Três comentários sobre o povo nas ruas

No meio de tanto que tem sido dito sobre as manifestações populares dos últimos dias, três comentários me chamaram atenção, e expressam  meu entendimento do que está ocorrendo.

O primeiro foi da economista Eliana Cardoso, ao dizer  que, se Brasília quiser mesmo responder às demandas populares, poderia começar cortando imediatamente para vinte os quarenta ministérios de hoje existem, e reduzir em 10% os salários e benefícios dos nossos “representantes” . O segundo foi do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, afirmando que o voto das ruas não pode prevalecer sobre o voto das urnas. E o terceiro foi de Bolívar Lamounier, ao descrever o romantismo que parece prevalecer no que tem sido dito por muitos que se apresentam para falar em nomes dos manifestantes.

O comentário de Eliana me parece resumir o grande fosso que hoje separa grande parte da população, sobretudo nos grandes centros urbanos, que sofre com a inflação crescente e a má qualidade dos serviços públicos, não se beneficia diretamente dos programas sociais do governo e vê com desgosto o mercado persa em que transformou grande parte da política brasileira, em que os políticos negociam abertamente votos e apoios por cargos e os corruptos mais óbvios continuam impunes e poderosos como sempre. Se o espetáculo de Brasília é lamentável, o da maioria das capitais estaduais não é melhor. Enquanto via horrorizado, pela TV, como tentavam incendiar a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, me perguntava ao mesmo tempo quanta gente, no Estado, sabe mesmo para que ela serve.

Fernando Haddad tem toda razão ao dizer a vontade de milhões, expressa nas urnas, e que dá aos governantes um mandato para tomar decisões e implementar políticas, não pode ser atropelada pelo voto das ruas, expresso por porta-vozes cuja representatividade ninguém sabe exatamente qual é. Suas propostas sobre como lidar com os transportes públicos em São Paulo contribuíram para sua eleição, e seu papel é levar estas propostas à frente, e não mudar de rumo de repente. Mas o mandato político não pode ser somente uma formalidade legal, precisa ter legitimidade, as pessoas precisam acreditar que realmente os eleitos as representam, e os protestos de centenas de milhares de pessoas nas ruas nos últimos dias mostram a grande fragilidade desta representação.

É esta falta de legitimidade que cria o caldo de cultura para o florescimento das ideologias “românticas” que parecem dar o tom de grande parte das manifestações que se ouvem de muitos de seus supostos porta-vozes, e de que nos fala Bolivar Lamounier. “Romântico”, aqui, não tem ver com amores, paixões e ódios, mas com um tipo específico de ideologia política que sonha com um passado ou um futuro, ambos utópicos, em que as pessoas vivem em comunidade, tudo é decidido e feito em comum, em harmonia entre homens e mulheres e destes com a natureza. Comparado com o mundo perfeito dos românticos, o mundo real, de instituições, leis, recursos escassos, interesses contraditórios, tudo isto é inaceitável. Eleições, parlamentos, juízes, instituições, bancos centrais, nada disto serve para nada. “Que se vayan todos!” como se dizia na Argentina em um de seus momentos mais tristes. No mundo utópico não existem limitações de recursos, os serviços públicos são perfeitos e gratuitos, não se pagam impostos, e só precisamos trabalhar naquilo que gostamos. Alguns românticos, como os velhos hippies, decidem se recolher em comunidades isoladas de paz e amor, aonde os malefícios do mundo real não entram; outros, como os antigos anarquistas, partem para a destruição deste mundo imperfeito, contra o qual tudo vale, inclusive o terrorismo.

A grande vantagem das ideologias românticas é que elas são simples e fáceis de entender; a grande desvantagem é que elas são impossíveis. Não há exemplos de sociedades organizadas conforme as ideologias românticas (as utopias, por definição, não existem), mas não faltam exemplos de sociedades em que as instituições públicas acabaram sendo destruídas e substituídas por regimes populistas, autoritários, corruptos e ineficientes, que conseguem apoio de muitos e se apresentam como representantes dos romantismos mais puros. Mas existem também exemplos de sociedades que foram capazes de reformar suas instituições públicas, fazendo com que as pessoas se sintam representadas, tenham canais adequados de expressão,  e onde a apropriação deslavada dos recursos públicos pelos políticos não seja permitida nem tolerada.

Precisamos urgentemente de governabilidade e legitimidade, e, para mim, pelo menos, a principal lição do voto das ruas é a necessidade urgente de uma reforma política que consiga produzir isto, com as inevitáveis imperfeições do mundo real.

Internacionalização dos doutorados brasileiros

University World News, uma publicação internacional sobre o ensino superior, publicou uma série três matérias de  sobre a mobilidade internacional dos estudantes de doutorado, cujo número  mais recente pode ser visto aqui.  Esta é a nota que preparei sobre a situação brasileira:

Os doutorados no exterior aumentam e diminuem, mas a maioria retorna

Com 190 milhões de habitantes e cerca de 592 mil residentes estrangeiros, o Brasil é uma sociedade relativamente fechada, apesar de uma longa história de comércio de escravos africanos até meados do século 19 e grandes fluxos de imigrantes portugueses, italianos e japoneses, alemães até a Primeira Guerra Mundial. Hoje, a maioria dos imigrantes vêm de Portugal, Japão, Itália, Espanha e países fronteiriços como Paraguai, Bolívia, Argentina e Uruguai. Cerca de um quinto – 140 mil – têm diplomas de ensino superior,e são principalmente de Portugal, Itália, Argentina e Espanha, de acordo com dados do Censo Demográfico de 2010.

Brasil tem formado cerca de 12.000 doutores por ano em suas universidades, ccomparado com 4.000 em 1998, que principalmente no sector do ensino superior e da pesquisa (77%). A maioria dos títulos são obtidos nas principais universidades do Brasil, incluindo as universidades estaduais de São Paulo e Campinas e as universidades federais do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, de acordo com dados do Ministério da Ciência e Tecnologia. Entre 1996 e 2006, de acordo com estudo publicado pela CGEE (CGEE 2010), as instituições brasileiras formaram cerca de  50.000 doutores. Destes, apenas 680 foram de pessoas nascidas fora do país, sendo o maior número da Argentina (126), Portugal (80) e Chile (59).

Estudantes brasileiros no exterior

Há também um constante fluxo de brasileiros indo obter seus diplomas no exterior, principalmente com bolsas de agências nacionais. No início de 1990, as agências brasileiras apoiavam cerca de 2.000 estudantes de doutorado por ano no exterior. Na medida em que o número de programas de doutorado no país aumentou, o número de bolsas de doutorado para estudos no exterior caiu, mas outros tipos de bolsas de estudo foram introduzidas. Em 2009, havia 3.760 brasileiros com bolsas de estudo no exterior, 783 deles em programas de doutoramento, 1910 em programas “sanduíche” – estudantes matriculados em cursos de doutorado no Brasil vão para o exterior por um ano ou mais – e 1067 em atividades de pós-doutorado.

Em 2011, o governo brasileiro anunciou o programa “Ciência Sem Fronteiras”, que pretendia enviar 100 mil estudantes ao exterior em quatro anos. A maioria dessas bolsas é para períodos de curta duração para estudantes de graduação, mas cerca de 10 mil era para programas de doutoramento – 2500 por ano – o que significa um retorno aos níveis do início da década de 1990 (Castro, Barros, Ito-Adler, e Schwartzman 2012). O programa é limitado às ciências naturais e tecnologia, partindo do princípio de que as ciências sociais e humanas continuariam a receber apoio de fora do programa.

Dados recentes mostraram que o ‘Ciência sem Fronteiras’ já tinha fornecido 22.000 bolsas, das quais 5.000 para o estudo nos EUA, 3.000 em Portugal e 2.500 em Espanha. Do total, apenas 825 eram para programas de doutorado completo, e 2.300 para pós-doutorados.

Dados do Instituto de Educação Internacional nos Estados Unidos mostram que, em 2011-12, havia cerca de 9.000 estudantes brasileiros nos EUA, marcando um aumento pequeno, mas constante, mas ainda muito aquém do número de estudantes da China, Índia, Coréia e até mesmo do México.

A fuga de cérebros não tem sido um problema

Em contraste com a Índia, China e, na América Latina, México e Argentina, o Brasil não sofre de um fluxo regular de cidadãos educados para o exterior. No passado, a maioria dos brasileiros que iam ao exterior para estudos de doutoramento com bolsas mantinham seus empregos e voltavam para melhores posições em suas instituições de origem (Glaser e Habers 1978). Na década de 1980, quando a economia estagnou, milhares de brasileiros se mudaram para os Estados Unidos, Portugal e Japão – os dekaseguis – para trabalho temporário em atividades não-qualificadas, e muitos voltaram como a economia melhorou a partir de década de 1990 (Carvalho, 2004).

A estimativa é que agora existem cerca de 1,5 milhões de brasileiros no exterior. Hoje, quem vai para o exterior com bolsas do governo têm que concordar em voltar ou pagar suas bolsas, e acordos internacionais impedem que eles obtenham status de residente nos países do estudo. No entanto, não há nenhuma garantia de que eles vão encontrar trabalho adequado ao voltar, embora haja bolsas de estudo que podem ser concedidas para recém doutores dispostos a trabalhar em universidades públicas.

Survey of Earned DoctoratesOs dados mais recentes do da Academia Nacional de Ciências dos EUA mostra que, dos 149 novos doutores brasileiros com vistos temporários em os EUA, 42% pretendiam ficar nos – uma proporção menor do que a de outros países latino-americanos (Argentina, México, Venezuela e Colômbia), todos com cerca de 60%, ou para a Índia ou a China, com cerca de 80% com a intenção de ficar. Não é certo que aqueles que estão pretendem ficar exterior vão realmente fazê-lo, mas, em újltima análise, não são sanções ou multas, mas a criação de oportunidades adequadas de trabalho, que vão trazer os que estudam no exterior de volta para casa.

Referências

Carvalho, José Alberto Magno (2004) “Migrações Internacionais do Brasil da nas Ultimas Duas Décadas do Século XX:. Algumas facetas de um Processo Complexo amplamente Desconhecido” Migrações Internacionais ea Previdência social: 11.

Castro, Claudio De Moura, Hélio Barros, James Ito-Adler e Simon Schwartzman (2012), “Cem Mil Bolsistas no exterior.” Interesse Nacional: 25-36.

CGEE (2010) “Doutores 2010: Estudos da Demografia da base de tecnico-scientifica brasileira”. Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, em Brasília.

Glaser, William A e G Habers Christopher (1978), a fuga de cérebros: Emigração e Retorno; resultados de uma pesquisa comparativa multinacional UNITAR de profissionais de países em desenvolvimento que estudam no exterior. Oxford, New York: Pergamon Press

Romulo Pinheiro: universidades nacionais e regionais na Noruega

Rômulo Pinheiro é  professor e pesquisador de origem portuguesa que trabalha na Noruega, e tem se debruçado sobre o tema das universidades regionais.  Ele é autor, entre outras publicações, de  Universities and Regional Development – A Critical Assessment of Tensions and Contradictions, publicado em 2012.  Sobre a questão das universidades regionais  brasileiras que perdem ou reduzem seus vínculos locais quando nacionalizam seu público e seus temas de pesquisa, ele mostra que o problema não é só nosso:

O mesmo se tem passado na Noruega, onde estudantes de regiões mais ricas, e muitos de agregados familiares mais abastados (rendimento & educação), ocupam vagas, especialmente na área de medicina (pois existem poucas vagas a nível nacional), nas universidades de caráter mais regional; embora estas não sejam de caráter local -pois essas não tem cursos de medicina – mas nacional e global. Um problema que tem emergindo refere-se ao fato de muitos desses estudantes, especialmente médicos, por uma razão ou outra (falta de trabalho ou necessidade de ir para hospitais mais centrais onde se pratica as áreas mais prestigiadas da profissão), acabam por abandonar as regiões onde estudaram. Por exemplo, em Tromso, no norte da Noruega, somente cerca 10% dos médicos acabam por ficar na região, especialmente os que originam de outras áreas do pais – Bergen, Oslo, Trondheim, etc. O reverso também existe, i.e. estudantes das áreas mais periféricas que estudam nas universidades mas centrais, e muitos nunca voltam aos seus locais de origem.

Em relação ao balanço entre as funções locais e nacionais/globais, o debate continua, e recentemente publiquei um artigo no Tertiary Education & Management no contexto do sul da Noruega, e os dilemas da universidade local. Existe um consenso de que as universidades, especialmente aquelas de caráter compreensivo e com uma cultura institucionalizada de pesquisa, simultaneamente tem um papel local/regional, nacional e global. Como essas funções são abordadas em pratica difere de contexto para contexto. Por exemplo, em Tromsø, onde fiz trabalho de campo recentemente, existem 3 tipos de acadêmicos e grupos de pesquisa: os de caráter mais locais (‘localists’), envolvidos em atividades de caráter mais local; os ‘globalists’, que estão mais virados para as atividades de excelência de caráter internacional; e o um terceiro grupo, que eu refiro como “entrepeneurs” que estabelecem ligações (links) entre os aspetos locais (e.g. características regionais) e globais (scientific excellence). Um exemplo é a medicina comunitária, onde estes grupos de pesquisa especializaram-se em áreas de interesse local (e.g. doenças cardiovasculares) e, no processo, desenvolveram competências únicas que ajudam a universidade a projetar-se internacionalmente. Em termos de “enrollments”, algumas universidades, como Tromso, estabeleceram cotas em áreas estratégicas (e.g. educação, odontologia, etc.), reservadas para estudantes locais, no entuito de contribuir para o desenvolvimento regional. Muitas universidades de caráter mais regional tem como objetivo recrutar cerca de 70% dos seus estudantes localmente (da região), mas devido a pressões demográficas (população de estudantes a declinar depois de 2015, todas as regiões fora de Oslo), muitas estão ativas no recrutamento de estudantes fora da região, incluindo os internacionais (mestrado e doutorado).

Transferência de renda: O fim da pobreza?

Convite-Transferência-de-Renda-no-BrasilEste é o título do novo livro de Sônia Rocha, que conta a história das políticas de transferência de renda no Brasil, desde  a aposentadoria rural nos anos 70 e 80 até o Bolsa Família atual, passando pelas experiências do Bolsa Escola em diferentes estados nos anos 90. Ao final, Sonia pergunta se, de fato, as transferências de renda significam o fim da pobreza no Brasil.

O lançamento do livro está marcado para o dia 6 de junho às 19 hs na Livraria da Travessa, Rua Visconde de Pirajá 572, Ipanema, Rio de Janeiro.

Universidades: nacionais, regionais?

regiao
Dados do Censo do Ensino Superior 2011

Dados publicados recentemente pelo Ministério da Educação, e analisados em matéria do jornal O Globo, mostraram que São Paulo é o Estado que mais envia candidatos selecionados pelo sistema unificado de seleção (SISU, baseado no ENEM) para outras regiões do país.  Os dados mostram também que a área de medicina é a aquela em que mais estudantes migram de estado, 46%, o triplo da média geral (O Globo  17 e  25/5/2013).

 Interpretei isto como podendo significar que, ao invés de facilitar a mobilidade de estudantes de regiões mais pobres para outras mais desenvolvidas, tornando o ensino superior mais equânime deste ponto de vista, o SISU poderia estar tendo o efeito oposto, ao permitir que estudantes do Estado mais rico ocupassem as vagas nas universidades regionais, reduzindo assim as oportunidades de estudo da população local.

Esta conjectura levantou uma série de questões que precisam ser mais aprofundadas, algumas das quais estão analisadas em texto disponível  aqui.

Primeiro, qual é ou deveria a função das universidades públicas e, mais especificamente, das universidades federais?  Elas devem ser entendidas como instituições nacionais ou mesmo globais, abertas a estudantes de todas as origens e desenvolvendo trabalhos de pesquisa de valor universal, e neste sentido sua localização geográfica não seria relevante? Ou elas deveriam ser entendidas como instituições voltadas, pelo menos em parte, a atender às demandas de acesso à educação da população local, assim como realizar pesquisas e atividade de extensão de relevância também local ou regional?

A análise sugere que, embora o sistema de seleção unificada do SISU possa estar contribuindo para nacionalizar em certa medida as universidades federais, isto não chega a alterar o fato de que as instituições de ensino superior brasileiras sejam predominantemente locais, do ponto de vista da mobilidade dos estudantes, que é o que estes dados permitem ver. Existem diferenças em relação aos estados menores e de fronteira, que recebem e enviam mais estudantes para outras partes, e também por áreas de conhecimento, com destaque para a área de medicina e odontologia, que tende a operar em um marco mais nacional na seleção dos estudantes, em prejuízo dos estudantes de origem local.

Seriam necessários dados sobre pesquisas, atividades de extensão e emprego dos alunos formados para saber se, além de atender predominantemente à população local, as instituições de ensino superior estão atendendo de outras formas as necessidades e temas regionais, e contribuindo ou não para fixar os estudantes nos locais em que se formam. É possível supor que, além do SISU, outros mecanismos estão atuando para nacionalizar as instituições de ensino superior, incluindo as avaliações do ENADE, idênticas para todo o país, e, no setor privado, a crescente integração das instituições em conglomerados que buscam padronizar os cursos que proporcionam e, assim, ganhar economias de escala.

É um processo que ocorreu também no setor das comunicações, em que os jornais, rádios e estações de TV se integraram a redes nacionais, assim como na área financeira, com os grandes bancos nacionais que absorveram e substituíram os bancos locais, e assim por diante. É um processo inevitável, mas que não elimina o fato de que as pessoas, na sua grande maioria, vivem e permanecem nos locais em que nascem. A pergunta que fica é se, neste processo, a vida local não se esvazia, a capacidade de lidar com as questões do quotidiano, que são também em grande parte locais, se reduz, e se as instituições de ensino superior não deveriam ter alguma responsabilidade em lidar com isto.

ENEM – SISU: Democratização do Ensino Superior?

 

cotas
Globo Educação, 17/5/2013

Uma das principais justificativas para transformar o antigo ENEM em exame nacional de acesso ao ensino superior foi que, ao eliminar ou reduzir a importância dos vestibulares isolados, o acesso ao ensino superior ficaria mais democratizado, já que os estudantes das regiões mais pobres poderiam agora entrar nas melhores universidades nas regiões mais ricas.

No entanto, os dados das matrículas do SISU, publicados pelo Ministério da Educação e objeto de matéria d e hoje, 17 de maio de 2013, no O Globo Educação,  mostram que pode estar ocorrendo exatamente o oposto: não são os estudantes dos Estados mais pobres que estão chegando aos mais ricos, e sim os do Estado mais rico, São Paulo, que estão ocupando as vagas nos estados que antes eram ocupadas pela população local.

A explicação é simples.  Como o Estado mais populoso e rico do país,  São Paulo forma um grande número de jovens com boa qualificação, mas que apesar disto não conseguem vagas nas universidades públicas do Estado, que são relativamente poucas em relação ao tamanho da população. Eles podem, no entanto, competir com vantagem pelas vagas das universidades de outros Estados, ocupando assim o lugar de estudantes locais. Com isto, as universidades federais nos demais estados podem estar recebendo alunos mais qualificados, mas, ao mesmo tempo, reduzindo seu papel de instituições locais ou regionais, que deveriam, em principio, atender com prioridade à população dos lugares em que estão instaladas.

São Paulo precisa aumentar a oferta de educação superior para sua população, mas isto dificilmente alteraria esta tendência. Em termos gerais, a existência de um exame nacional unificado favorece os estudantes mais qualificados, que normalmente vêm de famílias de regiões mais ricas e níveis sociais mais altos, e que por isto passam para seus filhos um capital cultural e oportunidades de estudo  menos acessíveis a famílias mais pobres e em regiões também mais pobres. É desejável que algumas instituições universitárias trabalhem com critérios estritos de mérito para selecionar seus estudantes, venham de onde vier, a exemplo do ITA e, em certa medida, da UNICAMP, que sempre buscaram recrutar seus alunos em todo o país.  Mas o sistema de ensino superior como um todo precisa considerar também a diversidade regional e social da população do país e criar oportunidades diferenciadas para os diferentes setores. A lei de cotas adotada pelo governo federal não é a melhor maneira de fazer isto, mas não deixa de ser um reconhecimento desta necessidade.  O ENEM e o SISU trabalham em sentido contrário.

 

 

Ensino, Formação Profissional e a Questão da Mão de Obra


estrab
Por solicitação do Instituto Teotônio Vilela, o IETS realizou um estudo, coordenado por mim e Cláudio de Moura Castro, sobre o tema do ensino médio e da formação profissional, visto tanto do ponto de vista do sistema educativo quanto do mercado de trabalho, cujo sumário pode ser lido abaixo. O texto completo está disponível aqui.

Sumário

O Brasil entra em 2013 com desemprego extremamente baixo, mas com uma economia que parece ter exaurido o dinamismo da década anterior. A explicação para este aparente paradoxo é que a maioria dos empregos que existem são no setor de serviços e de baixa qualificação, e os estudiosos que têm analisado a evolução da economia brasileira nos últimos coincidem em que a produtividade do trabalhador brasileiro é muito baixa, e praticamente não tem aumentado nos últimos anos.

Existem evidências de que falta mão de obra qualificada em vários setores da economia, sobretudo em atividades de qualificação técnica intermediária, gerando uma demanda que está sendo atendida, em parte, pelo setor privado. No entanto, o maior problema é a possibilidade de que a economia brasileira esteja se acomodando, de maneira geral, a um padrão de baixa qualificação de mão de obra e baixa produtividade que não tem como se resolver pela simples pressão das demandas do mercado de trabalho sobre o sistema educativo.

A experiência de países que conseguiram sair do círculo vicioso de baixa produtividade e baixa qualificação é que isto só pode ser atingido por políticas educacionais que lidem de forma decisiva com os problemas da qualidade da educação, que começam no nível pré-escolar e vão até o nível do ensino superior e da pós-graduação. Existe hoje, no Brasil, consciência crescente desta necessidade, e progressos importantes podem ser observados em vários setores. No entanto, existe um gargalo especialmente severo no ensino médio, que afeta tanto a qualidade da educação brasileira de uma maneira geral quanto, especificamente, o desenvolvimento de um sistema moderno e eficiente de formação profissional. Este gargalo pode ser observado por diferentes indicadores, como as taxas de abandono no ensino médio e os níveis extremamente baixos de desempenho dos estudantes que se formam. O outro indicador preocupante é o número extremamente baixo de estudantes que optam por obter uma qualificação profissional de nível médio.

Além dos problemas gerais da educação brasileira, como a má qualificação de professores, as limitações de recursos e a desorganização e burocratização da maioria as redes de ensino estaduais e municipais, o ensino médio padece de um problema específico, que é o formato curricular que exige que todos os alunos estudem um número excessivo de matérias sem possibilidades de escolha, e que não contempla a possibilidade de que os estudantes possam optar por uma formação de tipo mais profissional, a não ser cumprindo também todo o currículo médio tradicional. O Brasil é possivelmente o único país no mundo que que não permite escolhas na formação de nível médio, e que requer dos que buscam uma formação profissional um currículo escolar mais extenso do que o dos que seguem o curso tradicional. O Exame Nacional de Ensino Médio, ENEM, como exame único, reforça esta rigidez do ensino médio brasileiro.

O Brasil tem uma longa tradição de ensino profissional, sobretudo através do SENAI, e também nas escolas técnicas e profissionais privadas e públicas, entre estas, sobretudo, os antigos Centros Federais de Educação Tecnológica e o sistema Paula Souza do Estado de São Paulo. O Brasil também tem tido também muitas experiências fracassadas de formação profissional, tentados seja por iniciativa do Ministério da Educação ou por iniciativa do Ministério do Trabalho. A experiência brasileira, corroborada pela experiência internacional, é que a formação profissional de qualidade ocorre quando é feita em parceria com o setor produtivo, e corre o risco de se perder quando feita de forma isolada.

Nos últimos anos o Governo Federal tem desenvolvido um ambicioso programa de formação profissional, o PRONATEC, que tem como principal base de apoio os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia que resultaram da elevação dos antigos CEFETs ao nível universitário. O curto tempo de existência deste programa não permite que ele seja avaliado, mas os dados financeiros e as linhas de atuação anunciadas mostram que se trata, ao mesmo tempo, de um programa extremamente ambicioso e sujeito a dificuldades futuras. Estas dificuldades podem decorrer de diversos fatores, incluindo a barreira que o atual formato do ensino médio impõe à formação profissional neste nível: o crescimento precipitado da oferta de cursos sem um diagnóstico adequado das experiências passadas; a falta de uma avaliação empírica das necessidades do mercado de trabalho; a falta de uma articulação mais sistemática do ensino profissional com o setor produtivo, com exceção do SENAI; e sua dependência em relação à rede dos novos Institutos Federais cuja qualidade e aptidão para as novas tarefas que lhes estão sendo atribuídas podem não ser adequados.

A principal recomendação que decorre desta análise é que o ensino médio brasileiro precisa ser reformulado urgentemente, abrindo espaço para que os alunos possam fazer escolhas e optar pela formação profissional, sem a obrigação de cumprir com todos os requisitos curriculares atualmente em vigor. Isto vai requerer, também, que o ENEM atual seja revisto, abrindo espaço para um leque amplo de certificações de conclusão da educação média, incluindo as de tipo profissional. Isto é necessário não somente para atender às demandas do mercado de trabalho, como também para proporcionar possibilidades reais e valiosas de estudo para muitos jovens que hoje se vêm alijados do sistema educativo.

A segunda recomendação é que a necessária expansão do ensino técnico e profissional seja feita tomando em conta e apoiando as experiências já existentes no país, incluindo a do Centro Paula Souza e de outros estados, assim como a do setor privado. A terceira é que o setor produtivo seja estimulado a participar mais diretamente do ensino técnico e profissional em todos os níveis, proporcionando treinamentos e estágios, ajudando a desenhar programas de estudo, proporcionando equipamentos e disponibilizando seus técnicos para que atuem como professores, orientadores e monitores em suas áreas de experiência profissional.

Como garantir que todos os alunos brasileiros tenham um bom professor todos os dias na sala de aula?

Transcrevo o anúncio de um edital de apoio à pesquisas em educação  da Fundação Lemman e Itaú BBA:

A Fundação Lemann e o Itaú BBA estão lançando novo edital de pesquisas para fomentar estudos de qualidade, que possam embasar políticas e projetos em educação. Os projetos submetidos devem responder ou trazer elementos que ajudem a responder a pergunta: “Como garantir que todos os alunos brasileiros tenham um bom professor todos os dias na sala de aula?“.

A iniciativa do edital nasce da constatação de que embora sejam feitos cada vez mais estudos sobre políticas educacionais, são raras as pesquisas que se destacam tanto pelo uso de metodologias rigorosas como pela compreensão aprofundada da realidade educacional. Também é possível identificar espaço para pesquisas mais inovadoras, que discutam desafios já conhecidos da educação sob novas perspectivas.

Nesse contexto, os projetos financiados pelo Edital deverão combinar alto rigor metodológico e aplicabilidade prática, resultando em pesquisas com conclusões e orientações de política que se atentem à realidade institucional, aos desafios, riscos e oportunidades de implementação.

Para selecionar as pesquisas e definir as diretrizes do edital, a Fundação Lemann e o Itaú BBA montaram uma Comissão Julgadora de altíssimo nível, composto por profissionais de perfis diversos: David Plank, Joane Vilela, Marcos Rangel, Paula Louzano, Priscila Cruz, Regina Scarpa, Reynaldo Fernandes e Ruben Klein.

A Fundação Lemann e o Itaú BBA disponibilizarão o valor total de R$1 milhão para financiar de dois a cinco projetos, a depender das propostas recebidas, de acordo com os requisitos e critérios previstos do edital. Leia o regulamento completo do edital aqui .

Para orientar os projetos, são sugeridas as seguintes linhas de pesquisa:

•             Carreira Docente: legislação, formação inicial, formação em serviço, formação continuada, estágio probatório, certificação, remuneração, absenteísmo docente e rotatividade;

•             Condições de trabalho e clima escolar: carga horária docente, absenteísmo discente, violência nas escolas, funções do professor substituto, gestão escolar, inter-relações entre a equipe escolar, currículo, soluções inovadoras que auxiliam o professor em sala de aula;

•             Seleção e alocação de professores: cursos de formação, requisitos para a docência, concursos e seleção de docentes, alocação de professores e atratividade da carreira;

•             Qualidade do professor: prática docente, didáticas específicas, avaliação docente, acompanhamento externo, acompanhamento da aprendizagem do aluno.

Usos e abusos da avaliação educacional no Brasil

balancaProfessores sempre avaliaram seus alunos, mas a avaliação sistemática e externa da educação começou no Brasil nos anos 70, com a pós-graduação, se expandiu para o ensino superior e a educação básica nos anos 90 com o SAEB, o “Provão”, e hoje está generalizada, com a Prova Brasil, o IDEB, o novo ENEM, o ENADE e os rankings dos cursos superiores e universidades feitos pelo Ministério da Educação. Além disto, o Brasil participa de avaliações internacionais, como o PISA, e muitos estados desenvolveram seus sistemas próprios de avaliação, como o SAERJ, SARESP e SIMAVE, no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Finalmente, existe a Provinha Brasil, de alfabetização, e para 2013 está anunciada a primeira avaliação nacional de ciências, para o ensino médio.

Será que estamos fazendo as coisas direito, e não estamos indo além do razoável com tudo isto? O tema das avaliações externas sempre foi controverso. Para mim, não se trata de ser contra ou a favor das avaliações, mas saber em que mundo preferimos viver – no mundo sem avaliações, em que não existem padrões e não sabemos o que está acontecendo nem para aonde estamos indo, ou no mundo das avaliações, indicadores e estatísticas, sujeitas a erros de medida, incentivos equivocados e provas mal feitas. Dada a má qualidade da educação brasileira, eu sempre preferi e ainda prefiro o mundo das avaliações, sem com isto ignorar que elas trazem problemas.

A convite da Sociedade de Educação Internacional Comparada, preparei uma apresentação sobre o tema aonde trato de fazer um balanço desta experiência brasileira, que está disponível  en inglês aqui.

Ação afirmativa no ensino superior brasileiro: a vez de São Paulo

the_world_view_blog_header

O site “Inside Higher Education – The World View”  publicou uma nota minha sobre o novo sistema de cotas das universidades paulistas, cuja versão em português reproduzo abaixo:

Em agosto de 2012 a Presidente Dilma Rousseff assinou a lei que torna obrigatório, para todas as universidades federais, reservar 50% de suas vagas em cada curso para estudantes oriundos de escolas públicas, conforme seu nível de renda e perfil étnico (pretos, pardos e indígenas), dando um prazo de quatro anos para que a regra seja implementada. Não querendo ficar para trás, o governador de São Paulo, Geraldo Alkimin, anunciou o projeto de ação afirmativa para as universidades estaduais paulistas, com o nome de “inclusão social com mérito”. Diferentemente do governo federal, que implantou a nova legislação sem considerar a má qualidade da educação recebida pela grande maioria dos estudantes oriundos de escolas públicas, o projeto paulista traz duas inovações importantes: primeiro, os estudantes que optarem por entrar pelo sistema de cotas deverão passar por um curso preparatório de dois anos, depois do qual poderão escolher os cursos superiores conforme seu desempenho nesta etapa; e segundo, estes estudantes receberão uma bolsa de estudos no valor de meio salário mínimo.

Alguns dados são necessários para entender estas políticas. Os dados mais recentes indicam haver no Brasil 6.7 milhões de estudantes de nível superior, dos quais um milhão em universidades federais e 620 mil em universidades estaduais (dos quais 163 mil nas estaduais paulistas). A grande maioria, cerca de 5 milhões, ou 73%, estudam em instituições privadas, em sua maior parte organizadas como empresas voltadas para o lucro. O acesso às instituições públicas é feito por sistemas competitivos (vestibulares ou o ENEM), que em geral selecionam estudante vindos de escolas privadas que tendem a ser melhores do que as públicas mas inacessíveis para quem não pode pagar. 87% dos estudantes de ensino médio estão em escolas públicas, com uma renda familiar que é um terço da dos estudantes em escolas particulares.

Faz sentido, portanto, buscar maneiras de dar mais oportunidades de educação superior para estudantes vindos de escolas públicas e de famílias mais pobres, enquanto a qualidade das escolas públicas não melhorar substancialmente (o critério de “raça” ou etnia, fortemente correlacionado com o de renda, é um outro assunto que não discutirei aqui). Como estes estudantes tendem a ser menos qualificados, no entanto, não é nada claro que eles terão condições de chegar aos mesmos níveis de formação do que seus colegas vindos das escolas particulares, sobretudo nas carreiras mais exigentes. Existe portanto o grande risco de que estes estudantes sejam eliminados ao longo dos cursos ou que as universidades terminem por baixar suas exigências e padrões de qualidade para não reconhecer o fracasso das políticas afirmativas.

A desigualdade em São Paulo, o Estado mais rico do Brasil, é ainda maior do que no país como um todo, com somente 10% de seus estudantes de nível superior tendo acesso às três universidades estaduais, USP, UNICAMP e UNESP, que estão por outro entre as melhores e mais bem financiadas do país. A solução proposta pelo governo do Estado, em consulta com as Universidades, supõe que os dois anos de estudos preparatórios em um “college” semelhante aos ingleses e americanos seriam suficientes para trazer estes estudantes ao mesmo nível de seus colegas vindos das escolas particulares, e, se isto não for possível, eles teriam ainda a possibilidade de continuar estudando nos cursos de formação tecnológica do sistema Paula Souza, que é o mais desenvolvido do Brasil. O desafio é que a educação brasileira está toda organizada no modelo tradicional europeu em que os estudantes ingressam diretamente nos cursos profissionais, e as várias tentativas já feitas de introduzir “ciclos básicos” de um ou dois anos nunca deram certo, sobretudo porque eles significam adiar a entrada nos cursos universitários, e seu conteúdo, de tipo geral, não desperta maior interesse entre os estudantes. No caso de São Paulo, a proposta do “college” está baseada em uma experiência promissora em pequena escala que vem sendo feita pela Universidade de Campinas, mas o projeto do Estado seria fazer um programa em grande escala baseado fortemente em tecnologias de ensino à distância e o uso de tecnologias de informação e comunicação, sobre as quais não existe muita experiência, para que metade dos alunos das universidades estaduais possam vir por esta rota no prazo de cinco anos.

Uma das virtudes do sistema de “colleges”, sobretudo nos Estados Unidos, é que ele oferece aos estudantes um leque amplo de opções, que inclui desde os que querem se preparar para carreiras técnico-científicas mais exigentes até os que se dirigem para profissões mais práticas e com menor exigência de qualificação. No caso de São Paulo, pelo menos pelo que foi publicado até agora, seria o oposto: todos os estudantes seguiriam o mesmo programa, e a opção de seguir um curso mais técnico e aplicado no sistema Paula Souza ficaria reservada para os que não conseguissem bons resultados no primeiro ano. Esta não seria uma boa receita para um sistema de educação superior que pretenda se expandir, se diversificar e se tornar menos excludente.

WP Twitter Auto Publish Powered By : XYZScripts.com
Wordpress Social Share Plugin powered by Ultimatelysocial