A educação superior brasileira

Entrevista a Jorge Priori, publicada em Monitor Mercantil. 21 de outubro de 2022, p. 7 (revisada)

Conversamos sobre a educação superior brasileira com Simon Schwartzman, sociólogo e membro da Academia Brasileira de Ciências.

Como o senhor avalia a educação superior brasileira?

A educação superior brasileira expandiu muito rapidamente nos últimos 20 anos, mas essa expansão trouxe muitos problemas. Eu costumo dizer que essa expansão foi feita em cima de um modelo das profissões liberais. Todos querem um diploma prestigioso e que dê rendimentos tão bons quanto os recebidos pelos médicos e advogados. Essa é uma espécie de aspiração da população brasileira. O sistema público oferece isso em certa medida, e o sistema privado promete oferecer. O sistema expandiu, mas, proporcionalmente, poucas pessoas conseguem esse objetivo. E os que conseguem geralmente vêm de famílias mais ricas e mais educadas, que conseguem dar aos filhos uma educação básica em escolas privadas de melhor qualidade.

Criou-se um sistema que é extremamente custoso para o setor público, que financia a parte pública, e para a população, que, além dos impostos, paga as anuidades do setor privado quando não tem acesso ao sistema gratuito, mas que em grande parte não consegue resultados e fica pelo caminho. O Brasil não soube como lidar com as questões da diversificação e da ampliação da educação superior, que é um processo que ocorreu no mundo inteiro.

Quando o Brasil reorganizou o seu sistema de educação superior com a reforma universitária de 1968, inspirada no sistema norteamericano, a proporção de brasileiros que chegavam ao nível superior era de até 3%. Mas Brasil não copiou o sistema americano como um todo, com sua ampla base de colleges municipais, estaduais e privados, mas só o das universidades de elite de pesquisa e pós-graduação. Quando veio a demanda por mais educação, o setor público não conseguiu responder, e o setor privado abriu e respondeu de maneira bastante caótica.

Assim, nós temos uma situação de uma grande expansão que acabou criando um grande um custo e uma grande frustração.

Na sua opinião, quais são os principais problemas que afligem a educação superior brasileira?

O grande problema é o fato de que, apesar de ter crescido muito, ela não dá a qualificação que se espera para muitas pessoas. Do ponto de vista do setor público, nós temos uma questão complicada já que ele ficou limitado no seu crescimento por causa do modelo que foi adotado na década de 1960, com professores em tempo integral, fazendo pesquisa, cursos de pós-graduação, e alunos passando o dia todo na faculdade. Esse modelo não conseguiu se expandir. Algumas universidades se aproximam mais disso, mas a maioria das outras têm os mesmos custos, como se fossem de pós-graduação e pesquisa, mas não funcionam dessa maneira.

Se você olhar a pesquisa e a pós-graduação brasileira, ela está, relativamente, concentrada em poucas instituições. O custo das universidades públicas é muito alto, basicamente, por causa do regime de tempo integral da quase totalidade dos professores e do regime de serviço público. O resultado disso é que hoje em dia cerca de 25% dos alunos estão no setor público e 75% no sistema privado, que é um sistema desigual que em grande parte dá uma formação muito básica e muito simples.

O sistema privado cresceu em grande parte com subsídios públicos pesados através do sistema de crédito educativo, que foi à falência por causa do aumento descontrolado dos custos e inadimplência. Isso levou a uma situação de crise em que praticamente todo o sistema privado foi para o ensino a distância, que em princípio pode ser uma boa modalidade em alguns casos, mas que na maior parte é uma formação muito precária.

Nós temos um grande funil. Em 2021, 4 milhões de pessoas se candidataram ao Enem (Exame Nacional do Ensino Médio; em 2014, esse número havia sido de 8,7 milhões). Para que tenhamos uma ideia, o número de vagas oferecidas pelo setor público no ano passado foi de 262 mil (SiSU, Sistema de Seleção Unificada).

Grande parte dos que entram no Enem não consegue chegar às universidades públicas. Quando conseguem, uma pequena porcentagem entra nos cursos que gostaria, das universidades mais prestigiadas e carreiras que dão melhor resultado, mas a maior parte fica em cursos de menor qualificação e de menor qualidade. Ou então optam pelo setor privado, que aceita todos que conseguem pagar ou obter uma bolsa ou crédito educativo. Dos que que se matriculam em instituições públicas, metade abandona antes de terminar; no setor privado, o abandono chega a 60% ou mais. E, dos que terminam, metade não consegue uma profissão equivalente ao que se espera do nível superior.

O sistema inchou, cresceu muito rapidamente e criou custos de diferentes lados, gerando oportunidades, mas também muita frustração.

Da mesma forma que existem as soluções mais complexas, existem as soluções mais simples, de fácil implementação e que geram efeitos positivos. Na sua visão, existem soluções mais simples que poderiam ser implementadas para resolver parte dos problemas da educação superior brasileira?

Considerando o setor público, um ponto muito importante é o tema da diferenciação. Em todo o mundo, quando o sistema de ensino superior se expande, ele cria diferentes modalidades de formação. Além dos cursos tradicionais como Medicina e Direito, você tem cursos vocacionais curtos, com duração de 3 anos, mais diretamente direcionados ao mercado de trabalho. O Brasil quase não criou essa modalidade, e, praticamente só no setor privado.

Quando todas as pessoas buscam o mesmo tipo de qualificação, que são os bacharelados tradicionais, muitas delas acabam ficando pelo caminho. É necessário oferecer uma variedade diferente de cursos para as pessoas que chegam ao nível superior com diferentes níveis de qualificação.

Não há sentido em você tratar todas as universidades federais como se elas fossem idênticas, com as mesmas carreiras de professores, quando algumas delas têm uma orientação de pesquisa, pós-graduação e de ensino de alto nível, enquanto outras estão dando uma qualificação mais geral e mais básica, que também pode ser importante, mas que é muito diferente. Hoje em dia, mais de 90% dos orçamentos das universidades federais são gastos com pessoal. Isso não precisaria ser assim.

Outra questão, e que também tem a ver com o sistema privado, é o sistema de avaliação. O Brasil criou um sistema de avaliação que começou com o Provão nos anos 90 e depois passou para o Sinaes (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior), já no Governo Lula, em 2004. Trata-se de um sistema obsoleto que avalia as instituições como se elas fossem destinadas à formação de alto nível de pesquisa, quando elas não são assim. É muito claro que esse sistema não funciona e não toma em consideração a diversificação do sistema.

Eu participei da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior, que no papel deveria ter sido responsável por rever esse sistema. O governo brasileiro, já no final da presidência de Michel Temer, contratou uma missão da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para trazer pontos de vista internacionais, comparar o Sinaes com outros países e propor a sua revisão. O trabalho ficou pronto no final do governo Temer, mas o governo Bolsonaro não teve o menor interesse pelo assunto.

Por fim, existe a questão do financiamento do ensino superior privado e público. Nos dois lados, o estudante que precisa estudar, mas que não tem condições econômicas, precisa ser assistido, se possível com bolsa ou com algum tipo de isenção ou crédito educativo. Além disso, não faz sentido nós termos 25% dos estudantes no sistema público, que é totalmente gratuito, e 75% no sistema privado, onde ele tem que pagar. A questão da gratuidade total no sistema público tem que ser revista.

Os problemas da educação superior pública são os mesmos da educação superior privada?

Não, eles são diferentes. No caso da educação superior pública, há uma questão de custos. Na minha visão, com o volume de dinheiro destinado ao setor seria possível atender mais gente, de melhor forma e com um público diferenciado.

Eu também diria que o sistema público tem problemas em duas pontas. Numa delas, nós temos as instituições de elite, que formam pessoas muito bem qualificadas e que contribuem para colocar o país na sociedade global do conhecimento. Aí o sistema superior brasileiro sofre porque é muito amarrado. As melhores universidades públicas no Brasil não têm liberdade para contratar um professor pagando um salário equivalente ao mercado internacional. Por exemplo, elas não podem trazer um cientista de ponta para coordenar um novo departamento. Os salários são rígidos e uniformes, havendo um sistema burocrático de concurso. As universidades de melhor qualidade não têm condições de competir por talento, o que seria o seu principal acervo e recurso.

Na outra ponta, nós temos a educação universitária de massa, onde você tem que dar uma qualificação prática mas não necessariamente de nível mais alto. O setor público não oferece essa modalidade de formação, pois continua tentando imitar o modelo da pesquisa, que na verdade não se aplica a 70%, 80% das universidades públicas.

Ele está amarrado a uma concepção tradicional da década de 1960, sem que haja um esforço para repensá-lo de forma a que tenha muito mais flexibilidade institucional para trabalhar com modalidades diferentes para atender diferentes públicos. Toda essa discussão de como você moderniza, atualiza e torna mais eficiente o setor público não foi feita.

Com relação ao setor privado, hoje em dia você já tem algumas instituições, que são poucas, que já começam a competir com o setor público em termos de qualidade. Por exemplo, se você quiser fazer uma excelente pós-graduação em Economia, você não vai para uma universidade pública, e sim para uma instituição como a FGV, o Insper em São Paulo ou a PUC no Rio. Estão entrando instituições que estão trazendo pessoas de melhor qualidade, pagando salários para professores de nível internacional e recrutando de maneira mais qualificada os estudantes. Essa competição não se dá em áreas mais pesadas de tecnologia, mas isso está começando a mudar, nas áreas de saúde e engenharia.

Contudo, isso é um setor pequeno. Grande parte do setor privado faz uma educação de massa para alunos, em geral, mais velhos, na casa dos 30, 40 anos, que não tiveram condições de se formar e que ficam buscando um diploma. As instituições privadas oferecem uma educação barata, à distância, mas com um controle de qualidade muito débil. Ninguém sabe exatamente o que os alunos estão recebendo. Eles recebem um diploma na esperança de que ele lhes dê uma excelente posição no mercado de trabalho, mas, cada vez mais, isso é difícil.

Seria necessário ter um sistema de avaliação e de acompanhamento para dar mais informações para a sociedade sobre o que está sendo oferecido, de forma a que as pessoas não caiam numa espécie de armadilha: entrar num curso; passar 3, 4 anos; pagar como puder aquilo que é cobrado, e no final ficar com um papel que não vale nada.

Além do mais, hoje em dia existe uma discussão internacional sobre novos tipos de conhecimentos, demandados pelas novas tecnologias. Fala-se muito das microcredenciais. Em vez de você dar um título depois de 3 ou 4 anos, você pode dar uma formação especializada de 4 meses, por exemplo, numa nova maneira de lidar com o computador, ou seja, um novo tipo de competência que o mercado de trabalho, que está em movimento, solicita. Isso praticamente não avançou no Brasil.

A discussão no Brasil sobre nível superior ainda está muita presa numa temática antiga. Só se fala acesso e financiamento, havendo uma espécie de briga entre o setor público e privado, que na verdade não faz muito sentido. Os dois são muito importantes, não sendo possível dispensar um ou outro.

Entra eleição e sai eleição, esse tema é tratado com um festival de platitudes e lugares-comuns, sendo a principal delas “mais recursos”. Por que a classe política não trata esse tema com objetividade?

Existem muitos interesses criados nos dois lados. O setor público fica se sentindo muito ameaçado, principalmente agora, já que o governo Bolsonaro é muito hostil à educação em geral, e à educação superior em particular. Ele nunca teve uma política, a não ser uma política de hostilidade para o setor como um todo. Há uma situação compreensível de se querer defender as instituições e as pessoas que estão lá, que têm salários e que vivem disso.

Por outro lado, essa postura defensiva dificulta uma discussão mais aprofundada de uma reforma que precisaria ser feita. Seria necessário ter um governo que ao mesmo tempo tivesse consciência da importância da educação superior e dos recursos para viabilizá-la, mas que não se fique simplesmente financiando o sistema que está aí da mesma maneira.

É preciso mudar o regime jurídico para dar mais autonomia e responsabilidade às instituições; diversificá-las para que elas possam fazer coisas distintas; mudar o processo gerencial para ter um sistema mais adequado de uso de recursos, e mudar o sistema de avaliação do setor público e privado, já que o Sinaes só se aplica na prática ao setor privado, com o setor público ficando de fora, pois não há nenhuma consequência ou efeito sobre ele.

Existe uma série de reformas necessárias para trazer o sistema para o nível do que acontece nos países desenvolvidos onde o sistema de educação superior se massificou, é grande, é caro e onde existe uma convivência do setor público com o privado.

Os trens de Mussolini

(Publicado em O Estado de São Paulo, 14 de outubro de 2022)

Me lembro como se fosse hoje. Eu era aluno em um conhecido colégio em Belo Horizonte, e entre uma aula e outra, em uma roda de conversa, o professor de filosofia, ex-integralista e tomista, falava entusiasmado sobre as vantagens do fascismo. Eu ouvia espantado, e disse que não poderia concordar com aquilo, que eu vinha de uma família judia, muitos meus familiares haviam sido assassinados nos campos de concentração.  “Ah, entendo”, disse o professor, “então você tem um problema pessoal com isso”.

Eram os anos da guerra fria, em que os Estados Unidos e a União Soviética e seus seguidores disputavam não somente a hegemonia internacional, mas também o lugar de quem melhor encarnava os valores dos que haviam se unido para conter o monstro do nazifascismo, valores estes proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Os Estados Unidos e a Europa Ocidental empunhavam as bandeiras da democracia, liberdades individuais e direito à propriedade, e a União Soviética, as bandeiras do fim da pobreza, desigualdade e exploração. 

Dos dois lados, havia os que acreditavam firmemente em suas bandeiras, e apontavam o dedo para as violações cotidianas destes direitos pelo outro. Mas havia também os que viam como, em ambos, a lógica do poder e de defesa dos interesses estabelecidos muitas vezes se sobrepunha ao discurso humanitário. Na União Soviética, os últimos vestígios da democracia participativa haviam sido enterrados pelos expurgos de Stalin, e nos Estados Unidos os princípios da liberdade e igualdade eram violados diariamente pela persistência da desigualdade social e do racismo. Internacionalmente, a União Soviética impunha com mão de ferro seu poder sobre a Europa Oriental, e os Estados Unidos, em nome da luta contra o comunismo e para defender os interesses de suas companhias, apoiavam as ditaduras latino-americanas e os remanescentes do colonialismo na África e Ásia, muitas vezes de forma sangrenta, como no Vietnam.

Para quem pensava que o mais importante era a promessa dos direitos sociais, as restrições à democracia e aos direitos humanos nos regimes socialistas eram vistas como “erros”, pequenos pecados que poderiam ser eventualmente corrigidos, ou inevitáveis na luta contra os inimigos e por um mundo melhor. Do outro lado, para quem valorizava sobretudo a liberdade econômica e os direitos civis, a pobreza e o apoio a ditaduras totalitárias eram também descontados como problemas circunstanciais, que eventualmente seriam resolvidos em um regime de liberdade política e econômica.  E havia os que concluíam que, no fundo, todos eram cínicos, o único que realmente importava era a disputa pelo poder político e econômico, e que os discursos dos direitos humanos não passavam de um amontoado vazio de palavras.

Esta disputa entre valores, e de regimes políticos que dão mais ênfase a umas partes do que outras dos direitos humanos, marcou o mundo ao longo do século 20, e só foi interrompida pela novidade do nazifascismo, que foi além do cinismo, e passou a incorporar como valores a guerra, a xenofobia, a violência, o racismo e a discriminação.  Era uma doutrina que se dizia se inspirar em supostas tradições, identidades e sentimentos mais profundos dos povos, muitas vezes de cunho religioso, diante dos quais os discursos sobre valores e direitos, e a própria racionalidade abstrata das ciências sociais e naturais, cultivadas, segundo eles, por elites cosmopolitas, perdiam sentido. 

A história mostrou o horror e o desastre criados por esta doutrina, e os importantes resultados trazidos pela liberdade política e econômica e pelos movimentos em prol dos direitos sociais. É inegável que hoje, em todo o mundo e no agregado, existe menos pobreza, miséria e opressão do que cem anos atrás, e que estamos muito mais próximos dos ideais dos direitos humanos do que jamais tivemos.  Mas a distância ainda é grande, mais para determinados grupos e povos do que para outros, e o próprio progresso gera expectativas que acabam se transformando em frustração e ressentimento.

É esse o caldo de cultura para o ressurgimento das doutrinas fascistas e autoritárias, de valorização da violência, xenofobia e ataque às instituições da democracia liberal. Mussolini, afinal, fez os trens italianos andarem no horário, e o nazismo tirou a Alemanha da depressão dos tempos da República de Weimar. Será que isto não é mais importante, como pensava meu professor de filosofia, do que a retórica da ética e dos direitos?

É assim também que raciocinam muitos dos que hoje, no Brasil, não dão maior importância ao crescimento da extrema direita, e a alimentam como a maneira mais prática de conseguir determinados resultados. Mas o que está principalmente em disputa não é saber quem é mais ou menos corrupto, ou quem dá mais prioridade à liberdade econômica ou aos direitos sociais, e sim quem defende ou quem trabalha para romper o consenso sobre os direitos humanos e o regime democrático que, bem ou mal, nos trouxeram até aqui. Eu tenho, sim, um problema pessoal com isto, e espero que não seja só meu.

A onda bolsonarista

Como tanta gente, acompanhei surpreso, na noite de 2 de outubro, os números da onda bolsonarista, inesperada não só para os institutos de pesquisa quanto para a grande maioria dos analistas da política brasileira.

O que explica estes resultados, a força ideológica do bolsonarismo, expressão de um conservadorismo persistente que existiria na sociedade brasileira, ou a incapacidade do PT e do ex-presidente Lula de reduzir a rejeição provocada pelos escândalos de corrupção e pela crise econômica que resultou de seus governos? 

O bolsonarismo se alimenta de duas fontes, a agenda ideológica e pseudo moralista de Deus, Pátria e Família, e a descrença generalizada nas instituições políticas do país, além do uso abusivo dos recursos públicos da presidência. Para ver a força da agenda ideológica, um caminho é examinar seu apoio nos meios religiosos.  A pesquisa Latinbarometro, realizada anualmente com uma amostra de cerca de mil pessoas no Brasil, mostrava que, em 2020, a avaliação média do governo de Bolsonaro era 4,5 em uma escala de 0 a 10, ou seja, negativa. Ela subia para 5,1 entre pessoas que se diziam religiosas praticantes, cerca de um terço da amostra, e para 6 ou 7 em alguns grupos específicos, como pentecostais e evangélicos, que são, no entanto, uma minoria. A aprovação subia entre pessoas que se consideram mais ricas, mas não entre as pessoas mais educadas. Se a agenda moralista está associada à religiosidade, pode-se concluir que ela tem um peso, mas relativamente menor.  

Mais importante do que a agenda ideológica é a descrença na democracia e nas instituições. Em 2020, 46% dos brasileiros acreditavam que a democracia é o melhor governo, 13% diziam que um governo autoritário pode ser melhor em certas circunstâncias, e 40% diziam que, para elas, tanto fazia um governo democrático ou não. Em comparação, em 2010 o apoio à democracia era de 61%, e a indiferença era de 17%. Esta deterioração na crença da democracia é maior entre os bolsonaristas, 20% dos quais acreditavam que um governo autoritário poderia ser melhor. Mas a indiferença em relação ao regime democrático era grande entre todos, sobretudo entre os mais pobres, em que chegava próximo a 50%. Isto significa que o argumento de que é preciso defender a democracia contra o bolsonarismo não é suficiente para reduzir seu apoio em grande parte da população. É esta descrença generalizada na democracia e nas instituições, me parece, que explica tantos votos dados a candidatos ao legislativo cujo único mérito foi fazer coro à retórica autoritária do presidente.

A deterioração da crença na democracia se deve, sem dúvida, à crise que levou ao fim dos governos do PT e abriu espaço para a agenda antidemocrática e reacionária de Bolsonaro. O apoio atual de Lula se deve, em parte, à memória de sua imagem e dos benefícios que distribuiu nos primeiros anos de seus governos, sobretudo entre a população mais pobre dos estados do Nordeste, mas ele não conseguiu convencer a muitos mais de que agora seria diferente, e que a agenda democrática tem agora, para ele, a importância que não tinha antes.

Será que, de fato, ele mudou, ou tem condições de mudar? No início da campanha, o apoio de Geraldo Alckmin e uma primeira entrevista reconhecendo a corrupção passada e tentando se distanciar das políticas econômicas desastrosas do governo Dilma parecia indicar uma mudança. Mas o que se viu, sobretudo no último debate, foi o velho Lula, sozinho, tentando fugir das acusações de corrupção e repetindo os números do que havia conseguido nos primeiros anos de vacas gordas de seu governo.  Terminada a apuração, Lula se dirigiu a um palanque na Avenida Paulista com a velha guarda de sempre, inclusive a companheira Dilma, para comemorar a vitória apertada, como se a votação tivesse sido a prova de que nada haviam feito de errado antes. Mas também reconheceu que precisa agora dizer com clareza o que pretende fazer e com quem pretende trabalhar, para manter sua vantagem eleitoral e, sobretudo, não levar o país a uma nova crise, devolvendo o Brasil ao bolsonarismo em 2026.  

Alguns dias antes do primeiro turno, eu havia circulado uma nota defendendo o voto útil a favor de Lula.  Dizia que a grande novidade desta eleição era a candidatura de Simone Tebet, que não nutria nenhum entusiasmo pela candidatura de Lula, mas que levava a sério as repetidas ameaças golpistas do presidente. Era importante decidir logo no primeiro turno, para garantir a democracia; e que depois teríamos que lidar com o que fosse preciso, de forma civilizada.   Acho que consegui convencer a alguns. Outros objetaram que as ameaças golpistas não eram críveis e que seria melhor para o país ter um segundo turno, em que Lula fosse levado a dizer a que veio e negociar um acordo amplo para conseguir vencer, do que dar-lhe a carta branca de uma vitória no primeiro. O voto útil veio, mas a favor de Bolsonaro.Agora é a hora de Lula acabar de entender que o passado não tem volta, e ajudar a abrir caminho para um país com esperanças renovadas.

Meu voto útil

Simone Tebet é, sem dúvida, a grande novidade e a melhor candidata nesta eleição presidencial. Firme, inteligente, com um sólido currículo político apesar de muito jovem, desenvolveu um excelente plano de governo buscando contribuições nos diferentes setores da sociedade, tem se saído muito bem nos debates, e inspira confiança. Ela faz parte de uma nova geração de mulheres e homens que estão tentando tirar o sistema político brasileiro, e o próprio governo federal, do lamaçal em que se meteu, e que merecem e precisam de todo o apoio para se fortalecer politicamente. 

Ciro Gomes também é convincente nas críticas que faz ao antigo e atual presidente, e tem algumas propostas interessantes, sobretudo na área da educação, baseadas da bem-sucedida experiência do Ceará. Por outro lado, creio que o “Projeto Nacional de Desenvolvimento” que propõe não resiste a uma análise econômica mais aprofundada.

Infelizmente, nenhuma das duas candidaturas se tornou viável. Ciro Gomes sempre jogou sozinho, movido muitas vezes pelo ressentimento, e nunca teve chance de crescer politicamente. Simone Tebet foi o melhor que se conseguiu na busca de uma candidatura de terceira via que pudesse dar ao país uma alternativa à polarização entre o PT e Bolsonaro, mas entrou na competição tarde demais e com pouco apoio, vítima do jogo infindável de interesses locais do MDB e PSDB. 

Tenho muita dificuldade em entender como pessoas minimamente informadas podem ainda apoiar Jair Bolsonaro. Para quem não sabia dos anos que passou convivendo com o baixo clero da Câmara de Deputados e se enriquecendo nas relações com o submundo da política e das milícias cariocas, sua plataforma conservadora, de combate à corrupção, liberalismo econômico e conservadorismo social, poderia ter sido convincente, sobretudo depois do desastre dos últimos governos do PT.  Mas seus quatro anos de mandato deviam ter sido suficientes para mostrar que não se tratava na verdade de um político conservador, mas de um homem disposto a tudo para manter seu poder e de seus familiares, destruindo instituições, desmontando o orçamento público, estimulando a violência e querendo se impor como ditador.

Resta Lula. Tenho também dificuldade em entender como pessoas informadas possam se entusiasmar com sua candidatura. É verdade que, no primeiro mandato, seu governo manteve uma política econômica equilibrada e deu início a importantes programas sociais. Mas depois perdeu o rumo, e nem ele nem o PT reconheceram os erros que jogaram o país na pior crise econômica da história. Havia a corrupção, com a qual Lula e seus companheiros foram no mínimo coniventes, e sobretudo erros colossais de política econômica e social, que fizeram com que o país desperdiçasse a grande oportunidade que foi a reorganização da economia trazida pelo plano real e os recursos do “commodities boom”, a alta dos preços internacionais dos produtos de exportação brasileiros.

Em tempos normais, meu voto no primeiro turno seria para Simone Tebet, mesmo sem chances de ganhar, ajudando a fortalecer sua presença na política nacional. Mas não estamos em tempos normais, com as ameaças de golpe e ataques diários de Bolsonaro ao sistema eleitoral.

Não há nenhuma certeza de que em um futuro governo liderado por Lula prevalecerá o bom senso, abrindo espaço para as reformas econômicas, institucionais e fiscais que o país necessita para romper o círculo vicioso da estagnação econômica e pobreza, e para as políticas sociais e ambientais de qualidade que se tornam cada dia mais urgentes. A seu favor está o esforço para sair do círculo fechado do PT e construir uma grande aliança de apoios, e o histórico de respeito à independência da polícia federal e do judiciário de seus governos. 

 Haverá acertos e erros, mas, sobretudo, um regime democrático em que os governos podem ser criticados e substituídos quando necessário.  É preciso decidir a eleição logo no primeiro turno, para garantir a democracia. Depois teremos que lidar com o que for preciso, de forma civilizada.

O Golpe da Independência

(Publicado em O Estado de São Paulo, 9 de setembro de 2022)

Cem anos atrás, o Brasil comemorava um século da independência com uma grande exposição internacional no Rio de Janeiro, em que se celebrava a entrada do país na modernidade do rádio e da eletricidade.  Havia nela o Pavilhão da Estatística dedicado à “ciência da certeza”, que apresentava os resultados do censo brasileiro de 1920, o primeiro em quase cinquenta anos[1]. Fake news, nunca mais! 1922 foi também o ano da Semana de Arte Moderna, em que pintores e escritores se propunham a mostrar o Brasil como ele era e falava de verdade, do Macunaíma de Mário de Andrade aos operários de Tarsila do Amaral, livres das amarras da pintura clássica e do português castiço das velhas elites, educadas em Coimbra.

O tema era o Brasil do futuro, e ninguém olhava muito para o dia em que, cem anos antes, a Família Real dera um golpe de estado contra a revolução liberal portuguesa, que limitava seus poderes, e colocara a coroa brasileira na cabeça do herdeiro, Pedro I, “antes que um outro aventureiro o faça”, como diz a lenda. Mas a República Velha não se movia, e o povo, que havia assistido bestializado ao fim do Império, continuava sem entender o que República e mundo moderno lhes traziam.

Cinquenta anos depois, o Sete de Setembro foi comemorado olhando para trás, com o traslado do corpo de D. Pedro para o Brasil. Eram os anos de chumbo, a repressão do governo militar brasileiro chegava a seu auge e Portugal vivia sob a ditadura do Estado Novo salazarista. Nada melhor do que o cadáver do jovem e impetuoso imperador para celebrar esta comunhão, trazido com todas as honras para repousar no Museu do Ipiranga. Faltava, no entanto, o coração, guardado no formol, que volta agora finalmente para o Brasil, neste bicentenário que quase ninguém comemora e em que os fantasmas do autoritarismo e da violência política voltam a assombrar.

O que se comemora as festas nacionais dos diversos países? Nos Estados Unidos, o 4 de julho marca o dia, em 1776, em que representantes das 13 colônias, reunidos em um congresso, declararam sua separação da Grã-Bretanha; na França, o 14 de julho celebra a queda da Bastilha, em 1787, que marca o fim do absolutismo monárquico; no Chile, o 18 de setembro comemora a organização do primeiro governo autônomo do país; na Noruega, o 17 de maio celebra a primeira constituição, de 1814. São todas de uma mesma época, de surgimento dos estados nacionais, com seus três componentes centrais: um Estado moderno, ou seja, um governo organizado, com capacidade de angariar e utilizar bem recursos técnicos, financeiros e militares; cidadãos compartilhando a mesma história, e dotados de direitos civis, políticos e sociais; e um território definido em que esta população vive, com fronteiras mantidas e defendidas pelo Estado e seus cidadãos, de forma soberana.

Dos três, o Brasil independente herdou um imenso e quase desconhecido território; um estado patrimonial organizado para cobrar impostos e explorar as riquezas dos territórios que dominava; e uma população formada sobretudo por negros escravizados, indígenas, brancos e mestiços empobrecidos e analfabetos, vivendo no campo e na periferia das cidades. Desde a Colônia que setores da população se revoltavam contra os governantes, reivindicando autonomia, mas foram sufocados um a um. No Segundo Reinado, estavam todos dominados, com o Imperador e uma pequena elite brincando de democracia constitucional. 

Havia pessoas, mas não cidadãos, por muito mais tempo do que deveria e poderia. Se estima que, quando os portugueses chegaram, cerca de 5 milhões de nativos viviam no território brasileiro. Trezentos anos depois, estes povos haviam sido exterminados ou se refugiado no interior desconhecido. No primeiro censo brasileiro, de 1872, dos dez milhões de recenseados, menos de 5% foram classificados como indígenas, e desapareceram dos censos seguintes, até serem relembrados recentemente. Nos países em que os habitantes se tornaram cidadãos, a educação pública deve um papel central. Nos Estados Unidos, na época da independência, 60% da população já sabia ler; em meados do século 19, eram quase 100%. Na Noruega, a educação pública já era obrigatória desde meados do século 18. No Chile e Argentina, políticos intelectuais como Domingo Faustino Sarmiento e Andrés Bello estimularam a criação das primeiras redes de escolas públicas e de universidades modernas em meados do século 19. No Brasil, o tema da educação pública só começa a ser discutido na década de 1920, a primeira universidade é de 1934, e em 1960 metade da população era ainda analfabeta.

Se o lado positivo dos novos estados nacionais foi a formação da cidadania e o desenvolvimento de um setor público representativo e capaz de apoiar e proteger seus cidadãos, o lado negativo foi o nacionalismo e o militarismo, jogando uns povos contra outros e enaltecendo o culto das armas e da violência. É bonito quando um povo celebra sua identidade e sua história dançando nas ruas e se confraternizando, como no Chile e na Noruega; mas triste quando o faz desfilando tanques e cultivando cadáveres.


[1] Sobre as comemorações da independência e a história das estatísticas públicas no Brasil, veja a publicação recente do IBGE, As estatísticas nas comemorações da independência do Brasil (2022), editado por Nelson de Castro Senra.

As virtudes antigas de Eunice

(Publicado em O Estado de São Paulo, 12 de agosto de 2022)

Eunice Durham morreu de repente, quando se preparava, animada, para sua festa de 90 anos. Em um depoimento em 2009, ela reflete sobre sua carreira de antropóloga, que teve início com pesquisas, muitas vezes em parceria com Ruth Cardoso, sobre o difícil processo de mobilidade e participação social dos imigrantes, do campo ou do exterior, que se dirigiam para os centros industriais e urbanos que se formavam no Brasil[1].  Ela mesma fez parte deste processo, vinda de uma pequena cidade, estudando, pesquisando e se tornando uma das primeiras mulheres a ter uma carreira destacada na aristocrática e masculina Universidade de São Paulo. 

Era uma transformação cultural, mas também política, de disputa por espaços e direitos. Para os imigrantes europeus e japoneses, o caminho da mobilidade passava pela solidariedade familiar, valorização do trabalho e investimento na educação dos filhos. Para os imigrantes do campo, muitas vezes descendentes de populações escravizadas, “o importante era a liberdade, pois trabalho manual estava associado a trabalho forçado”, diz Eunice. 

O golpe militar de 1964 a encontra pesquisando para sua tese de doutorado e iniciando sua carreira de professora. Começavam as perseguições políticas na Faculdade de Filosofia, estudantes e professores se mobilizavam contra o regime militar, e muitos cientistas sociais passaram a usar os conceitos marxistas de luta de classe para entender o que estava ocorrendo, e tomar partido a favor dos mais pobres e necessitados.  Eunice compartilhava a preocupação com a questão social e a oposição ao autoritarismo do regime militar, mas não acreditava que o marxismo era a resposta para tudo. “Revolução e luta de classes não eram conceitos explicativos para os problemas com que trabalhávamos. Nossos ‘objetos de pesquisa’ – imigrantes, migrantes, boias-frias, favelados – não eram revolucionários e também não faziam parte nem da burguesia nem do proletariado”.

Naqueles anos, novas gerações começavam a entrar nas poucas universidades que existiam. Muitos buscavam, simplesmente, ocupar os mesmos lugares de poder e prestígio de seus pais, mas outros imaginavam que, com os conhecimentos trazidos pela pesquisa e pela liberdade de estudos, e a chegada de estudantes vindos das novas classes em ascensão, as universidades, e eles mesmos, seriam as fontes de onde surgiria um Brasil mais moderno, igualitário e próspero.  A mobilização por uma universidade renovada e a oposição ao regime militar se confundiam. 

O modelo elitista adotado pela Reforma Universitária de 1968 estimulou a pesquisa e a pós-graduação nas universidades já estabelecidas, mas criou também muitas instituições que de pesquisa e da formação de alto nível pouco mais tinham que a casca e os altos custos. Incapazes de absorver a demanda crescente por educação superior, acabaram abrindo espaço para a expansão desordenada do setor privado. Com a democratização, o governo anuncia uma grande reforma do ensino superior, que não sai do papel, pela resistência dos interesses criados.

Eunice Durham participa intensamente da mobilização em busca de novos caminhos, como uma das fundadoras da associação de docentes da USP, mas vai se dando conta que a militância não bastava, era preciso entender melhor e mais a fundo as questões do ensino superior, das quais a Universidade de São Paulo era somente uma pequena parte. Em 1987 ela me convidou para ajudar a organizar o Núcleo de Pesquisas sobre Educação Superior da USP, o primeiro centro de pesquisas sobre o tema do país. Por vários anos trabalhamos juntos buscando entender como o que ocorria no Brasil se comparava ao resto do mundo, e como os diferentes países procuravam lidar com os temas da massificação do ensino, equidade, pesquisa universitária, qualidade acadêmica, financiamento, e do papel do público e do privado. 

Logo depois, levada por José Goldemberg, ela foi para Brasília, com a missão de fazer renascer a CAPES, extinta por Fernando Collor, e trabalhando depois como Secretária Nacional de Educação Superior. Menos conhecida, mas talvez mais importante, foi sua parceria com Darcy Ribeiro na preparação do substitutivo da Lei de Diretrizes de Bases, que acabou sendo aprovado em 1996 no lugar do projeto que vinha sendo costurado ao longo de vários anos pelos diversos movimentos políticos do setor educacional, que ela e Darcy entendiam que atendiam mais a seus interesses corporativos do que a educação do país.

Ficam de Eunice as marcas de sua independência intelectual e compromisso social. Ela termina seu depoimento lamentando que “as velhas virtudes socialistas da solidariedade e do sacrifício pelo bem comum parecem estar em baixa. O mesmo acontece com as ainda mais antigas virtudes liberais, como a do limite da liberdade de cada um que é dado pela liberdade do outro, da tolerância para com as diferenças de opinião que fazem parte do jogo democrático, da proibição republicana da apropriação e do uso individuais dos bens públicos. Pessoas da minha idade tendem a ser conservadoras e apreciar estas virtudes antigas”.


[1] Lilian de Lucca Torres,  “Entrevista: Eunice Ribeiro Durham”. Ponto Urbe. Revista do núcleo de antropologia urbana da USP, 2009.

O Último dos Tucanos

(Publicado em O Estado de São Paulo, 8 de julho de 2022)

José Serra entra para a história como o único Senador que votou contra o estupro da Constituição e do teto orçamentário perpetrado pelo Congresso. É o último da geração de políticos tucanos que lutaram contra a ditadura militar, saíram do antigo MDB para criar o PSDB quando o partido foi dominado pela política corrupta de Orestes Quércia, conseguiram deter a inflação e reorganizar a economia do país, dando início às políticas sociais, e entregaram o governo de forma civilizada em 2002, quando Lula ganhou as eleições. 

Espero que a “Pec Kamikaze” não seja suficiente para manter no poder o bando fascista de Bolsonaro, mas Lula não ajuda.  Como os antigos reis Bourbons, ele nada esquece e nada aprende. Seu comentário sobre a PEC foi que, no seu governo, os orçamentos seriam aprovados com a “participação da sociedade”, como se quatro mandatos presidenciais não bastassem para saber que não é a assim que orçamentos federais são aprovados e administrados. Sobre os preços dos combustíveis, defendeu a reestatização da Petrobrás, que seus governos levaram quase à falência. Antes havia falado contra os políticos “sem alma” que só se preocupam com o teto de gastos e o equilíbrio orçamentário, e não com as necessidades do povo sofredor. Como se só ao “mercado” interessasse ter uma economia vigorosa e estável, capaz de criar empregos e pagar bons salários, e que os recursos públicos sejam destinados a investimentos e políticas sociais de qualidade, e não aos bolsos dos políticos e das corporações com mais capacidade de pressão.   Sobre os escândalos de corrupção no Ministério da Educação, o único que fez foi balbuciar algo sobre o direito de defesa dos acusados, como que temendo o fim do “garantismo” judiciário que faz que, no Brasil, todos os crimes de políticos sejam perdoados. E, machão, não se comoveu com os crimes de assédio sexual que derrubaram o presidente da Caixa Econômica, dizendo que não era policial nem procurador.

Rejeitados pela maioria da população, os dois candidatos entram em um processo eleitoral que será turbulento, e cujo ganhador herdará um país exausto e em frangalhos. Como explicar que não tivesse surgido um terceiro nome? Temos Simone Tebet tentando ocupar este espaço, mas que começa enfraquecida pelo próprio processo em que sua candidatura se formou, por uma negociação interminável dos interesses locais dos velhos partidos. E temos Ciro Gomes, sozinho, golpeando à esquerda e à direita, incapaz de sair de sua bolha. Mesmo que uma destas candidaturas consiga crescer – o que não é impossível, porque os eleitores decidem seus votos na última hora, como vimos recentemente na Colômbia – o futuro presidente dificilmente terá condições de pôr fim à crise fiscal e à usurpação dos recursos públicos pelos congressistas do centrão, que puxam o país para o fundo.

Por três vezes tentamos deixar os políticos de lado elegendo um presidente “contra tudo que está aí”, e os três casos – Jânio, Collor e Bolsonaro – resultaram em desastre.   Os exemplos recentes de líderes populistas na região, como Lopes Obrador no México e Petro Castillo no Peru, sem falar de Hugo Chávez e Maduro na Venezuela, mostram que o problema é mais geral. Em seminário recente na Fundação Fernando Henrique Cardoso, o professor Steve Levitsky lembrou dos três pilares das democracias modernas, apesar de suas imperfeições – partidos políticos estruturados, uma imprensa prestigiada e capaz de formar a opinião pública, e grupos de interesse fortes e diversos comprometidos com a estabilidade política. Hoje estes pilares estão minados pelos “três Ps” mencionados em artigo recente de Moisés Naím – o populismo, a polarização, acentuada pelas políticas identitárias, e a pós-verdade das redes sociais.

Quatro anos atrás, com o derretimento do PT, a crise econômica se aprofundando e as manifestações de protesto crescendo, surgiram várias tentativas de organizar movimentos que buscavam substituir os políticos tradicionais por uma nova geração de líderes, mais bem formados e comprometidos com os temas da desigualdade social, aperfeiçoamento do Estado, moralidade pública e desenvolvimento econômico e social. Mas foram tentativas pequenas e dispersas, que não conseguiram fazer muita diferença. Tomara que, no futuro, possa haver uma convergência virtuosa de novos líderes e uma nova geração de políticos, retomando as bandeiras dos velhos tucanos e trazendo para o país novas perspectivas. 

Falavam tempos atrás que o Brasil crescia de noite, quando os políticos dormiam. Lembro de o velho Antônio Carlos Magalhães dizendo que, durante a noite e nos fins de semana, nos conchavos políticos no Palácio de Ondina, desfazia as boas medidas que que tomava durante o dia como governador da Bahia. Em alguns momentos, de fato, os ventos da economia internacional, como os ciclos favoráveis das commodities, ajudaram a economia a andar apesar de tudo, e não faltam exemplos de políticos virtuosos e iniciativas locais e regionais bem-sucedidas que mostram que nem tudo está perdido. Mas não será fácil.

Para não esquecer

(publicado em O Estado de São Paulo, 10 de junho de 2022)

O Brasil não é atrasado por acaso. Em um livro de quase 800 páginas, Marcos Mendes e 32 colaboradores fazem uma autópsia minuciosa de 24 políticas econômicas e sociais que, nos últimos 20 anos, levaram à insolvência do Estado, à estagnação econômica e à persistência da pobreza. O livro foi publicado pelo Insper, Fundação Brava e Editora Autografia, e está disponível em diversos formatos, sem custos, neste link. O lançamento do livro ocorreu no dia 30 de maio, com a participação de Samuel Pessoa, Edmar Bacha, Laura Karpuska e minha, e pode ser visto aqui.

Os temas são os incentivos fiscais, créditos direcionados, protecionismo econômico, empresas estatais, previdência social e educação, entre outros. A corrupção é mencionada, mas o que mais preocupa são políticas que, mesmo quando bem-intencionadas, resultam de concepções erradas sobre a capacidade do setor público em intervir e comandar a economia; não se baseiam em análises adequadas dos problemas que se tenta resolver; e faltam mecanismos de acompanhamento de resultados e correção de erros. Em comum, elas compartem a ideia de que são os gastos públicos, não a produtividade, que criam  riqueza; que os recursos públicos são infinitos; atendem a grupos ou setores mais articulados, cujos interesses acabam prevalecendo sobre os da grande maioria que não consegue se organizar; e, uma vez implantadas, tendem a persistir, mesmo quando sua ineficiência e efeitos negativos se tornam evidentes.

Minha contribuição para o livro foi o capítulo sobre as políticas de expansão da educação superior, cujas matrículas passaram de 2,7 para 8 milhões entre 2000 e 2015.  Não é que a expansão não fosse necessária: o número de pessoas com formação superior no Brasil é ainda pequeno; há uma busca crescente, da população, pelos empregos e o reconhecimento social trazidos pelos títulos superiores; e o país precisa de profissionais mais competentes. Mas pretender dar “universidade para todos” é simplesmente vender ilusões, a alto preço.

Nos países desenvolvidos, a proporção de pessoas com diploma superior dificilmente passa de 40%, e isto graças a uma combinação de universidades tradicionais, grande oferta de cursos profissionais curtos e a existência de um amplo sistema de educação superior básica, como os community colleges de 2 ou 4 anos nos Estados Unidos e o ciclo inicial de 3 anos do “Modelo de Bologna” na Europa.

No Brasil, as escolas técnicas federais, que poderiam ter sido o embrião de um amplo sistema público de formação profissional, foram transformadas em institutos semelhantes às universidades federais, concebidas como instituições elitistas nos anos 60, que custam cada vez mais e mal conseguem atender a 20% das matrículas. O setor privado, que cresceu por atender como seja à demanda da sociedade por mais educação, passou a ser subsidiado por isenções fiscais e um sistema de crédito educativo garantido pelo governo que cresceu exponencialmente até explodir. Tudo isto em cima de um ensino médio precário, em que metade ou mais dos alunos terminam sem um mínimo de competências em leitura, matemática e ciências.

O resultado foi um sistema inchado, em que milhões se candidatam todos os anos às 300 mil vagas do sistema federal, os que não passam desistem ou se matriculam no sistema privado, cerca de metade abandona antes de terminar, e mais da metade dos que ser formam acabam trabalhando em atividades de nível médio.

Outros capítulos tratam do sistema de financiamento da educação básica, o FUNDEB; do piso nacional dos professores; e do Pronatec, o programa de apoio à educação técnica e profissional. Em todos, existia uma boa intenção inicial, que acabou sendo desvirtuada em todo ou parte pela falta de objetivos claros, de análise adequada e acompanhamento de resultados e pela captura dos recursos disponíveis por determinados setores em detrimento do interesse geral. Ficou faltando ainda, nesta lista, o programa “Ciência Sem Fronteiras”, em que cerca de 10 bilhões de reais foram desperdiçados em poucos anos em bolsa no exterior sem maior benefício para o país.

Em toda parte, políticas públicas são objeto de grupos de interesse, e as pressões de cada dia dificultam o planejamento e as políticas públicas de longo prazo. Mas, nos países que conseguem se desenvolver, a capacidade técnica do poder executivo de elaborar políticas públicas de qualidade e acompanhar seus resultados é protegida do vai-e-vem dos lobbies e da política do dia a dia por um sistema adequado de negociação, equilíbrio e separação entre os poderes. Nestes países, também, a intervenção do estado na economia tende a ser limitada, e o sistema legal garante a estabilidade e previsibilidade da iniciativa privada. 

Vários setores da administração pública brasileira possuem hoje capacidade técnica semelhante à dos países desenvolvidos, mas grande parte da máquina pública é ainda capturada por grupos de interesse. A fragmentação do sistema partidário impede que o executivo tenha sustentação para políticas de longo prazo, e a incerteza jurídica, financeira e tributária fazem com que grande parte do setor privado dependa de favores e privilégios dos governos, mais do que de sua produtividade, para sobreviver. É na reforma política e institucional, em última análise, que devemos buscar o caminho para não persistir nos erros de sempre. 

A lição do Flamengo

(publicado em O Estado de São Paulo, 13 de maio de 2022)

O 7 x 1 derrubou o mito de que bastava o talento e a esperteza de alguns jogadores para sermos os melhores mundo, e o futebol brasileiro só começou a sair do buraco quando o Flamengo decidiu importar um técnico português. Está na hora de seguir o exemplo, e importar um técnico português para cuidar de nossa educação.

A Copa do Mundo da educação é o exame PISA, que avalia estudantes de 15 anos que estão completando a educação fundamental em dezenas de países em leitura, matemática e ciências. A nota média em cada uma das provas é 500, e o Brasil, desde que começou a participar, passou de 386 em leitura em 2000 a para 413 em 2018. Entre 2009 e 2018, os resultados praticamente não se alteraram em nenhuma das três áreas. Isto significa. que, em 2018, metade dos jovens que terminam o ensino médio não têm a capacidade mínima de leitura esperada (abaixo do nível 2), e só 2% demonstram alto desempenho (acima do nível 4). E isto apesar de que os investimentos públicos por aluno tivessem mais do que triplicado no período. 

Portugal começou um pouco melhor, ainda bem abaixo dos outros países europeus, mas em 2018 já havia se aproximado da média europeia. Em 2018, 20% dos estudantes portugueses ainda terminavam o ensino médio abaixo do mínimo esperado em leitura, mas a média geral tinha aumentado, e 7% demonstravam alto despenho.

Existe uma clara associação entre desempenho escolar e a condição social das famílias dos estudantes, e as primeiras políticas de Portugal, na gestão da Ministra Lurdes Rodrigues (2005 a 2009) para melhorar a qualidade de sua educação, consistiram em uma série de programas destinados a apoiar e melhorar o desempenho das escolas que atendem às populações de baixa renda. Depois, na gestão de Nuno Crato, entre 2011 e 2015, a ênfase foi estabelecer metas claras de desempenho em leitura, matemática e ciências, com mais horas de ensino nestas matérias, um exame nacional obrigatório de matemática e português ao final do ensino médio, reforço na formação de professores e maior autonomia para as escolas se responsabilizarem pelo cumprimento de suas metas. Houve também um investimento na diversificação do ensino médio, criando oportunidades adequadas de formação para estudantes com diferentes níveis de desempenho.

Para implantar estas politicas, foi necessário dissipar a neblina de ideias pedagógicas confusas e supostamente “progressistas” que vicejavam tanto em Portugal quanto no Brasil, e que ainda estão à vista para quem queira ler as bases nacionais curriculares brasileiras aprovadas em 2017. Em um pequeno livro publicado em 2006, O eduquês em discurso direto, o professor de matemática e depois Ministro da Educação Nuno Crato faz uma crítica contundente ao que ele denomina “pedagogia romântica e construtivista” que impede que as escolas se empenhem em sua tarefa central que é a formação dos alunos a partir da base indispensável da leitura e da matemática. O livro foi reeditado no Brasil em 2020 e é de leitura obrigatória para quem queira entender a confusão em que nos metemos.   

Não há como reproduzir os argumentos aqui, mas vale a pena reter os pontos principais das críticas que faz: ao “romantismo”, que remonta às ideias de Jean-Jacques Rousseau, de valorização do instintivo em detrimento da racionalidade; ao construtivismo, que supõe que os conhecimentos  devem ser “construídos” pelos estudantes, e não precisam ser ensinados pelos professores: ao abuso de conceitos pouco claros como “competências”, “interdisciplinaridade” e contextualização”, em detrimento da transmissão de conteúdos; e à “educação centrada no aluno”, que questiona a importância da educação organizada e sistemática, da disciplina e da avaliação regular dos resultados.

É certo que estes conceitos da “educação nova”, que na realidade datam do século 19, vieram em resposta à rigidez da educação tradicional, formal e burocrática, que sufoca os estudantes, os obrigam e memorizar informações sem sentido, não toma em conta as condições pessoais, sociais e culturais de suas famílias, e ignora as diferenças de classe que reproduz. Mas não tem que ser uma coisa ou outra, e não se pode, em nome do respeito aos alunos e suas circunstâncias, jogar fora as crianças com a água suja do banho.

Quando e se o técnico português chegar, seu primeiro desafio será deixar claro que quem manda no jogo, e no dinheiro, é ele, e não os cartolas da educação.  Feito isto, será preciso refazer a base nacional curricular, com prioridades claras de formação e expurgada do eduquês; cuidar da formação de professores, para que efetivamente aprendam a ensinar; fazer com que a pré-escola seja um espaço de aprendizagem, e não depósito de crianças; garantir que a alfabetização se complete aos 7 anos; retomar a reforma do ensino médio, deturpada de seus objetivos, com opções claras e apoio à formação técnico-profissional; e estabelecer um sistema efetivo de avaliação de resultados escolares, com provas obrigatórias ao final da educação básica, e um ENEM inteligível e compatível com um ensino médio diversificado.

Propostas para uma nova pós-graduação

Apresentação preparada para o seminário da SBPC da série Projetos para um Brasil Novo, 6 de abril de 2022

A pós-graduação brasileira foi criada nas décadas de 1960-70, quando o Brasil tinha somente cerca de 300 mil estudantes de nível superior. Hoje, são cerca de 10 milhões, entre estudantes de graduação, especialização e pós-graduação. Já é tempo de revisar os pressupostos de mais de meio século atrás e organizar a pós-graduação brasileira em novas bases (para uma análise detalhada da pós-graduação brasileira e sua relação com a área de pesquisa, ver S. Schwartzman, “Pesquisa e Pós-Graduação no Brasil: duas faces da mesma moeda?” Estudos Avançados 36(14): 227-254, 2022)

O sistema inicial

O sistema inicial se formou a partir de dois impulsos, a reforma universitária de 1968, liderada pelo então Conselho Federal de Educação, e os investimentos em ciência e tecnologia dos anos 70. A reforma de 1968 buscou adotar, para o Brasil, o modelo norte-americano de universidade de pesquisa, baseada em institutos e departamentos, em substituição ao tradicional sistema de faculdades e cátedras. Para isto, era necessário que os professores universitários tivessem formação em nível de doutorado e desenvolvessem atividades de pesquisa, e a CAPES coordenou as atividades e investimentos para a qualificação acadêmica dos professores. Nos anos 70 o Ministério do Planejamento, através da Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP – e do renovado Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – começou a investir em ciência e tecnologia, e parte substancial destes investimentos foi para os novos programas de pós-graduação que estavam sendo criados nas universidades públicas. Como o Brasil não tinha, à época, massa crítica suficiente para formar doutores em quantidade, os programas de pós-graduação se organizaram inicialmente como mestrados, e a CAPES criou um sistema de validação e avaliação por pares dos programas, para garantir sua qualidade, em termos das pesquisas que realizavam.

O sistema de pós-graduação dos anos 60-70

As transformações dos últimos 60 anos

A reforma universitária de 1968 não tomou em conta a massificação do ensino superior que começaria a ganhar impulso já na década de 70. Se os reformadores tivessem examinado com mais cuidado o sistema norte-americano, teriam visto que as “research universities” que tentaram copiar eram somente uma parte pequena de um grande sistema já massificado de educação superior que tinha em sua base o antigo sistema dos “land-grant” colleges, do século 19, e os Community Colleges espalhados por todo o país.  

No Brasil, na falta de uma política pública adequada para absorver a crescente demanda por educação superior, ela foi absorvida inicialmente pelo setor privado.  O setor público também se expandiu, ainda que mais lentamente, e o resultado foi a criação de um número crescente de instituições públicas que, legalmente, obedeciam ao formato e às regras gerais das universidades de pesquisa (titulação de doutorado para os professores, regime de tempo integral etc.) mas, na prática, eram essencialmente instituições de ensino.  A massificação da educação superior levou também a uma busca por maior qualificação por muitas pessoas que haviam obtido o diploma universitário, mas que buscavam agora se diferenciar no mercado de trabalho. Estas pessoas buscavam, quando podiam, entrar nos cursos de pós-graduação das universidades públicas, que, além de serem gratuitos, ainda podiam proporcionar bolsas de estudo. Como o acesso a estes cursos era limitado, criou-se um grande mercado privado e não regulado de cursos de especialização, sobretudo, mas não exclusivamente, nas áreas das profissões sociais.  

O resultado deste processo foi que a pós-graduação, que inicialmente era vista como unitária, passou a se dividir, informalmente, conforme três demandas distintas, a da formação de pesquisadores propriamente ditos, a de titulação para as carreiras universitárias, e a de qualificação adicional para o mercado de trabalho. Esta diferenciação da demanda impactou a pós-graduação de diferentes maneiras. No setor regulado, controlado pela CAPES (conhecido como “latu senso”), muitas pessoas entraram nos mestrados buscando melhor qualificação para o mercado de trabalho, e com isto os mestrados deixaram de ter a função inicial de cursos preparatórios para o doutorado. Segundo,  os doutorados passaram a admitir pessoas mais velhas interessadas em maior titulação para suas carreiras docentes, e não, necessariamente, na formação para a pesquisa científica.  A pesquisa de mais alto nível ficou concentrada em um número relativamente pequeno de instituições, e a perspectiva de que as demais eventualmente evoluiriam para o nível 7 da CAPES, considerado como de padrão internacional, deixou de existir.

A expansão da pós-graduação acompanhou, de maneira geral, a expansão do ensino superior brasileiro, caracterizado pelo predomínio numérico das áreas das profissões sociais, saúde e educação.  Em 2018, havia no Brasil 378 mil estudantes de pós-graduação estricto senso, dos quais 35% em programas de doutorado, com predomínio para estas áreas. O Ministério da Educação não toma conhecimento nem tem informações sobre o setor não regulado, mas a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (PNAD) mostra que setor é, atualmente, três vezes maior do que o regulado, com forte predomínio das instituições privadas.

Fonte: Pnad Continua, 2021
Fonte: Plataforma Sucupira

Há um forte consenso, internacionalmente, que os anos de juventude são os mais produtivos e criativos na área de pesquisa e inovação, sobretudo nas ciências exatas e naturais. Uma pessoa que entra na universidade aos 18 anos e completa o bacharelado aos 22 pode dedicar os próximos 4 a 6 anos a um doutorado e iniciar sua vida profissional antes dos 30. Para quem busca, no entanto, uma titulação, e não tem por objetivo seguir uma carreira de pesquisador, a pós-graduação pode vir mais tarde. A distribuição de idade dos pós-graduados brasileiros mostra que grande parte deles, sobretudo nas ciências sociais e humanas, se formam bem mais velhos.

O quadro abaixo resume o panorama atual da pós-graduação brasileira, com as diferentes demandas existentes e os tipos de programas que as atendem:

Implicações e recomendações

Formato institucional

É evidente que o formato institucional criado na década de 70, regulado pela CAPES, que teve papel importante do desenvolvimento da pós-graduação e pesquisa brasileira ao longo do tempo, não é mais adequado, e precisa ser revisto. Nenhum país moderno que tenha um sistema de pós-graduação e pesquisa desenvolvido tem um sistema tão rígido e regulado. Nos últimos anos, a CAPES tem buscado se aperfeiçoar, reconhecendo a existência de mestrados e doutorados acadêmicos e profissionais, e buscando introduzir critérios de impacto e relevância, além dos de excelência acadêmica, nas suas avaliações. Mas não fez até aqui nenhum movimento de romper a rígida barreira que entre a pós-graduação regulada, estrito senso, e a não regulada.

A distinção entre programas acadêmicos e profissionais é insuficiente, e arbitrária, para classificar a grande variedade de cursos de pós-graduação que existem em toda parte. A Carnegie Classification nos Estados Unidos identifica 18 tipos diferentes de programas de pós-graduação, mas não é uma classificação formal, mas um simples agrupamento para fins estatísticos. Da mesma forma, é impossível adotar uma classificação consensual das áreas de conhecimento, e mais impossível ainda manter uma base de dados sobre publicações científicas rigidamente classificadas por sua qualidade ou relevância, como o se pretende com o sistema Qualis desenvolvido pela CAPES.

Equidade e Financiamento

Nos anos 70, quando a pesquisa e a pós-graduação praticamente não existiam no Brasil, fazia sentido criar um sistema de bolsas para estimular os alunos a buscar níveis mais altos de formação. Hoje, com quase quatrocentos mil alunos, isto não é mais viável, e é injustificável do ponto de vista da equidade social.

A estimativa é que metade dos estudantes de pós-graduação estricto senso recebe algum tipo de bolsa, e os cursos nas instituições públicas, a grande maioria, são gratuitos. Nos últimos anos os valores das bolsas têm depreciado, e o número de bolsas vem também diminuindo. Isso se deve à depressão econômica que o país sofre desde 2015, assim como à baixa prioridade que o atual governo dá à área de educação e ciência e tecnologia.  Mas também ao fato de que, com um sistema com estas dimensões, fica muito difícil proporcionar a estudantes adultos bolsas que lhes permitam se dedicar integralmente aos estudos e ainda recursos para equipamento, trabalho de campo e outras necessidades.

Do ponto de vista da equidade, os dados mostram que os estudantes de pós-graduação, tanto do setor regulado quanto do não regulado, têm um nível de renda muito superior ao dos estudantes universitários, que sobe ainda mais entre os já formados.

Para famílias com renda familiar per-capita de 4 mil reais, uma bolsa de doutorado, que hoje é próxima de 2 mil reais no sistema federal, é no máximo um complemento, e não é capaz de fazer com que os estudantes se dedicam integralmente à sua formação, se precisarem trabalhar.

Recomendações

O quadro abaixo resumas principais recomendações decorrentes desta análise:

A primeira recomendação é de abolir o atual sistema da CAPES, e substitui-lo por um sistema muito mais aberto, que devolva às instituições a responsabilidade pelos títulos que proporcionam. Como acontece no resto do mundo, os sistemas de avaliação e credenciamento devem se referir às instituições como um todo, não a cursos ou programas específicos.   A CAPES, e outras instituições de fomento, podem e devem continuar a apoiar os programas que considerem merecedores, fazendo para isto avaliações por pares e uso de indicadores, e os programas podem utilizar seus portfolios de produção cientifica e aplicada, assim como de inserção de seus formados no mercado de trabalho, para atrair alunos e valorizar os diplomas que emitem. Mas sem uma classificação formal rígida como a que existe hoje.  Uma mudança como esta pode ter implicações legais que precisariam ser analisadas, mas que não devem impedir uma transformação mais profunda.

A segunda recomendação vai no sentido de abandonar a distinção rígida entre mestrados estricto senso, regulados, e mestrados lato senso. Ela implica reconhecer que a função primordial dos mestrados é a qualificação profissional para o mercado de trabalho. Isto não significa que, tal como com os doutorados, as instituições não possam organizar mestrados com perfis diferentes. Mas, como regra geral, os estudantes destinados aos doutorados devem ser recrutados diretamente dos cursos de graduação, de tal forma que se comecem suas carreiras cedo.  

A terceira recomendação é concentrar os recursos públicos em áreas prioritárias, e em montantes significativos. Não faz sentido pulverizar recursos em bolsas de baixo valor para estudantes (e professores) em programas sem equipamentos, recursos operacionais e capacidade comprovada de pesquisa. Estudantes de mestrado em busca de maior qualificação profissional, em princípio, deveriam pagar por seus cursos, como já ocorre no setor privado. Existe a interpretação de que os cursos estricto senso das universidades públicas devem ser gratuitos, o que cria um privilégio para uma população que não o necessita, e discrimina contra os alunos dos programas do setor privado. Se não for possível mudar esta interpretação, deve ser possível fazer uma emenda constitucional que acabe com esta discriminação, que também afeta os cursos de graduação. Claro que, como ocorre no setor privado, devem existir mecanismos de crédito educativo diferido que garantam que os estudantes não sejam impedidos e estudar por falta de recursos, e possam pagar os custos no futuro, conforme os níveis de renda que obtenham.

Este seria então o cenário de uma nova pós-graduação: um sistema mais aberto e diversificado, com mais espaço para a inovação, em que as instituições decidem que programas querem desenvolver, e que possam competir por financiamento das agências de fomento, por convênios com o setor privado, e atrair os estudantes com o perfil apropriado para seus cursos.

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