Os trens de Mussolini

(Publicado em O Estado de São Paulo, 14 de outubro de 2022)

Me lembro como se fosse hoje. Eu era aluno em um conhecido colégio em Belo Horizonte, e entre uma aula e outra, em uma roda de conversa, o professor de filosofia, ex-integralista e tomista, falava entusiasmado sobre as vantagens do fascismo. Eu ouvia espantado, e disse que não poderia concordar com aquilo, que eu vinha de uma família judia, muitos meus familiares haviam sido assassinados nos campos de concentração.  “Ah, entendo”, disse o professor, “então você tem um problema pessoal com isso”.

Eram os anos da guerra fria, em que os Estados Unidos e a União Soviética e seus seguidores disputavam não somente a hegemonia internacional, mas também o lugar de quem melhor encarnava os valores dos que haviam se unido para conter o monstro do nazifascismo, valores estes proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Os Estados Unidos e a Europa Ocidental empunhavam as bandeiras da democracia, liberdades individuais e direito à propriedade, e a União Soviética, as bandeiras do fim da pobreza, desigualdade e exploração. 

Dos dois lados, havia os que acreditavam firmemente em suas bandeiras, e apontavam o dedo para as violações cotidianas destes direitos pelo outro. Mas havia também os que viam como, em ambos, a lógica do poder e de defesa dos interesses estabelecidos muitas vezes se sobrepunha ao discurso humanitário. Na União Soviética, os últimos vestígios da democracia participativa haviam sido enterrados pelos expurgos de Stalin, e nos Estados Unidos os princípios da liberdade e igualdade eram violados diariamente pela persistência da desigualdade social e do racismo. Internacionalmente, a União Soviética impunha com mão de ferro seu poder sobre a Europa Oriental, e os Estados Unidos, em nome da luta contra o comunismo e para defender os interesses de suas companhias, apoiavam as ditaduras latino-americanas e os remanescentes do colonialismo na África e Ásia, muitas vezes de forma sangrenta, como no Vietnam.

Para quem pensava que o mais importante era a promessa dos direitos sociais, as restrições à democracia e aos direitos humanos nos regimes socialistas eram vistas como “erros”, pequenos pecados que poderiam ser eventualmente corrigidos, ou inevitáveis na luta contra os inimigos e por um mundo melhor. Do outro lado, para quem valorizava sobretudo a liberdade econômica e os direitos civis, a pobreza e o apoio a ditaduras totalitárias eram também descontados como problemas circunstanciais, que eventualmente seriam resolvidos em um regime de liberdade política e econômica.  E havia os que concluíam que, no fundo, todos eram cínicos, o único que realmente importava era a disputa pelo poder político e econômico, e que os discursos dos direitos humanos não passavam de um amontoado vazio de palavras.

Esta disputa entre valores, e de regimes políticos que dão mais ênfase a umas partes do que outras dos direitos humanos, marcou o mundo ao longo do século 20, e só foi interrompida pela novidade do nazifascismo, que foi além do cinismo, e passou a incorporar como valores a guerra, a xenofobia, a violência, o racismo e a discriminação.  Era uma doutrina que se dizia se inspirar em supostas tradições, identidades e sentimentos mais profundos dos povos, muitas vezes de cunho religioso, diante dos quais os discursos sobre valores e direitos, e a própria racionalidade abstrata das ciências sociais e naturais, cultivadas, segundo eles, por elites cosmopolitas, perdiam sentido. 

A história mostrou o horror e o desastre criados por esta doutrina, e os importantes resultados trazidos pela liberdade política e econômica e pelos movimentos em prol dos direitos sociais. É inegável que hoje, em todo o mundo e no agregado, existe menos pobreza, miséria e opressão do que cem anos atrás, e que estamos muito mais próximos dos ideais dos direitos humanos do que jamais tivemos.  Mas a distância ainda é grande, mais para determinados grupos e povos do que para outros, e o próprio progresso gera expectativas que acabam se transformando em frustração e ressentimento.

É esse o caldo de cultura para o ressurgimento das doutrinas fascistas e autoritárias, de valorização da violência, xenofobia e ataque às instituições da democracia liberal. Mussolini, afinal, fez os trens italianos andarem no horário, e o nazismo tirou a Alemanha da depressão dos tempos da República de Weimar. Será que isto não é mais importante, como pensava meu professor de filosofia, do que a retórica da ética e dos direitos?

É assim também que raciocinam muitos dos que hoje, no Brasil, não dão maior importância ao crescimento da extrema direita, e a alimentam como a maneira mais prática de conseguir determinados resultados. Mas o que está principalmente em disputa não é saber quem é mais ou menos corrupto, ou quem dá mais prioridade à liberdade econômica ou aos direitos sociais, e sim quem defende ou quem trabalha para romper o consenso sobre os direitos humanos e o regime democrático que, bem ou mal, nos trouxeram até aqui. Eu tenho, sim, um problema pessoal com isto, e espero que não seja só meu.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

3 thoughts on “Os trens de Mussolini”

  1. Excelente análise! Eu incluiria a observação de que regimes totalitários precisam de inimigos e que interessa a eles, por serem covardes, um inimigo que não possa reagir! Hitler escolheu os judeus, grupo desprotegido na época, que sofria de preconceitos de origem religiosa e social e que facilmente se podia identificar como “diferente” e, portanto, ameaçador! O comunismo, por outro lado, era uma ameaça para os plutocratas que haviam financiado a ascensão dos nazistas ao poder! Pronto! Estavam criados os bichos papões que tiravam o sono dos nazi-fascistas!!! O nazi-fascismo viceja aa sombra dos medos da pequena burguesia!!!

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