Constituição do Racismo

Eu tinha decidido, tempos atrás, não escrever mais sobre o tema das políticas raciais, depois de ter sido acusado mais de uma vez de fazer parte da conspiração racista-judaico-liberal contra os negros brasileiros. No entanto, gostaria de chamar a atenção para o artigo de Demétrio Magnoli na Folha de São Paulo de hoje, 12 de Janeiro, sobre o tal “Estatuto da Igualdade Racial” que está tramitando aparentemente sem crítica pelo Congresso, e que vai significar, na prática, a revogação do princípio constitucional da igualdade de todos, consagrado no artigo 5 da Constituição brasileira, entre outras coisas. Este estatuto, que ninguém no Congresso parece querer discutir, dá continuidade a um projeto da antiga Senadora Benedita da Silva de obrigar a todos terem uma identidade racial obrigatória, sobre o qual escrevi em 1998, e que, na minha ingenuidade, achei que estava sepultado, pelos absurdos que continha. Ledo engano.

Não vou repetir aqui os argumentos contra este tipo de legislação, que estão muito bem apresentados no artigo de Magnoli, e podem ser vistos também no meu texto de 1998. O que queria assinalar aqui é o clima de culpa, reforçada pelo patrulhamento, que faz com que muitas pessoas deixem de examinar e discutir estas questões, por medo de serem chamadas de racistas ou pior, e acabem sendo levadas de roldão pelos defensores de projetos aparentemente “progressistas” como este. Prefiro continuar sendo chamado de racista, ou o que seja, e continuar dizendo o que penso.

Idéias de 2005

Começo o ano com a sensação de não ter nada a dizer além do que todo mundo já está dizendo, e muito melhor… Em todo caso, algumas coisas merecem destaque:

Homem de idéias – Bernardo Sorj recebeu do “Caderno de Idéias” do Jornal do Brasil o titulo de Homem de Idéias de 2005”. Nada mais merecido, pelos livros que vem publicando e pela tentativa de pensar de forma original, livre dos velhos esquemas interpretativos, a nova sociedade que está sendo formada no país. O que surpreende, positivamente, é que o jornal tenha escolhido um intelectual que realmente trabalha com idéias, em vez de cultivar a midia, como fazem muitos de seus concorrentes…

Homem sem idéias – Fernando Veríssimo, em uma crônica, protesta contra os que o colocam junto com os “intelectuais silenciosos” que primaram pela sua ausência no ano passado. Como, diz ele, eu que tive que falar tanto sobre o meu pai? Ah, bom, como diria o Ancelmo Gois…

Estado de emergência nas estradas – Durante anos, eu sofri um processo do Tribunal de Contas da União, porque decidi contratar uma firma de publicidade sem licitação para fazer a campanha do IBGE da contagem populacional de 1996. Fiz isto porque o dinheiro chegou na última hora, e, ou a campanha era feita logo, ou a contagem tinha que ser suspensa. Como as taxas das firmas de publicidade são fixas, escolhemos a que tinha ganho a licitação mais recente, conforme o parecer da procuradoria. Os auditores do TCU disseram que isto não era desculpa, e me acusaram de imprevidência. A absolvição só veio no inicio de 2005. Agora vejo que o governo federal decretou “estado de emergência” para poder gastar o dinheiro de obras das estradas. Isto significa que não vai haver licitação, e que o governo vai poder contratar as empreiteiras como quiser? Todos parecem contentes porque os buracos das estradas serão tapados, mas ninguem está comentando o que este tal de “estado de emergência” significa, e porque o governo não tomou esta decisão antes, e seguiu os procedimentos normais de licitação. Será que o TCU vai achar que, neste caso, não houve negligência?

Avaliação Educacional

A editora Vozes acaba de publicar o livro Dimensões da Avaliação Educacional, editado por Alberto de Mello e Souza. Haverá um lançamento no seminário da ANPAE no Hotel Glória, Rio de Janeiro, no dia 17/11, às 15:30h. Eu escrevi o primeiro capítulo, que está disponível em versão preliminar. Os outros autores são Stephen Heyneman, Ignacio Cano, Ruben Klein, Nilma Fontanive, José Francisco Soares, Serge Mouchon e Cláudio de Moura Castro.

Boa leitura!

Autonomia Universitária, lá e cá

A Associação Columbus é uma instituição que reúne reitores da Europa e da América Latina, e este ano, para sua reunião em Lisboa, convidaram a mim e outras pessoas para fazer apresentações e discutir a questão da autonomia universitária. A maioria dos reitores presentes eram de Portugal, Espanha e Brasil; os apresentadores eram Christine Musselin, do CNRS na França; Michael Shattock, antes da Universidade de Warwick, e hoje no Instituto de Educação em Londres; e José Gines Mora, do Centro de Estudos em Gestão da Educação Superior da Universidade Politécnica de Valencia.

Ninguém se centrou no tema da “privatização”, mas todos partiram do suposto de que o setor público já não tem como ser mais o único provedor de recursos para as universidades, e quando este recurso existe, ele já não é mais transferido de forma automática e desvinculada de resultados que precisam ser explicitados e avaliados.

Na minha apresentação, lembrei a história do Movimento da Reforma Universitária de Córdoba de 1918, que se espalhou por toda a América Latina a partir daí, difundindo uma noção peculiar de autonomia acadêmica, baseada no poder dos estudantes, no governo tripartite, nos processos de decisão tomados em assembléia, no princípio da extra-territorialidade, e na livre admissão de estudantes. Argumentei, essencialmente, que este modelo pode ter tido sua importância histórica, criando um espaço para a livre manifestação de idéias e formação de lideranças políticas na região, mas não produziu uma boa universidade, e a autonomia que se busca hoje não pode ser a mesma de 100 anos atrás. Christine Musselin falou da experiência francesa de contratos de quatro anos entre governos e universidades, e mostrou como é possível estabelecer um novo tipo de pacto entre governos e universidades pelo qual o governo não renuncia a sua responsabilidade de definir prioridades, e as universidades também ganham no processo. A autonomia universitária, argumenta ela, não precisa ser vista como um jogo de soma zero, em que, ou ganha um lado, ou ganha o outro, mas ambos podem ganhar. Ginés Mora também falou sobre o novo tipo de pacto entre o setor público e as universidades, em que as instituições devem dar conta do uso dos recursos que usam, e, em troca, têm muito mais autonomia para gerir seus recursos, sejam de origem pública, sejam de origem privada. Michael Shattock, finalmente, fez uma discussão aprofundada dos processos de gerenciamento das novas universidades, argumentando que elas precisam de lideranças fortes e uma visão de longo prazo a ser atingida, e não de um plano detalhado de funcionamento, como se fossem empresas.

O que me chamou mais a atenção foi a resistência que muitos reitores, sobretudo da América Latina e da Península Ibérica, mostraram a estas idéias. Um reitor da Venezuela disse que, para ele, a autonomia que ele precisa é ainda a de Córdoba, para defender sua instituição da manipulação política dos aliados de Chávez. O reitor da Universidade de Lisboa disse que, por detrás das questões de autonomia, avaliação, e participação do setor privado, havia uma conspiração para domesticar a inteligência e o pensamento critico das universidades. Uma reitora brasileira disse que contratar dirigentes universitários de fora da instituição, através de comitês de busca, como ocorre nos Estados Unidos e outros países, poderia funcionar lá fora, mas nunca no Brasil, aonde a cultura era diferente.

Fiquei com a impressão de que o abismo entre a universidades hispano-americanas e as do resto do mundo – não só dos Estados Unidos e Europa Ocidental, mas também da Ásia e da Europa Oriental – está crescendo cada vez mais. Nestes dias, o Times Higher Education Supplement publicou sua nova lista das 200 melhores universidades do mundo. Lá na lanterninha aparecem duas universidades latinoamericanas, a Universidade Nacional do México e a USP. E só.

A caixa preta do ensino médio

Junto com o Instituto Unibanco, o IES organizou um seminário em São Paulo, no dia 20 de outubro, sobre “Educação Brasileira: Diagnósticos e Alternativas”, aonde o interesse era ver o que as pesquisas nos dizem sobre os problemas centrais e as alternativas de política para Educação brasileira. Sem surpresa, os apresentadores concentraram sua atenção na má qualidade da educação básica, que amplia os problemas de iniqüidade do país, e na dificuldade que temos tido em avançar em relação a isto: fazer com que os professores saibam alfabetizar, tornar as escolas, e seus diretores, mais conscientes e mais responsáveis pelo seu desempenho, e fazer com que os recursos para a educação fundamental aumentem e sobretudo não se dispersem.

Uma das participantes foi Alvana Bof, da UNESCO, que falou sobre a educação de jovens e adultos (EJA), e abriu espaço para discutir um pouco as questões do ensino médio, que acabam sempre espremidas entre os problemas do ensino fundamental e as grandes mobilizações ao redor do ensino superior. Ela mostrou como existe um grande número de jovens e adultos que, ou abandonaram a escola antes de completar o ensino médio, ou continuam cursando escolas médias noturnas, apesar de já estarem acima da idade correspondente, entre 15 e 17 anos. Os programas de EJA buscam recuperar este tempo perdido, proporcionando de forma compacta e flexível, e com o uso de novas tecnologias de educação semi-presencial, a formação básica correspondente ao segundo grau, em um prazo muito mais curto. Por que tantos jovens adultos persistem nos cursos regulares, quando existe esta alternativa? A explicação, segundo Alvana, seria que estes programas têm baixo prestígio e reconhecimento social, apesar de que, segundo Cláudio de Moura Castro, os candidatos ao vestibular das Faculdades Pitágoras originários da EJA não sejam piores dos que se originam dos cursos médios regulares.

Uma outra explicação, certamente, é que os cursos de EJA não preparam os estudantes para os vestibulares mais competitivos. Os vestibulares, ao exigirem conhecimentos enciclopédicos dos estudantes, têm sido apontados como um dos principais responsáveis pela má qualidade dos nossos cursos de ensino médio, aonde nada se aprofunda e tudo se decora. Porque, então, não transformar o sistema flexível do EJA na modalidade predominante de formação para o nível médio, com um bom padrão de avaliação ao final (que chegou a ser tentado pelo Ministério da Educação no governo passado através de um projeto denominado “ENCEJA”, não implementado), e deixando que os candidatos aos vestibulares mais competitivos se preparem por conta própria através de “cursinhos” especializados? Maria Helena Guimarães Castro reagiu horrorizada à minha idéia, dizendo que eu estava propondo voltar atrás na conquista que teria sido a ampliação do número de anos de educação obrigatória no país (que já é de onze anos, e que agora o governo está querendo ampliar para doze ou treze, com o início da educação fundamental obrigatória aos seis anos, e a ampliação do ensino médio de três para quatro anos). Eu penso, realmente, que não tem sentido forçar o aumento da duração do ensino formal de má qualidade, e que seria possível pensar em um sistema de educação média muito mais diversificado e flexível do que se tem hoje, sem cair na antiga falácia de forçar os jovens menos qualificados a seguir cursos profissionalizantes que acabam se transformando, na maioria dos casos, em cursos de segunda ou terceira classe.

Tive a oportunidade de retomar o assunto alguns dias depois no Fórum Mundial de Educação realizado pela OECD em Santiago do Chile, aonde me pediram para comentar a apresentação de Andréas Schleicher sobre os resultados do PISA. O PISA é o exame comparado sobre as competências dos jovens de 15 anos em vários paises do mundo, do qual o Brasil participou duas vezes, em 2000 e 2003, sempre ficando bem na lanterninha. Segundo Schleicher, o Brasil melhorou algo entre 2000 e 2003, embora nada que o retirasse do péssimo nível em que está: 25% dos jovens brasileiros da amostra pesquisada em 2003 estão abaixo do mínimo da escala de desempenho em matemática de 5 pontos do PISA, e mais da metade ficou abaixo do nível 2. Estes péssimos resultados refletem a má qualidade do ensino no Brasil como um todo, e o fato de que 25% dos jovens de 15 anos, que entraram na amostra de 2003, ainda não têm a escolaridade média que lhes corresponderia. No entanto, o nível é ruim mesmo entre os alunos das melhores escolas: entre os 10% melhores alunos brasileiros, 70% ficaram abaixo da pontuação média geral do PISA. Ou seja: não só o Brasil fracassa na média, o que seria de se esperar, mas também fracassa na ponta, mostrando que não existe, no país, um padrão aceitável de qualidade da educação média que possa ser adotado como referência para o conjunto.

Nos meus comentários, retomei alguns pontos da discussão do seminário IETS -Instituto Unibanco, enfatizando o papel deletério dos vestibulares, e chamando a atenção para a potencialidade de reforçar a adoção de padrões de desempenho para o nível médio como o ENEM, e criar formas mais flexíveis e socialmente prestigiadas de obtenção das qualificações do nível formal de educação média. Livre da pressão dos vestibulares e da massa de estudantes mais velhos que precisam a qualquer custo de seus títulos, para não ficar excluídos definitivamente do mercado de trabalho, o ensino médio regular poderia ir evoluindo como nos paises mais desenvolvidos, com mais ênfase em formação em habilidades centrais (língua nacional, língua estrangeira, raciocínio matemático, raciocínio científico e indutivo) e menos no acúmulo de informações irrelevantes, e com um currículo mais moderno e voltado para o mundo real em que os estudantes vivem.

O que o referendo (não) vai decidir

Não sei se todos já leram o Estatuto do Desarmamento, aprovado em lei e regulamentado pelo governo (Lei N° 10.826, de 22 de dezembro de 2003). Sem ser especialista, penso que o Estatuto é bastante rigoroso ao controlar a venda e o uso de armas, que são permitidos nos limites estreitos da lei. Mas eis que, no finalzinho da lei, no parágrafo 35, está escrito que “é proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6o desta Lei”, e o artigo 6o lista quem pode fazer uso de armas: essencialmente, quem trabalha na área de segurança, ou determinados funcionários públicos, como auditores fiscais e técnicos da receita federal; e diz também que este artigo deve ser submetido a referendo popular.

A pergunta é: se ganhar o não, o que acontece com o resto da lei? Minha impressão é que nada. Continua proibido o uso de armas por particulares e sua comercialização ilegal, ou seja, para pessoas que não tenham direito de usar armas (é o que diz o artigo 17, que regula o comércio ilegal das armas de fogo, e que não está sendo votado no referendo). E se ganhar o sim? Isto só deve afetar o comércio privado de armas, porque alguém continuará tendo que fornecer armas a todos os que podem usá-las conforme diz a lei.

Então, para que serve mesmo o referendo? Só se for para argumentar depois que, como a população não concorda com a proibição da comercialização, o resto do Estatuto do Desarmamento deveria ser revogado. Seria uma maneira de derrubar o Estatuto, depois de aprovado, através da introdução de última hora da cláusula do referendo.

As campanhas do referendo, infelizmente, estão vendendo ilusões. Os defensores do “sim” dão a entender que, com a proibição das armas, estaremos reduzindo de forma importante a criminalidade e a violência no país, quando sabemos que, por si só, este tipo de restrições não vai muito longe. Os defensores do “não” parecem uma versão cabocla do American Riffle Association, defendo a liberdade do cidadão de portar armas, e escondendo o fato de que esta liberdade já foi devidamente restringida pelo Estatuto do Desarmamento.

Minha conclusão é que, primeiro, este referendo não deveria existir. O Congresso deveria exercer sua responsabilidade de decidir, e todo este dinheiro que está sendo gasto poderia ser melhor utilizado. Segundo, o que está em questão é a legitimidade e vigência do Estatuto do Desarmamento. E, como estou convencido de que o Estatuto é um avanço importante em relação ao que havia antes, meu voto é “sim”.

Por ti America – comentários de Luisa Schwartzman

Luisa Schwartzman tem o seguintes comentários sobre a exposição do CCBB:

Fiquei impressionada com a coleção de peças pré-colombianas na exposição “Por Ti America.” Conseguiu-se juntar peças de várias épocas, de várias partes das Américas, com diversas funções e características. Peças lindas, verdadeiras obras de arte, algumas peças monumentais, peças bem antigas etc. Pena que o público ficou sem saber o que era aquilo, nem pode usar a oportunidade aprender mais sobre a história dos povos pré-colombianos, não sei se por ideologia ou por falta de competência mesmo.
Pode ser que seja verdade – como diz a exposição – que todos os povos da America pré-colombiana tinham elementos culturais comuns, e é interessante saber até que ponto isso é fato. No entanto, eu achei pena que a exposição se limitou a dizer isso, e mesmo assim em termos muito vagos. Vários desses povos tem histórias ricas e complexas que estão documentadas, e seria legal se a gente pudesse saber mais sobre isso. E já que diversidade está na moda, seria bom a gente entender a diversidade de culturas e experiências desses povos também. Não tem nenhuma ordenação e explicação que nos ajude a entender as histórias específicas de cada grupo, nem como essas histórias se entrelaçam ou não.
Tem muito pouca explicação sobre os objetos, muitas vezes a explicação quase não dá pra ver, por causa da iluminação e do pouco contraste entre a letra e o fundo. A maior peça do acervo, um totem imenso, não vem com uma linha para explicar o que é aquilo, quem fez aquilo, porque, ou pelo menos como trouxeram aquilo para o museu.
A idéia de que civilização é um conceito arbitrário e de que existe um contínuo entre escrita e desenho faz sentido para mim. O que não quer dizer que escrita e desenho sejam a mesma coisa. O fato de que os Maias inventaram a escrita não significa que eles sejam melhores do que outros povos ameríndios, mas esse fato deveria ser mencionado, especialmente dado que existem dois livros maias na exposição e, de novo, nenhuma linha sobre eles. A escrita dos Maias contam parte da sua história, nos falam de parte de sua vida. A escrita é uma forma de nos comunicar algo, e dado que a escrita dos Maias foi decifrada, é possível saber exatamente o que eles queriam contar. O que os livros Maias contam a gente não vê na exposição. Se os organizadores acham que existe um contínuo entre escrita e desenho, que os desenhos também contam histórias de forma não óbvia, tudo bem, eu dou toda a força, mas me contem então o que os desenhos dizem, me contem o que a escrita diz, em vez de usar isso de desculpa para não me contar nada, e apagar a história desses povos.
Outra conseqüência dessa ideologia homogeneizadora é que não existe nenhuma linha sobre uma peça no museu que eu reconheci como um instrumento de cálculo que os Incas usavam. É uma peça com vários fios, cada um com vários nós. Eu reconheci porque já tinha ouvido falar, mas quem nunca ouviu falar não ia saber. Será que, para não dizer que os Incas eram mais civilizados que outros povos, a gente tem que esconder o fato de que eles tinham inventado maneiras relativamente complexas de calcular? A gente não pode saber nem para que servia aquele instrumento, quanto mais saber como funcionava?
E eu não queria saber mais somente sobre as chamadas “civilizações.” Eu também quero saber sobre os outros povos. Por exemplo, no museu tem urnas funerárias lindíssimas feitas por povos que moravam na Amazônia. Quem eram eles? Existe alguma pesquisa que recupera algo de sua história, de sua religião, de sua cultura? Essas urnas nos ensinam algo sobre isso? Também fiquei sem saber.
Eu resolvi escrever porque gostei tanto das peças, achei que a gente estava perdendo uma ótima oportunidade de entender melhor sobre a história do continente. Contar essa história é mais fácil que colecionar as peças. Porque não contam? Onde estão as pessoas que passaram anos e anos estudando sobre os povos ameríndios pré-colombianos? Existem livros e livros sobre o assunto. Porque não usar um pouco do material? Talvez ainda esteja em tempo de acrescentar mais explicações, e realizar assim o potencial da exposição.

A liberdade individual e o comércio das armas

Eu pretendo votar “sim” no plebiscito de proibição das armas, mas temo que a campanha esteja indo mal, e que o “não” acabe ganhando.
A campanha pelo “sim” começou dizendo, de forma quase lírica, que ser pela proibição das armas era ser a favor da vida, e esta linha de defesa não foi muito longe. E as armas dos bandidos, quem tira? Porque que o governo, que não tira as armas dos bandidos, passa a responsabilidade para a população, e quer tirar as armas dos homens (e mulheres) de bem?
Os defensores das armas parece que estão sucedendo em colocar a questão em termos da defesa da liberdade e dos direitos individuais, contra a intervenção indevida do Estado em nossas vidas. Já li gente inteligente dizendo que proibir as armas é tão ruim quanto exigir o uso de cinto de segurança nos automóveis, ou restringir o uso de cigarros. O fato é que, graças a estas exigências e restrições, muitas pessoas estão vivendo mais e melhor, e o custo social de atendê-las e tratá-las tem diminuído. O mesmo vale para a obrigação de usar capacetes em canteiro de obras, ou dirigindo motocicletas: quem é contra, em nome da Liberdade? É absurdo colocar as coisas nestes termos. Nos Estados Unidos, a famosa American Riffle Association, de extrema direita, defende o direito da posse privada de armas em nome da necessidade de proteger os cidadãos contra o estado totalitário e interventor. É disso que se trata?
Eu sou a favor de legalizar o uso de drogas, não em nome das liberdades individuais, mas conhecendo as histórias desastrosas das tentativas de proibir o uso do álcool ou a prostituição. No caso das drogas, é bastante óbvio que a proibição, inclusive de uma droga bastante inócua como a maconha, gera toda uma indústria de repressão e contravenção que não existe em relação às bebidas alcoólicas, que são um problema muito mais sério, sem que o consumo de fato de reduza.
Toda a evidência empírica mostra que restringir o comércio de armas reduz as mortes violentas, tanto nos conflitos pessoais que se resolveriam de forma menos letal se as armas não estivessem disponíveis, quanto pela maior dificuldade que os criminosos teriam de obter armas para suas ações. Os princípios libertários dos fabricantes de armas, na campanha do “não”, têm a mesma credibilidade que os princípios libertários das fábricas de cigarro na defesa da liberdade de fumar.
Não é possível proibir que as pessoas fumem, mas é necessário restringir o uso e a propaganda do cigarro. O mesmo vale para as armas. Agora estamos começando a ouvir que a proibição que se pretende não é absoluta, que existe um Estatuto do Desarmamento bastante razoável já aprovado por lei, e que a realização do plebiscito não foi uma decisão “do governo”, mas uma vitória do lobby das armas no Congresso para postergar ou impedir vigência do Estatuto. Tomara que ainda dê tempo para que esta mensagem correta chegue à população.

Soy loco por ti America!

Muito interessante a exposição de arqueologia pré-colombiana no Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro, com mais de 300 peças de vindas de vários paises, e uma apresentação visual impecável, assinada por Alex Peirano Chacon, e participação ativa de Helena Bomeny e da equipe do CPDOC. Senti falta da contribuição do Museu de Antropologia do México, que tem o mais importante acervo sobre as civilizações pré-colombianas existente, e fiquei frustrado com as poucas peças do belíssimo Museu do Ouro do Banco Central da Colômbia. Mas, para quem ainda não teve a chance de visitar estes museus, a exposição do CCBB é obrigatória.
O que eu não gostei foi concepção que guiou a montagem da exposição. A ideologia politicamente correta aparecia nos textos dos murais: toda a América tem um passado comum, apesar da incrível diversidade das civilizações pré-colombianas (inclusive as do Brasil, representadas por poucas mas belas peças marajoaras e de Santarém, mas nada acima do México, já que o Canadá e os Estados Unidos não aparecem), e por isto temos que aprender a amar-nos uns aos outros; não existem sociedades mais civilizadas do que outras, viver nu na selva brasileira ou nas grandes cidades maias era uma questão de opção, muitas vezes, entre a liberdade e a opressão; e as civilizações pré-colombianas, com sua matemática, astronomia e técnicas agrícolas, era tão ou mais avançadas quanto as da Europa ou Ásia (mas não era que não existiam civilizações mais ou menos avançadas?).
O pior que é que esta ideologia parece ter tido um impacto muito ruim sobre a exposição. As peças são reunidas por algum critério de semelhança, sem permitir uma visão separada das diferentes culturas e tradições; a relação entre os temas das salas e as peças apresentadas é tênue ou inexistente; e muitas peças não têm nenhuma indicação de o que são, e de onde vêm. Para dar dois exemplos: no segundo andar existe um enorme e magnífico totem que eu gostaria de saber se é original ou uma réplica, e de aonde veio, porque não tem nenhuma informação sobre ele; e, em uma sala dedicada ao tema da escrita e da comunicação (aonde se diz que todas as formas de comunicação visuais são iguais, dos desenhos das cavernas aos alfabetos fonéticos), existe um quipu maia, que era um sistema de notação matemática feita por nós em cordas, sem uma linha sequer para dizer ao público do que se trata.
Fiquei com gosto de quero mais, com menos ideologia e mais informação para o público.

O negócio dos cerebros, e o assalto ao trem pagador

Imperdível o survey sobre Educação superior no mundo publicado pela revista The Economist de 10 de setembro, com o subtítulo de The Brain Business, sobretudo para quem quiser entender a enorme distância que separa o que está ocorrendo no mundo do projeto de “reforma” proposto pelo nosso Ministério da Educação.

Existem quatro tendências que estão transformando a educação superior em toda parte – massificação, a expansão da economia do conhecimento, a globalização e a competição entre as universidades. Tudo isto torna o ensino superior mais desejado, mais necessário, mais importante e mais caro. Nem tudo são flores. O pior dos mundos é quando o Estado mantém o ensino superior sob tutela, e não lhe dá os recursos necessários. O melhor dos mundos (e, vindo da The Economist, não é surpresa) é quando o sistema é desregulado, aumenta a competição, e as instituições têm liberdade de buscar seus próprios recursos. Os exemplos positivos são os Estados Unidos e a China; os exemplos negativos, a maioria dos estados europeus, simbolizados pela decadente Universidade de Humboldt. E a grande novidade é a criação de uma nova liga de universidades globais, que trabalham na fronteira do conhecimento. O survey termina com dois conselhos, tanto para paises que estão querendo desenvolver seus sistemas de ensino superior, como a Índia e a China (o Brasil não merece muita atenção) quanto para os que tem que lidar com sistemas decadentes, como a Alemanha: diversifiquem suas fontes de financiamento, e deixem que mil flores floresçam. O pacto com o Estado, que antes mantinha as universidades funcionando, transformou-se em um pacto com o diabo.

Ao mesmo tempo, consegui finalmente uma copia de Education and jobs: the Great Training Robbery, de Ivar Berg, editado em 1971 (Center for Urban Education, Beacon Press), que estava procurando sobretudo por que havia gostado do título. É uma critica equilibrada e muito bem feita à teoria do capital humano, que me parece muito necessária. A questão é se o aumento observado de rendimentos associados à posse de diplomas é uma conseqüência das competências que estes diplomas refletem, ou de outras coisas como credenciais e posições de prestígio associadas aos títulos. A resposta razoável é que depende, mas não se pode continuar supondo, sem maiores qualificações, que anos de escolaridade, ou diplomas, são a mesma coisa que conhecimento e competência. O termo “indústria do conhecimento” e “negócio de cérebros” ainda não estava em moda quando este pequeno livro foi escrito 35 anos atrás, mas a tendência ao crescimento ilimitado dos sistemas de ensino, justificada, sem avaliação mais cuidadosa, pelo aumento de produtividade que eles gerariam, já ocorria de forma clara, consumindo um volume cada vez maior de recursos públicos e privados. O livro de Berg faz parte da corrente minoritária de estudiosos que não compram a teoria do capital humano na sua forma mais crua, e que inclue a Alison Wolf (Does education matter? Miths about education and economic growth, Penguin, 2002) e Randall Collins (The Credential Society, Academic Press, 1979). Se os benefícios privados da educação tem sido grandes, mas a relação entre estes ganhos privados e os benefícios públicos é incerta, então a justificativa para o subsídio público indiscriminado à expansão da educação superior fica abalada, assim como para a regulação detalhada dos títulos e das profissões.

O survey da The Economist está totalmente na linha da teoria do capital humano, e não toma em consideração o problema da educação de má qualidade, que floresce quando as credenciais predominam sobre os conteúdos, a não ser como fenômenos esporádicos de “corrupção”. Mas a conclusão, sobre a necessidade de abrir mais os sistemas educacionais e reduzir sua regulamentação e controle por parte do Estado, vale nos dois casos.

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