Liberdade? É absurdo colocar as coisas nestes termos. Nos Estados Unidos, a famosa American Riffle Association, de extrema direita, defende o direito da posse privada de armas em nome da necessidade de proteger os cidadãos contra o estado totalitário e interventor. É disso que se trata?
Eu sou a favor de legalizar o uso de drogas, não em nome das liberdades individuais, mas conhecendo as histórias desastrosas das tentativas de proibir o uso do álcool ou a prostituição. No caso das drogas, é bastante óbvio que a proibição, inclusive de uma droga bastante inócua como a maconha, gera toda uma indústria de repressão e contravenção que não existe em relação às bebidas alcoólicas, que são um problema muito mais sério, sem que o consumo de fato de reduza.
Toda a evidência empírica mostra que restringir o comércio de armas reduz as mortes violentas, tanto nos conflitos pessoais que se resolveriam de forma menos letal se as armas não estivessem disponíveis, quanto pela maior dificuldade que os criminosos teriam de obter armas para suas ações. Os princípios libertários dos fabricantes de armas, na campanha do “não”, têm a mesma credibilidade que os princípios libertários das fábricas de cigarro na defesa da liberdade de fumar.
Não é possível proibir que as pessoas fumem, mas é necessário restringir o uso e a propaganda do cigarro. O mesmo vale para as armas. Agora estamos começando a ouvir que a proibição que se pretende não é absoluta, que existe um Estatuto do Desarmamento bastante razoável já aprovado por lei, e que a realização do plebiscito não foi uma decisão “do governo”, mas uma vitória do lobby das armas no Congresso para postergar ou impedir vigência do Estatuto. Tomara que ainda dê tempo para que esta mensagem correta chegue à população.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

4 thoughts on “A liberdade individual e o comércio das armas”

  1. Sou apenas un estudante de economia uruguaio que mete a colher donde nao e llamado. 😉 Sigo sempre atentamente seus comentarios Simon, e acho eles muito fermentais.

    Eu sou liberal sim (nao no sentido Jacobino) , mas nao tenho certeza se votaria pelo nao (se puedese :)) Eu acho que o argumento de que “o estado nao pode nos negar un direito que nos ja temos” e muito debil. O estado pode ser tomado, dentro de uma optica liberal, como a instituicao creada, nao para otorgar direitos, mais sim pra reconocer aqueles que ja eram nossos antes da sua existensa. Aqui tem um problema, por antes das insituicoes nao existia sequer o direito a propiedade. Se alguem era mais forte que eu vinha e pegaba as coisas que eu tinha eu nada podia fazer, pelo tanto eu nao tinha direito a poseer nada. As armas e a sua utilizacao formavam parte de ese falso direito que muitos alegam que o estado nao pode “desonhecer”. (Mal se pode desconhecer algo que nao existia).

    Por outro lado, acho que utilizar como comparacao os cascos que utilizam os operarios e um argumento equivocado, ja que neste caso o origem nao foi, nao directamente, “proteger” o operario e sim limitar a responabilidade do patrao. E aunque o origem e o espiritu fosse proteger o operario e isso restringise a sua liberdade, nao seria um argumento pra nao dizer o mesmo de esta lei. Que uma lei anterior tenha errores nao quer dizer que se possa votar numa lei actual que tem os mesmos problemas e que nada se possa argumentar em contra da lei a ser tratada utilizando, para isto, os argumentos dos errores.
    Ademas a cualidade de vida nao pode ser utilizada como um argumento na hora de justificar as medidas deste tipo. Por exemplo se o dano que significa no meu bemestar a utlizao do cinturao de segurana e muito grande quizas minha cualidade de vida aumentase se eu asumisise os riskos e eu nao o utilizase.
    Incluso, acho que nao existe evidencia seria sobre a relacao entre armamento poseido pela populacao e violencia cometida. Suiza e o Canada sao exemplos de paises altamente armados e com muito pouca violencia generada pelas armas de fogo.

    Sobre a votacao e o referemdum, e muito previsivel que temas como este se termimen dislucidando pela via “popular”. Quando o tema em questao se distribui bimodal (ou voce esta a favor ou em contra, quase ninguem e indiferente ou tem outra alternativa) os politicos nao querem assumir o custo de escolher uma opcao, ya que isso equivale ganhar a antipatia do resto que pensa fierente.

    Desculpe o estrago que fiz falando este portugues meu que e muito mal e também nao me tomem a mal por ter opinado em uma questao que corresponde a voces.

    Julio G.

  2. Pedro, acho que voce está trazendo um angulo novo para o entendimento do problema. O fato é que a campanha do “sim” é muito inepta, e nao consegue tansmitir a idéia básica de que o plebiscito nao é sobre ser a favor ou contra as armas, e sim sobre apoiar ou nao o estatuto do desarmamento, que permite a posse e porte privado de armas, mas de uma forma muito mais controlada. O plebiscito acabou sendo uma armadilha contra o estatuto…

  3. Simon

    Partilho de preocupações suas sobre o lirismo de algumas argumentações a favor do “sim”, no qual votarei. Preocupa-me o voto das massas. Pelo que entendí da última pesquisa do IBOPE, as classes C e D formaram a base dos números que davam um percentual maior pelo “não”, enquanto de D para E volta a prevalecer o “sim”. Venho conversando com pessoas representativas dessas três classes, habitantes de periferias do Grande Recife. Já o fiz com dezenas. Algumas até fizeram, elas próprias “sondagem” para mim e depois voltaram a conversar a respeito. Tenho minha explicação nas seguintes hipóteses, todas oriundas de um povo simples, aterrorizado com a violência e o banditismo que mora lá, no meio deles.
    a) A raciocínio análitico é muito curto, e se restringe ao seguinte: “Todo mundo está assustado, e o Governo não dá conta mesmo da situação da violência. Como ele quer agora proibir quem quiser de se defender?” (as naïf as that…) Esse é o raciocínio da classe C e parte da D.
    b) Muita gente das classes D e, sobretudo, da classe E simplesmente não entende a relação entre a resposta padrão (“sim” e “não”) e a pergunta. Acha “confusa”. E então, como diz minha empregada doméstica (uma das que fez sondagem, a meu pedido, no bairro quase favela onde mora, na periferia do Grande Recife): “Muita gente diz que vai votar “não” porque não quer arma. Acha que o referendo é a favor ou contra a arma”. E completa: “Eu acho que se ganhar o porte de arma muita gente vai procurar comprar uma arma também, ter sua arma. Porque aí vai ser assim…” Ou seja, vota-se em uma solução, ao nível deles, para o problema da violência. A questão da compra de arma no comércio não é de forma alguma algo de seu campo de experiência. Ninguém tem dinheiro nem credenciais para ir a uma loja e comprar uma arma nova. Tudo é clandestino, um mercado nas mãos da criminalidade.

    Veja você, portanto, a que distância estamos do povão. O “não” é provável, penso, e, se ocorrer, vão sair dizendo por aí que o lobby da indústria e comércio de armas (sem dúvida atuante) soube convencer melhor a população, quando não me parece nada disso! Nas proporções que tomou a violência urbana hoje, na ignorância da população abaixo da linha de pobreza e, sobretudo, na incapacidade de o estado mostrar eficiência e inspirar confiança no cambate à criminalidade (que infesta até as forças policiais) estará, a meu ver a explicação mais provável.

    Como dizia um antigo e pernóstico professor meu de português no ginásio: “Que Deus se apiade de nossas almas…”

  4. Tá rolando uma discussão bastante quente sobre o desarmamento em http://www.ecoboteco.blogspot.com. Eu vou colocar e comentar aqui um trecho da coluna da Cora Rónai que me chamou atenção.

    “Entre outros motivos, vou votar NÃO porque, se o SIM for aprovado, mais uma parcela da população fatalmente será empurrada para a ilegalidade. Já estou vendo Mamãe, com sua cabeça branquinha, subindo o morro para conseguir munição — naturalmente a preços inflacionados — lá para o sítio. Comprado numa localidade pacífica e remota que os tempos transformaram em perímetro urbano. Urbano e perigoso.

    Como ela, este será o destino de alguns milhões de brasileiros de bem que, não recebendo do Estado a segurança a que teriam direito, foram forçados a ter armas em casa. Aliás, o Estado brasileiro é especialista em fazer do cidadão honesto um criminoso. Impostos extorsivos, leis de trânsito feitas sob medida para o achaque, taxas de importação inviáveis que nos atiram nos braços dos contrabandistas — tudo é estímulo pra desviar o cidadão do caminho do bem, que ninguém do governo sabe mais onde é. “

    Acho que a Cora tocou num ponto importante. No Brasil existe essa pretenção de que você corrige os problemas da sociedade botando leis, limitando etc. Existe esse foco em se controlar o processo para garantir o resultado final. O problema de se tentar controlar o processo é que isso evita que casos particulares possam ser contemplados de forma adequada. Idealmente você deveria colocar o controle, a punição, no resultado não no processo. No caso das armas, mais importante do que proibir é botar na cadeia quem der um tiro em outra pessoa sem ser por legítima defesa ou que deixe sua criança brincar com uma arma carregada. Senão você trata todo mundo que tem uma arma como um criminoso a priori e mesmo transformando-os em criminosos a posteriori. A mãe da Cora que comprava sua munição com um varejista estabelecido vai passar a dar dinheiro para uma organização criminosa que depois vai usar esse dilnheiro Deus sabe pra que.

    Acho que o que estou tentando chamar atenção é que essa história da proibição é um exemplo de uma prática generalizada, que aparece na regulação tributária que coloca impostos impagáveis meio que assumindo que muita gente não paga mesmo, na regulação eleitoral como a gente cansou de ver, na regulação de licitações etc. No final para conseguir fazer muita coisa funcionar você acaba tendo que burlar a lei e aí se você já começou burlando a lei vai levando até o final. E tudo isso num contexto onde o estado dá pouco em troca. Se a polícia em Nova Friburgo fizesse perícia em bala, a mãe da Cora não precisava ter uma arma. O estado deve ter o monopólio legítimo do uso da força, e por isso eu sou a priori a favor do desarmamento, mas o fato é que no Brasil o Estado não tem esse monopólio.

    Não vou votar nem sim nem não, porque ainda não tenho como votar daqui dos EUA. Sinceramente não sei o que votaria. Sempre defendi a proibição de armas, mas também acho que tá na hora de a gente parar de achar que lei resolve tudo no Brasil.

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